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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIacuteBA
MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Joatildeo Pessoa ndash PB
2011
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MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada para avaliaccedilatildeo da obtenccedilatildeo
do tiacutetulo de Mestre na Aacuterea de Concentraccedilatildeo
Literatura e Cultura e Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e
Modernidade Aleacutem dos elementos preacute e poacutes
textuais essa trabalho pesquisa constitui de trecircs
capiacutetulos Esta pesquisa doi desenvolvida atraveacutes do
Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Orientador Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo
Joatildeo Pessoa ndash PB
2011
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D192t Dantas Michelle Bianca Santos
Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011
149f
Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA
1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero
traacutegico 5 Homero
UFPBBC CDU 82(043)
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MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da
Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e
Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade
Aprovado em __________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
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A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada
dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo
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AGRADECIMENTOS
A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda
proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao
longo deste mestrado
Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no
meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem
agradeccedilo pela torcida
Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de
companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as
conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar
Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre
torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento
Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da
minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia
como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo
aos estudos claacutessicos
Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes
consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva
Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas
traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf
Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas
muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico
Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada
Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa
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ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males
quando]
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores
contra o destino]
(Odisseacuteia I 32-34
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RESUMO
O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da
Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses
aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee
Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A
Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute
fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais
importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do
mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth
Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e
principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser
reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de
Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute
privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo
Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do
nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade
que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos
tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que
possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o
primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico
aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia
Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses
encontros
Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico
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REacuteSUMEacute
Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea
Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI
de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique
rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec
sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres
oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette
oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus
importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En
outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme
aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et
principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre
reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive
dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait
nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis
la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et
dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous
observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le
fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser
compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly
Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif
de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation
mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et
conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee
Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces
rencontres
Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique
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SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23
121 A Estrutura do poema___________________________________ _28
122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36
2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47
22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48
23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON
AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89
32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
Aacutejax___________________________________________________________________115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146
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INTRODUCcedilAtildeO
A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence
juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do
seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas
em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros
legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas
epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a
inesgotabilidade de leituras literaacuterias
Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso
ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte
anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e
nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica
pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no
Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com
Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela
sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador
campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na
disputa das armas do filho de Peleu
Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos
como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros
Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles
Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo
estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse
gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os
futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio
refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo
delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O
estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que
ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles
define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988
p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia
12
tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro
de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes
da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da
trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para
nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da
Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica
das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides
Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura
criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico
ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa
obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria
cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A
Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem
a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste
caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas
Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas
desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo
por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido
preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta
maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na
aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e
aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem
importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo
literaacuterio ocidental
Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada
epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho
Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave
paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu
lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros
autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do
traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros
literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico
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das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio
Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia
estaacute para Odisseacuteia
Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas
caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O
teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos
gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos
traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais
tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega
(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se
encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita
objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E
assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da
trageacutedia
Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de
Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico
A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa
tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no
Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior
potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila
do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando
Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos
Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus
amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria
em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha
mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo
sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do
que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os
desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que
teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda
muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em
Iacutetaca
Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por
Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA
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trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se
conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo
elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e
escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade
trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a
violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia
comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)
Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a
ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria
mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para
tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas
primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros
claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados
da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos
aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as
traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa
produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia
Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon
de Eacutesquilo
A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da
epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que
seratildeo descriminados a seguir
No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia
realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade
temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns
ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua
estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado
tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus
epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados
estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos
por o de muitas voltas e o muito astuto
O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais
em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem
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conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas
nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia
Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia
estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a
partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm
sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento
do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico
especificamente o realizado no mundo grego
No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa
dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos
um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de
tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI
objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos
Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a
manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo
discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade
no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de
toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma
maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos
com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da
dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica
Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma
aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a
realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi
desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute
comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que
nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas
tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura
Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra
tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas
traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute
constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute
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metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso
texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees
Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do
texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de
1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de
1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I
mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja
traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores
de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias
Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009
traduzida por Carlos Alberto Nunes
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1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico
Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente
que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona
problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio
Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar
seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica
sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-
se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo
() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα
πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)
Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho
sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1
Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque
discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a
Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver
parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero
No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o
autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da
literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas
eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido
oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do
tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como
nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo
completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as
eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como
1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem
indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins
esteacuteticos
18
obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em
relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais
Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e
resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo
tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico
Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos
hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia
que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O
que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo
quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar
Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da
comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo
possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua
autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos
nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero
para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato
daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas
mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita
depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito
saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto
mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia
principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo
Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da
a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura
aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia
guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia
E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que
passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras
2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja
agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido
militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja
meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem
valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta
tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da
virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito
da virtude de um homem nobre
19
diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no
proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees
De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que
os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth
qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia
do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria
pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que
almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute
a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o
mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia
humana(JAEGER 2001 p 31)
Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada
inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das
trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o
heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para
vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer
a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado
Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de
desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj
ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos
demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A
importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos
μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα
τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι
355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν
ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων
ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5
(Iliacuteada I 353-357)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua
escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos
5 Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de
abril agraves 1604 hs
20
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que
355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um
[pouco
pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me
jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo
[arrancado-me
Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute
natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta
cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo
haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do
pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer
desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do
ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes
conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos
seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato
Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes
Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles
simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos
indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os
priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem
receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado
(JAEGER 2001 p 31)
Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a
a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-
se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave
virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como
o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de
Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de
superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais
Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada
para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da
morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer
em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos
para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes
21
para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e
devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por
Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico
de que tantos falam
A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)
diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se
tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais
paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao
feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai
significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer
uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego
arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que
em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees
sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio
poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita
o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso
natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute
concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada
Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o
excerto abaixo
Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν
πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων
ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην
τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας
890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν
Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()
Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην
925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην
πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε
Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα
γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι
ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6
(Teogonia 886-891924-929)
6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048
hs
22
Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia
mais saacutebia que os deuses e os homens mortais
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena
ele enganou sua entranhas com ardil
890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo
por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado
()
Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos
925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel
soberana a quem apraz fragor combate e batalha
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
natildeo unida em amor gerou Hefesto
nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7
Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a
respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao
combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a
cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi
chamado pelo destino (2005 p 252)
Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo
homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo
a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na
Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica
Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta
Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas
como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa
ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre
pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles
que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio
essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves
determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser
feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar
de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do
destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da
Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute
7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)
23
que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim
mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute
que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios
Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do
culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em
que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por
Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os
ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a
desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta
peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a
exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado
Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego
arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da
eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade
mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de
Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de
civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um
arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais
linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia
A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos
baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se
inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC
e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC
O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado
notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo
compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas
24
leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua
organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se
com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)
No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse
periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada
aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve
nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute
quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio
das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-
se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em
conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo
grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III
aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de
obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra
Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo
apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a
Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura
A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo
Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que
foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o
periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de
vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito
posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central
da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia
Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar
com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa
banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens
8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego
arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a
figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a
logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico
25
Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos
afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando
ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a
reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e
agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo
respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos
Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar
algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o
divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e
independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo
pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas
dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha
Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de
quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor
se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a
Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e
culpam os deuses por suas falhas Vejamos
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο
γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino
35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida
desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno
Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em
diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera
Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto
VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX
9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
agraves 1100hs de 15 de julho
26
Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus
Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e
representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um
quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem
de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de
embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso
O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de
guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas
A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina
exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem
poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta
(BRANDAtildeO 1998 p 40)
A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia
tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei
distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o
pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma
esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma
nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente
caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto
(LESKY 1995 p 60)
Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos
Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute
mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural
importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma
ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o
cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a
emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre
300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα
10
Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante
entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa
27
οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()
326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)
Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos
Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo
por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas
depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor
Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima
Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo
Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos
Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia
como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para
o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que
reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem
reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto
XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica
todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)
Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada
inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi
escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees
sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade
estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as
duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as
num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas
relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra
peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo
de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O
primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute
bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que
traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro
reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html
28
A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o
nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que
compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise
especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI
121 A Estrutura do poema
Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)
da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de
epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada
tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei
principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de
inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia
De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz
com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em
que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da
epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta
denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a
poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa
palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a
poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical
das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao
criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo
simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como
o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de
epopeacuteia (ecopypopoiia)
Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender
melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define
a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A
partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas
29
da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da
trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica
Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo
aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a
aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as
suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com
unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas
epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu
eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos
da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees
sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que
alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas
controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de
composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse
sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)
Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que
a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela
extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia
natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios
Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de
elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da
epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo
de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o
retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia
narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos
Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute
exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a
narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico
O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se
encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da
invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo
25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο
ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον
30
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα
ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι
30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα
καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων
σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν
35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)
Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide
―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute
sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos
e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees
Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas
por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso
colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13
Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as
Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No
proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I
encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as
muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos
desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos
Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
12
Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml
retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13
Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14
Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas
plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute
bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo
aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de
aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente
assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo
31
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)
Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito
vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso
Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos
Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol
Por outro lado este os tirou o dia do retorno
Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto
Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao
longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros
de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos
Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as
Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos
pretendentes
No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova
invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma
manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se
abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em
Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos
trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no
Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos
Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e
o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma
siacutentese de cada Canto
Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a
fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso
haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria
e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com
15
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs
de 27 de abril de 2010
32
Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos
Pretendentes no palaacutecio de Odisseu
Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para
solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida
Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua
matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida
Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e
encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-
se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz
relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia
Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho
Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre
o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do
irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as
notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os
pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco
Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de
Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e
liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo
oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade
destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios
Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios
A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa
obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas
comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de
Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade
Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se
aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede
33
sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta
sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa
Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de
devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno
Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos
Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as
muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende
desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute
Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que
passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento
forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes
dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente
consegue escapar
Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola
com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola
abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo
Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem
pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute
acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o
no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias
Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar
Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria
proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno
agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando
de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e
Aacutejax
Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o
adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao
mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave
34
ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do
deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos
demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa
Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais
oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam
Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute
petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes
e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido
Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro
Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre
o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que
acredita no retorno de Odisseu
Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino
de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer
para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco
parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu
Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do
seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos
pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho
Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o
que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o
apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por
Antiacutenoo um dos pretendentes
Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no
palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de
firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta
noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem
35
Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar
Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente
mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A
ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o
heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele
Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que
de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso
Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus
sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez
Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes
banqueteiam-se
Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo
e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os
dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele
que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo
tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis
que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos
Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes
Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado
diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta
e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se
dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina
Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se
vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e
quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de
frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi
quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso
Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai
ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a
36
cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e
vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos
pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada
Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os
periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos
melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia
de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de
Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e
diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as
peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes
estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram
exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza
fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos
destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso
objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos
acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do
presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se
insere o nosso corpus
122 Odisseu o heroacutei multifacetado
Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos
expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees
do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef
noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY
2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de
coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a
traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but
applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p
309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo
37
homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas
definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de
tentar defini-lo
Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem
os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os
trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a
Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas
satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de
ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a
define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis
venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos
que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena
Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus
Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados
Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo
intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo
satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que
satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque
as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de
caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e
natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade
tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e
consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16
Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute
mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute
segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos
lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os
acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute
da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina
Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por
sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu
16
Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a
nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico
38
Prometeu ~ Cliacutemene
darr
Deucaliatildeo ~ Pirra
darr
Deacuteion ~ Diomedes
darr
Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone
darr darr
Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea
Laertes ~ Anticleacuteia
darr
Odisseu ~ Peneacutelope
darr
Telecircmaco
Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer
heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes
esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de
Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais
importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus
feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu
eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril
Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro
prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas
ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu
com essas funccedilotildees
A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente
aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos
seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma
divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por
isso todos eles seratildeo punidos por Zeus
A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de
fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da
gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a
39
mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para
regressar a Iacutetaca
A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais
explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina
dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas
compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos
Vejamos a referida passagem
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17
(Odisseacuteia XXII 401- 406)
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo
apoacutes devorar um boi do campo vai embora
Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados
Assim terriacutevel nas faces era de se ver
Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes
Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns
aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de
Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj
a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra
maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida
gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que
ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para
cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)
Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)
Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja
Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive
tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia
de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon
17
Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html
40
no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros
Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos
proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles
Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de
Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo
em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos
Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da
centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da
descendecircncia heroacuteica18
Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu
sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que
Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os
pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama
Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do
prudente Odisseu
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)
18
Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de
2010
41
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo
que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia
possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados
assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror
Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem
do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada
tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu
para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu
importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o
Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena
em sua paacutetria
Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria
como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada
dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o
heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em
busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento
de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um
labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute
realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado
para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar
No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm
algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou
estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a
20
Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos
42
definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter
sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)
Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos
sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo
filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de
Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao
personagem maior da Odisseacuteia
Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu
representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21
e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se
relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo
Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral
principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a
importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees
num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos
dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e
vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes
recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual
atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois
poemas
Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem
mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar
os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei
Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos
revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim
como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos
sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj
Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia
21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este
eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute
disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004
43
Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ
πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ
πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ
5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22
Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito
errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para
o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou
seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz
Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute
feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa
muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo
Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta
retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por
muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X
e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades
Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder
de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo
de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus
discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se
oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu
verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de
muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e
multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim
ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o
mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com
todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj
nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma
compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees
22
Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
44
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
(NUNES 2009 p 28)
Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade
sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de
numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu
no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de
conseguir o regresso dos companheiros
(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)
Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me
dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la
ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes
et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par
tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23
(BEacuteRARD 2009 p1)
Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial
semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e
acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille
tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo
grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente
Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse
Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera
importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj
Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos
intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi
estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando
aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para
expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se
23
Traduccedilatildeo
Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer
Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado
a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens
e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por
tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar
45
para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar
buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores
logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade
representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os
feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu
poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas
voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato
Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a
persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e
evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de
Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou
seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881
ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida
de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si
Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica
da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em
poder quanto em prudecircncia24
Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a
chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena
compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio
astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o
intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade
Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de
muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em
sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria
Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de
Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha
Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia
no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25
Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com
24
Versos 892 e 898 da Teogonia 25
A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia
conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531
Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo
percebido que se tornara mito ainda em vida
46
Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o
acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes
vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca
Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()
Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem
de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)
A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos
centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei
sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os
trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)
No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e
de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo
isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que
o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica
47
2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico
Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do
traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir
dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este
autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos
Vejamos
Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos
criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores
faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do
traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a
envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)
Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram
o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o
desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar
de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos
presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em
profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se
dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo
destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso
trabalho
Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos
trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-
nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin
Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e
Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do
traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho
delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que
48
eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir
dos encontros que Odisseu tem no Hades
Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo
importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O
traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro
discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo
sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir
da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos
de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa
anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente
22 O traacutegico e a trageacutedia
No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do
traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de
um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico
Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a
delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar
traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas
interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao
contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento
traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da
kaqamacrrsij26
Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a
inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a
conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica
grega
A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou
ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos
26
Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do
trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido
primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo
49
define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva
etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj
(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou
semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura
grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o
traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como
manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia
veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia
Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas
do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o
tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao
gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode
siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante
socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo
envoltos em uma accedilatildeo grandiosa
Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo
dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como
pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico
como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes
desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC
Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos
destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)
Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que
pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o
adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um
exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na
produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que
() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da
existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos
traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito
pretendido pelo poeta (Ibidem)
Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute
inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas
50
categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na
narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)
Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso
ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem
tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato
podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho
Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o
pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos
ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο
ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε
ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ
πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο
600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ
ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27
(Iliada XXIV 596-601)
Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento
sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do
outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso
Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti
estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde
ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete
Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo
pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia
desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do
sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo
informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal
que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um
mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete
ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem
ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito
e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do
banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico
Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico
(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos
27
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010
51
convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem
de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico
natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma
incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave
exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero
direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural
com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de
Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia
Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia
traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas
entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante
influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor
traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com
Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da
Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte
posicionamento de Jacqueline de Romilly
Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das
suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido
buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover
Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar
um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os
tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o
gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio
(ROMILLY 2008 p 22)
Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os
tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em
meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico
contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas
epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos
que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas
atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias
homeacutericas
Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a
influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados
52
a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos
Sandra Luna
() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza
humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das
quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua
cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o
desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus
os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute
sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)
Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento
favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa
Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo
tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta
problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do
traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero
no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de
Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga
de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a
peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis
gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados
na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no
proacuteximo capiacutetulo
Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros
elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-
nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28
os personagens nobres
e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a
sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A
diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo
do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico
Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico
principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva
28
O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo
centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a
Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a
Iacutetaca
53
como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de
Homero legaram-nos o traacutegico
Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a
trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso
acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se
realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se
tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a
necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte
suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta
exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia
Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee
certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um
nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se
precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas
origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das
dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)
Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta
de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a
eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995
p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com
outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29
ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio
De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas
dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que
almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva
Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo
Vejamos
Γελνκέλε30
δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ
θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ
θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )
κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς
29
Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30
A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente
do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos
reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito
54
θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε
ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)
Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma
(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta
pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas
cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu
desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado
apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua
natureza proacutepria
Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao
ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades
proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a
trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa
conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo
tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica
Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos
eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa
relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-
se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias
Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie
attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote
nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une
deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32
(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as
consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia
relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e
Soacutefocles Diz-nos
La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord
eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue
amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme
acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme
acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33
(Ibidem p 19)
31
Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html
agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32
Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a
uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33
Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto
em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o
segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira
vez por Soacutefocles
55
Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia
informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o
festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34
de Lesbos Este se consagra como o primeiro
ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas
informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma
definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando
Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque
ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine
agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois
acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la
ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35
(WILAMOWITZ 2001 p 117)
Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos
legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que
muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as
exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma
temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir
Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no
surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania
Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute
nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos
ainda
A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas
urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de
trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A
proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente
religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p
14)
Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de
pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante
34
Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria
reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35
Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada
de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e
ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus
56
dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que
a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a
comeacutedia
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo
clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos
distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra
(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por
isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o
precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim
sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser
primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso
O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os
rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da
reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal
aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por
Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a
centralizaccedilatildeo do poder
Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das
transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam
o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os
cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor
entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero
literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser
A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia
ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e
claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas
Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas
o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida
eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)
Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada
facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que
produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36
(FINLEY 1970 p 101)
36
Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -
estritamente falando ndash a trageacutedia ()
57
Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo
psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos
que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais
precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e
proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este
problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a
manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e
estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a
comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira
A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo
social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos
seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os
cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados
das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como
objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico
(Ibidem p 10)
Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela
se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica
nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a
trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento
importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua
fragilidade e limitaccedilatildeo
E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave
representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa
contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser
completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo
associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em
estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico
Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de
que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso
questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do
sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante
(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa
possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade
58
representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio
daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual
passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso
reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da
fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao
infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser
observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e
Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute
o mais traacutegico
Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal
geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de
uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos
que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com
reconhecimento37
do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38
do grego peripemacrteia
diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses
elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo
esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila
Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus
elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto
coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39
O primeiro constitui a parte da
trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre
dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui
dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o
estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus
Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos
a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se
e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois
37
Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo
mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer
conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38
Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de
mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a
imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do
inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39
Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em
todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees
59
elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o
coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo
figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de
atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia
apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs
Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento
primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto
na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de
peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe
Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica
com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu
material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p
70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa
relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma
A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode
comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos
intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila
estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento
do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A
epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas
por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)
A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico
acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto
indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz
perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada
tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural
verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos
ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute
encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura
grega atraveacutes das trageacutedias
No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua
manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia
sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o
objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir
60
do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo
eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas
no seacuteculo IV aC
23 O traacutegico na Poeacutetica
Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na
Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica
sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se
importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi
influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na
estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia
veicular aos jovens do estado
Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo
relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual
Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante
desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado
Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os
posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da
perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por
considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte
literaacuteria
Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a
a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se
prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes
da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico
No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um
mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo
contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas
o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem
claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o
que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a
61
que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de
heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em
situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees
feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de
considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz
[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο
ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ
ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ
κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40
(Repuacuteblica III 387b)
Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de
narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado
aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos
audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo
receado mais a escravidatildeo do que a morte
Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as
passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para
compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da
Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu
objeto de criacutetica Vejamos
[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα
ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41
(Repuacuteblica III 386c)
Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta
natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um
trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e
que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre
cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos
Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria
homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades
com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe
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Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010
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como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para
eles representa um infortuacutenio
Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se
desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo
para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim
como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em
detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha
realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o
Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri
com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar
(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para
Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado
beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos
mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia
Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que
ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira
dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se
arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo
definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo
beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral
Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se
encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e
negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao
inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de
desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim
mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de
amizade
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Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010 43
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de
2010
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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a
explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo
do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a
arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a
sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam
permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero
responde
[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο
παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44
(Repuacuteblica
III 397d)
Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para
cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura
O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por
Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute
Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da
estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser
positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas
consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que
Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos
aristoteacutelicos
Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois
considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-
se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias
mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade
No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais
desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade
por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x
aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da
irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens
44
Textop retirado de
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3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection
10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo
nomoj46
Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor
da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou
estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de
sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de
outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como
tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia
θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη
ιέγεηλ47
(Repuacuteblica X 595b)
E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a
respeito de Homero que impede-me de falar
() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε
θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48
(Ibidem 595c)
Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos
autores traacutegicos
Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero
realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base
mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores
traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria
elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas
como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia
exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua
intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo
como bem nos caracterizou Platatildeo
46
Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido
primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes
da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47
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10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48
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10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu
mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no
sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da
funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as
concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica
Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como
Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria
etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os
comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais
gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a
trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma
Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()
fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa
thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)
Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho
artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua
finalidade
Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica
ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o
traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define
Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos
constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz
da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de
fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas
Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a
epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou
49
Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre
algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o
compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma
coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo
poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a
poeacutetica 50
ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51
Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que
significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra
informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de
66
seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute
bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela
os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma
representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila
A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do
texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como
doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever
pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente
formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida
quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que
mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele
como o fusioloiquestgoj53
No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da
trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a
poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os
homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito
traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e
gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico
realiza-se
Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a
sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil
Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-
se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres
nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes
citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de
Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles
quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito
natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da
accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52
Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo
verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a
pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53
O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj
genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual
Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a
significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo
67
protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles
Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo
estando presentes numa narrativa eacutepica
No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que
Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o
autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os
direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos
Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ
ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο
θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ
δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ
δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54
(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)
Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)
nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo
tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a
poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua
analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as
trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias
Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo
dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como
comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros
elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo
traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem
que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da
trageacutedia
Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e
caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no
capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao
iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia
Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο
ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο
54
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de
2010
68
δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55
ηὴλ ηλ
ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)
Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui
certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em
seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio
da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos
Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas
baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que
deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave
frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran
kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver
narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um
narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito
importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml
fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo
Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a
piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os
espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico
enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em
relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento
55
A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar
levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica
a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que
simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de
2010 57
Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em
temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer
fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao
ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste
termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J
Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que
terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj
apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da
referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido
daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade
que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror
acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso
bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute
apropriada para as trageacutedias gregas
69
de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa
thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a
catarse de tais sofrimentos
Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse
termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)
sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu
sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para
tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo
para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica
A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do
verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)
Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa
puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da
accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que
esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja
este meacutedico seja religioso
Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo
limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo
religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que
desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um
rito presente em todas as religiotildees
Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos
acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar
de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e
malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para
que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo
utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim
natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade
semacircntica
Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em
kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da
trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para
70
entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para
Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem
disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso
natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente
da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico
Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que
o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em
infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que
tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil
por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado
pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do
excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos
chegar a Iacutetaca
Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se
suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees
representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como
ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade
de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor
Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez
anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da
esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos
esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece
indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon
um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria
para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo
isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um
grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir
tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa
tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em
Agamecircmnon
58
Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que
ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim
71
ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ
πο ζε δαθξύζσ
θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ
θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽
ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Ioacute ioacute Rei rei
Como chorar-te-ei
O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo
Eacutes posto nessa teia de aranha expirando
a vida por uma impiedosa morte
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e
piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou
formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo
estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o
temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute
provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij
Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos
percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo
chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a
partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor
e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o
traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes
da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele
decorre da accedilatildeo dos personagens
E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia
grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)
e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute
exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento
o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma
72
Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία
κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ
θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59
(Poeacutetica VI 1450a 15-19)
O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute
representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a
fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma
qualidade
Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz
que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem
loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo
supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln
pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)
ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres
Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61
(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia
Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute
proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem
traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa
tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em
uma situaccedilatildeo de vida
Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo
dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia
Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante
compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos
Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε
ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)
59
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de
2010 60
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010 61
Ibidem 62
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010
73
Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que
satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos
Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos
quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para
intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia
Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar
aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos
asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes
do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define
Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por
isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo
informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a
que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de
Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da
memoacuteria e do silogismo
Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito
Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo
vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois
quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se
reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos
por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras
traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o
segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver
que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por
um crime que natildeo cometera Observemos
ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ
ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ
ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63
(Eacutedipo Rei 1182-1184)
Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras
Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim
eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade
63
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves
1940hs de 17 de julho de 2010
74
ἰὼ
ζθόηνο ἐκὸλ θάνο
ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί
ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα
ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ
ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
64
(Aacutejax 394-403)
Ioacute Treva toda minha luz
Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim
Leva-me leva-me para tua morada
leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia
para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ
κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο
θνὐθέηη κνη θο
νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο
ἰὼ ἰώ65
(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)
Ai de mim matildee Pois este mesmo
canto do acaso caiu para ambas
Para mim natildeo (haveraacute) mais luz
e nem a claridade do sol
Ioacute ioacute
αἰαῖ αἰαῖ
δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ
ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ
ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη
()
αἰαῖ αἰαῖ
θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη
κέζεηέ κε ηάιαλεο
θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη
πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66
(Hipoacutelito 1348-501370-74)
64
Tento disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs
de 17 de julho de 2010 65
Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de
17 de julho de 2010 66
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves
2030hs de 17 de juho de 2010
75
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto
de profecias injustas desfeitas vergonhosamente
fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
E agora vai causa-me dor causa-me dor
deixais-me ir desgraccedilado
e que o Curador da morte venha para mim
destroacutei-me destroacutei-me
As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando
os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos
Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a
matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor
Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o
responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado
enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de
reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir
toda a tragicidade
Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna
do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o
desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a
peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela
explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento
reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia
aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem
reconhecimento e peripeacutecia
Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e
como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou
muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a
compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a
teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia
Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute
que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem
do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo
76
suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que
ele diz
ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ
ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67
(Poeacutetica VII 1451a 11-15)
Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro
segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar
para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o
limite conveniente de sua extensatildeo
A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a
estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para
a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve
desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna
tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado
tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo
traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz
compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a
mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo
por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila
prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender
que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por
completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da
accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna
No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico
comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o
temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel
situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que
causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo
porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes
sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas
situaccedilotildees
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ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo
virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea
Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio
ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu
significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei
que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de
ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ
Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο
δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ
βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν
ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja
falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss
the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome
indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave
traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos
para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio
importante esse erro pode ser de origens diversas
Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico
indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute
largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro
68
Ibidem 69
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
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Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso
grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece
Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave
conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral
originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou
grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico
Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que
geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado
Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos
sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo
mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas
traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das
realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas
da famiacutelia
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos
o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos
entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico
mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse
aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba
por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas
Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e
aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees
teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos
70
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depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como
tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel
manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas
Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico
continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as
discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que
desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso
objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa
proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de
Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna
Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na
trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto
do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre
mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino
caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais
tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito
do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado
por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o
homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT
2008 p 21)
Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar
uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria
depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso
Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o
primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute
considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que
possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente
aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha
80
O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute
atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do
espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a
outra eacute por meio do adikon71
em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro
Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem
voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute
chamado de adikon injusto
Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da
vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo
contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant
(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a
vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses
como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia
dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos
Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade
Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide
qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si
proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se
manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)
A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o
homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos
apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade
ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por
potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)
Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo
Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma
etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da
vontade (Ibidem p 42)
A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do
homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o
responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o
71
Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo
aatildedikoj significa injusto
81
contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a
condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes
heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por
exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que
fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele
mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se
num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma
elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama
representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores
eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados
possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na
trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de
um impasse porque
A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito
(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz
condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de
suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves
outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)
Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais
combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica
Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do
traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo
vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e
levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de
Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo
relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna
Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se
introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-
se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a
trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da
trageacutedia claacutessica
82
No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia
particular por ter conservado um contato constante com as realidades
colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter
conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no
outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu
verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados
E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008
p 168)
Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser
confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que
crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve
haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh
(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem
necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees
traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas
inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo
dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo
proacuteprio coro segundo Romilly (2008)
Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos
companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto
ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu
demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon
segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do
destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra
pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla
causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em
geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees
A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute
algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas
tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute
renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o
divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e
seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por
72
O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar
83
isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como
sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos
Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros
dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre
neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como
culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o
lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o
lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)
Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz
com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem
traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda
manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir
da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos
seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um
E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de
respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia
Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e
classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto
(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo
dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada
com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e
adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos
possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo
entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros
Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado
substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser
feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero
conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos
estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)
Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e
de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns
pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia
homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca
tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica
84
existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria
regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos
que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos
realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das
avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de
um trabalho
Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego
(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico
uAgravebrij73 e aatildeth74
A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida
cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao
heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e
qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com
os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-
ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele
afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida
No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia
(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais
precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas
Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma
situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como
vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do
infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o
exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da
trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo
necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise
porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar
em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por
exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser
73
Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma
desmedida 74
Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a
puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses
85
visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno
sentimento de desonra
Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo
tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar
compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a
outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara
a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do
seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da
Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos
germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky
(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento
respalda nossa pesquisa
Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky
(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que
os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso
ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da
Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura
narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar
sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da
famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como
destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais
difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder
continuar em sua jornada
Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita
tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute
tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a
presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com
narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser
verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo
para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por
exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem
neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo
86
que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que
passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante
Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do
traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria
pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o
traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido
mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o
sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o
sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos
sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico
(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a
sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar
como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia
poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a
compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente
Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky
diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido
consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com
isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo
entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave
objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)
Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes
explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os
indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora
afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu
objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver
algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos
de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da
Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e
sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se
necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)
Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada
pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute
deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse
87
que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee
Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino
infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute
retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por
isso Luna afirma-nos
Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos
elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que
reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo
inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de
mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)
Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos
tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo
literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-
o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute
verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica
sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao
contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas
por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo
nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como
ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato
todos se derramavam em laacutegrimas
Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute
―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia
manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim
da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No
proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia
em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a
assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa
fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de
estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia
Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila
de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem
para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para
o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de
88
escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope
pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio
E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos
que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser
seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou
distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim
do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois
neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo
Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve
seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode
contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os
relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo
de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar
Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos
importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as
relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos
compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No
segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir
delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que
circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do
traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu
para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no
qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia
89
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade
Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao
longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave
ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra
tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o
desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no
Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do
traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se
com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e
Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de
amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico
Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado
as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras
representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC
seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas
obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de
Soacutefocles
Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou
representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro
em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer
da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso
objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser
encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto
Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas
epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a
identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no
segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da
90
Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem
tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes
elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75
pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o
temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao
iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute
apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220
responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia
perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde
215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε
νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο
ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε
λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ
220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76
((Odisseacuteia I 215-220)
Minha matildee diz que fui gerado por ele mas
pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo
existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem
Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado
de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas
Agora do mais infeliz dos homens mortais
eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas
Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento
do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno
quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o
sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer
que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por
elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da
75
O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual
os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao
sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua
desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode
ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo
culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos
encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos
traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo
impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010
91
piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo
nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de
nosso ser77
(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que
Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto
mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que
cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo
uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou
νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78
ζηελαρίδσ
νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ
()
ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ
ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ
250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο
νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79
(Odisseacuteia I 243-244 248-251)
Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas
nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me
()
A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e
ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar
eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo
meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo
Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o
a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente
apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor
imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em
Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra
mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute
77
Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo
em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos
espectadoresleitores 78
A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo
expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada
(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do
infectum 79
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010
92
comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens
de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um
dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos
dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens
deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os
dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute
natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto
Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila
sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento
diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que
nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor
aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do
que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica
ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute
tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e
maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus
muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os
tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de
Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa
ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη
ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ
80
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho
de 2010 81
Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho
93
60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο
Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82
(Odisseacuteia I 58-62)
Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila
que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer
Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido
Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios
Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus
A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver
um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer
imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o
traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos
sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter
ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os
demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o
filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus
ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ
Κύθισπνο θερόισηαη83
ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ
70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84
(Odisseacuteia I 68-70)
Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre
o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope
O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e
consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo
inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria
sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos
82
Texto disponiacuteevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83
O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de
Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)
Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo
de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010
94
no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros
que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios
sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela
necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos
uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros
ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ
290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ
ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ
ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ
ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα
ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο
295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85
(Odisseacuteia IX 289-295)
Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra
os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo
O jantar preparou com eles tendo partido seus membros
comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada
entranhas carnes e ossos com tutanos
Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus
enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras
a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo
Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se
pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel
Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro
Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope
pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do
Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele
seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo
horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o
daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos
() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο
ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ
85
Texto disponeacutevel em
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3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86
O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e
Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade
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375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο
ἧνο ζεξκαίλνηην ()
380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη
ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ
νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ
ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο
δίλενλ87
(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)
() para fora da garganta colocava vinho e
pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado
alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza
ateacute que queimasse ()
eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram
em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem
Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira
e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me
apoiado por cima fazia (a vara) girar
A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem
pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento
tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo
temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do
monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do
homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi
visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das
circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a
autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas
tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a
―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que
temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute
entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia
No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado
sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado
pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo
podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais
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D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010
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uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros
pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros
possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem
fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados
com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu
continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo
Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ
ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88
ἀεηθειίελ ἀιασηύλ
θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη
505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89
(Odisseacuteia IX 502- 505)
Ciclope se algum dos homens mortais vier e
perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho
podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de
cidades]
o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada
Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e
orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar
mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os
soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas
afliccedilotildees
Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender
como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o
Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute
passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios
partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira
cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e
uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta
cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu
diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo
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Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro
(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar
Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de
transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89
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D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010
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o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes
Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras
injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por
Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca
Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as
circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e
principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de
Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos
personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que
tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens
acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a
tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus
companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas
do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX
partamos para o X
No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo
onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para
ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem
Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e
curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave
ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los
bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua
cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos
(Odisseacuteia X 72-75)
Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou
o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados
pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por
percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo
descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido
injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes
traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma
conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)
Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas
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que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a
obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz
o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero
dramaacutetico
Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu
e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo
Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se
com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo
deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem
devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a
perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para
merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles
cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que
tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido
involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute
que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de
Odisseu no Canto XII
Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de
Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino
imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses
havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-
se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los
chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de
Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo
levados para o seu fim Vejamos
αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα
ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ
νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε
θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90
ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91
(Odisseacuteia X 237-240)
90
Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91
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D208 retirado em 20 de outubro de 2010
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(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente
tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros
Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e
tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada
Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar
humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade
Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a
figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que
intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo
faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo
que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar
gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos
importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a
passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla
No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante
representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo
a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica
finitude da existecircncia dos mortais
Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal
representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da
ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De
maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em
porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira
transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens
aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a
essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem
na tragicidade
No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais
efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena
consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo
apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc
natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso
como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e
desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma
100
problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens
homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo
humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu
apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de
homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de
Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando
mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica
mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que
incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar
na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam
desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar
Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o
mestre primeiro dos traacutegicos
Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a
deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir
sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz
que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o
heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus
companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes
transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos
agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros
elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste
caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute
―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo
invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no
segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma
epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado
Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e
homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores
Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus
companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe
e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao
Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera
101
ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ
θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92
νὐδέ λύ κνη θῆξ
ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93
(Odisseacuteia X 496-498)
Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo
sentou no leito agora chorava pelo meu destino
natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol
Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade
(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno
ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma
tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio
desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida
inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia
fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim
Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros
Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso
com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da
frente (Odisseacuteia X 566-567)
Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e
os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades
deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos
acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo
anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e
observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico
portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um
problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de
uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um
heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os
outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por
uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que
92
O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado
concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93
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D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010
102
apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu
Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a
implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo
ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute
dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um
problema tambeacutem para os seus companheiros
No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e
retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos
traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho
escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos
entatildeo para o estudo do proacuteximo canto
Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os
apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios
que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de
Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo
alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente
conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada
Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos
ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao
enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de
acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila
chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em
todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo
heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos
companheiros engolindo-os Vejamos
αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94
θεθιεγηαο
ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη
νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη
πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95
(Odisseacuteia XII 256-259)
94
Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo
inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena
citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus
soacutecios 95
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3
D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010
103
Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram
estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha
Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi
De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar
A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens
que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute
representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto
que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se
como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei
eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute
sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais
(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96
deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a
todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas
forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o
levam ao traacutegico
Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj
(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa
grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a
todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela
sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos
sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem
pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI
1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados
No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem
entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado
Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito
dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem
ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de
crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio
96
Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o
primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no
embate contra as forccedilas sociais
104
dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta
arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam
enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros
demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um
juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas
divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o
juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97
ou seja
―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)
Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo
apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge
mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais
uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles
Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que
um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus
companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do
juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um
miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam
perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se
ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu
temor
Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs
vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia
depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-
os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do
juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um
mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade
impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e
ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a
ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando
e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco
97
Texto disponiacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard
3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010
105
todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a
desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao
traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo
tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com
Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o
sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel
crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao
acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o
mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros
A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se
como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas
superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na
continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos
demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de
que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado
com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza
atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida
tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena
em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a
inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a
impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute
fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico
natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a
determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o
bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da
nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)
por isso ele fica sozinho a navegar
Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar
pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica
aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram
reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa
fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros
Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias
106
accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da
Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua
culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A
partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso
segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse
erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia
ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο
θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ
νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-
1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que
justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para
cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em
que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da
divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade
eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do
daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por
completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn
duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar
na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono
profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)
No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como
responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado
e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem
sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos
98
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
107
erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma
parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos
companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa
inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela
fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos
empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa
boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia
no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo
Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os
destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla
causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de
alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla
causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon
daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo
Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol
pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo
da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu
logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a
segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de
Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados
por Odisseu e do juramento realizado
Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e
Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de
Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios
que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei
em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio
punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a
narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o
mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o
Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida
Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para
que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais
heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes
108
reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige
seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope
ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe
o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos
ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε
δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ
λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε
() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ
99
(OdisseacuteiaV 151-153 158)
Ela o encontrou sentado na margem em um
rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida
lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava
()
Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas
Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder
desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei
ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que
eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano
Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-
lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o
risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso
Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige
este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100
Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega
na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos
Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por
Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute
vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a
Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo
99
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3
D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100
Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor
compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401
109
Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma
experiecircncia traacutegica
ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη
()
ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ
() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί
λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101
(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)
Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior
()
Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram
na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas
De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer
()
Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria
Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel
Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de
Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em
conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o
oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre
Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se
obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se
obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para
poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute
dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada
partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas
vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito
traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu
vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas
decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida
101
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D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011
110
Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo
tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive
preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma
fama102
Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria
perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos
temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a
deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte
seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico
comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma
escolha conflituosa
Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o
canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se
deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute
auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No
Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para
enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a
ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No
Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a
preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco
comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira
idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e
chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem
A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103
102
Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por
Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da
Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer
belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a
distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar
deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel
conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz
preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria
sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele
morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar
103
Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos
Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII
sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na
narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as
indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear
111
Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada
com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e
foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou
foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme
neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e
iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o
desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII
finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os
proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes
saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua
vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina
dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua
famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e
pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E
logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns
servos
Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo
natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias
Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II
Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para
que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles
Vejamos
η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε
ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη
νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ
ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104
(Odisseacuteia II 281-284)
Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu
dicernimento]
eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105
natildeo sabem eles que a morte e o negro destino
estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer
104
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D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105
Os destaques satildeo nossos
112
Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois
bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios
O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn
quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino
traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por
vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade
Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem
de suas proacuteprias accedilotildees
Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma
formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias
(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos
podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a
asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes
que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com
sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico
somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em
seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a
esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe
Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos
aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis
contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os
pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo
grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar
de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente
pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero
demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim
fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia
Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que
para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros
elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos
o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para
merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para
com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os
113
heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio
dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo
humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no
Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males
estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso
Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)
A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do
imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa
tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque
consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa
afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo
ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei
para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os
mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito
malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor
nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os
pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu
mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute
foram castigados por seus males Lembremos
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
106
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho
de 2010
114
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em
Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia
instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa
castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam
a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica
como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que
forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso
das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo
comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo
proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens
pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar
a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim
Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e
abolidas
Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia
momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-
nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta
desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos
constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de
como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os
soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo
impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma
comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos
um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser
levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando
o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser
acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico
115
experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como
incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o
homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais
32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do
Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades
com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como
veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem
de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto
Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto
Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um
trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de
ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do
nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico
A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos
anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise
proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc
da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias
passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir
seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica
Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-
498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei
teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda
pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as
desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia
Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus
encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos
116
propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos
comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a
padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele
morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado
erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos
Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em
Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide
para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro
Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo
Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira
experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da
morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal
visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia
imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma
alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo
deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu
depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei
apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)
Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que
natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os
noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo
satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram
indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a
sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo
falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante
desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma
dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil
afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo
no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)
Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de
sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele
seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj
que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte
107
Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo
dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por
tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes
117
buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas
disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu
faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar
para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte
desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem
gloacuteria vagueiam no Hades
E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo
aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a
verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute
verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute
poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que
enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca
Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso
consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca
enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua
esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute
castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o
destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo
isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua
famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)
Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute
que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute
ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia
Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o
porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do
filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta
sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do
sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e
qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar
Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas
Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas
Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos
que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do
118
sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos
compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros
sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no
Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica
destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No
entanto o eiAtildedwlon 108
essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)
pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi
detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees
sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm
recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes
cumpriu com todos os rituais necessaacuterios
Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon
prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia
como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em
falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-
se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia
retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local
sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-
lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a
esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o
palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as
folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de
saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e
pelo marido
νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα
νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ
νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα
ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ
ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109
(Odisseacuteia XI 198-203)
108
Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um
morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109
Texto diponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010
119
No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz
com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro
nem foi doenccedila que me veio para o grande
definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me
Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo
a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida
O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante
por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova
empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se
ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas
paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e
ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo
eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa
Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e
acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a
deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar
de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em
Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter
humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como
os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato
comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois
A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido
para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute
com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem
neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o
autecircntico tom da Moira110
()
( OTTO 2005 p 245)
Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do
destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio
em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos
estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente
seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele
natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como
culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a
110
Os destaques satildeo nossos
120
inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos
satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro
eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do
homem (ROMILLY 2008 p 175)
Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos
sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-
203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais
traacutegicas quando ocorrem entre familiares
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de
tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior
comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento
traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio
agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica
1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do
seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de
Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta
de saudades teve o pior dos fins
ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην
ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112
ὅο ηηο ἐκνί γε
ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113
111
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010 112
Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter
deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de
modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo
(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte
da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila
121
(Odisseacuteia XV 358-360)
Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria
do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao
habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido
Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute
muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa
morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com
quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um
filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de
forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada
pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto
em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando
sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para
ele como tortura ele exclama
―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο
κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο
ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη
ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ
ἔπηαη᾽114
(Odisseacuteia XI 205-209)
Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado
o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me
O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a
por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho
dos meus braccedilos ela se evolou
Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte
Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende
que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras
vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o
de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee
de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora
113
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3
D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010
122
eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas
naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo
seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de
um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees
Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma
sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes
de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca
Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em
que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes
e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo
pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois
todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele
continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer
seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute
Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu
Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os
guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar
(Odisseacuteia XI 391-395)
Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o
senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu
dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos
estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da
cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois
aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu
ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na
disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde
ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε
ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο
δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ
ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη
λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο
κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ
ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ
123
ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο
θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115
(Odisseacuteia XI 409-413416-420)
Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado
pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um
banquete]
matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira
Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais
companheiros]
eles mataram continuamente ()
Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros
seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa
Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo
pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias
estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116
Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra
descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo
acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que
Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a
Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido
por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por
sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida
conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a
morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito
traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum
vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o
homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o
caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC
Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem
gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia
como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos
115
Retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116
Destaque nosso 117
Verso disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12
de julho de 2010
124
pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda
para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo
alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)
Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos
mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008
p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas
tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis
saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante
Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida
recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo
miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus
companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas
nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119
Mesmo assim imerecidamente eles que
pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos
O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou
uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim
aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua
dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra
Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e
humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas
tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi
Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos
demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e
para os demais
Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar
de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ
118
Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela
contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso
seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119
Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de
ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120
Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro
capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com
Aquiles na Iliacuteada
125
ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121
(XI 418) Neste
verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI
Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos
detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos
como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim
Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do
fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma
imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua
morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122
Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos
visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira
escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem
presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico
apieda-se
No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois
fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-
se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de
Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o
despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros
que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para
que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido
Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que
Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas
que de modo geral relacionam-se ao imerecido123
Portanto entendamos que o Atrida pelo
121
Destaque nosso 122
Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por
influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute
iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo
era encenada e sim anunciada pelo coro
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
123
Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais
especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo
126
fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua
famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida
E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro
incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse
imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim
pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo
dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj
Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu
iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante
recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o
que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo
daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis
a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com
quem amamos
ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ
ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ
ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη
ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη
θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ
ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125
(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)
Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a
proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece
iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir
compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele
proacuteprio ou um de seus parentes ()126
(ARISTOacuteTELES 2003 p53)
Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em
Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os
124
Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias
Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos
que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo
foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a
filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126
(FONSECA 2003 p 53)
127
pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de
ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem
reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos
compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a
passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser
suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute
vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos
distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa
junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o
para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que
Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)
Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando
no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino
que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim
como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa
da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes
Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute
que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos
semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute
inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa
semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu
compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe
Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em
Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo
entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa
relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em
Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua
volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute
o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843
παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε
θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ
δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο
ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ
ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη
θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη
128
εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη
ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο
δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί
κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη
δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο
εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127
ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)
Poucos entre os homens tecircm congecircnito
Respeito sem inveja por amigo fausto
Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo
Duplica o mal de quem dela adoece
Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento
E pranteia ao ver alheia prosperidade
Ciente eu diria pois bem conheccedilo
O espelho social imagem de sombra
Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo
Soacute Odisseu que invito navegou
Foi sob o jugo o meu pronto parceiro
Fale eu dele morto ou ainda vivo128
Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu
e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado
tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos
que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar
nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram
de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma
relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com
Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o
surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)
mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que
estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso
veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela
linearidade da narrativa
Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois
jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra
dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos
sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino
127
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves
1816h em 15 de outubro de 2010 128
(TORRANO 2004 p161)
129
() ἦ ηνη ἔθελ γε
ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ
νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129
(Odisseia XI 430-432)
Na verdade ele dizia
bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos
em minha volta para casa
Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o
conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o
traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em
Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e
pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa
Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e
outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno
da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj
da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E
neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e
divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer
inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee
levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum
homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina
ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo
procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)
O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao
choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos
na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e
comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes
feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho
e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo
como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas
matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele
129
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010
130
proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido
pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)
Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber
seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um
heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos
estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute
a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na
trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com
as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na
Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de
como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς
θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia
Canto XI v 412)
Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do
amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon
por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma
esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra
que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)
Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de
Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao
decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e
seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do
daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino
pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino
traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E
o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de
Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser
avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de
Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)
Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre
notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para
130
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010
131
que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar
aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas
situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo
A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um
no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na
vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o
protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do
traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo
detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz
Aristoacuteteles
ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο
ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ
ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131
(Poeacutetica
VI 1450b 18-20)
Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute
convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os
inteacuterpretes do que os poetas
Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a
esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para
que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos
tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no
segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com
nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor
compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj
o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj
ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ
θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη
ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ
κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132
(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)
131
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b
retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010
132
Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo
de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os
males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim
aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso
quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133
(ARISTOacuteTELES 2003 p31)
Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que
injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de
ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)
completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute
tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o
ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-
nos Aristoacuteteles
ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη
ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο
ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ
ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5
8-12)
Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa
disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois
outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles
sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em
circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)
Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute
suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute
colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo
aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem
disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim
constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo
temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI
1449b 24-28)
No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no
Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza
como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo
133
(Trad FONSECA 2003 P31)
133
Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj
que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em
relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que
ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do
heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com
os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo
do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij
No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o
eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada
e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em
que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos
perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a
inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que
desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que
sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o
retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera
enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama
νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο
γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ
νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ
πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ
Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ
ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134
(Odisseacuteia XI 481-486)
Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda
pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes
Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no
passado e no futuro]
Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos
deuses]
agora aqui entre os mortos exerces grande poder
Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles
Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades
com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em
134
Texto disponeacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010
134
campo de batalha135
Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu
precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que
morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele
dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada
κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα
τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη
Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar
aquele que ressoa do alto ceacuteu
O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido
uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto
esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as
honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus
concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora
morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo
faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu
apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon
imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o
poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj
mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de
seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter
gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute
desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε
κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
βνπινίκελ136
θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
135
No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha
fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136
Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser
exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi
selado
135
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137
(Odisseacuteia XI 487-491)
Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou
Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu
Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um
Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse
a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram
Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que
fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso
potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera
perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida
ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores
para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao
arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por
isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico
relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o
fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em
A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer
ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma
inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo
Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles
com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado
como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida
enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος
ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo
trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado
Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os
valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p
182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se
natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra
do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc
137
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010
136
o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino
injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu
semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria
Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por
proporcionar-lhe a kaqarsij
A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de
Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa
interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso
do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia
homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees
das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos
espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute
a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica
Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos
no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para
as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos
diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim
Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes
dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica
ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em
conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade
do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos
Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da
esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem
em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)
ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa
construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles
diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral
Vejamos o porquecirc
δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]
ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ
137
ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138
(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)
Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver
os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que
sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo
Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se
apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre
os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses
assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o
pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de
Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a
falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas
batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo
o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor
o quadro eacute destoante
αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ
ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139
(Odisseacuteia XI 541-542)
Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte
tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade
Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero
dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os
momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI
da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o
Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos
depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao
vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico
mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e
sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios
138
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b
retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010
138
Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute
dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes
de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e
inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O
que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador
Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas
tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda
estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos
troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi
responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este
imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que
desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que
Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia
XI 548-551)
Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo
percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em
Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-
lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si
as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade
(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza
Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo
bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus
familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax
O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas
de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com
as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as
herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles
que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que
combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina
elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era
considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas
do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu
139
amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor
delas
Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax
acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento
do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma
() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal
Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que
se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma
gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como
Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua
cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se
convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa
responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140
Assim
culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado
por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si
como tambeacutem para os outros
Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os
mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se
malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim
como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais
uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse
reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos
αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ
ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ
ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο
ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo
140
Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes
para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino
Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o
mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no
traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
140
(Aacutejax 394-403)
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
140
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο
ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141
(Odisseacuteia XI 559-564)
Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito
dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto
Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a
minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo
Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras
almas que haviam morrido para o Eacuterebo
Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor
de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para
entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles
(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a
atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda
que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES
2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra
mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se
―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por
todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que
o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos
como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de
Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)
Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais
desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-
se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico
Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos
outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a
necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para
Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara
sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele
levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo
assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades
toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei
141
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010
141
eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem
consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do
Hades
Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro
Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo
seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago
cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo
vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme
pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de
Heacuteracles
O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que
enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-
619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo
tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de
imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com
seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de
vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos
Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo
etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos
trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e
recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles
parte
Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que
ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila
de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os
soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto
XI
Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos
satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise
central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei
observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica
contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila
Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A
142
primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda
sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no
Canto XI da Odisseacuteia
Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que
ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir
os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)
(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico
encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute
encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um
heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico
A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute
seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo
ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a
matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de
insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o
destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como
ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a
culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de
eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que
tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das
conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a
dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida
natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)
Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de
educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto
a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue
vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel
enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do
traacutegico (LUNA 2005 p 383)
Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon
Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e
qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como
espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O
primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo
143
tendo que portanto procurar fugir142
desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses
sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses
males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu
pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria
domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias
resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte
Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica
constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que
Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como
tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra
asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu
ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo
deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de
passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para
finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos
(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a
kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo
purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde
seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia
142
Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz
fugir
144
Consideraccedilotildees finais
Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais
especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que
foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o
filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos
que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado
dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados
A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs
capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos
uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo
homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre
a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu
Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde
despontar em meio a esse contorno eacutepico
No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos
sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de
efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes
do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica
atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo
da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld
Junito Brandatildeo e Sandra Luna
No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles
Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade
natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da
tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos
de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a
Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee
que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas
145
traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de
vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros
proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo
fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij
146
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150
Joatildeo Pessoa ____ ____ ______
_____________________________________
Michelle Bianca Santos Dantas
2
MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada para avaliaccedilatildeo da obtenccedilatildeo
do tiacutetulo de Mestre na Aacuterea de Concentraccedilatildeo
Literatura e Cultura e Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e
Modernidade Aleacutem dos elementos preacute e poacutes
textuais essa trabalho pesquisa constitui de trecircs
capiacutetulos Esta pesquisa doi desenvolvida atraveacutes do
Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Letras pela
Universidade Federal da Paraiacuteba
Orientador Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo
Joatildeo Pessoa ndash PB
2011
3
D192t Dantas Michelle Bianca Santos
Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011
149f
Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA
1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero
traacutegico 5 Homero
UFPBBC CDU 82(043)
4
MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da
Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e
Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade
Aprovado em __________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
5
A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada
dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo
6
AGRADECIMENTOS
A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda
proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao
longo deste mestrado
Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no
meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem
agradeccedilo pela torcida
Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de
companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as
conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar
Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre
torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento
Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da
minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia
como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo
aos estudos claacutessicos
Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes
consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva
Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas
traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf
Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas
muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico
Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada
Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa
7
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males
quando]
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores
contra o destino]
(Odisseacuteia I 32-34
8
RESUMO
O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da
Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses
aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee
Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A
Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute
fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais
importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do
mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth
Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e
principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser
reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de
Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute
privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo
Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do
nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade
que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos
tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que
possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o
primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico
aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia
Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses
encontros
Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico
9
REacuteSUMEacute
Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea
Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI
de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique
rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec
sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres
oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette
oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus
importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En
outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme
aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et
principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre
reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive
dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait
nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis
la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et
dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous
observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le
fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser
compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly
Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif
de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation
mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et
conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee
Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces
rencontres
Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23
121 A Estrutura do poema___________________________________ _28
122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36
2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47
22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48
23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON
AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89
32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
Aacutejax___________________________________________________________________115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146
11
INTRODUCcedilAtildeO
A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence
juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do
seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas
em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros
legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas
epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a
inesgotabilidade de leituras literaacuterias
Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso
ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte
anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e
nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica
pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no
Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com
Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela
sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador
campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na
disputa das armas do filho de Peleu
Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos
como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros
Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles
Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo
estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse
gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os
futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio
refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo
delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O
estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que
ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles
define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988
p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia
12
tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro
de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes
da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da
trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para
nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da
Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica
das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides
Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura
criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico
ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa
obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria
cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A
Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem
a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste
caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas
Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas
desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo
por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido
preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta
maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na
aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e
aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem
importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo
literaacuterio ocidental
Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada
epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho
Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave
paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu
lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros
autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do
traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros
literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico
13
das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio
Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia
estaacute para Odisseacuteia
Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas
caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O
teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos
gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos
traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais
tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega
(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se
encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita
objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E
assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da
trageacutedia
Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de
Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico
A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa
tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no
Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior
potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila
do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando
Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos
Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus
amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria
em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha
mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo
sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do
que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os
desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que
teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda
muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em
Iacutetaca
Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por
Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA
14
trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se
conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo
elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e
escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade
trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a
violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia
comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)
Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a
ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria
mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para
tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas
primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros
claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados
da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos
aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as
traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa
produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia
Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon
de Eacutesquilo
A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da
epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que
seratildeo descriminados a seguir
No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia
realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade
temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns
ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua
estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado
tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus
epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados
estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos
por o de muitas voltas e o muito astuto
O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais
em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem
15
conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas
nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia
Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia
estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a
partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm
sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento
do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico
especificamente o realizado no mundo grego
No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa
dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos
um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de
tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI
objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos
Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a
manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo
discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade
no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de
toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma
maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos
com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da
dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica
Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma
aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a
realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi
desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute
comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que
nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas
tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura
Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra
tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas
traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute
constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute
16
metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso
texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees
Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do
texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de
1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de
1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I
mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja
traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores
de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias
Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009
traduzida por Carlos Alberto Nunes
17
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico
Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente
que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona
problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio
Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar
seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica
sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-
se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo
() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα
πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)
Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho
sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1
Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque
discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a
Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver
parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero
No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o
autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da
literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas
eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido
oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do
tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como
nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo
completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as
eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como
1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem
indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins
esteacuteticos
18
obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em
relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais
Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e
resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo
tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico
Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos
hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia
que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O
que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo
quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar
Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da
comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo
possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua
autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos
nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero
para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato
daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas
mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita
depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito
saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto
mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia
principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo
Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da
a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura
aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia
guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia
E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que
passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras
2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja
agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido
militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja
meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem
valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta
tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da
virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito
da virtude de um homem nobre
19
diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no
proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees
De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que
os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth
qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia
do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria
pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que
almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute
a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o
mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia
humana(JAEGER 2001 p 31)
Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada
inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das
trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o
heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para
vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer
a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado
Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de
desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj
ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos
demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A
importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos
μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα
τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι
355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν
ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων
ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5
(Iliacuteada I 353-357)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua
escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos
5 Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de
abril agraves 1604 hs
20
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que
355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um
[pouco
pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me
jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo
[arrancado-me
Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute
natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta
cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo
haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do
pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer
desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do
ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes
conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos
seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato
Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes
Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles
simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos
indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os
priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem
receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado
(JAEGER 2001 p 31)
Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a
a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-
se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave
virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como
o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de
Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de
superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais
Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada
para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da
morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer
em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos
para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes
21
para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e
devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por
Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico
de que tantos falam
A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)
diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se
tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais
paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao
feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai
significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer
uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego
arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que
em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees
sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio
poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita
o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso
natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute
concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada
Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o
excerto abaixo
Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν
πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων
ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην
τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας
890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν
Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()
Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην
925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην
πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε
Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα
γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι
ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6
(Teogonia 886-891924-929)
6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048
hs
22
Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia
mais saacutebia que os deuses e os homens mortais
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena
ele enganou sua entranhas com ardil
890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo
por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado
()
Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos
925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel
soberana a quem apraz fragor combate e batalha
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
natildeo unida em amor gerou Hefesto
nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7
Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a
respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao
combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a
cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi
chamado pelo destino (2005 p 252)
Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo
homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo
a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na
Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica
Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta
Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas
como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa
ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre
pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles
que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio
essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves
determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser
feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar
de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do
destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da
Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute
7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)
23
que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim
mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute
que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios
Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do
culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em
que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por
Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os
ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a
desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta
peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a
exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado
Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego
arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da
eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade
mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de
Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de
civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um
arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais
linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia
A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos
baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se
inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC
e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC
O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado
notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo
compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas
24
leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua
organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se
com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)
No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse
periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada
aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve
nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute
quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio
das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-
se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em
conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo
grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III
aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de
obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra
Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo
apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a
Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura
A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo
Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que
foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o
periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de
vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito
posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central
da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia
Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar
com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa
banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens
8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego
arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a
figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a
logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico
25
Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos
afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando
ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a
reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e
agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo
respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos
Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar
algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o
divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e
independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo
pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas
dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha
Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de
quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor
se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a
Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e
culpam os deuses por suas falhas Vejamos
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο
γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino
35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida
desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno
Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em
diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera
Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto
VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX
9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
agraves 1100hs de 15 de julho
26
Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus
Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e
representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um
quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem
de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de
embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso
O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de
guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas
A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina
exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem
poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta
(BRANDAtildeO 1998 p 40)
A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia
tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei
distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o
pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma
esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma
nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente
caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto
(LESKY 1995 p 60)
Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos
Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute
mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural
importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma
ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o
cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a
emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre
300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα
10
Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante
entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa
27
οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()
326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)
Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos
Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo
por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas
depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor
Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima
Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo
Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos
Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia
como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para
o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que
reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem
reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto
XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica
todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)
Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada
inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi
escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees
sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade
estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as
duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as
num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas
relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra
peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo
de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O
primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute
bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que
traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro
reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html
28
A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o
nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que
compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise
especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI
121 A Estrutura do poema
Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)
da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de
epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada
tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei
principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de
inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia
De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz
com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em
que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da
epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta
denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a
poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa
palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a
poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical
das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao
criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo
simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como
o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de
epopeacuteia (ecopypopoiia)
Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender
melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define
a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A
partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas
29
da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da
trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica
Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo
aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a
aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as
suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com
unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas
epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu
eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos
da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees
sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que
alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas
controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de
composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse
sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)
Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que
a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela
extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia
natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios
Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de
elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da
epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo
de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o
retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia
narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos
Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute
exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a
narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico
O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se
encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da
invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo
25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο
ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον
30
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα
ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι
30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα
καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων
σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν
35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)
Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide
―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute
sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos
e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees
Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas
por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso
colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13
Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as
Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No
proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I
encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as
muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos
desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos
Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
12
Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml
retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13
Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14
Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas
plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute
bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo
aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de
aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente
assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo
31
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)
Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito
vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso
Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos
Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol
Por outro lado este os tirou o dia do retorno
Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto
Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao
longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros
de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos
Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as
Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos
pretendentes
No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova
invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma
manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se
abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em
Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos
trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no
Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos
Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e
o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma
siacutentese de cada Canto
Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a
fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso
haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria
e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com
15
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs
de 27 de abril de 2010
32
Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos
Pretendentes no palaacutecio de Odisseu
Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para
solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida
Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua
matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida
Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e
encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-
se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz
relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia
Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho
Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre
o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do
irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as
notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os
pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco
Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de
Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e
liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo
oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade
destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios
Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios
A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa
obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas
comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de
Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade
Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se
aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede
33
sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta
sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa
Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de
devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno
Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos
Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as
muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende
desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute
Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que
passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento
forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes
dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente
consegue escapar
Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola
com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola
abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo
Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem
pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute
acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o
no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias
Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar
Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria
proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno
agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando
de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e
Aacutejax
Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o
adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao
mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave
34
ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do
deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos
demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa
Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais
oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam
Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute
petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes
e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido
Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro
Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre
o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que
acredita no retorno de Odisseu
Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino
de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer
para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco
parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu
Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do
seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos
pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho
Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o
que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o
apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por
Antiacutenoo um dos pretendentes
Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no
palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de
firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta
noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem
35
Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar
Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente
mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A
ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o
heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele
Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que
de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso
Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus
sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez
Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes
banqueteiam-se
Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo
e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os
dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele
que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo
tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis
que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos
Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes
Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado
diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta
e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se
dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina
Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se
vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e
quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de
frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi
quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso
Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai
ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a
36
cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e
vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos
pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada
Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os
periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos
melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia
de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de
Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e
diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as
peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes
estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram
exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza
fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos
destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso
objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos
acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do
presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se
insere o nosso corpus
122 Odisseu o heroacutei multifacetado
Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos
expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees
do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef
noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY
2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de
coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a
traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but
applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p
309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo
37
homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas
definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de
tentar defini-lo
Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem
os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os
trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a
Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas
satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de
ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a
define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis
venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos
que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena
Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus
Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados
Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo
intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo
satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que
satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque
as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de
caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e
natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade
tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e
consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16
Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute
mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute
segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos
lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os
acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute
da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina
Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por
sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu
16
Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a
nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico
38
Prometeu ~ Cliacutemene
darr
Deucaliatildeo ~ Pirra
darr
Deacuteion ~ Diomedes
darr
Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone
darr darr
Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea
Laertes ~ Anticleacuteia
darr
Odisseu ~ Peneacutelope
darr
Telecircmaco
Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer
heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes
esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de
Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais
importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus
feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu
eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril
Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro
prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas
ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu
com essas funccedilotildees
A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente
aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos
seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma
divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por
isso todos eles seratildeo punidos por Zeus
A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de
fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da
gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a
39
mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para
regressar a Iacutetaca
A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais
explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina
dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas
compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos
Vejamos a referida passagem
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17
(Odisseacuteia XXII 401- 406)
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo
apoacutes devorar um boi do campo vai embora
Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados
Assim terriacutevel nas faces era de se ver
Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes
Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns
aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de
Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj
a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra
maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida
gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que
ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para
cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)
Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)
Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja
Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive
tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia
de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon
17
Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html
40
no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros
Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos
proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles
Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de
Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo
em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos
Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da
centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da
descendecircncia heroacuteica18
Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu
sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que
Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os
pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama
Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do
prudente Odisseu
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)
18
Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de
2010
41
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo
que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia
possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados
assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror
Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem
do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada
tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu
para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu
importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o
Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena
em sua paacutetria
Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria
como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada
dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o
heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em
busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento
de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um
labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute
realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado
para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar
No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm
algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou
estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a
20
Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos
42
definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter
sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)
Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos
sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo
filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de
Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao
personagem maior da Odisseacuteia
Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu
representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21
e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se
relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo
Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral
principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a
importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees
num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos
dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e
vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes
recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual
atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois
poemas
Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem
mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar
os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei
Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos
revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim
como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos
sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj
Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia
21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este
eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute
disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004
43
Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ
πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ
πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ
5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22
Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito
errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para
o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou
seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz
Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute
feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa
muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo
Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta
retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por
muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X
e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades
Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder
de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo
de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus
discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se
oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu
verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de
muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e
multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim
ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o
mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com
todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj
nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma
compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees
22
Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
44
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
(NUNES 2009 p 28)
Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade
sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de
numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu
no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de
conseguir o regresso dos companheiros
(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)
Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me
dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la
ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes
et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par
tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23
(BEacuteRARD 2009 p1)
Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial
semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e
acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille
tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo
grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente
Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse
Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera
importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj
Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos
intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi
estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando
aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para
expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se
23
Traduccedilatildeo
Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer
Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado
a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens
e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por
tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar
45
para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar
buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores
logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade
representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os
feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu
poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas
voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato
Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a
persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e
evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de
Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou
seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881
ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida
de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si
Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica
da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em
poder quanto em prudecircncia24
Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a
chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena
compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio
astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o
intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade
Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de
muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em
sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria
Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de
Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha
Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia
no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25
Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com
24
Versos 892 e 898 da Teogonia 25
A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia
conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531
Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo
percebido que se tornara mito ainda em vida
46
Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o
acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes
vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca
Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()
Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem
de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)
A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos
centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei
sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os
trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)
No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e
de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo
isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que
o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica
47
2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico
Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do
traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir
dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este
autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos
Vejamos
Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos
criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores
faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do
traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a
envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)
Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram
o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o
desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar
de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos
presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em
profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se
dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo
destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso
trabalho
Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos
trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-
nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin
Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e
Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do
traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho
delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que
48
eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir
dos encontros que Odisseu tem no Hades
Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo
importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O
traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro
discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo
sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir
da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos
de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa
anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente
22 O traacutegico e a trageacutedia
No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do
traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de
um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico
Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a
delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar
traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas
interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao
contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento
traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da
kaqamacrrsij26
Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a
inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a
conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica
grega
A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou
ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos
26
Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do
trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido
primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo
49
define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva
etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj
(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou
semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura
grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o
traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como
manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia
veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia
Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas
do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o
tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao
gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode
siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante
socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo
envoltos em uma accedilatildeo grandiosa
Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo
dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como
pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico
como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes
desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC
Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos
destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)
Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que
pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o
adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um
exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na
produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que
() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da
existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos
traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito
pretendido pelo poeta (Ibidem)
Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute
inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas
50
categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na
narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)
Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso
ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem
tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato
podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho
Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o
pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos
ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο
ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε
ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ
πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο
600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ
ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27
(Iliada XXIV 596-601)
Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento
sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do
outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso
Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti
estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde
ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete
Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo
pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia
desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do
sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo
informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal
que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um
mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete
ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem
ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito
e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do
banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico
Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico
(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos
27
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010
51
convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem
de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico
natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma
incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave
exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero
direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural
com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de
Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia
Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia
traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas
entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante
influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor
traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com
Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da
Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte
posicionamento de Jacqueline de Romilly
Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das
suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido
buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover
Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar
um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os
tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o
gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio
(ROMILLY 2008 p 22)
Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os
tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em
meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico
contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas
epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos
que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas
atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias
homeacutericas
Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a
influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados
52
a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos
Sandra Luna
() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza
humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das
quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua
cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o
desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus
os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute
sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)
Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento
favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa
Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo
tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta
problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do
traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero
no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de
Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga
de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a
peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis
gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados
na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no
proacuteximo capiacutetulo
Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros
elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-
nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28
os personagens nobres
e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a
sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A
diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo
do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico
Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico
principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva
28
O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo
centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a
Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a
Iacutetaca
53
como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de
Homero legaram-nos o traacutegico
Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a
trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso
acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se
realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se
tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a
necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte
suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta
exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia
Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee
certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um
nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se
precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas
origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das
dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)
Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta
de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a
eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995
p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com
outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29
ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio
De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas
dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que
almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva
Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo
Vejamos
Γελνκέλε30
δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ
θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ
θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )
κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς
29
Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30
A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente
do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos
reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito
54
θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε
ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)
Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma
(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta
pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas
cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu
desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado
apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua
natureza proacutepria
Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao
ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades
proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a
trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa
conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo
tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica
Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos
eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa
relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-
se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias
Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie
attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote
nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une
deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32
(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as
consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia
relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e
Soacutefocles Diz-nos
La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord
eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue
amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme
acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme
acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33
(Ibidem p 19)
31
Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html
agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32
Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a
uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33
Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto
em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o
segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira
vez por Soacutefocles
55
Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia
informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o
festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34
de Lesbos Este se consagra como o primeiro
ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas
informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma
definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando
Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque
ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine
agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois
acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la
ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35
(WILAMOWITZ 2001 p 117)
Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos
legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que
muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as
exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma
temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir
Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no
surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania
Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute
nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos
ainda
A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas
urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de
trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A
proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente
religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p
14)
Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de
pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante
34
Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria
reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35
Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada
de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e
ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus
56
dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que
a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a
comeacutedia
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo
clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos
distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra
(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por
isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o
precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim
sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser
primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso
O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os
rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da
reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal
aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por
Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a
centralizaccedilatildeo do poder
Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das
transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam
o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os
cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor
entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero
literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser
A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia
ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e
claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas
Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas
o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida
eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)
Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada
facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que
produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36
(FINLEY 1970 p 101)
36
Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -
estritamente falando ndash a trageacutedia ()
57
Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo
psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos
que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais
precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e
proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este
problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a
manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e
estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a
comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira
A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo
social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos
seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os
cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados
das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como
objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico
(Ibidem p 10)
Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela
se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica
nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a
trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento
importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua
fragilidade e limitaccedilatildeo
E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave
representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa
contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser
completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo
associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em
estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico
Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de
que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso
questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do
sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante
(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa
possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade
58
representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio
daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual
passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso
reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da
fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao
infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser
observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e
Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute
o mais traacutegico
Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal
geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de
uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos
que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com
reconhecimento37
do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38
do grego peripemacrteia
diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses
elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo
esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila
Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus
elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto
coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39
O primeiro constitui a parte da
trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre
dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui
dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o
estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus
Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos
a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se
e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois
37
Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo
mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer
conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38
Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de
mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a
imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do
inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39
Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em
todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees
59
elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o
coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo
figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de
atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia
apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs
Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento
primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto
na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de
peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe
Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica
com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu
material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p
70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa
relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma
A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode
comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos
intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila
estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento
do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A
epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas
por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)
A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico
acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto
indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz
perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada
tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural
verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos
ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute
encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura
grega atraveacutes das trageacutedias
No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua
manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia
sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o
objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir
60
do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo
eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas
no seacuteculo IV aC
23 O traacutegico na Poeacutetica
Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na
Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica
sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se
importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi
influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na
estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia
veicular aos jovens do estado
Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo
relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual
Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante
desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado
Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os
posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da
perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por
considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte
literaacuteria
Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a
a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se
prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes
da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico
No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um
mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo
contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas
o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem
claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o
que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a
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que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de
heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em
situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees
feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de
considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz
[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο
ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ
ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ
κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40
(Repuacuteblica III 387b)
Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de
narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado
aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos
audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo
receado mais a escravidatildeo do que a morte
Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as
passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para
compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da
Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu
objeto de criacutetica Vejamos
[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα
ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41
(Repuacuteblica III 386c)
Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta
natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um
trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e
que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre
cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos
Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria
homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades
com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe
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Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010
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como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para
eles representa um infortuacutenio
Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se
desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo
para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim
como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em
detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha
realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o
Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri
com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar
(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para
Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado
beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos
mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia
Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que
ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira
dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se
arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo
definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo
beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral
Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se
encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e
negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao
inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de
desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim
mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de
amizade
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augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de
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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a
explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo
do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a
arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a
sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam
permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero
responde
[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο
παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44
(Repuacuteblica
III 397d)
Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para
cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura
O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por
Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute
Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da
estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser
positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas
consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que
Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos
aristoteacutelicos
Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois
considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-
se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias
mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade
No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais
desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade
por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x
aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da
irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens
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Textop retirado de
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3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45
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10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo
nomoj46
Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor
da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou
estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de
sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de
outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como
tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia
θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη
ιέγεηλ47
(Repuacuteblica X 595b)
E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a
respeito de Homero que impede-me de falar
() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε
θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48
(Ibidem 595c)
Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos
autores traacutegicos
Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero
realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base
mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores
traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria
elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas
como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia
exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua
intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo
como bem nos caracterizou Platatildeo
46
Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido
primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes
da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47
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10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48
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10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu
mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no
sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da
funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as
concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica
Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como
Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria
etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os
comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais
gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a
trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma
Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()
fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa
thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)
Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho
artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua
finalidade
Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica
ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o
traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define
Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos
constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz
da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de
fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas
Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a
epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou
49
Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre
algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o
compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma
coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo
poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a
poeacutetica 50
ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51
Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que
significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra
informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de
66
seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute
bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela
os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma
representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila
A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do
texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como
doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever
pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente
formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida
quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que
mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele
como o fusioloiquestgoj53
No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da
trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a
poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os
homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito
traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e
gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico
realiza-se
Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a
sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil
Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-
se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres
nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes
citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de
Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles
quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito
natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da
accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52
Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo
verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a
pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53
O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj
genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual
Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a
significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo
67
protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles
Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo
estando presentes numa narrativa eacutepica
No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que
Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o
autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os
direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos
Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ
ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο
θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ
δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ
δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54
(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)
Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)
nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo
tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a
poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua
analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as
trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias
Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo
dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como
comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros
elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo
traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem
que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da
trageacutedia
Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e
caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no
capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao
iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia
Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο
ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο
54
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de
2010
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δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55
ηὴλ ηλ
ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)
Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui
certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em
seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio
da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos
Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas
baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que
deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave
frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran
kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver
narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um
narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito
importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml
fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo
Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a
piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os
espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico
enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em
relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento
55
A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar
levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica
a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que
simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de
2010 57
Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em
temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer
fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao
ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste
termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J
Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que
terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj
apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da
referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido
daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade
que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror
acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso
bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute
apropriada para as trageacutedias gregas
69
de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa
thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a
catarse de tais sofrimentos
Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse
termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)
sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu
sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para
tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo
para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica
A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do
verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)
Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa
puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da
accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que
esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja
este meacutedico seja religioso
Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo
limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo
religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que
desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um
rito presente em todas as religiotildees
Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos
acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar
de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e
malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para
que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo
utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim
natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade
semacircntica
Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em
kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da
trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para
70
entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para
Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem
disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso
natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente
da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico
Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que
o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em
infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que
tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil
por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado
pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do
excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos
chegar a Iacutetaca
Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se
suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees
representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como
ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade
de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor
Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez
anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da
esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos
esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece
indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon
um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria
para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo
isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um
grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir
tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa
tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em
Agamecircmnon
58
Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que
ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim
71
ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ
πο ζε δαθξύζσ
θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ
θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽
ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Ioacute ioacute Rei rei
Como chorar-te-ei
O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo
Eacutes posto nessa teia de aranha expirando
a vida por uma impiedosa morte
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e
piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou
formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo
estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o
temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute
provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij
Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos
percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo
chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a
partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor
e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o
traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes
da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele
decorre da accedilatildeo dos personagens
E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia
grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)
e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute
exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento
o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma
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Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία
κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ
θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59
(Poeacutetica VI 1450a 15-19)
O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute
representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a
fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma
qualidade
Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz
que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem
loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo
supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln
pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)
ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres
Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61
(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia
Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute
proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem
traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa
tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em
uma situaccedilatildeo de vida
Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo
dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia
Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante
compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos
Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε
ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)
59
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de
2010 60
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010 61
Ibidem 62
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010
73
Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que
satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos
Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos
quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para
intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia
Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar
aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos
asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes
do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define
Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por
isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo
informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a
que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de
Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da
memoacuteria e do silogismo
Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito
Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo
vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois
quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se
reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos
por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras
traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o
segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver
que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por
um crime que natildeo cometera Observemos
ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ
ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ
ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63
(Eacutedipo Rei 1182-1184)
Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras
Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim
eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade
63
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves
1940hs de 17 de julho de 2010
74
ἰὼ
ζθόηνο ἐκὸλ θάνο
ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί
ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα
ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ
ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
64
(Aacutejax 394-403)
Ioacute Treva toda minha luz
Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim
Leva-me leva-me para tua morada
leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia
para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ
κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο
θνὐθέηη κνη θο
νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο
ἰὼ ἰώ65
(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)
Ai de mim matildee Pois este mesmo
canto do acaso caiu para ambas
Para mim natildeo (haveraacute) mais luz
e nem a claridade do sol
Ioacute ioacute
αἰαῖ αἰαῖ
δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ
ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ
ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη
()
αἰαῖ αἰαῖ
θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη
κέζεηέ κε ηάιαλεο
θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη
πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66
(Hipoacutelito 1348-501370-74)
64
Tento disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs
de 17 de julho de 2010 65
Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de
17 de julho de 2010 66
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves
2030hs de 17 de juho de 2010
75
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto
de profecias injustas desfeitas vergonhosamente
fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
E agora vai causa-me dor causa-me dor
deixais-me ir desgraccedilado
e que o Curador da morte venha para mim
destroacutei-me destroacutei-me
As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando
os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos
Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a
matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor
Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o
responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado
enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de
reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir
toda a tragicidade
Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna
do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o
desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a
peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela
explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento
reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia
aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem
reconhecimento e peripeacutecia
Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e
como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou
muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a
compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a
teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia
Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute
que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem
do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo
76
suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que
ele diz
ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ
ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67
(Poeacutetica VII 1451a 11-15)
Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro
segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar
para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o
limite conveniente de sua extensatildeo
A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a
estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para
a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve
desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna
tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado
tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo
traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz
compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a
mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo
por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila
prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender
que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por
completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da
accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna
No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico
comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o
temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel
situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que
causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo
porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes
sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas
situaccedilotildees
67
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de
2010
77
ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo
virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea
Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio
ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu
significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei
que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de
ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ
Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο
δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ
βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν
ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja
falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss
the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome
indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave
traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos
para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio
importante esse erro pode ser de origens diversas
Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico
indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute
largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro
68
Ibidem 69
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
78
Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso
grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece
Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave
conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral
originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou
grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico
Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que
geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado
Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos
sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo
mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas
traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das
realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas
da famiacutelia
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos
o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos
entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico
mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse
aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba
por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas
Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e
aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees
teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos
70
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
79
depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como
tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel
manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas
Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico
continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as
discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que
desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso
objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa
proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de
Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna
Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na
trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto
do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre
mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino
caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais
tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito
do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado
por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o
homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT
2008 p 21)
Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar
uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria
depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso
Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o
primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute
considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que
possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente
aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha
80
O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute
atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do
espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a
outra eacute por meio do adikon71
em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro
Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem
voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute
chamado de adikon injusto
Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da
vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo
contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant
(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a
vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses
como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia
dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos
Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade
Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide
qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si
proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se
manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)
A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o
homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos
apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade
ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por
potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)
Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo
Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma
etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da
vontade (Ibidem p 42)
A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do
homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o
responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o
71
Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo
aatildedikoj significa injusto
81
contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a
condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes
heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por
exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que
fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele
mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se
num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma
elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama
representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores
eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados
possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na
trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de
um impasse porque
A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito
(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz
condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de
suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves
outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)
Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais
combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica
Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do
traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo
vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e
levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de
Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo
relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna
Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se
introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-
se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a
trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da
trageacutedia claacutessica
82
No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia
particular por ter conservado um contato constante com as realidades
colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter
conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no
outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu
verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados
E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008
p 168)
Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser
confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que
crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve
haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh
(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem
necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees
traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas
inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo
dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo
proacuteprio coro segundo Romilly (2008)
Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos
companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto
ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu
demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon
segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do
destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra
pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla
causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em
geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees
A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute
algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas
tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute
renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o
divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e
seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por
72
O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar
83
isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como
sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos
Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros
dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre
neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como
culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o
lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o
lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)
Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz
com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem
traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda
manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir
da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos
seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um
E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de
respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia
Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e
classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto
(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo
dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada
com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e
adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos
possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo
entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros
Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado
substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser
feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero
conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos
estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)
Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e
de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns
pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia
homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca
tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica
84
existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria
regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos
que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos
realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das
avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de
um trabalho
Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego
(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico
uAgravebrij73 e aatildeth74
A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida
cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao
heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e
qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com
os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-
ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele
afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida
No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia
(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais
precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas
Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma
situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como
vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do
infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o
exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da
trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo
necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise
porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar
em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por
exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser
73
Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma
desmedida 74
Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a
puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses
85
visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno
sentimento de desonra
Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo
tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar
compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a
outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara
a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do
seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da
Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos
germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky
(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento
respalda nossa pesquisa
Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky
(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que
os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso
ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da
Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura
narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar
sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da
famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como
destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais
difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder
continuar em sua jornada
Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita
tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute
tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a
presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com
narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser
verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo
para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por
exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem
neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo
86
que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que
passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante
Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do
traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria
pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o
traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido
mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o
sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o
sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos
sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico
(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a
sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar
como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia
poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a
compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente
Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky
diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido
consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com
isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo
entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave
objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)
Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes
explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os
indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora
afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu
objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver
algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos
de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da
Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e
sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se
necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)
Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada
pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute
deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse
87
que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee
Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino
infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute
retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por
isso Luna afirma-nos
Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos
elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que
reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo
inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de
mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)
Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos
tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo
literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-
o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute
verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica
sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao
contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas
por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo
nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como
ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato
todos se derramavam em laacutegrimas
Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute
―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia
manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim
da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No
proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia
em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a
assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa
fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de
estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia
Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila
de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem
para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para
o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de
88
escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope
pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio
E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos
que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser
seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou
distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim
do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois
neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo
Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve
seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode
contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os
relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo
de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar
Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos
importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as
relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos
compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No
segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir
delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que
circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do
traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu
para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no
qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia
89
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade
Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao
longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave
ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra
tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o
desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no
Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do
traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se
com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e
Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de
amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico
Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado
as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras
representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC
seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas
obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de
Soacutefocles
Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou
representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro
em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer
da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso
objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser
encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto
Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas
epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a
identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no
segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da
90
Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem
tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes
elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75
pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o
temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao
iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute
apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220
responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia
perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde
215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε
νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο
ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε
λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ
220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76
((Odisseacuteia I 215-220)
Minha matildee diz que fui gerado por ele mas
pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo
existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem
Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado
de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas
Agora do mais infeliz dos homens mortais
eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas
Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento
do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno
quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o
sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer
que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por
elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da
75
O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual
os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao
sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua
desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode
ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo
culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos
encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos
traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo
impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010
91
piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo
nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de
nosso ser77
(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que
Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto
mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que
cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo
uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou
νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78
ζηελαρίδσ
νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ
()
ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ
ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ
250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο
νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79
(Odisseacuteia I 243-244 248-251)
Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas
nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me
()
A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e
ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar
eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo
meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo
Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o
a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente
apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor
imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em
Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra
mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute
77
Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo
em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos
espectadoresleitores 78
A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo
expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada
(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do
infectum 79
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010
92
comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens
de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um
dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos
dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens
deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os
dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute
natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto
Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila
sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento
diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que
nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor
aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do
que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica
ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute
tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e
maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus
muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os
tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de
Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa
ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη
ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ
80
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho
de 2010 81
Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho
93
60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο
Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82
(Odisseacuteia I 58-62)
Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila
que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer
Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido
Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios
Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus
A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver
um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer
imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o
traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos
sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter
ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os
demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o
filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus
ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ
Κύθισπνο θερόισηαη83
ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ
70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84
(Odisseacuteia I 68-70)
Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre
o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope
O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e
consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo
inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria
sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos
82
Texto disponiacuteevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83
O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de
Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)
Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo
de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010
94
no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros
que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios
sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela
necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos
uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros
ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ
290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ
ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ
ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ
ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα
ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο
295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85
(Odisseacuteia IX 289-295)
Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra
os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo
O jantar preparou com eles tendo partido seus membros
comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada
entranhas carnes e ossos com tutanos
Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus
enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras
a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo
Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se
pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel
Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro
Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope
pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do
Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele
seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo
horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o
daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos
() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο
ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ
85
Texto disponeacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard
3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86
O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e
Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade
95
375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο
ἧνο ζεξκαίλνηην ()
380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη
ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ
νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ
ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο
δίλενλ87
(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)
() para fora da garganta colocava vinho e
pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado
alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza
ateacute que queimasse ()
eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram
em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem
Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira
e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me
apoiado por cima fazia (a vara) girar
A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem
pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento
tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo
temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do
monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do
homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi
visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das
circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a
autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas
tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a
―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que
temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute
entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia
No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado
sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado
pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo
podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais
87
Texto disponiacutevem em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010
96
uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros
pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros
possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem
fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados
com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu
continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo
Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ
ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88
ἀεηθειίελ ἀιασηύλ
θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη
505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89
(Odisseacuteia IX 502- 505)
Ciclope se algum dos homens mortais vier e
perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho
podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de
cidades]
o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada
Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e
orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar
mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os
soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas
afliccedilotildees
Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender
como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o
Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute
passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios
partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira
cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e
uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta
cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu
diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo
88
Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro
(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar
Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de
transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010
97
o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes
Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras
injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por
Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca
Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as
circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e
principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de
Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos
personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que
tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens
acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a
tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus
companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas
do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX
partamos para o X
No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo
onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para
ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem
Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e
curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave
ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los
bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua
cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos
(Odisseacuteia X 72-75)
Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou
o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados
pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por
percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo
descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido
injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes
traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma
conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)
Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas
98
que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a
obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz
o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero
dramaacutetico
Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu
e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo
Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se
com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo
deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem
devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a
perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para
merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles
cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que
tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido
involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute
que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de
Odisseu no Canto XII
Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de
Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino
imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses
havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-
se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los
chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de
Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo
levados para o seu fim Vejamos
αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα
ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ
νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε
θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90
ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91
(Odisseacuteia X 237-240)
90
Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D208 retirado em 20 de outubro de 2010
99
(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente
tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros
Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e
tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada
Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar
humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade
Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a
figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que
intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo
faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo
que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar
gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos
importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a
passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla
No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante
representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo
a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica
finitude da existecircncia dos mortais
Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal
representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da
ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De
maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em
porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira
transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens
aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a
essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem
na tragicidade
No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais
efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena
consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo
apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc
natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso
como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e
desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma
100
problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens
homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo
humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu
apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de
homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de
Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando
mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica
mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que
incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar
na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam
desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar
Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o
mestre primeiro dos traacutegicos
Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a
deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir
sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz
que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o
heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus
companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes
transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos
agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros
elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste
caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute
―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo
invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no
segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma
epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado
Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e
homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores
Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus
companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe
e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao
Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera
101
ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ
θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92
νὐδέ λύ κνη θῆξ
ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93
(Odisseacuteia X 496-498)
Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo
sentou no leito agora chorava pelo meu destino
natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol
Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade
(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno
ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma
tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio
desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida
inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia
fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim
Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros
Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso
com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da
frente (Odisseacuteia X 566-567)
Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e
os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades
deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos
acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo
anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e
observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico
portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um
problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de
uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um
heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os
outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por
uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que
92
O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado
concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93
Texto disponiacutevel em
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D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010
102
apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu
Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a
implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo
ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute
dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um
problema tambeacutem para os seus companheiros
No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e
retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos
traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho
escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos
entatildeo para o estudo do proacuteximo canto
Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os
apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios
que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de
Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo
alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente
conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada
Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos
ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao
enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de
acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila
chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em
todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo
heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos
companheiros engolindo-os Vejamos
αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94
θεθιεγηαο
ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη
νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη
πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95
(Odisseacuteia XII 256-259)
94
Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo
inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena
citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus
soacutecios 95
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D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010
103
Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram
estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha
Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi
De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar
A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens
que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute
representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto
que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se
como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei
eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute
sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais
(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96
deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a
todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas
forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o
levam ao traacutegico
Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj
(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa
grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a
todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela
sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos
sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem
pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI
1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados
No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem
entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado
Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito
dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem
ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de
crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio
96
Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o
primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no
embate contra as forccedilas sociais
104
dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta
arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam
enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros
demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um
juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas
divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o
juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97
ou seja
―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)
Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo
apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge
mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais
uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles
Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que
um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus
companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do
juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um
miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam
perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se
ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu
temor
Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs
vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia
depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-
os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do
juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um
mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade
impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e
ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a
ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando
e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco
97
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3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010
105
todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a
desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao
traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo
tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com
Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o
sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel
crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao
acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o
mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros
A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se
como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas
superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na
continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos
demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de
que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado
com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza
atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida
tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena
em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a
inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a
impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute
fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico
natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a
determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o
bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da
nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)
por isso ele fica sozinho a navegar
Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar
pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica
aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram
reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa
fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros
Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias
106
accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da
Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua
culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A
partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso
segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse
erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia
ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο
θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ
νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-
1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que
justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para
cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em
que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da
divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade
eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do
daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por
completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn
duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar
na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono
profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)
No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como
responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado
e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem
sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos
98
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
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erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma
parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos
companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa
inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela
fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos
empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa
boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia
no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo
Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os
destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla
causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de
alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla
causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon
daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo
Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol
pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo
da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu
logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a
segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de
Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados
por Odisseu e do juramento realizado
Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e
Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de
Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios
que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei
em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio
punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a
narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o
mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o
Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida
Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para
que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais
heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes
108
reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige
seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope
ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe
o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos
ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε
δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ
λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε
() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ
99
(OdisseacuteiaV 151-153 158)
Ela o encontrou sentado na margem em um
rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida
lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava
()
Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas
Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder
desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei
ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que
eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano
Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-
lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o
risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso
Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige
este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100
Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega
na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos
Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por
Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute
vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a
Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo
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D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100
Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor
compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401
109
Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma
experiecircncia traacutegica
ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη
()
ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ
() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί
λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101
(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)
Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior
()
Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram
na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas
De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer
()
Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria
Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel
Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de
Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em
conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o
oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre
Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se
obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se
obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para
poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute
dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada
partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas
vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito
traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu
vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas
decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida
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D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011
110
Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo
tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive
preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma
fama102
Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria
perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos
temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a
deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte
seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico
comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma
escolha conflituosa
Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o
canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se
deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute
auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No
Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para
enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a
ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No
Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a
preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco
comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira
idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e
chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem
A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103
102
Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por
Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da
Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer
belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a
distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar
deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel
conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz
preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria
sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele
morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar
103
Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos
Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII
sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na
narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as
indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear
111
Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada
com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e
foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou
foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme
neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e
iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o
desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII
finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os
proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes
saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua
vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina
dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua
famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e
pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E
logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns
servos
Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo
natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias
Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II
Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para
que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles
Vejamos
η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε
ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη
νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ
ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104
(Odisseacuteia II 281-284)
Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu
dicernimento]
eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105
natildeo sabem eles que a morte e o negro destino
estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer
104
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D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105
Os destaques satildeo nossos
112
Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois
bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios
O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn
quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino
traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por
vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade
Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem
de suas proacuteprias accedilotildees
Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma
formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias
(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos
podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a
asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes
que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com
sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico
somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em
seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a
esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe
Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos
aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis
contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os
pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo
grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar
de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente
pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero
demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim
fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia
Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que
para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros
elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos
o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para
merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para
com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os
113
heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio
dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo
humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no
Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males
estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso
Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)
A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do
imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa
tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque
consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa
afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo
ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei
para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os
mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito
malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor
nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os
pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu
mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute
foram castigados por seus males Lembremos
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
106
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho
de 2010
114
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em
Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia
instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa
castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam
a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica
como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que
forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso
das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo
comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo
proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens
pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar
a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim
Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e
abolidas
Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia
momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-
nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta
desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos
constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de
como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os
soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo
impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma
comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos
um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser
levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando
o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser
acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico
115
experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como
incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o
homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais
32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do
Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades
com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como
veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem
de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto
Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto
Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um
trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de
ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do
nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico
A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos
anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise
proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc
da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias
passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir
seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica
Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-
498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei
teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda
pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as
desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia
Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus
encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos
116
propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos
comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a
padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele
morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado
erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos
Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em
Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide
para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro
Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo
Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira
experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da
morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal
visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia
imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma
alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo
deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu
depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei
apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)
Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que
natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os
noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo
satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram
indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a
sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo
falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante
desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma
dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil
afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo
no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)
Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de
sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele
seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj
que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte
107
Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo
dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por
tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes
117
buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas
disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu
faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar
para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte
desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem
gloacuteria vagueiam no Hades
E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo
aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a
verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute
verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute
poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que
enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca
Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso
consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca
enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua
esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute
castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o
destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo
isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua
famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)
Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute
que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute
ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia
Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o
porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do
filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta
sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do
sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e
qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar
Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas
Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas
Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos
que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do
118
sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos
compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros
sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no
Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica
destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No
entanto o eiAtildedwlon 108
essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)
pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi
detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees
sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm
recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes
cumpriu com todos os rituais necessaacuterios
Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon
prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia
como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em
falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-
se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia
retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local
sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-
lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a
esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o
palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as
folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de
saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e
pelo marido
νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα
νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ
νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα
ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ
ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109
(Odisseacuteia XI 198-203)
108
Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um
morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109
Texto diponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010
119
No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz
com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro
nem foi doenccedila que me veio para o grande
definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me
Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo
a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida
O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante
por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova
empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se
ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas
paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e
ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo
eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa
Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e
acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a
deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar
de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em
Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter
humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como
os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato
comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois
A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido
para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute
com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem
neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o
autecircntico tom da Moira110
()
( OTTO 2005 p 245)
Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do
destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio
em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos
estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente
seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele
natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como
culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a
110
Os destaques satildeo nossos
120
inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos
satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro
eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do
homem (ROMILLY 2008 p 175)
Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos
sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-
203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais
traacutegicas quando ocorrem entre familiares
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de
tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior
comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento
traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio
agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica
1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do
seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de
Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta
de saudades teve o pior dos fins
ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην
ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112
ὅο ηηο ἐκνί γε
ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113
111
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010 112
Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter
deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de
modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo
(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte
da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila
121
(Odisseacuteia XV 358-360)
Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria
do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao
habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido
Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute
muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa
morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com
quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um
filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de
forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada
pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto
em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando
sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para
ele como tortura ele exclama
―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο
κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο
ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη
ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ
ἔπηαη᾽114
(Odisseacuteia XI 205-209)
Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado
o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me
O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a
por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho
dos meus braccedilos ela se evolou
Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte
Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende
que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras
vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o
de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee
de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora
113
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3
D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010
122
eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas
naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo
seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de
um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees
Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma
sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes
de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca
Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em
que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes
e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo
pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois
todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele
continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer
seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute
Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu
Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os
guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar
(Odisseacuteia XI 391-395)
Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o
senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu
dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos
estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da
cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois
aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu
ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na
disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde
ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε
ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο
δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ
ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη
λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο
κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ
ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ
123
ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο
θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115
(Odisseacuteia XI 409-413416-420)
Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado
pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um
banquete]
matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira
Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais
companheiros]
eles mataram continuamente ()
Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros
seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa
Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo
pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias
estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116
Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra
descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo
acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que
Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a
Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido
por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por
sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida
conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a
morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito
traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum
vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o
homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o
caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC
Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem
gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia
como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos
115
Retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116
Destaque nosso 117
Verso disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12
de julho de 2010
124
pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda
para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo
alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)
Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos
mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008
p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas
tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis
saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante
Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida
recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo
miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus
companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas
nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119
Mesmo assim imerecidamente eles que
pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos
O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou
uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim
aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua
dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra
Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e
humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas
tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi
Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos
demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e
para os demais
Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar
de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ
118
Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela
contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso
seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119
Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de
ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120
Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro
capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com
Aquiles na Iliacuteada
125
ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121
(XI 418) Neste
verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI
Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos
detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos
como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim
Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do
fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma
imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua
morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122
Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos
visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira
escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem
presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico
apieda-se
No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois
fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-
se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de
Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o
despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros
que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para
que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido
Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que
Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas
que de modo geral relacionam-se ao imerecido123
Portanto entendamos que o Atrida pelo
121
Destaque nosso 122
Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por
influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute
iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo
era encenada e sim anunciada pelo coro
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
123
Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais
especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo
126
fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua
famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida
E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro
incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse
imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim
pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo
dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj
Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu
iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante
recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o
que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo
daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis
a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com
quem amamos
ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ
ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ
ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη
ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη
θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ
ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125
(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)
Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a
proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece
iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir
compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele
proacuteprio ou um de seus parentes ()126
(ARISTOacuteTELES 2003 p53)
Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em
Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os
124
Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias
Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos
que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo
foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a
filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126
(FONSECA 2003 p 53)
127
pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de
ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem
reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos
compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a
passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser
suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute
vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos
distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa
junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o
para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que
Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)
Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando
no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino
que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim
como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa
da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes
Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute
que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos
semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute
inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa
semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu
compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe
Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em
Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo
entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa
relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em
Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua
volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute
o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843
παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε
θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ
δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο
ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ
ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη
θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη
128
εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη
ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο
δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί
κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη
δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο
εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127
ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)
Poucos entre os homens tecircm congecircnito
Respeito sem inveja por amigo fausto
Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo
Duplica o mal de quem dela adoece
Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento
E pranteia ao ver alheia prosperidade
Ciente eu diria pois bem conheccedilo
O espelho social imagem de sombra
Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo
Soacute Odisseu que invito navegou
Foi sob o jugo o meu pronto parceiro
Fale eu dele morto ou ainda vivo128
Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu
e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado
tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos
que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar
nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram
de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma
relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com
Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o
surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)
mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que
estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso
veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela
linearidade da narrativa
Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois
jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra
dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos
sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino
127
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves
1816h em 15 de outubro de 2010 128
(TORRANO 2004 p161)
129
() ἦ ηνη ἔθελ γε
ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ
νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129
(Odisseia XI 430-432)
Na verdade ele dizia
bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos
em minha volta para casa
Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o
conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o
traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em
Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e
pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa
Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e
outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno
da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj
da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E
neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e
divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer
inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee
levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum
homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina
ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo
procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)
O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao
choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos
na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e
comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes
feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho
e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo
como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas
matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele
129
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010
130
proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido
pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)
Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber
seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um
heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos
estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute
a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na
trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com
as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na
Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de
como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς
θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia
Canto XI v 412)
Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do
amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon
por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma
esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra
que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)
Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de
Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao
decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e
seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do
daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino
pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino
traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E
o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de
Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser
avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de
Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)
Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre
notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para
130
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010
131
que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar
aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas
situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo
A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um
no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na
vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o
protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do
traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo
detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz
Aristoacuteteles
ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο
ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ
ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131
(Poeacutetica
VI 1450b 18-20)
Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute
convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os
inteacuterpretes do que os poetas
Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a
esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para
que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos
tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no
segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com
nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor
compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj
o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj
ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ
θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη
ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ
κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132
(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)
131
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b
retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010
132
Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo
de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os
males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim
aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso
quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133
(ARISTOacuteTELES 2003 p31)
Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que
injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de
ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)
completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute
tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o
ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-
nos Aristoacuteteles
ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη
ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο
ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ
ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5
8-12)
Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa
disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois
outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles
sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em
circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)
Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute
suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute
colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo
aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem
disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim
constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo
temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI
1449b 24-28)
No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no
Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza
como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo
133
(Trad FONSECA 2003 P31)
133
Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj
que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em
relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que
ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do
heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com
os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo
do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij
No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o
eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada
e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em
que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos
perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a
inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que
desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que
sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o
retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera
enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama
νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο
γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ
νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ
πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ
Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ
ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134
(Odisseacuteia XI 481-486)
Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda
pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes
Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no
passado e no futuro]
Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos
deuses]
agora aqui entre os mortos exerces grande poder
Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles
Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades
com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em
134
Texto disponeacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010
134
campo de batalha135
Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu
precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que
morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele
dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada
κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα
τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη
Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar
aquele que ressoa do alto ceacuteu
O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido
uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto
esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as
honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus
concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora
morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo
faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu
apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon
imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o
poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj
mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de
seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter
gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute
desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε
κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
βνπινίκελ136
θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
135
No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha
fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136
Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser
exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi
selado
135
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137
(Odisseacuteia XI 487-491)
Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou
Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu
Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um
Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse
a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram
Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que
fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso
potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera
perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida
ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores
para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao
arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por
isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico
relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o
fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em
A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer
ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma
inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo
Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles
com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado
como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida
enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος
ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo
trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado
Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os
valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p
182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se
natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra
do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc
137
Texto disponiacutevel em
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D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010
136
o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino
injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu
semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria
Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por
proporcionar-lhe a kaqarsij
A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de
Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa
interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso
do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia
homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees
das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos
espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute
a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica
Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos
no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para
as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos
diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim
Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes
dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica
ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em
conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade
do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos
Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da
esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem
em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)
ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa
construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles
diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral
Vejamos o porquecirc
δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]
ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ
137
ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138
(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)
Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver
os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que
sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo
Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se
apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre
os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses
assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o
pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de
Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a
falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas
batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo
o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor
o quadro eacute destoante
αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ
ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139
(Odisseacuteia XI 541-542)
Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte
tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade
Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero
dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os
momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI
da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o
Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos
depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao
vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico
mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e
sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios
138
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b
retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010
138
Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute
dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes
de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e
inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O
que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador
Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas
tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda
estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos
troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi
responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este
imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que
desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que
Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia
XI 548-551)
Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo
percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em
Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-
lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si
as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade
(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza
Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo
bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus
familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax
O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas
de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com
as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as
herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles
que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que
combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina
elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era
considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas
do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu
139
amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor
delas
Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax
acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento
do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma
() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal
Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que
se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma
gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como
Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua
cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se
convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa
responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140
Assim
culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado
por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si
como tambeacutem para os outros
Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os
mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se
malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim
como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais
uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse
reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos
αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ
ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ
ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο
ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo
140
Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes
para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino
Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o
mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no
traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
140
(Aacutejax 394-403)
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
140
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο
ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141
(Odisseacuteia XI 559-564)
Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito
dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto
Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a
minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo
Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras
almas que haviam morrido para o Eacuterebo
Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor
de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para
entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles
(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a
atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda
que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES
2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra
mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se
―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por
todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que
o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos
como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de
Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)
Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais
desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-
se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico
Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos
outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a
necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para
Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara
sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele
levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo
assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades
toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei
141
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010
141
eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem
consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do
Hades
Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro
Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo
seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago
cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo
vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme
pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de
Heacuteracles
O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que
enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-
619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo
tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de
imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com
seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de
vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos
Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo
etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos
trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e
recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles
parte
Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que
ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila
de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os
soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto
XI
Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos
satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise
central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei
observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica
contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila
Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A
142
primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda
sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no
Canto XI da Odisseacuteia
Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que
ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir
os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)
(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico
encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute
encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um
heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico
A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute
seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo
ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a
matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de
insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o
destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como
ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a
culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de
eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que
tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das
conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a
dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida
natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)
Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de
educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto
a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue
vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel
enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do
traacutegico (LUNA 2005 p 383)
Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon
Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e
qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como
espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O
primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo
143
tendo que portanto procurar fugir142
desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses
sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses
males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu
pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria
domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias
resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte
Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica
constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que
Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como
tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra
asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu
ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo
deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de
passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para
finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos
(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a
kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo
purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde
seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia
142
Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz
fugir
144
Consideraccedilotildees finais
Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais
especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que
foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o
filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos
que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado
dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados
A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs
capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos
uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo
homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre
a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu
Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde
despontar em meio a esse contorno eacutepico
No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos
sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de
efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes
do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica
atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo
da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld
Junito Brandatildeo e Sandra Luna
No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles
Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade
natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da
tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos
de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a
Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee
que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas
145
traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de
vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros
proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo
fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij
146
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Joatildeo Pessoa ____ ____ ______
_____________________________________
Michelle Bianca Santos Dantas
3
D192t Dantas Michelle Bianca Santos
Tragicidade no canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
e Aacutejax Michelle Bianca Santos Dantas - - Joatildeo Pessoa [sn] 2011
149f
Orientador Arturo Gouveia de Arauacutejo
Dissertaccedilatildeo (Mestrado) ndash UFPBCCHLA
1 Literatura e cultura 2 Literatura claacutessica 3 Homero 4 Gecircnero
traacutegico 5 Homero
UFPBBC CDU 82(043)
4
MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da
Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e
Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade
Aprovado em __________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
5
A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada
dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo
6
AGRADECIMENTOS
A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda
proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao
longo deste mestrado
Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no
meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem
agradeccedilo pela torcida
Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de
companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as
conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar
Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre
torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento
Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da
minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia
como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo
aos estudos claacutessicos
Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes
consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva
Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas
traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf
Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas
muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico
Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada
Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa
7
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males
quando]
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores
contra o destino]
(Odisseacuteia I 32-34
8
RESUMO
O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da
Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses
aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee
Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A
Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute
fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais
importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do
mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth
Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e
principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser
reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de
Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute
privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo
Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do
nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade
que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos
tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que
possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o
primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico
aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia
Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses
encontros
Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico
9
REacuteSUMEacute
Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea
Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI
de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique
rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec
sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres
oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette
oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus
importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En
outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme
aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et
principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre
reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive
dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait
nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis
la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et
dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous
observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le
fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser
compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly
Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif
de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation
mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et
conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee
Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces
rencontres
Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23
121 A Estrutura do poema___________________________________ _28
122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36
2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47
22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48
23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON
AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89
32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
Aacutejax___________________________________________________________________115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146
11
INTRODUCcedilAtildeO
A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence
juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do
seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas
em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros
legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas
epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a
inesgotabilidade de leituras literaacuterias
Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso
ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte
anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e
nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica
pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no
Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com
Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela
sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador
campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na
disputa das armas do filho de Peleu
Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos
como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros
Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles
Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo
estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse
gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os
futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio
refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo
delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O
estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que
ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles
define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988
p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia
12
tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro
de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes
da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da
trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para
nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da
Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica
das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides
Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura
criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico
ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa
obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria
cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A
Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem
a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste
caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas
Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas
desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo
por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido
preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta
maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na
aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e
aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem
importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo
literaacuterio ocidental
Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada
epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho
Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave
paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu
lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros
autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do
traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros
literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico
13
das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio
Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia
estaacute para Odisseacuteia
Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas
caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O
teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos
gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos
traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais
tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega
(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se
encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita
objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E
assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da
trageacutedia
Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de
Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico
A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa
tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no
Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior
potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila
do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando
Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos
Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus
amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria
em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha
mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo
sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do
que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os
desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que
teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda
muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em
Iacutetaca
Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por
Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA
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trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se
conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo
elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e
escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade
trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a
violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia
comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)
Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a
ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria
mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para
tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas
primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros
claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados
da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos
aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as
traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa
produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia
Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon
de Eacutesquilo
A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da
epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que
seratildeo descriminados a seguir
No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia
realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade
temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns
ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua
estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado
tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus
epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados
estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos
por o de muitas voltas e o muito astuto
O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais
em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem
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conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas
nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia
Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia
estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a
partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm
sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento
do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico
especificamente o realizado no mundo grego
No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa
dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos
um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de
tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI
objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos
Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a
manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo
discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade
no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de
toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma
maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos
com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da
dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica
Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma
aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a
realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi
desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute
comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que
nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas
tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura
Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra
tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas
traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute
constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute
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metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso
texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees
Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do
texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de
1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de
1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I
mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja
traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores
de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias
Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009
traduzida por Carlos Alberto Nunes
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1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico
Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente
que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona
problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio
Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar
seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica
sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-
se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo
() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα
πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)
Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho
sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1
Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque
discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a
Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver
parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero
No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o
autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da
literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas
eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido
oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do
tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como
nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo
completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as
eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como
1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem
indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins
esteacuteticos
18
obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em
relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais
Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e
resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo
tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico
Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos
hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia
que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O
que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo
quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar
Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da
comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo
possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua
autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos
nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero
para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato
daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas
mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita
depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito
saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto
mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia
principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo
Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da
a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura
aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia
guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia
E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que
passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras
2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja
agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido
militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja
meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem
valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta
tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da
virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito
da virtude de um homem nobre
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diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no
proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees
De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que
os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth
qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia
do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria
pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que
almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute
a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o
mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia
humana(JAEGER 2001 p 31)
Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada
inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das
trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o
heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para
vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer
a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado
Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de
desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj
ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos
demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A
importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos
μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα
τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι
355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν
ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων
ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5
(Iliacuteada I 353-357)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua
escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos
5 Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de
abril agraves 1604 hs
20
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que
355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um
[pouco
pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me
jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo
[arrancado-me
Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute
natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta
cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo
haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do
pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer
desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do
ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes
conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos
seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato
Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes
Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles
simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos
indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os
priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem
receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado
(JAEGER 2001 p 31)
Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a
a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-
se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave
virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como
o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de
Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de
superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais
Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada
para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da
morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer
em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos
para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes
21
para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e
devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por
Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico
de que tantos falam
A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)
diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se
tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais
paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao
feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai
significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer
uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego
arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que
em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees
sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio
poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita
o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso
natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute
concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada
Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o
excerto abaixo
Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν
πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων
ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην
τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας
890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν
Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()
Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην
925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην
πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε
Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα
γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι
ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6
(Teogonia 886-891924-929)
6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048
hs
22
Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia
mais saacutebia que os deuses e os homens mortais
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena
ele enganou sua entranhas com ardil
890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo
por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado
()
Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos
925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel
soberana a quem apraz fragor combate e batalha
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
natildeo unida em amor gerou Hefesto
nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7
Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a
respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao
combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a
cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi
chamado pelo destino (2005 p 252)
Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo
homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo
a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na
Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica
Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta
Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas
como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa
ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre
pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles
que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio
essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves
determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser
feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar
de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do
destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da
Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute
7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)
23
que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim
mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute
que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios
Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do
culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em
que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por
Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os
ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a
desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta
peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a
exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado
Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego
arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da
eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade
mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de
Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de
civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um
arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais
linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia
A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos
baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se
inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC
e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC
O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado
notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo
compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas
24
leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua
organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se
com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)
No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse
periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada
aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve
nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute
quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio
das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-
se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em
conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo
grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III
aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de
obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra
Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo
apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a
Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura
A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo
Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que
foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o
periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de
vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito
posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central
da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia
Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar
com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa
banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens
8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego
arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a
figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a
logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico
25
Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos
afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando
ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a
reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e
agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo
respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos
Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar
algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o
divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e
independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo
pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas
dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha
Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de
quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor
se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a
Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e
culpam os deuses por suas falhas Vejamos
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο
γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino
35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida
desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno
Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em
diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera
Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto
VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX
9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
agraves 1100hs de 15 de julho
26
Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus
Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e
representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um
quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem
de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de
embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso
O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de
guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas
A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina
exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem
poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta
(BRANDAtildeO 1998 p 40)
A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia
tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei
distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o
pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma
esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma
nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente
caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto
(LESKY 1995 p 60)
Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos
Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute
mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural
importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma
ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o
cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a
emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre
300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα
10
Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante
entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa
27
οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()
326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)
Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos
Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo
por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas
depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor
Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima
Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo
Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos
Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia
como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para
o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que
reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem
reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto
XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica
todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)
Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada
inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi
escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees
sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade
estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as
duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as
num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas
relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra
peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo
de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O
primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute
bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que
traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro
reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html
28
A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o
nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que
compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise
especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI
121 A Estrutura do poema
Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)
da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de
epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada
tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei
principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de
inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia
De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz
com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em
que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da
epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta
denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a
poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa
palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a
poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical
das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao
criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo
simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como
o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de
epopeacuteia (ecopypopoiia)
Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender
melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define
a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A
partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas
29
da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da
trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica
Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo
aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a
aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as
suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com
unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas
epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu
eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos
da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees
sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que
alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas
controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de
composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse
sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)
Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que
a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela
extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia
natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios
Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de
elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da
epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo
de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o
retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia
narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos
Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute
exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a
narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico
O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se
encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da
invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo
25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο
ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον
30
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα
ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι
30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα
καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων
σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν
35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)
Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide
―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute
sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos
e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees
Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas
por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso
colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13
Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as
Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No
proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I
encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as
muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos
desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos
Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
12
Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml
retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13
Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14
Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas
plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute
bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo
aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de
aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente
assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo
31
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)
Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito
vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso
Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos
Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol
Por outro lado este os tirou o dia do retorno
Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto
Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao
longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros
de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos
Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as
Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos
pretendentes
No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova
invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma
manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se
abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em
Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos
trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no
Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos
Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e
o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma
siacutentese de cada Canto
Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a
fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso
haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria
e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com
15
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs
de 27 de abril de 2010
32
Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos
Pretendentes no palaacutecio de Odisseu
Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para
solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida
Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua
matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida
Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e
encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-
se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz
relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia
Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho
Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre
o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do
irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as
notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os
pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco
Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de
Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e
liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo
oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade
destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios
Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios
A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa
obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas
comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de
Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade
Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se
aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede
33
sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta
sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa
Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de
devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno
Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos
Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as
muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende
desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute
Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que
passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento
forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes
dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente
consegue escapar
Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola
com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola
abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo
Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem
pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute
acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o
no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias
Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar
Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria
proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno
agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando
de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e
Aacutejax
Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o
adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao
mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave
34
ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do
deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos
demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa
Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais
oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam
Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute
petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes
e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido
Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro
Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre
o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que
acredita no retorno de Odisseu
Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino
de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer
para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco
parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu
Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do
seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos
pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho
Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o
que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o
apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por
Antiacutenoo um dos pretendentes
Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no
palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de
firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta
noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem
35
Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar
Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente
mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A
ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o
heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele
Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que
de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso
Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus
sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez
Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes
banqueteiam-se
Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo
e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os
dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele
que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo
tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis
que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos
Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes
Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado
diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta
e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se
dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina
Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se
vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e
quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de
frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi
quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso
Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai
ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a
36
cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e
vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos
pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada
Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os
periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos
melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia
de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de
Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e
diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as
peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes
estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram
exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza
fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos
destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso
objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos
acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do
presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se
insere o nosso corpus
122 Odisseu o heroacutei multifacetado
Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos
expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees
do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef
noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY
2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de
coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a
traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but
applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p
309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo
37
homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas
definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de
tentar defini-lo
Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem
os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os
trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a
Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas
satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de
ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a
define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis
venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos
que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena
Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus
Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados
Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo
intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo
satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que
satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque
as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de
caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e
natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade
tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e
consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16
Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute
mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute
segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos
lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os
acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute
da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina
Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por
sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu
16
Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a
nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico
38
Prometeu ~ Cliacutemene
darr
Deucaliatildeo ~ Pirra
darr
Deacuteion ~ Diomedes
darr
Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone
darr darr
Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea
Laertes ~ Anticleacuteia
darr
Odisseu ~ Peneacutelope
darr
Telecircmaco
Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer
heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes
esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de
Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais
importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus
feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu
eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril
Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro
prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas
ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu
com essas funccedilotildees
A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente
aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos
seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma
divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por
isso todos eles seratildeo punidos por Zeus
A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de
fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da
gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a
39
mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para
regressar a Iacutetaca
A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais
explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina
dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas
compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos
Vejamos a referida passagem
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17
(Odisseacuteia XXII 401- 406)
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo
apoacutes devorar um boi do campo vai embora
Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados
Assim terriacutevel nas faces era de se ver
Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes
Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns
aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de
Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj
a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra
maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida
gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que
ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para
cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)
Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)
Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja
Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive
tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia
de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon
17
Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html
40
no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros
Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos
proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles
Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de
Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo
em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos
Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da
centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da
descendecircncia heroacuteica18
Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu
sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que
Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os
pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama
Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do
prudente Odisseu
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)
18
Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de
2010
41
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo
que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia
possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados
assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror
Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem
do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada
tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu
para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu
importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o
Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena
em sua paacutetria
Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria
como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada
dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o
heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em
busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento
de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um
labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute
realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado
para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar
No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm
algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou
estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a
20
Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos
42
definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter
sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)
Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos
sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo
filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de
Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao
personagem maior da Odisseacuteia
Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu
representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21
e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se
relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo
Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral
principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a
importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees
num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos
dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e
vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes
recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual
atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois
poemas
Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem
mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar
os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei
Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos
revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim
como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos
sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj
Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia
21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este
eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute
disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004
43
Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ
πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ
πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ
5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22
Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito
errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para
o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou
seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz
Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute
feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa
muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo
Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta
retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por
muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X
e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades
Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder
de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo
de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus
discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se
oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu
verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de
muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e
multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim
ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o
mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com
todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj
nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma
compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees
22
Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
44
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
(NUNES 2009 p 28)
Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade
sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de
numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu
no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de
conseguir o regresso dos companheiros
(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)
Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me
dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la
ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes
et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par
tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23
(BEacuteRARD 2009 p1)
Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial
semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e
acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille
tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo
grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente
Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse
Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera
importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj
Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos
intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi
estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando
aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para
expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se
23
Traduccedilatildeo
Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer
Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado
a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens
e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por
tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar
45
para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar
buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores
logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade
representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os
feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu
poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas
voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato
Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a
persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e
evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de
Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou
seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881
ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida
de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si
Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica
da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em
poder quanto em prudecircncia24
Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a
chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena
compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio
astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o
intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade
Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de
muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em
sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria
Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de
Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha
Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia
no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25
Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com
24
Versos 892 e 898 da Teogonia 25
A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia
conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531
Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo
percebido que se tornara mito ainda em vida
46
Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o
acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes
vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca
Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()
Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem
de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)
A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos
centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei
sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os
trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)
No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e
de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo
isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que
o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica
47
2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico
Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do
traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir
dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este
autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos
Vejamos
Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos
criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores
faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do
traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a
envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)
Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram
o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o
desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar
de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos
presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em
profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se
dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo
destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso
trabalho
Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos
trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-
nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin
Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e
Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do
traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho
delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que
48
eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir
dos encontros que Odisseu tem no Hades
Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo
importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O
traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro
discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo
sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir
da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos
de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa
anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente
22 O traacutegico e a trageacutedia
No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do
traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de
um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico
Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a
delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar
traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas
interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao
contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento
traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da
kaqamacrrsij26
Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a
inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a
conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica
grega
A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou
ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos
26
Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do
trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido
primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo
49
define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva
etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj
(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou
semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura
grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o
traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como
manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia
veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia
Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas
do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o
tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao
gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode
siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante
socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo
envoltos em uma accedilatildeo grandiosa
Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo
dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como
pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico
como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes
desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC
Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos
destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)
Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que
pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o
adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um
exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na
produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que
() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da
existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos
traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito
pretendido pelo poeta (Ibidem)
Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute
inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas
50
categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na
narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)
Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso
ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem
tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato
podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho
Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o
pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos
ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο
ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε
ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ
πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο
600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ
ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27
(Iliada XXIV 596-601)
Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento
sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do
outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso
Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti
estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde
ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete
Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo
pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia
desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do
sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo
informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal
que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um
mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete
ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem
ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito
e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do
banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico
Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico
(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos
27
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010
51
convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem
de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico
natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma
incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave
exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero
direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural
com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de
Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia
Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia
traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas
entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante
influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor
traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com
Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da
Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte
posicionamento de Jacqueline de Romilly
Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das
suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido
buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover
Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar
um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os
tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o
gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio
(ROMILLY 2008 p 22)
Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os
tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em
meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico
contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas
epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos
que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas
atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias
homeacutericas
Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a
influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados
52
a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos
Sandra Luna
() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza
humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das
quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua
cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o
desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus
os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute
sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)
Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento
favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa
Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo
tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta
problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do
traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero
no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de
Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga
de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a
peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis
gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados
na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no
proacuteximo capiacutetulo
Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros
elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-
nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28
os personagens nobres
e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a
sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A
diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo
do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico
Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico
principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva
28
O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo
centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a
Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a
Iacutetaca
53
como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de
Homero legaram-nos o traacutegico
Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a
trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso
acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se
realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se
tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a
necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte
suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta
exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia
Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee
certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um
nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se
precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas
origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das
dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)
Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta
de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a
eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995
p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com
outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29
ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio
De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas
dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que
almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva
Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo
Vejamos
Γελνκέλε30
δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ
θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ
θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )
κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς
29
Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30
A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente
do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos
reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito
54
θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε
ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)
Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma
(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta
pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas
cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu
desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado
apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua
natureza proacutepria
Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao
ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades
proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a
trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa
conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo
tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica
Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos
eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa
relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-
se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias
Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie
attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote
nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une
deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32
(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as
consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia
relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e
Soacutefocles Diz-nos
La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord
eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue
amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme
acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme
acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33
(Ibidem p 19)
31
Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html
agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32
Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a
uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33
Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto
em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o
segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira
vez por Soacutefocles
55
Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia
informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o
festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34
de Lesbos Este se consagra como o primeiro
ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas
informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma
definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando
Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque
ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine
agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois
acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la
ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35
(WILAMOWITZ 2001 p 117)
Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos
legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que
muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as
exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma
temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir
Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no
surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania
Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute
nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos
ainda
A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas
urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de
trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A
proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente
religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p
14)
Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de
pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante
34
Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria
reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35
Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada
de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e
ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus
56
dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que
a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a
comeacutedia
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo
clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos
distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra
(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por
isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o
precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim
sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser
primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso
O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os
rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da
reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal
aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por
Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a
centralizaccedilatildeo do poder
Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das
transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam
o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os
cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor
entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero
literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser
A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia
ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e
claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas
Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas
o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida
eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)
Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada
facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que
produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36
(FINLEY 1970 p 101)
36
Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -
estritamente falando ndash a trageacutedia ()
57
Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo
psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos
que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais
precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e
proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este
problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a
manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e
estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a
comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira
A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo
social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos
seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os
cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados
das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como
objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico
(Ibidem p 10)
Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela
se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica
nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a
trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento
importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua
fragilidade e limitaccedilatildeo
E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave
representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa
contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser
completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo
associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em
estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico
Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de
que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso
questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do
sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante
(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa
possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade
58
representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio
daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual
passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso
reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da
fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao
infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser
observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e
Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute
o mais traacutegico
Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal
geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de
uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos
que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com
reconhecimento37
do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38
do grego peripemacrteia
diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses
elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo
esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila
Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus
elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto
coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39
O primeiro constitui a parte da
trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre
dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui
dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o
estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus
Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos
a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se
e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois
37
Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo
mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer
conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38
Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de
mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a
imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do
inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39
Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em
todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees
59
elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o
coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo
figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de
atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia
apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs
Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento
primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto
na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de
peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe
Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica
com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu
material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p
70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa
relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma
A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode
comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos
intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila
estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento
do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A
epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas
por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)
A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico
acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto
indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz
perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada
tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural
verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos
ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute
encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura
grega atraveacutes das trageacutedias
No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua
manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia
sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o
objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir
60
do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo
eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas
no seacuteculo IV aC
23 O traacutegico na Poeacutetica
Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na
Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica
sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se
importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi
influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na
estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia
veicular aos jovens do estado
Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo
relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual
Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante
desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado
Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os
posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da
perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por
considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte
literaacuteria
Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a
a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se
prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes
da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico
No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um
mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo
contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas
o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem
claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o
que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a
61
que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de
heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em
situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees
feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de
considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz
[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο
ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ
ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ
κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40
(Repuacuteblica III 387b)
Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de
narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado
aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos
audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo
receado mais a escravidatildeo do que a morte
Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as
passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para
compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da
Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu
objeto de criacutetica Vejamos
[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα
ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41
(Repuacuteblica III 386c)
Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta
natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um
trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e
que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre
cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos
Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria
homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades
com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe
40
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010
62
como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para
eles representa um infortuacutenio
Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se
desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo
para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim
como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em
detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha
realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o
Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri
com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar
(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para
Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado
beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos
mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia
Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que
ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira
dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se
arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo
definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo
beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral
Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se
encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e
negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao
inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de
desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim
mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de
amizade
42
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010 43
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de
2010
63
Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a
explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo
do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a
arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a
sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam
permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero
responde
[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο
παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44
(Repuacuteblica
III 397d)
Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para
cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura
O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por
Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute
Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da
estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser
positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas
consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que
Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos
aristoteacutelicos
Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois
considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-
se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias
mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade
No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais
desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade
por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x
aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da
irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens
44
Textop retirado de
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3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45
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10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
64
E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo
nomoj46
Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor
da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou
estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de
sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de
outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como
tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia
θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη
ιέγεηλ47
(Repuacuteblica X 595b)
E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a
respeito de Homero que impede-me de falar
() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε
θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48
(Ibidem 595c)
Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos
autores traacutegicos
Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero
realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base
mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores
traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria
elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas
como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia
exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua
intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo
como bem nos caracterizou Platatildeo
46
Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido
primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes
da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47
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10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48
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10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
65
Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu
mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no
sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da
funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as
concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica
Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como
Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria
etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os
comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais
gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a
trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma
Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()
fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa
thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)
Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho
artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua
finalidade
Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica
ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o
traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define
Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos
constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz
da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de
fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas
Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a
epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou
49
Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre
algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o
compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma
coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo
poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a
poeacutetica 50
ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51
Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que
significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra
informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de
66
seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute
bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela
os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma
representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila
A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do
texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como
doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever
pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente
formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida
quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que
mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele
como o fusioloiquestgoj53
No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da
trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a
poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os
homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito
traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e
gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico
realiza-se
Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a
sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil
Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-
se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres
nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes
citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de
Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles
quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito
natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da
accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52
Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo
verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a
pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53
O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj
genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual
Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a
significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo
67
protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles
Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo
estando presentes numa narrativa eacutepica
No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que
Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o
autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os
direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos
Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ
ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο
θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ
δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ
δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54
(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)
Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)
nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo
tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a
poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua
analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as
trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias
Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo
dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como
comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros
elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo
traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem
que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da
trageacutedia
Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e
caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no
capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao
iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia
Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο
ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο
54
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de
2010
68
δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55
ηὴλ ηλ
ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)
Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui
certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em
seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio
da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos
Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas
baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que
deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave
frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran
kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver
narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um
narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito
importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml
fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo
Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a
piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os
espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico
enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em
relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento
55
A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar
levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica
a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que
simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de
2010 57
Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em
temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer
fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao
ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste
termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J
Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que
terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj
apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da
referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido
daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade
que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror
acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso
bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute
apropriada para as trageacutedias gregas
69
de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa
thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a
catarse de tais sofrimentos
Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse
termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)
sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu
sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para
tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo
para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica
A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do
verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)
Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa
puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da
accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que
esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja
este meacutedico seja religioso
Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo
limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo
religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que
desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um
rito presente em todas as religiotildees
Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos
acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar
de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e
malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para
que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo
utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim
natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade
semacircntica
Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em
kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da
trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para
70
entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para
Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem
disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso
natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente
da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico
Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que
o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em
infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que
tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil
por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado
pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do
excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos
chegar a Iacutetaca
Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se
suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees
representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como
ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade
de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor
Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez
anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da
esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos
esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece
indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon
um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria
para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo
isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um
grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir
tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa
tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em
Agamecircmnon
58
Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que
ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim
71
ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ
πο ζε δαθξύζσ
θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ
θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽
ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Ioacute ioacute Rei rei
Como chorar-te-ei
O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo
Eacutes posto nessa teia de aranha expirando
a vida por uma impiedosa morte
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e
piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou
formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo
estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o
temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute
provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij
Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos
percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo
chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a
partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor
e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o
traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes
da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele
decorre da accedilatildeo dos personagens
E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia
grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)
e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute
exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento
o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma
72
Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία
κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ
θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59
(Poeacutetica VI 1450a 15-19)
O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute
representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a
fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma
qualidade
Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz
que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem
loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo
supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln
pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)
ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres
Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61
(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia
Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute
proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem
traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa
tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em
uma situaccedilatildeo de vida
Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo
dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia
Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante
compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos
Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε
ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)
59
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de
2010 60
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010 61
Ibidem 62
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010
73
Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que
satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos
Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos
quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para
intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia
Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar
aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos
asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes
do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define
Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por
isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo
informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a
que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de
Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da
memoacuteria e do silogismo
Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito
Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo
vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois
quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se
reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos
por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras
traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o
segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver
que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por
um crime que natildeo cometera Observemos
ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ
ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ
ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63
(Eacutedipo Rei 1182-1184)
Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras
Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim
eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade
63
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves
1940hs de 17 de julho de 2010
74
ἰὼ
ζθόηνο ἐκὸλ θάνο
ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί
ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα
ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ
ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
64
(Aacutejax 394-403)
Ioacute Treva toda minha luz
Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim
Leva-me leva-me para tua morada
leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia
para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ
κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο
θνὐθέηη κνη θο
νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο
ἰὼ ἰώ65
(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)
Ai de mim matildee Pois este mesmo
canto do acaso caiu para ambas
Para mim natildeo (haveraacute) mais luz
e nem a claridade do sol
Ioacute ioacute
αἰαῖ αἰαῖ
δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ
ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ
ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη
()
αἰαῖ αἰαῖ
θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη
κέζεηέ κε ηάιαλεο
θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη
πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66
(Hipoacutelito 1348-501370-74)
64
Tento disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs
de 17 de julho de 2010 65
Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de
17 de julho de 2010 66
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves
2030hs de 17 de juho de 2010
75
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto
de profecias injustas desfeitas vergonhosamente
fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
E agora vai causa-me dor causa-me dor
deixais-me ir desgraccedilado
e que o Curador da morte venha para mim
destroacutei-me destroacutei-me
As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando
os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos
Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a
matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor
Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o
responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado
enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de
reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir
toda a tragicidade
Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna
do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o
desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a
peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela
explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento
reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia
aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem
reconhecimento e peripeacutecia
Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e
como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou
muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a
compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a
teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia
Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute
que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem
do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo
76
suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que
ele diz
ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ
ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67
(Poeacutetica VII 1451a 11-15)
Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro
segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar
para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o
limite conveniente de sua extensatildeo
A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a
estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para
a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve
desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna
tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado
tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo
traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz
compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a
mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo
por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila
prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender
que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por
completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da
accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna
No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico
comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o
temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel
situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que
causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo
porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes
sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas
situaccedilotildees
67
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de
2010
77
ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo
virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea
Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio
ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu
significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei
que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de
ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ
Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο
δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ
βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν
ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja
falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss
the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome
indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave
traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos
para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio
importante esse erro pode ser de origens diversas
Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico
indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute
largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro
68
Ibidem 69
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
78
Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso
grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece
Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave
conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral
originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou
grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico
Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que
geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado
Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos
sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo
mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas
traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das
realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas
da famiacutelia
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos
o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos
entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico
mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse
aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba
por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas
Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e
aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees
teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos
70
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
79
depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como
tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel
manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas
Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico
continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as
discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que
desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso
objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa
proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de
Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna
Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na
trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto
do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre
mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino
caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais
tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito
do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado
por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o
homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT
2008 p 21)
Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar
uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria
depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso
Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o
primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute
considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que
possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente
aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha
80
O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute
atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do
espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a
outra eacute por meio do adikon71
em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro
Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem
voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute
chamado de adikon injusto
Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da
vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo
contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant
(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a
vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses
como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia
dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos
Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade
Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide
qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si
proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se
manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)
A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o
homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos
apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade
ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por
potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)
Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo
Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma
etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da
vontade (Ibidem p 42)
A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do
homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o
responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o
71
Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo
aatildedikoj significa injusto
81
contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a
condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes
heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por
exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que
fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele
mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se
num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma
elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama
representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores
eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados
possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na
trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de
um impasse porque
A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito
(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz
condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de
suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves
outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)
Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais
combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica
Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do
traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo
vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e
levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de
Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo
relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna
Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se
introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-
se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a
trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da
trageacutedia claacutessica
82
No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia
particular por ter conservado um contato constante com as realidades
colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter
conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no
outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu
verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados
E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008
p 168)
Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser
confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que
crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve
haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh
(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem
necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees
traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas
inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo
dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo
proacuteprio coro segundo Romilly (2008)
Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos
companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto
ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu
demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon
segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do
destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra
pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla
causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em
geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees
A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute
algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas
tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute
renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o
divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e
seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por
72
O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar
83
isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como
sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos
Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros
dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre
neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como
culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o
lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o
lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)
Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz
com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem
traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda
manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir
da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos
seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um
E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de
respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia
Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e
classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto
(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo
dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada
com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e
adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos
possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo
entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros
Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado
substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser
feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero
conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos
estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)
Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e
de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns
pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia
homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca
tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica
84
existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria
regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos
que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos
realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das
avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de
um trabalho
Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego
(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico
uAgravebrij73 e aatildeth74
A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida
cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao
heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e
qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com
os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-
ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele
afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida
No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia
(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais
precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas
Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma
situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como
vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do
infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o
exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da
trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo
necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise
porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar
em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por
exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser
73
Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma
desmedida 74
Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a
puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses
85
visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno
sentimento de desonra
Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo
tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar
compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a
outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara
a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do
seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da
Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos
germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky
(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento
respalda nossa pesquisa
Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky
(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que
os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso
ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da
Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura
narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar
sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da
famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como
destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais
difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder
continuar em sua jornada
Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita
tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute
tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a
presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com
narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser
verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo
para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por
exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem
neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo
86
que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que
passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante
Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do
traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria
pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o
traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido
mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o
sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o
sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos
sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico
(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a
sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar
como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia
poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a
compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente
Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky
diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido
consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com
isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo
entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave
objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)
Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes
explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os
indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora
afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu
objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver
algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos
de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da
Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e
sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se
necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)
Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada
pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute
deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse
87
que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee
Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino
infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute
retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por
isso Luna afirma-nos
Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos
elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que
reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo
inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de
mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)
Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos
tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo
literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-
o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute
verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica
sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao
contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas
por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo
nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como
ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato
todos se derramavam em laacutegrimas
Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute
―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia
manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim
da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No
proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia
em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a
assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa
fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de
estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia
Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila
de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem
para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para
o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de
88
escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope
pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio
E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos
que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser
seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou
distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim
do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois
neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo
Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve
seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode
contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os
relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo
de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar
Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos
importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as
relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos
compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No
segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir
delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que
circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do
traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu
para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no
qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia
89
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade
Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao
longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave
ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra
tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o
desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no
Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do
traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se
com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e
Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de
amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico
Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado
as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras
representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC
seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas
obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de
Soacutefocles
Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou
representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro
em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer
da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso
objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser
encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto
Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas
epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a
identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no
segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da
90
Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem
tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes
elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75
pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o
temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao
iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute
apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220
responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia
perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde
215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε
νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο
ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε
λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ
220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76
((Odisseacuteia I 215-220)
Minha matildee diz que fui gerado por ele mas
pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo
existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem
Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado
de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas
Agora do mais infeliz dos homens mortais
eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas
Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento
do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno
quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o
sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer
que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por
elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da
75
O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual
os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao
sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua
desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode
ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo
culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos
encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos
traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo
impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010
91
piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo
nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de
nosso ser77
(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que
Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto
mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que
cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo
uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou
νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78
ζηελαρίδσ
νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ
()
ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ
ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ
250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο
νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79
(Odisseacuteia I 243-244 248-251)
Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas
nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me
()
A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e
ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar
eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo
meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo
Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o
a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente
apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor
imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em
Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra
mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute
77
Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo
em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos
espectadoresleitores 78
A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo
expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada
(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do
infectum 79
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010
92
comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens
de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um
dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos
dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens
deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os
dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute
natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto
Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila
sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento
diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que
nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor
aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do
que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica
ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute
tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e
maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus
muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os
tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de
Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa
ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη
ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ
80
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho
de 2010 81
Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho
93
60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο
Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82
(Odisseacuteia I 58-62)
Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila
que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer
Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido
Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios
Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus
A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver
um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer
imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o
traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos
sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter
ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os
demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o
filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus
ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ
Κύθισπνο θερόισηαη83
ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ
70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84
(Odisseacuteia I 68-70)
Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre
o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope
O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e
consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo
inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria
sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos
82
Texto disponiacuteevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83
O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de
Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)
Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo
de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010
94
no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros
que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios
sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela
necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos
uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros
ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ
290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ
ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ
ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ
ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα
ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο
295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85
(Odisseacuteia IX 289-295)
Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra
os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo
O jantar preparou com eles tendo partido seus membros
comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada
entranhas carnes e ossos com tutanos
Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus
enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras
a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo
Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se
pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel
Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro
Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope
pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do
Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele
seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo
horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o
daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos
() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο
ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ
85
Texto disponeacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard
3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86
O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e
Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade
95
375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο
ἧνο ζεξκαίλνηην ()
380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη
ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ
νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ
ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο
δίλενλ87
(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)
() para fora da garganta colocava vinho e
pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado
alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza
ateacute que queimasse ()
eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram
em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem
Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira
e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me
apoiado por cima fazia (a vara) girar
A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem
pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento
tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo
temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do
monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do
homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi
visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das
circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a
autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas
tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a
―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que
temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute
entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia
No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado
sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado
pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo
podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais
87
Texto disponiacutevem em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010
96
uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros
pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros
possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem
fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados
com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu
continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo
Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ
ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88
ἀεηθειίελ ἀιασηύλ
θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη
505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89
(Odisseacuteia IX 502- 505)
Ciclope se algum dos homens mortais vier e
perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho
podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de
cidades]
o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada
Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e
orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar
mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os
soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas
afliccedilotildees
Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender
como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o
Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute
passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios
partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira
cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e
uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta
cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu
diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo
88
Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro
(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar
Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de
transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010
97
o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes
Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras
injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por
Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca
Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as
circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e
principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de
Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos
personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que
tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens
acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a
tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus
companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas
do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX
partamos para o X
No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo
onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para
ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem
Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e
curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave
ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los
bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua
cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos
(Odisseacuteia X 72-75)
Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou
o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados
pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por
percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo
descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido
injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes
traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma
conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)
Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas
98
que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a
obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz
o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero
dramaacutetico
Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu
e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo
Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se
com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo
deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem
devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a
perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para
merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles
cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que
tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido
involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute
que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de
Odisseu no Canto XII
Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de
Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino
imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses
havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-
se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los
chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de
Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo
levados para o seu fim Vejamos
αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα
ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ
νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε
θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90
ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91
(Odisseacuteia X 237-240)
90
Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D208 retirado em 20 de outubro de 2010
99
(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente
tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros
Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e
tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada
Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar
humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade
Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a
figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que
intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo
faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo
que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar
gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos
importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a
passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla
No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante
representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo
a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica
finitude da existecircncia dos mortais
Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal
representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da
ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De
maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em
porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira
transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens
aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a
essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem
na tragicidade
No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais
efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena
consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo
apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc
natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso
como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e
desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma
100
problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens
homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo
humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu
apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de
homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de
Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando
mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica
mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que
incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar
na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam
desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar
Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o
mestre primeiro dos traacutegicos
Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a
deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir
sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz
que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o
heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus
companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes
transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos
agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros
elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste
caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute
―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo
invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no
segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma
epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado
Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e
homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores
Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus
companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe
e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao
Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera
101
ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ
θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92
νὐδέ λύ κνη θῆξ
ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93
(Odisseacuteia X 496-498)
Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo
sentou no leito agora chorava pelo meu destino
natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol
Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade
(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno
ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma
tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio
desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida
inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia
fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim
Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros
Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso
com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da
frente (Odisseacuteia X 566-567)
Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e
os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades
deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos
acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo
anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e
observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico
portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um
problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de
uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um
heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os
outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por
uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que
92
O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado
concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010
102
apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu
Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a
implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo
ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute
dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um
problema tambeacutem para os seus companheiros
No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e
retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos
traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho
escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos
entatildeo para o estudo do proacuteximo canto
Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os
apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios
que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de
Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo
alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente
conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada
Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos
ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao
enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de
acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila
chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em
todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo
heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos
companheiros engolindo-os Vejamos
αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94
θεθιεγηαο
ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη
νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη
πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95
(Odisseacuteia XII 256-259)
94
Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo
inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena
citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus
soacutecios 95
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3
D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010
103
Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram
estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha
Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi
De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar
A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens
que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute
representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto
que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se
como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei
eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute
sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais
(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96
deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a
todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas
forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o
levam ao traacutegico
Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj
(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa
grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a
todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela
sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos
sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem
pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI
1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados
No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem
entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado
Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito
dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem
ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de
crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio
96
Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o
primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no
embate contra as forccedilas sociais
104
dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta
arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam
enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros
demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um
juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas
divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o
juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97
ou seja
―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)
Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo
apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge
mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais
uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles
Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que
um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus
companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do
juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um
miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam
perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se
ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu
temor
Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs
vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia
depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-
os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do
juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um
mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade
impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e
ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a
ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando
e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco
97
Texto disponiacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard
3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010
105
todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a
desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao
traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo
tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com
Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o
sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel
crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao
acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o
mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros
A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se
como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas
superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na
continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos
demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de
que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado
com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza
atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida
tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena
em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a
inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a
impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute
fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico
natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a
determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o
bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da
nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)
por isso ele fica sozinho a navegar
Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar
pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica
aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram
reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa
fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros
Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias
106
accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da
Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua
culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A
partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso
segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse
erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia
ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο
θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ
νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-
1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que
justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para
cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em
que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da
divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade
eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do
daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por
completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn
duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar
na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono
profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)
No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como
responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado
e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem
sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos
98
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
107
erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma
parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos
companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa
inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela
fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos
empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa
boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia
no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo
Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os
destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla
causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de
alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla
causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon
daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo
Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol
pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo
da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu
logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a
segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de
Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados
por Odisseu e do juramento realizado
Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e
Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de
Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios
que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei
em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio
punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a
narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o
mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o
Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida
Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para
que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais
heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes
108
reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige
seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope
ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe
o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos
ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε
δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ
λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε
() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ
99
(OdisseacuteiaV 151-153 158)
Ela o encontrou sentado na margem em um
rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida
lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava
()
Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas
Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder
desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei
ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que
eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano
Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-
lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o
risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso
Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige
este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100
Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega
na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos
Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por
Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute
vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a
Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo
99
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3
D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100
Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor
compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401
109
Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma
experiecircncia traacutegica
ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη
()
ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ
() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί
λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101
(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)
Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior
()
Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram
na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas
De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer
()
Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria
Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel
Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de
Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em
conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o
oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre
Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se
obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se
obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para
poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute
dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada
partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas
vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito
traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu
vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas
decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida
101
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3
D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011
110
Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo
tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive
preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma
fama102
Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria
perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos
temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a
deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte
seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico
comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma
escolha conflituosa
Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o
canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se
deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute
auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No
Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para
enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a
ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No
Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a
preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco
comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira
idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e
chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem
A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103
102
Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por
Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da
Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer
belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a
distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar
deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel
conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz
preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria
sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele
morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar
103
Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos
Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII
sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na
narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as
indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear
111
Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada
com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e
foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou
foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme
neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e
iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o
desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII
finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os
proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes
saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua
vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina
dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua
famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e
pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E
logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns
servos
Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo
natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias
Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II
Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para
que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles
Vejamos
η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε
ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη
νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ
ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104
(Odisseacuteia II 281-284)
Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu
dicernimento]
eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105
natildeo sabem eles que a morte e o negro destino
estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer
104
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D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105
Os destaques satildeo nossos
112
Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois
bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios
O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn
quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino
traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por
vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade
Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem
de suas proacuteprias accedilotildees
Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma
formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias
(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos
podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a
asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes
que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com
sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico
somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em
seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a
esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe
Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos
aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis
contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os
pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo
grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar
de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente
pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero
demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim
fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia
Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que
para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros
elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos
o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para
merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para
com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os
113
heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio
dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo
humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no
Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males
estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso
Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)
A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do
imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa
tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque
consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa
afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo
ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei
para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os
mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito
malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor
nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os
pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu
mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute
foram castigados por seus males Lembremos
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
106
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho
de 2010
114
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em
Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia
instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa
castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam
a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica
como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que
forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso
das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo
comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo
proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens
pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar
a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim
Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e
abolidas
Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia
momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-
nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta
desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos
constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de
como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os
soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo
impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma
comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos
um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser
levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando
o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser
acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico
115
experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como
incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o
homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais
32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do
Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades
com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como
veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem
de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto
Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto
Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um
trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de
ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do
nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico
A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos
anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise
proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc
da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias
passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir
seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica
Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-
498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei
teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda
pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as
desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia
Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus
encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos
116
propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos
comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a
padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele
morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado
erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos
Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em
Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide
para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro
Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo
Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira
experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da
morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal
visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia
imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma
alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo
deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu
depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei
apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)
Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que
natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os
noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo
satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram
indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a
sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo
falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante
desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma
dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil
afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo
no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)
Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de
sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele
seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj
que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte
107
Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo
dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por
tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes
117
buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas
disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu
faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar
para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte
desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem
gloacuteria vagueiam no Hades
E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo
aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a
verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute
verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute
poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que
enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca
Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso
consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca
enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua
esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute
castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o
destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo
isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua
famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)
Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute
que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute
ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia
Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o
porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do
filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta
sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do
sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e
qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar
Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas
Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas
Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos
que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do
118
sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos
compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros
sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no
Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica
destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No
entanto o eiAtildedwlon 108
essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)
pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi
detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees
sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm
recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes
cumpriu com todos os rituais necessaacuterios
Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon
prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia
como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em
falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-
se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia
retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local
sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-
lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a
esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o
palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as
folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de
saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e
pelo marido
νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα
νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ
νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα
ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ
ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109
(Odisseacuteia XI 198-203)
108
Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um
morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109
Texto diponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010
119
No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz
com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro
nem foi doenccedila que me veio para o grande
definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me
Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo
a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida
O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante
por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova
empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se
ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas
paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e
ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo
eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa
Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e
acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a
deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar
de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em
Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter
humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como
os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato
comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois
A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido
para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute
com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem
neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o
autecircntico tom da Moira110
()
( OTTO 2005 p 245)
Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do
destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio
em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos
estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente
seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele
natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como
culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a
110
Os destaques satildeo nossos
120
inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos
satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro
eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do
homem (ROMILLY 2008 p 175)
Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos
sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-
203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais
traacutegicas quando ocorrem entre familiares
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de
tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior
comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento
traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio
agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica
1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do
seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de
Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta
de saudades teve o pior dos fins
ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην
ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112
ὅο ηηο ἐκνί γε
ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113
111
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010 112
Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter
deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de
modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo
(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte
da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila
121
(Odisseacuteia XV 358-360)
Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria
do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao
habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido
Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute
muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa
morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com
quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um
filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de
forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada
pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto
em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando
sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para
ele como tortura ele exclama
―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο
κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο
ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη
ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ
ἔπηαη᾽114
(Odisseacuteia XI 205-209)
Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado
o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me
O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a
por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho
dos meus braccedilos ela se evolou
Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte
Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende
que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras
vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o
de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee
de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora
113
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3
D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010
122
eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas
naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo
seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de
um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees
Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma
sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes
de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca
Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em
que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes
e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo
pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois
todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele
continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer
seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute
Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu
Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os
guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar
(Odisseacuteia XI 391-395)
Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o
senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu
dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos
estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da
cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois
aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu
ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na
disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde
ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε
ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο
δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ
ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη
λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο
κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ
ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ
123
ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο
θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115
(Odisseacuteia XI 409-413416-420)
Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado
pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um
banquete]
matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira
Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais
companheiros]
eles mataram continuamente ()
Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros
seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa
Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo
pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias
estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116
Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra
descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo
acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que
Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a
Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido
por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por
sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida
conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a
morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito
traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum
vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o
homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o
caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC
Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem
gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia
como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos
115
Retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116
Destaque nosso 117
Verso disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12
de julho de 2010
124
pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda
para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo
alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)
Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos
mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008
p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas
tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis
saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante
Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida
recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo
miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus
companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas
nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119
Mesmo assim imerecidamente eles que
pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos
O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou
uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim
aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua
dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra
Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e
humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas
tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi
Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos
demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e
para os demais
Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar
de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ
118
Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela
contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso
seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119
Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de
ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120
Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro
capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com
Aquiles na Iliacuteada
125
ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121
(XI 418) Neste
verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI
Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos
detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos
como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim
Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do
fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma
imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua
morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122
Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos
visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira
escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem
presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico
apieda-se
No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois
fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-
se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de
Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o
despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros
que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para
que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido
Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que
Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas
que de modo geral relacionam-se ao imerecido123
Portanto entendamos que o Atrida pelo
121
Destaque nosso 122
Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por
influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute
iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo
era encenada e sim anunciada pelo coro
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
123
Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais
especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo
126
fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua
famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida
E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro
incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse
imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim
pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo
dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj
Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu
iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante
recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o
que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo
daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis
a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com
quem amamos
ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ
ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ
ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη
ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη
θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ
ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125
(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)
Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a
proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece
iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir
compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele
proacuteprio ou um de seus parentes ()126
(ARISTOacuteTELES 2003 p53)
Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em
Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os
124
Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias
Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos
que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo
foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a
filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126
(FONSECA 2003 p 53)
127
pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de
ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem
reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos
compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a
passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser
suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute
vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos
distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa
junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o
para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que
Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)
Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando
no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino
que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim
como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa
da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes
Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute
que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos
semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute
inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa
semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu
compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe
Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em
Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo
entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa
relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em
Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua
volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute
o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843
παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε
θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ
δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο
ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ
ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη
θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη
128
εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη
ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο
δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί
κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη
δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο
εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127
ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)
Poucos entre os homens tecircm congecircnito
Respeito sem inveja por amigo fausto
Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo
Duplica o mal de quem dela adoece
Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento
E pranteia ao ver alheia prosperidade
Ciente eu diria pois bem conheccedilo
O espelho social imagem de sombra
Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo
Soacute Odisseu que invito navegou
Foi sob o jugo o meu pronto parceiro
Fale eu dele morto ou ainda vivo128
Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu
e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado
tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos
que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar
nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram
de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma
relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com
Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o
surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)
mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que
estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso
veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela
linearidade da narrativa
Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois
jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra
dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos
sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino
127
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves
1816h em 15 de outubro de 2010 128
(TORRANO 2004 p161)
129
() ἦ ηνη ἔθελ γε
ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ
νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129
(Odisseia XI 430-432)
Na verdade ele dizia
bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos
em minha volta para casa
Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o
conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o
traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em
Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e
pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa
Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e
outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno
da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj
da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E
neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e
divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer
inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee
levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum
homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina
ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo
procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)
O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao
choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos
na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e
comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes
feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho
e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo
como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas
matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele
129
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010
130
proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido
pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)
Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber
seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um
heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos
estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute
a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na
trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com
as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na
Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de
como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς
θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia
Canto XI v 412)
Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do
amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon
por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma
esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra
que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)
Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de
Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao
decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e
seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do
daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino
pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino
traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E
o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de
Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser
avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de
Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)
Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre
notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para
130
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010
131
que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar
aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas
situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo
A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um
no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na
vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o
protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do
traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo
detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz
Aristoacuteteles
ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο
ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ
ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131
(Poeacutetica
VI 1450b 18-20)
Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute
convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os
inteacuterpretes do que os poetas
Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a
esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para
que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos
tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no
segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com
nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor
compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj
o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj
ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ
θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη
ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ
κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132
(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)
131
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b
retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010
132
Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo
de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os
males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim
aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso
quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133
(ARISTOacuteTELES 2003 p31)
Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que
injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de
ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)
completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute
tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o
ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-
nos Aristoacuteteles
ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη
ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο
ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ
ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5
8-12)
Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa
disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois
outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles
sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em
circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)
Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute
suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute
colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo
aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem
disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim
constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo
temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI
1449b 24-28)
No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no
Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza
como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo
133
(Trad FONSECA 2003 P31)
133
Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj
que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em
relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que
ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do
heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com
os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo
do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij
No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o
eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada
e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em
que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos
perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a
inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que
desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que
sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o
retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera
enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama
νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο
γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ
νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ
πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ
Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ
ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134
(Odisseacuteia XI 481-486)
Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda
pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes
Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no
passado e no futuro]
Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos
deuses]
agora aqui entre os mortos exerces grande poder
Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles
Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades
com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em
134
Texto disponeacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010
134
campo de batalha135
Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu
precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que
morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele
dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada
κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα
τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη
Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar
aquele que ressoa do alto ceacuteu
O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido
uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto
esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as
honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus
concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora
morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo
faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu
apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon
imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o
poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj
mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de
seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter
gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute
desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε
κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
βνπινίκελ136
θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
135
No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha
fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136
Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser
exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi
selado
135
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137
(Odisseacuteia XI 487-491)
Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou
Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu
Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um
Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse
a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram
Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que
fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso
potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera
perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida
ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores
para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao
arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por
isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico
relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o
fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em
A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer
ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma
inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo
Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles
com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado
como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida
enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος
ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo
trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado
Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os
valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p
182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se
natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra
do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc
137
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010
136
o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino
injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu
semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria
Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por
proporcionar-lhe a kaqarsij
A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de
Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa
interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso
do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia
homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees
das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos
espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute
a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica
Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos
no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para
as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos
diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim
Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes
dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica
ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em
conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade
do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos
Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da
esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem
em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)
ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa
construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles
diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral
Vejamos o porquecirc
δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]
ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ
137
ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138
(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)
Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver
os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que
sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo
Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se
apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre
os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses
assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o
pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de
Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a
falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas
batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo
o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor
o quadro eacute destoante
αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ
ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139
(Odisseacuteia XI 541-542)
Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte
tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade
Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero
dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os
momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI
da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o
Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos
depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao
vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico
mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e
sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios
138
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b
retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139
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D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010
138
Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute
dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes
de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e
inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O
que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador
Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas
tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda
estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos
troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi
responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este
imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que
desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que
Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia
XI 548-551)
Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo
percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em
Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-
lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si
as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade
(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza
Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo
bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus
familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax
O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas
de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com
as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as
herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles
que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que
combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina
elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era
considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas
do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu
139
amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor
delas
Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax
acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento
do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma
() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal
Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que
se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma
gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como
Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua
cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se
convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa
responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140
Assim
culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado
por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si
como tambeacutem para os outros
Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os
mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se
malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim
como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais
uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse
reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos
αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ
ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ
ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο
ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo
140
Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes
para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino
Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o
mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no
traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
140
(Aacutejax 394-403)
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
140
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο
ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141
(Odisseacuteia XI 559-564)
Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito
dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto
Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a
minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo
Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras
almas que haviam morrido para o Eacuterebo
Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor
de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para
entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles
(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a
atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda
que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES
2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra
mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se
―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por
todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que
o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos
como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de
Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)
Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais
desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-
se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico
Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos
outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a
necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para
Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara
sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele
levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo
assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades
toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei
141
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D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010
141
eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem
consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do
Hades
Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro
Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo
seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago
cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo
vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme
pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de
Heacuteracles
O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que
enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-
619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo
tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de
imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com
seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de
vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos
Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo
etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos
trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e
recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles
parte
Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que
ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila
de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os
soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto
XI
Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos
satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise
central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei
observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica
contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila
Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A
142
primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda
sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no
Canto XI da Odisseacuteia
Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que
ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir
os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)
(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico
encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute
encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um
heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico
A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute
seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo
ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a
matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de
insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o
destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como
ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a
culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de
eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que
tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das
conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a
dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida
natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)
Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de
educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto
a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue
vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel
enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do
traacutegico (LUNA 2005 p 383)
Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon
Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e
qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como
espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O
primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo
143
tendo que portanto procurar fugir142
desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses
sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses
males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu
pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria
domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias
resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte
Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica
constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que
Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como
tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra
asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu
ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo
deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de
passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para
finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos
(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a
kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo
purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde
seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia
142
Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz
fugir
144
Consideraccedilotildees finais
Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais
especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que
foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o
filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos
que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado
dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados
A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs
capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos
uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo
homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre
a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu
Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde
despontar em meio a esse contorno eacutepico
No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos
sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de
efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes
do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica
atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo
da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld
Junito Brandatildeo e Sandra Luna
No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles
Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade
natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da
tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos
de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a
Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee
que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas
145
traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de
vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros
proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo
fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij
146
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_____________________________________
Michelle Bianca Santos Dantas
4
MICHELLE BIANCA SANTOS DANTAS
TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA
ANTICLEacuteIA AGAMEacuteMNON AQUILES E AacuteJAX
Dissertaccedilatildeo apresentada agrave Univesidade Federal da
Paraiacuteba como requisito parcial para obtenccedilatildeo do
tiacutetulo de Mestre na aacuterea de Literatura e cultura e
Linha de Pesquisa Tradiccedilatildeo e Modernidade
Aprovado em __________________________
BANCA EXAMINADORA
Prof Dr Arturo Gouveia de Arauacutejo (Orientador)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Profordf Drordf Sandra Luna (Examinadora)
Universidade Federal da Paraiacuteba - UFPB
Prof Dr Alzir Oliveira (Examinador)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Profordf Drordf Marinalva Vilar de Lima (Suplente)
Universidade Federal de Campina Grande - UFCG
5
A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada
dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo
6
AGRADECIMENTOS
A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda
proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao
longo deste mestrado
Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no
meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem
agradeccedilo pela torcida
Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de
companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as
conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar
Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre
torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento
Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da
minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia
como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo
aos estudos claacutessicos
Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes
consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva
Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas
traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf
Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas
muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico
Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada
Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa
7
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males
quando]
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores
contra o destino]
(Odisseacuteia I 32-34
8
RESUMO
O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da
Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses
aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee
Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A
Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute
fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais
importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do
mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth
Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e
principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser
reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de
Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute
privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo
Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do
nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade
que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos
tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que
possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o
primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico
aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia
Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses
encontros
Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico
9
REacuteSUMEacute
Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea
Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI
de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique
rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec
sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres
oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette
oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus
importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En
outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme
aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et
principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre
reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive
dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait
nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis
la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et
dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous
observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le
fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser
compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly
Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif
de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation
mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et
conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee
Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces
rencontres
Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23
121 A Estrutura do poema___________________________________ _28
122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36
2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47
22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48
23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON
AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89
32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
Aacutejax___________________________________________________________________115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146
11
INTRODUCcedilAtildeO
A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence
juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do
seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas
em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros
legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas
epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a
inesgotabilidade de leituras literaacuterias
Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso
ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte
anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e
nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica
pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no
Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com
Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela
sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador
campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na
disputa das armas do filho de Peleu
Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos
como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros
Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles
Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo
estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse
gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os
futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio
refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo
delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O
estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que
ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles
define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988
p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia
12
tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro
de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes
da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da
trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para
nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da
Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica
das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides
Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura
criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico
ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa
obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria
cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A
Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem
a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste
caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas
Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas
desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo
por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido
preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta
maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na
aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e
aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem
importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo
literaacuterio ocidental
Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada
epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho
Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave
paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu
lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros
autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do
traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros
literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico
13
das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio
Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia
estaacute para Odisseacuteia
Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas
caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O
teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos
gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos
traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais
tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega
(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se
encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita
objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E
assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da
trageacutedia
Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de
Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico
A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa
tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no
Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior
potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila
do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando
Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos
Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus
amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria
em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha
mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo
sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do
que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os
desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que
teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda
muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em
Iacutetaca
Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por
Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA
14
trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se
conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo
elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e
escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade
trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a
violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia
comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)
Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a
ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria
mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para
tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas
primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros
claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados
da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos
aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as
traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa
produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia
Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon
de Eacutesquilo
A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da
epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que
seratildeo descriminados a seguir
No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia
realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade
temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns
ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua
estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado
tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus
epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados
estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos
por o de muitas voltas e o muito astuto
O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais
em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem
15
conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas
nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia
Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia
estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a
partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm
sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento
do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico
especificamente o realizado no mundo grego
No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa
dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos
um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de
tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI
objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos
Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a
manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo
discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade
no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de
toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma
maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos
com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da
dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica
Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma
aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a
realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi
desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute
comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que
nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas
tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura
Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra
tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas
traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute
constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute
16
metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso
texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees
Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do
texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de
1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de
1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I
mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja
traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores
de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias
Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009
traduzida por Carlos Alberto Nunes
17
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico
Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente
que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona
problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio
Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar
seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica
sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-
se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo
() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα
πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)
Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho
sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1
Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque
discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a
Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver
parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero
No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o
autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da
literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas
eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido
oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do
tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como
nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo
completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as
eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como
1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem
indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins
esteacuteticos
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obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em
relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais
Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e
resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo
tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico
Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos
hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia
que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O
que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo
quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar
Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da
comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo
possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua
autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos
nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero
para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato
daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas
mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita
depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito
saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto
mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia
principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo
Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da
a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura
aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia
guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia
E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que
passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras
2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja
agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido
militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja
meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem
valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta
tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da
virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito
da virtude de um homem nobre
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diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no
proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees
De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que
os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth
qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia
do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria
pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que
almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute
a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o
mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia
humana(JAEGER 2001 p 31)
Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada
inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das
trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o
heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para
vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer
a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado
Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de
desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj
ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos
demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A
importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos
μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα
τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι
355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν
ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων
ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5
(Iliacuteada I 353-357)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua
escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos
5 Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de
abril agraves 1604 hs
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seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que
355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um
[pouco
pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me
jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo
[arrancado-me
Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute
natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta
cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo
haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do
pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer
desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do
ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes
conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos
seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato
Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes
Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles
simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos
indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os
priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem
receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado
(JAEGER 2001 p 31)
Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a
a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-
se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave
virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como
o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de
Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de
superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais
Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada
para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da
morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer
em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos
para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes
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para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e
devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por
Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico
de que tantos falam
A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)
diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se
tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais
paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao
feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai
significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer
uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego
arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que
em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees
sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio
poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita
o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso
natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute
concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada
Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o
excerto abaixo
Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν
πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων
ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην
τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας
890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν
Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()
Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην
925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην
πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε
Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα
γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι
ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6
(Teogonia 886-891924-929)
6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048
hs
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Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia
mais saacutebia que os deuses e os homens mortais
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena
ele enganou sua entranhas com ardil
890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo
por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado
()
Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos
925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel
soberana a quem apraz fragor combate e batalha
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
natildeo unida em amor gerou Hefesto
nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7
Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a
respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao
combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a
cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi
chamado pelo destino (2005 p 252)
Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo
homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo
a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na
Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica
Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta
Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas
como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa
ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre
pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles
que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio
essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves
determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser
feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar
de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do
destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da
Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute
7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)
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que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim
mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute
que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios
Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do
culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em
que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por
Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os
ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a
desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta
peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a
exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado
Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego
arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da
eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade
mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de
Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de
civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um
arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais
linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia
A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos
baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se
inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC
e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC
O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado
notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo
compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas
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leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua
organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se
com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)
No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse
periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada
aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve
nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute
quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio
das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-
se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em
conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo
grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III
aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de
obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra
Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo
apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a
Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura
A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo
Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que
foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o
periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de
vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito
posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central
da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia
Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar
com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa
banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens
8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego
arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a
figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a
logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico
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Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos
afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando
ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a
reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e
agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo
respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos
Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar
algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o
divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e
independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo
pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas
dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha
Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de
quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor
se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a
Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e
culpam os deuses por suas falhas Vejamos
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο
γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino
35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida
desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno
Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em
diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera
Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto
VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX
9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
agraves 1100hs de 15 de julho
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Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus
Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e
representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um
quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem
de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de
embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso
O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de
guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas
A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina
exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem
poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta
(BRANDAtildeO 1998 p 40)
A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia
tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei
distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o
pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma
esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma
nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente
caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto
(LESKY 1995 p 60)
Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos
Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute
mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural
importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma
ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o
cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a
emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre
300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα
10
Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante
entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa
27
οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()
326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)
Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos
Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo
por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas
depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor
Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima
Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo
Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos
Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia
como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para
o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que
reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem
reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto
XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica
todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)
Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada
inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi
escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees
sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade
estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as
duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as
num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas
relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra
peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo
de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O
primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute
bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que
traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro
reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html
28
A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o
nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que
compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise
especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI
121 A Estrutura do poema
Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)
da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de
epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada
tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei
principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de
inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia
De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz
com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em
que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da
epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta
denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a
poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa
palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a
poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical
das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao
criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo
simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como
o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de
epopeacuteia (ecopypopoiia)
Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender
melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define
a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A
partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas
29
da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da
trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica
Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo
aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a
aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as
suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com
unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas
epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu
eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos
da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees
sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que
alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas
controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de
composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse
sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)
Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que
a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela
extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia
natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios
Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de
elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da
epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo
de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o
retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia
narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos
Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute
exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a
narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico
O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se
encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da
invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo
25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο
ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον
30
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα
ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι
30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα
καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων
σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν
35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)
Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide
―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute
sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos
e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees
Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas
por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso
colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13
Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as
Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No
proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I
encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as
muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos
desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos
Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
12
Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml
retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13
Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14
Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas
plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute
bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo
aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de
aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente
assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo
31
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)
Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito
vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso
Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos
Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol
Por outro lado este os tirou o dia do retorno
Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto
Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao
longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros
de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos
Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as
Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos
pretendentes
No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova
invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma
manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se
abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em
Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos
trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no
Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos
Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e
o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma
siacutentese de cada Canto
Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a
fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso
haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria
e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com
15
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs
de 27 de abril de 2010
32
Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos
Pretendentes no palaacutecio de Odisseu
Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para
solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida
Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua
matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida
Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e
encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-
se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz
relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia
Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho
Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre
o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do
irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as
notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os
pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco
Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de
Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e
liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo
oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade
destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios
Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios
A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa
obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas
comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de
Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade
Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se
aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede
33
sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta
sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa
Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de
devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno
Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos
Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as
muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende
desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute
Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que
passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento
forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes
dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente
consegue escapar
Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola
com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola
abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo
Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem
pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute
acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o
no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias
Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar
Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria
proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno
agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando
de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e
Aacutejax
Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o
adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao
mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave
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ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do
deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos
demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa
Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais
oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam
Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute
petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes
e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido
Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro
Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre
o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que
acredita no retorno de Odisseu
Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino
de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer
para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco
parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu
Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do
seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos
pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho
Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o
que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o
apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por
Antiacutenoo um dos pretendentes
Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no
palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de
firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta
noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem
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Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar
Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente
mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A
ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o
heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele
Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que
de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso
Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus
sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez
Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes
banqueteiam-se
Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo
e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os
dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele
que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo
tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis
que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos
Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes
Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado
diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta
e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se
dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina
Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se
vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e
quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de
frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi
quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso
Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai
ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a
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cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e
vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos
pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada
Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os
periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos
melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia
de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de
Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e
diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as
peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes
estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram
exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza
fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos
destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso
objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos
acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do
presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se
insere o nosso corpus
122 Odisseu o heroacutei multifacetado
Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos
expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees
do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef
noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY
2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de
coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a
traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but
applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p
309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo
37
homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas
definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de
tentar defini-lo
Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem
os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os
trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a
Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas
satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de
ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a
define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis
venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos
que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena
Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus
Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados
Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo
intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo
satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que
satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque
as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de
caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e
natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade
tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e
consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16
Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute
mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute
segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos
lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os
acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute
da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina
Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por
sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu
16
Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a
nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico
38
Prometeu ~ Cliacutemene
darr
Deucaliatildeo ~ Pirra
darr
Deacuteion ~ Diomedes
darr
Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone
darr darr
Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea
Laertes ~ Anticleacuteia
darr
Odisseu ~ Peneacutelope
darr
Telecircmaco
Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer
heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes
esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de
Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais
importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus
feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu
eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril
Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro
prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas
ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu
com essas funccedilotildees
A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente
aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos
seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma
divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por
isso todos eles seratildeo punidos por Zeus
A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de
fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da
gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a
39
mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para
regressar a Iacutetaca
A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais
explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina
dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas
compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos
Vejamos a referida passagem
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17
(Odisseacuteia XXII 401- 406)
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo
apoacutes devorar um boi do campo vai embora
Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados
Assim terriacutevel nas faces era de se ver
Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes
Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns
aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de
Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj
a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra
maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida
gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que
ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para
cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)
Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)
Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja
Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive
tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia
de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon
17
Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html
40
no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros
Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos
proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles
Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de
Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo
em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos
Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da
centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da
descendecircncia heroacuteica18
Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu
sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que
Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os
pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama
Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do
prudente Odisseu
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)
18
Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de
2010
41
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo
que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia
possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados
assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror
Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem
do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada
tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu
para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu
importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o
Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena
em sua paacutetria
Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria
como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada
dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o
heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em
busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento
de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um
labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute
realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado
para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar
No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm
algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou
estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a
20
Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos
42
definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter
sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)
Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos
sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo
filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de
Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao
personagem maior da Odisseacuteia
Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu
representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21
e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se
relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo
Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral
principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a
importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees
num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos
dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e
vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes
recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual
atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois
poemas
Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem
mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar
os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei
Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos
revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim
como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos
sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj
Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia
21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este
eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute
disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004
43
Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ
πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ
πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ
5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22
Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito
errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para
o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou
seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz
Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute
feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa
muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo
Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta
retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por
muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X
e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades
Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder
de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo
de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus
discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se
oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu
verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de
muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e
multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim
ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o
mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com
todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj
nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma
compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees
22
Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
44
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
(NUNES 2009 p 28)
Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade
sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de
numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu
no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de
conseguir o regresso dos companheiros
(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)
Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me
dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la
ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes
et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par
tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23
(BEacuteRARD 2009 p1)
Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial
semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e
acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille
tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo
grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente
Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse
Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera
importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj
Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos
intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi
estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando
aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para
expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se
23
Traduccedilatildeo
Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer
Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado
a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens
e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por
tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar
45
para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar
buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores
logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade
representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os
feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu
poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas
voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato
Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a
persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e
evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de
Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou
seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881
ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida
de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si
Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica
da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em
poder quanto em prudecircncia24
Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a
chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena
compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio
astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o
intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade
Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de
muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em
sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria
Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de
Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha
Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia
no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25
Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com
24
Versos 892 e 898 da Teogonia 25
A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia
conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531
Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo
percebido que se tornara mito ainda em vida
46
Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o
acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes
vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca
Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()
Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem
de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)
A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos
centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei
sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os
trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)
No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e
de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo
isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que
o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica
47
2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico
Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do
traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir
dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este
autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos
Vejamos
Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos
criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores
faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do
traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a
envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)
Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram
o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o
desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar
de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos
presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em
profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se
dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo
destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso
trabalho
Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos
trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-
nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin
Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e
Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do
traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho
delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que
48
eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir
dos encontros que Odisseu tem no Hades
Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo
importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O
traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro
discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo
sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir
da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos
de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa
anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente
22 O traacutegico e a trageacutedia
No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do
traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de
um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico
Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a
delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar
traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas
interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao
contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento
traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da
kaqamacrrsij26
Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a
inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a
conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica
grega
A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou
ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos
26
Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do
trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido
primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo
49
define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva
etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj
(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou
semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura
grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o
traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como
manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia
veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia
Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas
do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o
tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao
gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode
siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante
socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo
envoltos em uma accedilatildeo grandiosa
Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo
dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como
pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico
como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes
desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC
Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos
destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)
Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que
pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o
adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um
exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na
produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que
() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da
existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos
traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito
pretendido pelo poeta (Ibidem)
Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute
inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas
50
categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na
narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)
Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso
ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem
tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato
podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho
Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o
pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos
ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο
ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε
ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ
πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο
600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ
ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27
(Iliada XXIV 596-601)
Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento
sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do
outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso
Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti
estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde
ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete
Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo
pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia
desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do
sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo
informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal
que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um
mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete
ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem
ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito
e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do
banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico
Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico
(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos
27
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010
51
convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem
de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico
natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma
incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave
exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero
direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural
com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de
Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia
Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia
traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas
entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante
influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor
traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com
Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da
Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte
posicionamento de Jacqueline de Romilly
Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das
suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido
buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover
Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar
um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os
tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o
gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio
(ROMILLY 2008 p 22)
Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os
tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em
meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico
contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas
epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos
que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas
atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias
homeacutericas
Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a
influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados
52
a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos
Sandra Luna
() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza
humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das
quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua
cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o
desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus
os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute
sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)
Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento
favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa
Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo
tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta
problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do
traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero
no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de
Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga
de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a
peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis
gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados
na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no
proacuteximo capiacutetulo
Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros
elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-
nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28
os personagens nobres
e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a
sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A
diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo
do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico
Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico
principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva
28
O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo
centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a
Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a
Iacutetaca
53
como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de
Homero legaram-nos o traacutegico
Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a
trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso
acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se
realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se
tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a
necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte
suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta
exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia
Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee
certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um
nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se
precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas
origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das
dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)
Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta
de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a
eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995
p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com
outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29
ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio
De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas
dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que
almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva
Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo
Vejamos
Γελνκέλε30
δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ
θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ
θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )
κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς
29
Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30
A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente
do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos
reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito
54
θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε
ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)
Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma
(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta
pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas
cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu
desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado
apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua
natureza proacutepria
Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao
ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades
proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a
trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa
conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo
tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica
Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos
eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa
relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-
se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias
Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie
attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote
nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une
deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32
(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as
consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia
relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e
Soacutefocles Diz-nos
La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord
eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue
amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme
acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme
acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33
(Ibidem p 19)
31
Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html
agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32
Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a
uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33
Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto
em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o
segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira
vez por Soacutefocles
55
Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia
informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o
festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34
de Lesbos Este se consagra como o primeiro
ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas
informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma
definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando
Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque
ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine
agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois
acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la
ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35
(WILAMOWITZ 2001 p 117)
Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos
legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que
muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as
exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma
temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir
Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no
surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania
Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute
nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos
ainda
A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas
urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de
trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A
proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente
religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p
14)
Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de
pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante
34
Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria
reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35
Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada
de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e
ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus
56
dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que
a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a
comeacutedia
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo
clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos
distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra
(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por
isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o
precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim
sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser
primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso
O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os
rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da
reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal
aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por
Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a
centralizaccedilatildeo do poder
Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das
transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam
o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os
cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor
entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero
literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser
A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia
ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e
claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas
Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas
o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida
eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)
Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada
facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que
produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36
(FINLEY 1970 p 101)
36
Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -
estritamente falando ndash a trageacutedia ()
57
Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo
psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos
que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais
precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e
proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este
problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a
manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e
estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a
comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira
A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo
social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos
seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os
cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados
das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como
objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico
(Ibidem p 10)
Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela
se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica
nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a
trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento
importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua
fragilidade e limitaccedilatildeo
E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave
representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa
contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser
completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo
associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em
estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico
Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de
que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso
questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do
sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante
(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa
possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade
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representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio
daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual
passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso
reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da
fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao
infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser
observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e
Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute
o mais traacutegico
Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal
geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de
uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos
que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com
reconhecimento37
do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38
do grego peripemacrteia
diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses
elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo
esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila
Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus
elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto
coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39
O primeiro constitui a parte da
trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre
dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui
dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o
estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus
Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos
a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se
e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois
37
Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo
mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer
conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38
Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de
mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a
imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do
inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39
Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em
todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees
59
elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o
coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo
figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de
atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia
apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs
Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento
primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto
na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de
peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe
Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica
com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu
material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p
70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa
relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma
A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode
comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos
intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila
estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento
do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A
epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas
por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)
A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico
acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto
indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz
perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada
tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural
verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos
ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute
encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura
grega atraveacutes das trageacutedias
No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua
manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia
sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o
objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir
60
do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo
eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas
no seacuteculo IV aC
23 O traacutegico na Poeacutetica
Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na
Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica
sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se
importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi
influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na
estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia
veicular aos jovens do estado
Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo
relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual
Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante
desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado
Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os
posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da
perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por
considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte
literaacuteria
Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a
a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se
prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes
da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico
No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um
mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo
contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas
o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem
claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o
que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a
61
que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de
heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em
situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees
feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de
considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz
[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο
ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ
ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ
κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40
(Repuacuteblica III 387b)
Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de
narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado
aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos
audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo
receado mais a escravidatildeo do que a morte
Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as
passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para
compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da
Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu
objeto de criacutetica Vejamos
[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα
ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41
(Repuacuteblica III 386c)
Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta
natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um
trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e
que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre
cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos
Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria
homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades
com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe
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Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010
62
como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para
eles representa um infortuacutenio
Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se
desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo
para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim
como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em
detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha
realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o
Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri
com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar
(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para
Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado
beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos
mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia
Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que
ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira
dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se
arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo
definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo
beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral
Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se
encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e
negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao
inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de
desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim
mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de
amizade
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Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010 43
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de
2010
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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a
explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo
do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a
arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a
sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam
permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero
responde
[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο
παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44
(Repuacuteblica
III 397d)
Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para
cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura
O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por
Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute
Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da
estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser
positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas
consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que
Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos
aristoteacutelicos
Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois
considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-
se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias
mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade
No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais
desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade
por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x
aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da
irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens
44
Textop retirado de
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3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A199901016710Abook3D33Asection
10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo
nomoj46
Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor
da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou
estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de
sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de
outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como
tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia
θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη
ιέγεηλ47
(Repuacuteblica X 595b)
E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a
respeito de Homero que impede-me de falar
() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε
θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48
(Ibidem 595c)
Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos
autores traacutegicos
Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero
realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base
mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores
traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria
elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas
como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia
exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua
intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo
como bem nos caracterizou Platatildeo
46
Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido
primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes
da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47
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10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48
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10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu
mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no
sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da
funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as
concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica
Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como
Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria
etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os
comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais
gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a
trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma
Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()
fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa
thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)
Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho
artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua
finalidade
Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica
ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o
traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define
Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos
constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz
da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de
fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas
Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a
epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou
49
Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre
algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o
compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma
coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo
poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a
poeacutetica 50
ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51
Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que
significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra
informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de
66
seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute
bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela
os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma
representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila
A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do
texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como
doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever
pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente
formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida
quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que
mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele
como o fusioloiquestgoj53
No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da
trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a
poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os
homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito
traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e
gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico
realiza-se
Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a
sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil
Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-
se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres
nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes
citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de
Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles
quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito
natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da
accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52
Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo
verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a
pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53
O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj
genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual
Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a
significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo
67
protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles
Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo
estando presentes numa narrativa eacutepica
No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que
Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o
autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os
direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos
Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ
ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο
θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ
δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ
δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54
(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)
Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)
nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo
tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a
poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua
analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as
trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias
Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo
dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como
comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros
elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo
traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem
que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da
trageacutedia
Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e
caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no
capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao
iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia
Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο
ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο
54
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de
2010
68
δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55
ηὴλ ηλ
ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)
Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui
certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em
seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio
da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos
Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas
baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que
deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave
frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran
kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver
narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um
narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito
importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml
fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo
Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a
piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os
espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico
enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em
relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento
55
A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar
levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica
a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que
simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de
2010 57
Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em
temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer
fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao
ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste
termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J
Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que
terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj
apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da
referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido
daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade
que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror
acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso
bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute
apropriada para as trageacutedias gregas
69
de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa
thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a
catarse de tais sofrimentos
Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse
termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)
sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu
sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para
tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo
para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica
A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do
verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)
Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa
puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da
accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que
esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja
este meacutedico seja religioso
Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo
limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo
religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que
desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um
rito presente em todas as religiotildees
Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos
acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar
de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e
malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para
que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo
utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim
natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade
semacircntica
Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em
kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da
trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para
70
entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para
Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem
disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso
natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente
da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico
Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que
o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em
infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que
tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil
por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado
pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do
excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos
chegar a Iacutetaca
Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se
suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees
representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como
ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade
de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor
Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez
anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da
esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos
esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece
indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon
um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria
para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo
isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um
grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir
tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa
tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em
Agamecircmnon
58
Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que
ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim
71
ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ
πο ζε δαθξύζσ
θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ
θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽
ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Ioacute ioacute Rei rei
Como chorar-te-ei
O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo
Eacutes posto nessa teia de aranha expirando
a vida por uma impiedosa morte
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e
piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou
formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo
estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o
temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute
provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij
Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos
percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo
chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a
partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor
e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o
traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes
da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele
decorre da accedilatildeo dos personagens
E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia
grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)
e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute
exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento
o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma
72
Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία
κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ
θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59
(Poeacutetica VI 1450a 15-19)
O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute
representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a
fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma
qualidade
Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz
que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem
loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo
supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln
pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)
ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres
Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61
(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia
Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute
proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem
traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa
tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em
uma situaccedilatildeo de vida
Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo
dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia
Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante
compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos
Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε
ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)
59
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de
2010 60
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010 61
Ibidem 62
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010
73
Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que
satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos
Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos
quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para
intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia
Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar
aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos
asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes
do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define
Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por
isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo
informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a
que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de
Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da
memoacuteria e do silogismo
Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito
Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo
vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois
quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se
reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos
por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras
traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o
segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver
que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por
um crime que natildeo cometera Observemos
ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ
ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ
ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63
(Eacutedipo Rei 1182-1184)
Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras
Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim
eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade
63
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves
1940hs de 17 de julho de 2010
74
ἰὼ
ζθόηνο ἐκὸλ θάνο
ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί
ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα
ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ
ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
64
(Aacutejax 394-403)
Ioacute Treva toda minha luz
Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim
Leva-me leva-me para tua morada
leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia
para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ
κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο
θνὐθέηη κνη θο
νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο
ἰὼ ἰώ65
(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)
Ai de mim matildee Pois este mesmo
canto do acaso caiu para ambas
Para mim natildeo (haveraacute) mais luz
e nem a claridade do sol
Ioacute ioacute
αἰαῖ αἰαῖ
δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ
ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ
ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη
()
αἰαῖ αἰαῖ
θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη
κέζεηέ κε ηάιαλεο
θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη
πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66
(Hipoacutelito 1348-501370-74)
64
Tento disponiacutevel em
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de 17 de julho de 2010 65
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Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto
de profecias injustas desfeitas vergonhosamente
fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
E agora vai causa-me dor causa-me dor
deixais-me ir desgraccedilado
e que o Curador da morte venha para mim
destroacutei-me destroacutei-me
As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando
os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos
Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a
matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor
Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o
responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado
enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de
reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir
toda a tragicidade
Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna
do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o
desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a
peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela
explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento
reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia
aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem
reconhecimento e peripeacutecia
Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e
como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou
muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a
compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a
teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia
Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute
que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem
do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo
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suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que
ele diz
ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ
ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67
(Poeacutetica VII 1451a 11-15)
Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro
segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar
para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o
limite conveniente de sua extensatildeo
A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a
estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para
a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve
desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna
tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado
tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo
traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz
compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a
mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo
por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila
prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender
que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por
completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da
accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna
No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico
comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o
temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel
situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que
causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo
porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes
sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas
situaccedilotildees
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ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo
virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea
Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio
ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu
significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei
que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de
ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ
Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο
δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ
βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν
ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja
falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss
the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome
indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave
traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos
para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio
importante esse erro pode ser de origens diversas
Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico
indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute
largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro
68
Ibidem 69
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
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Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso
grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece
Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave
conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral
originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou
grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico
Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que
geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado
Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos
sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo
mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas
traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das
realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas
da famiacutelia
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos
o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos
entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico
mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse
aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba
por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas
Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e
aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees
teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos
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depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como
tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel
manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas
Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico
continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as
discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que
desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso
objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa
proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de
Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna
Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na
trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto
do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre
mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino
caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais
tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito
do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado
por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o
homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT
2008 p 21)
Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar
uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria
depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso
Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o
primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute
considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que
possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente
aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha
80
O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute
atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do
espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a
outra eacute por meio do adikon71
em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro
Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem
voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute
chamado de adikon injusto
Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da
vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo
contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant
(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a
vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses
como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia
dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos
Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade
Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide
qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si
proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se
manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)
A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o
homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos
apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade
ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por
potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)
Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo
Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma
etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da
vontade (Ibidem p 42)
A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do
homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o
responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o
71
Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo
aatildedikoj significa injusto
81
contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a
condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes
heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por
exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que
fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele
mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se
num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma
elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama
representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores
eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados
possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na
trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de
um impasse porque
A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito
(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz
condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de
suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves
outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)
Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais
combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica
Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do
traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo
vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e
levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de
Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo
relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna
Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se
introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-
se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a
trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da
trageacutedia claacutessica
82
No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia
particular por ter conservado um contato constante com as realidades
colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter
conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no
outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu
verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados
E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008
p 168)
Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser
confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que
crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve
haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh
(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem
necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees
traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas
inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo
dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo
proacuteprio coro segundo Romilly (2008)
Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos
companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto
ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu
demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon
segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do
destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra
pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla
causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em
geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees
A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute
algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas
tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute
renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o
divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e
seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por
72
O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar
83
isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como
sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos
Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros
dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre
neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como
culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o
lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o
lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)
Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz
com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem
traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda
manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir
da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos
seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um
E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de
respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia
Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e
classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto
(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo
dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada
com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e
adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos
possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo
entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros
Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado
substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser
feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero
conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos
estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)
Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e
de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns
pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia
homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca
tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica
84
existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria
regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos
que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos
realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das
avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de
um trabalho
Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego
(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico
uAgravebrij73 e aatildeth74
A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida
cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao
heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e
qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com
os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-
ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele
afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida
No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia
(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais
precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas
Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma
situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como
vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do
infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o
exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da
trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo
necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise
porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar
em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por
exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser
73
Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma
desmedida 74
Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a
puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses
85
visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno
sentimento de desonra
Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo
tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar
compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a
outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara
a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do
seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da
Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos
germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky
(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento
respalda nossa pesquisa
Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky
(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que
os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso
ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da
Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura
narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar
sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da
famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como
destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais
difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder
continuar em sua jornada
Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita
tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute
tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a
presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com
narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser
verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo
para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por
exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem
neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo
86
que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que
passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante
Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do
traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria
pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o
traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido
mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o
sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o
sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos
sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico
(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a
sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar
como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia
poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a
compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente
Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky
diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido
consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com
isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo
entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave
objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)
Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes
explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os
indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora
afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu
objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver
algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos
de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da
Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e
sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se
necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)
Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada
pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute
deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse
87
que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee
Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino
infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute
retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por
isso Luna afirma-nos
Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos
elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que
reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo
inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de
mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)
Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos
tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo
literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-
o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute
verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica
sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao
contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas
por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo
nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como
ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato
todos se derramavam em laacutegrimas
Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute
―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia
manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim
da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No
proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia
em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a
assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa
fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de
estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia
Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila
de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem
para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para
o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de
88
escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope
pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio
E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos
que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser
seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou
distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim
do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois
neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo
Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve
seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode
contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os
relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo
de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar
Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos
importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as
relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos
compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No
segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir
delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que
circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do
traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu
para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no
qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia
89
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade
Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao
longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave
ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra
tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o
desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no
Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do
traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se
com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e
Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de
amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico
Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado
as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras
representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC
seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas
obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de
Soacutefocles
Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou
representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro
em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer
da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso
objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser
encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto
Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas
epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a
identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no
segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da
90
Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem
tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes
elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75
pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o
temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao
iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute
apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220
responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia
perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde
215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε
νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο
ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε
λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ
220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76
((Odisseacuteia I 215-220)
Minha matildee diz que fui gerado por ele mas
pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo
existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem
Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado
de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas
Agora do mais infeliz dos homens mortais
eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas
Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento
do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno
quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o
sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer
que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por
elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da
75
O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual
os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao
sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua
desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode
ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo
culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos
encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos
traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo
impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010
91
piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo
nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de
nosso ser77
(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que
Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto
mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que
cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo
uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou
νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78
ζηελαρίδσ
νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ
()
ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ
ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ
250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο
νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79
(Odisseacuteia I 243-244 248-251)
Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas
nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me
()
A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e
ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar
eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo
meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo
Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o
a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente
apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor
imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em
Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra
mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute
77
Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo
em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos
espectadoresleitores 78
A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo
expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada
(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do
infectum 79
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010
92
comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens
de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um
dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos
dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens
deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os
dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute
natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto
Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila
sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento
diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que
nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor
aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do
que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica
ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute
tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e
maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus
muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os
tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de
Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa
ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη
ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ
80
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho
de 2010 81
Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho
93
60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο
Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82
(Odisseacuteia I 58-62)
Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila
que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer
Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido
Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios
Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus
A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver
um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer
imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o
traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos
sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter
ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os
demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o
filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus
ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ
Κύθισπνο θερόισηαη83
ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ
70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84
(Odisseacuteia I 68-70)
Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre
o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope
O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e
consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo
inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria
sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos
82
Texto disponiacuteevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83
O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de
Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)
Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo
de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010
94
no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros
que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios
sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela
necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos
uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros
ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ
290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ
ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ
ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ
ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα
ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο
295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85
(Odisseacuteia IX 289-295)
Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra
os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo
O jantar preparou com eles tendo partido seus membros
comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada
entranhas carnes e ossos com tutanos
Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus
enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras
a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo
Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se
pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel
Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro
Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope
pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do
Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele
seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo
horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o
daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos
() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο
ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ
85
Texto disponeacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard
3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86
O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e
Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade
95
375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο
ἧνο ζεξκαίλνηην ()
380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη
ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ
νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ
ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο
δίλενλ87
(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)
() para fora da garganta colocava vinho e
pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado
alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza
ateacute que queimasse ()
eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram
em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem
Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira
e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me
apoiado por cima fazia (a vara) girar
A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem
pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento
tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo
temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do
monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do
homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi
visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das
circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a
autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas
tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a
―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que
temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute
entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia
No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado
sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado
pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo
podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais
87
Texto disponiacutevem em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010
96
uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros
pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros
possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem
fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados
com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu
continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo
Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ
ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88
ἀεηθειίελ ἀιασηύλ
θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη
505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89
(Odisseacuteia IX 502- 505)
Ciclope se algum dos homens mortais vier e
perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho
podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de
cidades]
o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada
Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e
orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar
mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os
soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas
afliccedilotildees
Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender
como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o
Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute
passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios
partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira
cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e
uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta
cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu
diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo
88
Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro
(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar
Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de
transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010
97
o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes
Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras
injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por
Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca
Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as
circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e
principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de
Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos
personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que
tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens
acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a
tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus
companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas
do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX
partamos para o X
No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo
onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para
ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem
Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e
curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave
ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los
bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua
cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos
(Odisseacuteia X 72-75)
Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou
o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados
pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por
percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo
descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido
injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes
traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma
conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)
Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas
98
que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a
obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz
o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero
dramaacutetico
Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu
e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo
Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se
com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo
deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem
devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a
perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para
merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles
cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que
tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido
involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute
que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de
Odisseu no Canto XII
Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de
Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino
imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses
havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-
se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los
chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de
Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo
levados para o seu fim Vejamos
αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα
ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ
νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε
θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90
ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91
(Odisseacuteia X 237-240)
90
Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D208 retirado em 20 de outubro de 2010
99
(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente
tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros
Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e
tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada
Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar
humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade
Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a
figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que
intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo
faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo
que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar
gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos
importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a
passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla
No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante
representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo
a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica
finitude da existecircncia dos mortais
Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal
representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da
ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De
maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em
porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira
transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens
aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a
essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem
na tragicidade
No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais
efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena
consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo
apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc
natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso
como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e
desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma
100
problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens
homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo
humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu
apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de
homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de
Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando
mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica
mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que
incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar
na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam
desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar
Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o
mestre primeiro dos traacutegicos
Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a
deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir
sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz
que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o
heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus
companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes
transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos
agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros
elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste
caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute
―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo
invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no
segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma
epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado
Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e
homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores
Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus
companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe
e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao
Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera
101
ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ
θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92
νὐδέ λύ κνη θῆξ
ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93
(Odisseacuteia X 496-498)
Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo
sentou no leito agora chorava pelo meu destino
natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol
Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade
(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno
ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma
tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio
desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida
inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia
fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim
Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros
Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso
com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da
frente (Odisseacuteia X 566-567)
Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e
os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades
deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos
acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo
anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e
observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico
portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um
problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de
uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um
heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os
outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por
uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que
92
O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado
concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010
102
apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu
Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a
implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo
ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute
dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um
problema tambeacutem para os seus companheiros
No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e
retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos
traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho
escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos
entatildeo para o estudo do proacuteximo canto
Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os
apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios
que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de
Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo
alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente
conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada
Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos
ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao
enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de
acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila
chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em
todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo
heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos
companheiros engolindo-os Vejamos
αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94
θεθιεγηαο
ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη
νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη
πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95
(Odisseacuteia XII 256-259)
94
Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo
inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena
citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus
soacutecios 95
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D123Acard3
D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010
103
Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram
estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha
Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi
De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar
A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens
que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute
representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto
que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se
como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei
eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute
sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais
(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96
deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a
todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas
forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o
levam ao traacutegico
Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj
(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa
grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a
todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela
sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos
sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem
pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI
1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados
No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem
entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado
Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito
dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem
ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de
crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio
96
Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o
primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no
embate contra as forccedilas sociais
104
dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta
arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam
enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros
demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um
juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas
divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o
juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97
ou seja
―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)
Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo
apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge
mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais
uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles
Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que
um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus
companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do
juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um
miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam
perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se
ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu
temor
Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs
vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia
depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-
os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do
juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um
mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade
impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e
ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a
ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando
e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco
97
Texto disponiacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard
3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010
105
todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a
desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao
traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo
tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com
Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o
sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel
crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao
acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o
mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros
A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se
como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas
superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na
continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos
demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de
que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado
com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza
atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida
tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena
em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a
inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a
impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute
fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico
natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a
determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o
bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da
nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)
por isso ele fica sozinho a navegar
Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar
pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica
aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram
reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa
fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros
Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias
106
accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da
Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua
culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A
partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso
segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse
erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia
ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο
θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ
νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-
1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que
justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para
cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em
que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da
divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade
eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do
daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por
completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn
duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar
na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono
profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)
No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como
responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado
e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem
sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos
98
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
107
erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma
parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos
companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa
inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela
fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos
empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa
boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia
no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo
Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os
destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla
causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de
alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla
causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon
daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo
Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol
pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo
da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu
logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a
segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de
Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados
por Odisseu e do juramento realizado
Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e
Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de
Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios
que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei
em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio
punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a
narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o
mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o
Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida
Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para
que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais
heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes
108
reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige
seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope
ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe
o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos
ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε
δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ
λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε
() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ
99
(OdisseacuteiaV 151-153 158)
Ela o encontrou sentado na margem em um
rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida
lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava
()
Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas
Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder
desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei
ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que
eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano
Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-
lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o
risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso
Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige
este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100
Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega
na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos
Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por
Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute
vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a
Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo
99
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D53Acard3
D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100
Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor
compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401
109
Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma
experiecircncia traacutegica
ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη
()
ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ
() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί
λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101
(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)
Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior
()
Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram
na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas
De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer
()
Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria
Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel
Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de
Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em
conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o
oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre
Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se
obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se
obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para
poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute
dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada
partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas
vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito
traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu
vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas
decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida
101
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D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011
110
Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo
tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive
preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma
fama102
Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria
perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos
temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a
deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte
seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico
comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma
escolha conflituosa
Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o
canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se
deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute
auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No
Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para
enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a
ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No
Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a
preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco
comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira
idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e
chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem
A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103
102
Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por
Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da
Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer
belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a
distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar
deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel
conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz
preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria
sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele
morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar
103
Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos
Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII
sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na
narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as
indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear
111
Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada
com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e
foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou
foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme
neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e
iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o
desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII
finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os
proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes
saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua
vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina
dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua
famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e
pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E
logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns
servos
Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo
natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias
Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II
Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para
que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles
Vejamos
η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε
ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη
νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ
ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104
(Odisseacuteia II 281-284)
Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu
dicernimento]
eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105
natildeo sabem eles que a morte e o negro destino
estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer
104
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D23Acard3
D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105
Os destaques satildeo nossos
112
Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois
bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios
O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn
quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino
traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por
vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade
Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem
de suas proacuteprias accedilotildees
Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma
formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias
(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos
podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a
asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes
que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com
sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico
somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em
seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a
esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe
Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos
aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis
contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os
pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo
grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar
de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente
pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero
demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim
fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia
Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que
para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros
elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos
o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para
merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para
com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os
113
heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio
dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo
humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no
Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males
estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso
Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)
A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do
imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa
tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque
consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa
afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo
ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei
para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os
mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito
malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor
nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os
pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu
mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute
foram castigados por seus males Lembremos
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
106
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho
de 2010
114
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em
Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia
instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa
castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam
a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica
como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que
forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso
das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo
comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo
proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens
pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar
a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim
Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e
abolidas
Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia
momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-
nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta
desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos
constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de
como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os
soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo
impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma
comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos
um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser
levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando
o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser
acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico
115
experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como
incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o
homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais
32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do
Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades
com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como
veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem
de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto
Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto
Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um
trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de
ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do
nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico
A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos
anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise
proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc
da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias
passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir
seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica
Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-
498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei
teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda
pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as
desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia
Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus
encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos
116
propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos
comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a
padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele
morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado
erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos
Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em
Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide
para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro
Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo
Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira
experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da
morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal
visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia
imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma
alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo
deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu
depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei
apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)
Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que
natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os
noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo
satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram
indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a
sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo
falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante
desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma
dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil
afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo
no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)
Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de
sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele
seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj
que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte
107
Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo
dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por
tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes
117
buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas
disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu
faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar
para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte
desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem
gloacuteria vagueiam no Hades
E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo
aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a
verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute
verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute
poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que
enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca
Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso
consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca
enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua
esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute
castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o
destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo
isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua
famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)
Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute
que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute
ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia
Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o
porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do
filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta
sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do
sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e
qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar
Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas
Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas
Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos
que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do
118
sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos
compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros
sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no
Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica
destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No
entanto o eiAtildedwlon 108
essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)
pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi
detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees
sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm
recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes
cumpriu com todos os rituais necessaacuterios
Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon
prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia
como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em
falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-
se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia
retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local
sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-
lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a
esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o
palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as
folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de
saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e
pelo marido
νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα
νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ
νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα
ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ
ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109
(Odisseacuteia XI 198-203)
108
Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um
morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109
Texto diponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010
119
No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz
com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro
nem foi doenccedila que me veio para o grande
definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me
Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo
a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida
O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante
por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova
empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se
ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas
paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e
ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo
eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa
Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e
acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a
deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar
de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em
Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter
humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como
os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato
comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois
A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido
para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute
com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem
neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o
autecircntico tom da Moira110
()
( OTTO 2005 p 245)
Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do
destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio
em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos
estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente
seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele
natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como
culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a
110
Os destaques satildeo nossos
120
inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos
satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro
eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do
homem (ROMILLY 2008 p 175)
Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos
sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-
203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais
traacutegicas quando ocorrem entre familiares
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de
tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior
comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento
traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio
agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica
1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do
seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de
Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta
de saudades teve o pior dos fins
ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην
ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112
ὅο ηηο ἐκνί γε
ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113
111
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010 112
Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter
deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de
modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo
(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte
da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila
121
(Odisseacuteia XV 358-360)
Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria
do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao
habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido
Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute
muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa
morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com
quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um
filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de
forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada
pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto
em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando
sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para
ele como tortura ele exclama
―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο
κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο
ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη
ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ
ἔπηαη᾽114
(Odisseacuteia XI 205-209)
Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado
o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me
O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a
por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho
dos meus braccedilos ela se evolou
Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte
Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende
que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras
vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o
de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee
de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora
113
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3
D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010
122
eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas
naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo
seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de
um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees
Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma
sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes
de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca
Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em
que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes
e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo
pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois
todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele
continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer
seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute
Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu
Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os
guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar
(Odisseacuteia XI 391-395)
Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o
senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu
dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos
estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da
cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois
aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu
ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na
disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde
ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε
ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο
δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ
ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη
λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο
κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ
ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ
123
ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο
θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115
(Odisseacuteia XI 409-413416-420)
Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado
pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um
banquete]
matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira
Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais
companheiros]
eles mataram continuamente ()
Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros
seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa
Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo
pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias
estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116
Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra
descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo
acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que
Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a
Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido
por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por
sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida
conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a
morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito
traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum
vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o
homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o
caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC
Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem
gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia
como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos
115
Retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116
Destaque nosso 117
Verso disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12
de julho de 2010
124
pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda
para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo
alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)
Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos
mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008
p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas
tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis
saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante
Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida
recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo
miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus
companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas
nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119
Mesmo assim imerecidamente eles que
pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos
O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou
uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim
aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua
dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra
Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e
humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas
tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi
Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos
demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e
para os demais
Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar
de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ
118
Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela
contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso
seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119
Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de
ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120
Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro
capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com
Aquiles na Iliacuteada
125
ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121
(XI 418) Neste
verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI
Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos
detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos
como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim
Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do
fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma
imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua
morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122
Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos
visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira
escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem
presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico
apieda-se
No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois
fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-
se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de
Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o
despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros
que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para
que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido
Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que
Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas
que de modo geral relacionam-se ao imerecido123
Portanto entendamos que o Atrida pelo
121
Destaque nosso 122
Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por
influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute
iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo
era encenada e sim anunciada pelo coro
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
123
Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais
especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo
126
fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua
famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida
E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro
incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse
imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim
pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo
dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj
Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu
iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante
recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o
que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo
daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis
a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com
quem amamos
ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ
ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ
ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη
ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη
θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ
ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125
(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)
Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a
proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece
iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir
compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele
proacuteprio ou um de seus parentes ()126
(ARISTOacuteTELES 2003 p53)
Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em
Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os
124
Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias
Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos
que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo
foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a
filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126
(FONSECA 2003 p 53)
127
pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de
ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem
reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos
compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a
passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser
suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute
vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos
distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa
junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o
para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que
Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)
Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando
no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino
que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim
como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa
da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes
Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute
que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos
semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute
inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa
semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu
compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe
Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em
Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo
entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa
relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em
Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua
volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute
o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843
παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε
θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ
δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο
ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ
ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη
θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη
128
εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη
ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο
δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί
κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη
δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο
εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127
ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)
Poucos entre os homens tecircm congecircnito
Respeito sem inveja por amigo fausto
Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo
Duplica o mal de quem dela adoece
Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento
E pranteia ao ver alheia prosperidade
Ciente eu diria pois bem conheccedilo
O espelho social imagem de sombra
Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo
Soacute Odisseu que invito navegou
Foi sob o jugo o meu pronto parceiro
Fale eu dele morto ou ainda vivo128
Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu
e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado
tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos
que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar
nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram
de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma
relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com
Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o
surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)
mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que
estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso
veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela
linearidade da narrativa
Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois
jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra
dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos
sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino
127
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves
1816h em 15 de outubro de 2010 128
(TORRANO 2004 p161)
129
() ἦ ηνη ἔθελ γε
ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ
νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129
(Odisseia XI 430-432)
Na verdade ele dizia
bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos
em minha volta para casa
Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o
conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o
traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em
Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e
pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa
Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e
outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno
da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj
da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E
neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e
divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer
inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee
levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum
homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina
ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo
procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)
O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao
choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos
na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e
comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes
feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho
e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo
como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas
matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele
129
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010
130
proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido
pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)
Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber
seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um
heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos
estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute
a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na
trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com
as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na
Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de
como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς
θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia
Canto XI v 412)
Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do
amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon
por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma
esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra
que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)
Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de
Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao
decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e
seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do
daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino
pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino
traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E
o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de
Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser
avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de
Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)
Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre
notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para
130
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010
131
que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar
aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas
situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo
A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um
no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na
vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o
protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do
traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo
detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz
Aristoacuteteles
ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο
ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ
ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131
(Poeacutetica
VI 1450b 18-20)
Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute
convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os
inteacuterpretes do que os poetas
Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a
esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para
que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos
tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no
segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com
nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor
compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj
o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj
ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ
θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη
ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ
κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132
(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)
131
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b
retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010
132
Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo
de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os
males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim
aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso
quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133
(ARISTOacuteTELES 2003 p31)
Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que
injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de
ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)
completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute
tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o
ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-
nos Aristoacuteteles
ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη
ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο
ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ
ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5
8-12)
Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa
disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois
outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles
sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em
circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)
Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute
suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute
colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo
aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem
disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim
constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo
temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI
1449b 24-28)
No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no
Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza
como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo
133
(Trad FONSECA 2003 P31)
133
Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj
que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em
relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que
ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do
heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com
os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo
do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij
No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o
eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada
e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em
que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos
perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a
inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que
desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que
sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o
retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera
enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama
νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο
γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ
νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ
πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ
Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ
ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134
(Odisseacuteia XI 481-486)
Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda
pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes
Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no
passado e no futuro]
Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos
deuses]
agora aqui entre os mortos exerces grande poder
Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles
Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades
com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em
134
Texto disponeacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010
134
campo de batalha135
Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu
precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que
morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele
dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada
κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα
τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη
Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar
aquele que ressoa do alto ceacuteu
O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido
uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto
esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as
honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus
concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora
morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo
faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu
apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon
imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o
poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj
mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de
seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter
gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute
desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε
κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
βνπινίκελ136
θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
135
No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha
fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136
Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser
exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi
selado
135
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137
(Odisseacuteia XI 487-491)
Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou
Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu
Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um
Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse
a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram
Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que
fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso
potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera
perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida
ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores
para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao
arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por
isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico
relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o
fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em
A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer
ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma
inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo
Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles
com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado
como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida
enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος
ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo
trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado
Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os
valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p
182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se
natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra
do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc
137
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010
136
o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino
injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu
semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria
Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por
proporcionar-lhe a kaqarsij
A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de
Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa
interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso
do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia
homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees
das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos
espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute
a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica
Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos
no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para
as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos
diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim
Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes
dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica
ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em
conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade
do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos
Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da
esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem
em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)
ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa
construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles
diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral
Vejamos o porquecirc
δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]
ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ
137
ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138
(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)
Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver
os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que
sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo
Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se
apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre
os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses
assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o
pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de
Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a
falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas
batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo
o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor
o quadro eacute destoante
αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ
ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139
(Odisseacuteia XI 541-542)
Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte
tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade
Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero
dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os
momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI
da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o
Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos
depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao
vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico
mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e
sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios
138
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b
retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010
138
Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute
dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes
de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e
inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O
que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador
Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas
tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda
estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos
troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi
responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este
imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que
desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que
Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia
XI 548-551)
Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo
percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em
Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-
lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si
as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade
(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza
Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo
bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus
familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax
O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas
de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com
as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as
herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles
que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que
combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina
elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era
considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas
do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu
139
amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor
delas
Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax
acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento
do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma
() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal
Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que
se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma
gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como
Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua
cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se
convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa
responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140
Assim
culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado
por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si
como tambeacutem para os outros
Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os
mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se
malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim
como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais
uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse
reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos
αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ
ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ
ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο
ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo
140
Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes
para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino
Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o
mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no
traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
140
(Aacutejax 394-403)
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
140
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο
ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141
(Odisseacuteia XI 559-564)
Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito
dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto
Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a
minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo
Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras
almas que haviam morrido para o Eacuterebo
Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor
de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para
entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles
(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a
atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda
que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES
2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra
mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se
―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por
todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que
o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos
como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de
Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)
Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais
desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-
se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico
Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos
outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a
necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para
Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara
sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele
levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo
assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades
toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei
141
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010
141
eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem
consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do
Hades
Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro
Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo
seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago
cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo
vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme
pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de
Heacuteracles
O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que
enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-
619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo
tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de
imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com
seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de
vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos
Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo
etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos
trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e
recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles
parte
Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que
ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila
de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os
soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto
XI
Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos
satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise
central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei
observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica
contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila
Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A
142
primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda
sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no
Canto XI da Odisseacuteia
Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que
ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir
os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)
(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico
encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute
encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um
heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico
A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute
seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo
ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a
matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de
insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o
destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como
ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a
culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de
eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que
tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das
conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a
dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida
natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)
Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de
educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto
a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue
vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel
enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do
traacutegico (LUNA 2005 p 383)
Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon
Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e
qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como
espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O
primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo
143
tendo que portanto procurar fugir142
desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses
sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses
males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu
pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria
domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias
resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte
Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica
constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que
Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como
tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra
asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu
ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo
deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de
passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para
finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos
(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a
kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo
purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde
seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia
142
Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz
fugir
144
Consideraccedilotildees finais
Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais
especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que
foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o
filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos
que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado
dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados
A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs
capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos
uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo
homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre
a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu
Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde
despontar em meio a esse contorno eacutepico
No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos
sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de
efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes
do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica
atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo
da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld
Junito Brandatildeo e Sandra Luna
No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles
Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade
natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da
tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos
de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a
Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee
que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas
145
traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de
vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros
proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo
fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij
146
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Joatildeo Pessoa ____ ____ ______
_____________________________________
Michelle Bianca Santos Dantas
5
A todos que comigo compartilharam as dificuldades e alegrias desta jornada
dedico este meu trabalho de Dissertaccedilatildeo
6
AGRADECIMENTOS
A Deus primeiramente agradeccedilo pelo dom da vida pelo amor e por toda
proteccedilatildeo Sem a forccedila divina eu natildeo conseguiria ultrapassar os obstaacuteculos enfrentados ao
longo deste mestrado
Agrave minha matildee D Bernadete agradeccedilo por ter me dado a luz iluminando-me no
meu nascer e no meu desenvolver assim como fez tambeacutem com minha irmatilde Mileyde a quem
agradeccedilo pela torcida
Ao meu esposo amado e fiel amigo agradeccedilo cada dia e cada segundo de
companheirismo e amor Juntos suportamos os desafios e renuacutencias juntos brindamos as
conquistas Por isso a Faacutebio agradeccedilo o amor que palavras natildeo tenho para expressar
Aos amigos agradeccedilo pelo apoio prestado pois estando perto ou distante sempre
torcem pelo meu sucesso e que naturalmente se reconhecem neste agradecimento
Agradeccedilo aos professores que foram importantes desde os passos iniciais da
minha vida acadecircmica Graccedila Martins Camen Servilla Elisalva Madruga Arturo Gouveia
como tambeacutem aos professores Milton Marques e Juvino Alves especialmente pela iniciaccedilatildeo
aos estudos claacutessicos
Ao meu orientador Prof Dr Arturo Gouveia agradeccedilo as pertinentes
consideraccedilotildees todo o aprendizado e a orientaccedilatildeo imparcial e efetiva
Agradeccedilo ao Prof Dr Fabriacutecio Possebon por dispor-se a revisar algumas
traduccedilotildees Ao Prof Dr Alzir Oliveira por aceitar a avaliar meu trabalho assim como a Profordf
Drordf Marinalva Vilar e a Prof Drordf Sandra Luna que atraveacutes de sua obra e de suas aulas
muito me ensinou sobre o traacutegico claacutessico
Agradeccedilo a Profordf Drordf Ana Marinho coordenadora do Programa de Poacutes-
Graduaccedilatildeo em Letras (PPGL) pelo apoio nesta jornada
Agrave Capes agradeccedilo o investimento que viabilizou a realizaccedilatildeo desta pesquisa
7
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males
quando]
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores
contra o destino]
(Odisseacuteia I 32-34
8
RESUMO
O presente trabalho Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax visa analisar os aspectos traacutegicos observados no Canto XI da
Odisseacuteia e consequentemente sua relevacircncia na estrutura da referida eacutepica homeacuterica Esses
aspectos seratildeo estudados a partir dos encontros de Odisseu no Hades com a sua matildee
Anticleacuteia Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax Para tanto utilizaremos entre outras obras A
Poeacutetica de Aristoacuteteles e suas consideraccedilotildees sobre o gecircnero eacutepico e o traacutegico Esta obra seraacute
fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho por ser um legado dos mais
importantes que temos sobre a definiccedilatildeo dos gecircneros e da estrutura da poicenthsij Aleacutem do
mais nela tambeacutem encontramos consideraccedilotildees sobre os elementos traacutegicos como aatildeth
Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij e
principalmente sobre a katarsij Tais elementos como analisaremos tambeacutem podem ser
reconhecidos na eacutepica homeacuterica Assim constataremos em nossa pesquisa a assertiva de
Aristoacuteteles no seacuteculo V dC acerca da intergenaricidade Como vemos esse fato natildeo eacute
privilegio das literaturas modernas mas ao contraacuterio pode ser contemplado desde o Periacuteodo
Arcaico da Literatura Grega no seacuteculo VIII aC a partir de Homero e no caso especiacutefico do
nosso estudo no Canto XI da Odisseacuteia Neste observamos a manifestaccedilatildeo da tragicidade
que mais tarde no seacuteculo V aC seraacute o fundamento miacutetico das trageacutedias gregas Utilizaremos
tambeacutem para fundamentar-nos compreensatildeo do traacutegico autores como Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Sandra Luna Junito Brandatildeo entre outros A fim de que
possamos melhor abarcar o objetivo do nosso trabalho dividimo-lo em trecircs capiacutetulos o
primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia o segundo ―Traacutegico
aspectos teoacutericos e conceituais e por fim o terceiro ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia
Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles Aacutejax em que analisaremos o aspecto traacutegico desses
encontros
Palavras-chave Literatura Claacutessica Homero Odisseacuteia Traacutegico
9
REacuteSUMEacute
Le preacutesent travail Tragiciteacute dans le Chant XI de lrsquoOdysseacutee Anticlea
Agamemnon Achilles et Ajax vise agrave analyser les aspects tragiques observeacutes dans le Chant XI
de llsquoOdysseacutee et en conseacutequence sa pertinance dans la structure de llsquoeacutepique homeacuterique
rapporteacutee Ces aspects seront eacutetudieacutes a partir des rencontres dlsquoOdysseus dans llsquoHadegraves avec
sa megravere Anticlea Agamemnon Achilles et Ajax De telle faccedilon nous utiliserons entre autres
oeuvres La Poeacutetique dlsquoAristote et ses consideacuterations sur le genre eacutepique et le tragique Cette
oeuvre sera fondamentale pour le deacuteveloppement de notre travail par ecirctre un heacuteritage des plus
importants que nous avons sur la deacutefinition des genres et de la structure de la poicenthsij En
outre dans cette oeuvre nous trouvons aussi consideacuterations sur les eacuteleacutements tragiques comme
aatildeth Moiordfra asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj asup1nagnwiquestrisij et
principalement sur la katarsij Tels eacuteleacutements comme nous analyserons peuvent aussi ecirctre
reconnus dans llsquoeacutepique homeacuterique Ainsi nous constaterons dans notre recherche llsquoassertive
dlsquoAristote au Ve siegravecle ap J-C concernant llsquointergeacuteneacutericiteacute Comme nous voyons ce fait
nlsquoest pas privilegravege des litteacuteratures modernes mais au contraire cela peut ecirctre envisageacute depuis
la Peacuteriode Archaiumlque de la Litteacuterature Grecque au VIIIe siegravecle avJ-C agrave partir dlsquoHomegravere et
dans le cas espeacutecifique de notre eacutetude dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee Dans celui-ci nous
observons la manifestation de la tragiciteacute que plus tard au Ve siegravecle av J -C ce sera le
fondement mythique des trageacutedies grecques Nous utiliserons aussi pour se baser
compreacutehension du tragique auteurs comme Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly
Sandra Luna Junito Brandatildeo entre autres Afin que nous puissions mieux embrasser llsquoobjectif
de notre travail nous llsquoavons diviseacute en trois chapitres le premier intituleacute laquo Contextualisation
mythique et religieuse de llsquoOdysseacutee raquo le deuxiegraveme laquo Tragique aspects theacuteoriques et
conceptuels raquo et finalement le troisiegraveme laquo Tragiciteacute dans le Chant XI de llsquoOdysseacutee
Anticlea Agamemnon Achilles Ajax raquo ougrave nous analyserons llsquoaspect tragique de ces
rencontres
Mots-cleacute Litteacuterature Classique Homegravere Odysseacutee Tragique
10
SUMAacuteRIO
INTRODUCcedilAtildeO________________________________________________________11
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA___________17
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico___________________17
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia_______________________________________23
121 A Estrutura do poema___________________________________ _28
122 Odisseu o heroacutei multifacetado _____________________________36
2 TRAacuteGICO ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS_____________________47
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico______________47
22 O traacutegico e a trageacutedia___________________________________________48
23 O Traacutegico na Poeacutetica___________________________________________60
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas ________________________79
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AGAMEcircMNON
AQUILES AacuteJAX________________________________________________________89
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade_________________________________89
32 Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Agamecircmnon Aquiles
Aacutejax___________________________________________________________________115
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS______________________________________________144
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS______________________________________146
11
INTRODUCcedilAtildeO
A Odisseacuteia (do grego Obrvbardusseia) cuja autoria eacute atribuiacuteda a Homero pertence
juntamente com a Iliacuteada ao chamado periacuteodo arcaico da literatura grega que compreende do
seacuteculo VIII aC ao seacuteculo V aC Ambas as epopeacuteias homeacutericas satildeo ―os mais antigos poemas
em grego que sobreviveram ateacute noacutes (HAUSER 1995 p55) e constituem verdadeiros
legados artiacutesticos Isso entre outros fatores explicaria o fato de em pleno seacuteculo XXI essas
epopeacuteias ainda nos trazerem a possibilidade de pesquisas e estudos demonstrando a
inesgotabilidade de leituras literaacuterias
Logo ao iniacutecio da narrativa percebemos que a Odisseacuteia canta o noacutestos o regresso
ao lar e a paacutetria Assim o argumento da Odisseacuteia eacute o regresso de Odisseu a Iacutetaca apoacutes vinte
anos em metade deste tempo o heroacutei ocupa-se nos combates travados na Guerra de Troacuteia e
nos outros dez anos passa errante por mar e terra Com base nessa narrativa homeacuterica
pretendemos realizar um estudo de aplicaccedilatildeo do traacutegico na Odisseacuteia especificamente no
Canto XI quando Odisseu em sua passagem pelo Hades encontra-se respectivamente com
Anticleacuteia sua matildee cuja morte ele ignorava Agamecircmnon que sofre pela traiccedilatildeo armada pela
sua esposa com o amante Egisto Aquiles inconformado preferindo ser um trabalhador
campestre a ter que reinar sobre os mortos e Aacutejax ressentido ainda com o ocorrido na
disputa das armas do filho de Peleu
Para que realizemos essa anaacutelise estudaremos diversos autores desde os claacutessicos
como Platatildeo ateacute os mais modernos como Jean-Pierre Vernant Junito Brandatildeo entre outros
Contudo ressaltamos que nossa fundamentaccedilatildeo teoacuterica seraacute a Poeacutetica de Aristoacuteteles
Na Repuacuteblica como sabemos Platatildeo nega o traacutegico e a poesia para a organizaccedilatildeo
estatal argumentando que a sociedade deveria vigiar ―() os que se aventuram a tratar desse
gecircnero de faacutebulas () pois natildeo apenas eacute falso tudo que contam como de tudo inuacutetil para os
futuros combatentes (PLATAtildeO 2000 p 117) Jaacute Aristoacuteteles em A Poeacutetica ao contraacuterio
refere-se agrave poesia natildeo apenas como instrumento de educaccedilatildeo mas como um ato de criaccedilatildeo
delineado por estruturas e caracteriacutesticas proacuteprias que deve ser antes de tudo verossiacutemil O
estudo aristoteacutelico da poihsij natildeo estaacute centralizado ao contraacuterio de Platatildeo nos valores que
ela veicula e sim na organicidade estrutural e interna Desta forma em A Poeacutetica Aristoacuteteles
define a epopeacuteia e a trageacutedia como ―imitaccedilatildeo de homens superiores (ARISTOacuteTELES 1988
p 109) No entanto ele tambeacutem nos informa que esses gecircneros diferem visto que a epopeacuteia
12
tem metro uacutenico forma narrativa e maior extensatildeo enquanto a trageacutedia por se realizar dentro
de um periacuteodo do sol eacute mais breve O pensador grego diz ainda que apesar de todas as partes
da epopeacuteia estarem na trageacutedia e a reciacuteproca natildeo ser verdadeira haacute alguns elementos da
trageacutedia que podem ser encontrados nas epopeacuteias E esse argumento seraacute fundamental para
nosso trabalho pois observaremos jaacute na epopeacuteia homeacuterica especificamente no Canto XI da
Odisseacuteia aspectos de tragicidade que seratildeo mais tarde no seacuteculo IV aC a essecircncia miacutetica
das trageacutedias sejam elas de Eacutesquilo Soacutefocles eou Euriacutepides
Deste modo nossa pesquisa justifica-se pela necessidade de sugerir uma leitura
criacutetica que promova uma atualizaccedilatildeo dessa obra claacutessica Isso porque esse poema homeacuterico
ultrapassa os limites geograacutefico-temporais da Greacutecia Antiga constituindo-se assim numa
obra universal Inclusive sabemos da importacircncia dos textos homeacutericos dentro da proacutepria
cultura grega sendo sempre citados pelos filoacutesofos como por exemplo Platatildeo em A
Repuacuteblica e em Iacuteon e Aristoacuteteles em A Poeacutetica Os textos homeacutericos influenciaram tambeacutem
a produccedilatildeo poeacutetica que os sucedeu a exemplo das contribuiccedilotildees dos tragedioacutegrafos Neste
caso especiacutefico podemos ver o Canto XI da Odisseacuteia como um prenuacutencio das peccedilas
Agamecircmnon de Eacutesquilo componente da Oresteacuteia e Aacutejax de Soacutefocles jaacute que estas
desenvolvem as circunstacircncias jaacute pronunciadas no canto eacutepico citado Agamecircmnon sofrendo
por uma armadilha montada pela proacutepria esposa e Aacutejax sentindo-se desonrado por ter sido
preterido na disputa das armas de Aquiles permanecendo-se indiferente a Odisseu Desta
maneira entendemos nosso trabalho como relevante para o aprofundamento das pesquisas na
aacuterea da Literatura Claacutessica especificamente no que diz respeito agrave eacutepica homeacuterica Odisseacuteia e
aos estudos do traacutegico Aleacutem do mais temos consciecircncia de que nossa pesquisa seraacute tambeacutem
importante aos estudiosos da literatura em geral os quais natildeo devem perder de vista o berccedilo
literaacuterio ocidental
Atraveacutes de nossa pesquisa ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agameacutemnon Aquiles e Aacutejax analisaremos como jaacute foi dito aspectos traacutegicos na citada
epopeacuteia de Homero a partir da ida ao Hades de seu heroacutei Odisseu em busca do adivinho
Tireacutesias No Hades ele encontra natildeo soacute o adivinho que o auxiliaraacute no trajeto de retorno agrave
paacutetria como tambeacutem a sua matildee Anticleacuteia e os destacados heroacuteis que combateram ao seu
lado na Guerra de Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
Para fundamentarmos o nosso trabalho aleacutem de Aristoacuteteles utilizaremos outros
autores que vatildeo auxiliar-nos na compreensatildeo da estrutura da eacutepica e da manifestaccedilatildeo do
traacutegico O estudo destes temas sugere-nos a ocorrecircncia da interrelaccedilatildeo entre os gecircneros
literaacuterios fazendo-nos compreender que este procedimento natildeo eacute um qualificativo especiacutefico
13
das literaturas modernas jaacute que pode ser constatado desde a Antiguidade Claacutessica O proacuteprio
Aristoacuteteles (1449a) chega a afirmar que o cocircmico estaacute para a Iliacuteada assim como a trageacutedia
estaacute para Odisseacuteia
Deste modo versando sobre os aspectos dos gecircneros claacutessicos e de suas
caracteriacutesticas auxiliar-nos-atildeo outros autores como por exemplo Anatol Rosenfeld Em O
teatro eacutepico (1985) Rosenfeld conceitua as caracteriacutesticas substantivas ou adjetivas dos
gecircneros dizendo-nos que ―No fundo toda obra literaacuteria de certo gecircnero conteraacute aleacutem dos
traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos estiliacutesticos mais
tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p 18) Albin Lesky em A trageacutedia grega
(2006) ao tratar sobre o problema do traacutegico ressalta que nas epopeacuteias homeacutericas ―jaacute se
encontram germes em que se prepara a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita
objetivaccedilatildeo da visatildeo traacutegica do mundo no drama do seacuteculo V (LESKY 1976 p 18) E
assim como Platatildeo no Livro X da Repuacuteblica destaca a referecircncia de Homero como o pai da
trageacutedia
Utilizaremos tambeacutem a obra Arqueologia da accedilatildeo traacutegica o legado grego (2005) de
Sandra Luna para dar-nos respaldo teoacuterico-criacutetico acerca das origens e conceitos do traacutegico
A autora considera ―ser possiacutevel identificar nos versos homeacutericos momentos de intensa
tragicidade (LUNA 2005 p 30) Satildeo estes momentos de tragicidade que analisaremos no
Canto XI da Odisseacuteia por percebermos que haacute neste canto especificamente uma maior
potencialidade traacutegica apesar de termos momentos de tragicidade por toda a obra A presenccedila
do traacutegico revela-se ateacute mesmo pela circunstacircncia por Odisseu na porta do Hades buscando
Tireacutesias para que possa indicar-lhe o caminho de volta para casa que jaacute tentava haacute anos
Todavia encontra imagens muito mais desoladoras ndash sua matildee morta por saudades suas e seus
amigos de combate Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax O primeiro foi encontrar a morte ingloacuteria
em casa pela proacutepria esposa o segundo havia conquistado a bela morte em campo de batalha
mas preferia ser um trabalhador do campo e o terceiro mantinha-se ainda tomado pelo
sentimento de desonra por natildeo ter ficado com as armas de Aquiles Aleacutem do mais muito do
que Tireacutesias iraacute revelar eacute bastante traacutegico mesmo Odisseu sabendo que cumprindo todos os
desiacutegnios conseguiraacute voltar para casa Isso porque apesar de Odisseu ter a revelaccedilatildeo de que
teraacute o esperado retorno fica tambeacutem tendo o conhecimento de que deveraacute enfrentar ainda
muitos outros obstaacuteculos a exemplo do combate que travaraacute contra os pretendentes jaacute em
Iacutetaca
Sobre a origem da trageacutedia Junito Brandatildeo (2007) seguindo o jaacute afirmado por
Aristoacuteteles reafirma a ligaccedilatildeo de Dioniso com esse gecircnero dramaacutetico por isso diz ldquoA
14
trageacutedia nasceu do culto de Dioniso isto apesar de algumas tentativas ainda natildeo se
conseguiu negar Ningueacutem pocircde ateacute hoje explicar a gecircnese do traacutegico sem passar pelo
elemento satiacuterico (BRANDAtildeO 2007 p 9) Em ―Homero e seus poemas deuses mitos e
escatologia Junito Brandatildeo (1998) tambeacutem nos respalda ao dizer que a maior novidade
trazida pela Odisseacuteia ―estaacute no embriatildeo da ideacuteia de culpa e castigo em que a hyacutebris a
violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron que seraacute a mola mestra da trageacutedia
comeccedilam a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134)
Com a realizaccedilatildeo da pesquisa supracitada pretendemos contribuir para a
ampliaccedilatildeo dos estudos sobre a Odisseacuteia de Homero enaltecendo a sua importacircncia literaacuteria
mas tambeacutem miacutetico-religiosa e sua inter-relaccedilatildeo traacutegica especificamente no Canto XI Para
tanto iremos expor as discussotildees acerca dos conceitos da epopeacuteia e do traacutegico realizadas
primeiramente por Aristoacuteteles que nos deu valiosas contribuiccedilotildees acerca dos gecircneros
claacutessicos e suas especificidades Tambeacutem realizaremos a traduccedilatildeo dos versos a serem citados
da Odisseacuteia para que entremos em contato com o texto original na perspectiva de nos
aproximarmos mais de sua estrutura morfossintaacutetica e semacircntica Seratildeo realizadas as
traduccedilotildees das citaccedilotildees da Poeacutetica por considerarmos este o texto teoacuterico base para a nossa
produccedilatildeo analiacutetica centralizada justamente na tragicidade do Canto XI da Odisseacuteia
Tracicidade esta que funciona como prenuacutencio das trageacutedias Aacutejax de Soacutefocles e Agamecircmnon
de Eacutesquilo
A fim de que melhor possamos abarcar o estudo do traacutegico no jaacute citado canto da
epopeacuteia homeacuterica dividimos o desenvolvimento do nosso trabalho em trecircs capiacutetulos que
seratildeo descriminados a seguir
No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia
realizaremos a apresentaccedilatildeo desta eacutepica destacando suas caracteriacutesticas e especificidade
temaacutetica e estrutural Assim discorreremos acerca das representaccedilotildees e significaccedilotildees comuns
ao mundo homeacuterico aleacutem de realizarmos uma apresentaccedilatildeo do poema a partir de sua
estrutura e de seu heroacutei Odisseu Deste analisaremos o caraacuteter multifacetado que eacute revelado
tanto em suas accedilotildees como preconiza Aristoacuteteles na Poeacutetica bem como atraveacutes dos seus
epiacutetetos polutropoj polumhtij entre outros Estes e outros epiacutetetos seratildeo aprofundados
estrutural e semanticamente no momento propiacutecio todavia os jaacute citados podem ser traduzidos
por o de muitas voltas e o muito astuto
O tiacutetulo do nosso segundo capiacutetulo eacute ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais
em que pretendemos discorrer acerca do traacutegico tanto pelo aspecto teoacuterico como tambeacutem
15
conceitual para que possamos entender melhor sua constituiccedilatildeo e manifestaccedilatildeo natildeo apenas
nas trageacutedias como tambeacutem na eacutepica homeacuterica principalmente no Canto XI da Odisseacuteia
Para tanto desenvolveremos primeiramente um subtoacutepico sobre o traacutegico e a trageacutedia
estabelecendo as relaccedilotildees existentes entre ambos Entatildeo partiremos para observar e discutir a
partir da Poeacutetica e posteriormente faremos a anaacutelise das perspectivas que outros teoacutericos tecircm
sobre o traacutegico e ateacute que ponto eles se aproximam distanciam ou auxiliam no entendimento
do traacutegico ressalta-se no entanto que o conceito de traacutegico para noacutes relevante eacute o claacutessico
especificamente o realizado no mundo grego
No terceiro capiacutetulo intitulado ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax faremos a anaacutelise dos elementos motivadores de nossa
dissertaccedilatildeo Por isso consideramos conveniente logo no iniacutecio de nossa proposta dedicarmos
um subtoacutepico para ilustrar que ao decorrer de toda a obra podemos identificar momentos de
tragicidade Desta maneira veremos que o aspecto traacutegico natildeo se restringe ao Canto XI
objeto central de nossas ponderaccedilotildees tanto que poderemos encontraacute-lo em outros Cantos
Entretanto justificamos nossa escolha pelo Canto XI por enxergarmos como o que possui a
manifestaccedilatildeo mais traacutegica ao longo de toda a Odisseacuteia estes motivos e consideraccedilotildees seratildeo
discutidos no momento propiacutecio E no segundo toacutepico deste terceiro capiacutetulo ―Tragicidade
no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax realizaremos a anaacutelise de
toda a nossa proposta inicial jaacute que ateacute laacute teremos maior possibilidade de apreendecirc-lo de uma
maneira mais consistente Ateacute mesmo porque nos capiacutetulos e toacutepicos anteriores discutiremos
com clareza necessaacuteria os elementos que nos ajudaratildeo a entender a proposta geral da
dissertaccedilatildeo e sua efetuaccedilatildeo analiacutetica
Partindo da perspectiva do traacutegico presente na Poeacutetica objetivamos realizar uma
aplicaccedilatildeo desse estudo no Canto XI da Odisseacuteia E assim tentarmos (fazer) compreender a
realizaccedilatildeo do traacutegico neste Canto homeacuterico Pois mesmo sabendo que o traacutegico soacute foi
desenvolvido efetivamente pelos tragedioacutegrafos gregos percebemos que sua realizaccedilatildeo eacute
comum jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Desta maneira poderemos ver Homero como o poeta que
nos legou natildeo apenas as duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia mas
tambeacutem as primeiras manifestaccedilotildees traacutegicas de nossa literatura
Ao longo de nossa pesquisa utilizamo-nos de diversas ediccedilotildees de uma mesma obra
tanto para realizaccedilatildeo das leituras como das traduccedilotildees (em que cotejamos as jaacute editadas
traduccedilotildees) Por isso indicaremos a seguir todas as ediccedilotildees usadas apesar de todas elas jaacute
constarem nas Referecircncias Bibliograacuteficas Acreditamos que tal procedimento facilitaraacute
16
metodologicamente a construccedilatildeo e a leitura do nosso trabalho Logo no decorrer do nosso
texto citaremos soacute o nome das obras e natildeo as datas de ediccedilotildees
Assim utilizamos para entendimento da Poeacutetica Repuacuteblica e Odisseacuteia aleacutem do
texto original as ediccedilotildees que listaremos a seguir Para Poeacutetica usamos Les Belles Lettres de
1979 com traduccedilatildeo de Hardy Cultrix de 1988 traduzida por Jaime Bruna Ars Poeacutetica de
1992 com traduccedilatildeo de Eudoro de Sousa Para Repuacuteblica fizemos uso das ediccedilotildees de I
mammut em Tutte le opere de 2009 e da Editora Universitaacuteria da UFPA de 2000 cuja
traduccedilatildeo foi feita por Carlos Alberto Nunes Para Odisseacuteia utilizamos Otoo Pierre Editores
de 1980 com traduccedilatildeo de Jaime Bruna a Livraria Saacute da Costa de 1980 traduzida por Dias
Palmeira e Alves Correia Les Belles Lettres 2002 por Victor Beacuterard e Ediouro de 2009
traduzida por Carlos Alberto Nunes
17
1 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO MIacuteTICA E RELIGIOSA DA ODISSEacuteIA
11 Representaccedilotildees e significados do mundo homeacuterico
Segundo a tradiccedilatildeo Homero eacute o autor das duas primeiras obras literaacuterias do Ocidente
que nos chegaram Iliacuteada e Odisseacuteia Tal afirmaccedilatildeo contudo natildeo nos soluciona
problemaacuteticas como por exemplo o de sua bibliografia que ateacute hoje eacute um grande desafio
Mas se a ciecircncia moderna natildeo consegue provas de sua existecircncia permitindo-nos afirmar
seguramente quem foi Homero como viveu quando e onde nasceu Para a tradiccedilatildeo claacutessica
sua existecircncia eacute inquestionaacutevel por isso autores como Platatildeo Aristoacuteteles e Hesiacuteodo referem-
se claramente agrave sua figura Vejamos o que diz Platatildeo
() ῥεηένλ ἦλ δ᾽ ἐγώ θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα
πεξὶ κήξνπ ἀπνθσιύεη ιέγεηλ (PLATAtildeO X 595 b-c)
Preciso falar dizia eu contudo o afeto e o respeito certamente que tenho
sobre Homero desde a infacircncia impede-me de falar1
Isso tambeacutem o faz Aristoacuteteles (Poeacutetica Livro III 1448 a 22-26) porque
discutindo acerca da poesia e de seus objetos de imitaccedilatildeo tambeacutem se refere objetivamente a
Homero e a sua poesia comentando sua produccedilatildeo eacutepica e caracteriacutesticas Como podemos ver
parece indiscutiacutevel para os gregos claacutessicos a existecircncia de Homero
No entanto deixando as incertezas biograacuteficas de lado compreendamos que o
autor da Odisseacuteia nosso objeto de pesquisa existiu provavelmente no periacuteodo arcaico da
literatura grega que compreende o periacuteodo do seacuteculo VIII ateacute V aC Homero produziu suas
eacutepicas no dialeto jocircnio com alguns empreacutestimos do eoacutelico e apesar de terem surgido
oralmente por volta do seacuteculo VIII aC soacute em VI aC eacute que passam para escrita a mando do
tirano Pisiacutestratos que acreditava descender de Nestor de Pilos Neste mesmo seacuteculo como
nos informa Hauser (1995 p63) havia uma lei que estabelecia obrigatoriamente a recitaccedilatildeo
completa dos poemas de Homero no Festival de Panateneacuteias Como no seacuteculo VI aC as
eacutepicas homeacutericas passaram para a forma escrita aleacutem de terem seus recitais como
1 Ressaltamos que as traduccedilotildees utilizadas ao longo do trabalho satildeo nossas Contudo quando natildeo o forem
indicaremos seus respectivos autores Aleacutem disso a finalidade das traduccedilotildees feitas eacute operacional sem fins
esteacuteticos
18
obrigatoacuterios crecirc-se que desde entatildeo os poemas homeacutericos natildeo sofreram tantas mudanccedilas em
relaccedilatildeo aos poemas orais iniciais
Para Albin Lesky em Historia da Literatura Grega (1995) Homero eacute iniacutecio e
resultado herdeiro e criador Ele eacute o iniacutecio e criador da poesia grega influente ao mesmo
tempo eacute o fim e o herdeiro de um longo resultado de desenvolvimento poeacutetico e miacutetico
Diante disso o que nos importa mesmo entender eacute que muito do que sabemos
hoje sobre o mundo grego arcaico veio-nos por meio das eacutepicas homeacutericas Iliacuteada e Odisseacuteia
que nos legaram as visotildees sobre os mitos os deuses os heroacuteis a organizaccedilatildeo social enfim O
que natildeo podemos esquecer eacute que natildeo haacute tatildeo facilmente uma uacutenica visatildeo de mundo sobretudo
quando contrapomos as duas eacutepicas pois aiacute as diferenccedilas comeccedilam a aumentar
Assim como vimos anteriormente existem ainda discussotildees acerca da
comprovaccedilatildeo histoacuterica de Homero suas nuances e complicaccedilotildees Isto faz com que natildeo
possamos afirmaacute-lo como autor da Iliacuteada e da Odisseacuteia e sim que estas obras tecircm sua
autoria atribuiacuteda a Homero No entanto uma nova incongruecircncia surge quando centralizamos
nosso estudo para a Odisseacuteia Resumindo entendamos entatildeo que se a autoria de Homero
para a Iliacuteada eacute incerta esta se amplia ainda mais em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia A causa desse fato
daacute-se porque analisando-se ambas as eacutepicas percebem-se diferenccedilas natildeo apenas temaacuteticas
mas estruturais e conceituais que nos fazem deduzir que aleacutem de a Odisseacuteia ter sido escrita
depois da Iliacuteada poderia inclusive natildeo ser homeacuterica Na verdade natildeo nos importa muito
saber se Homero foi o autor ou natildeo da Odisseacuteia ateacute porque nossa anaacutelise basear-se-aacute no texto
mas nos interessa sim perceber quais satildeo estas diferenccedilas entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia
principalmente as de cunho estrutural e de concepccedilatildeo de mundo
Uma destas diferenccedilas por exemplo pode ser vista a partir da representaccedilatildeo da
a)reth Para W Jaeger (2001 p 27) Homero deu-nos o mais antigo testemunho da cultura
aristocraacutetica grega principalmente atraveacutes da a)reth 2 cent Seja ela manifestada pela excelecircncia
guerreira como ocorre na Iliacuteada seja pelas qualidades intelectuais como ocorre na Odisseacuteia
E ainda completa ―a Odisseacuteia exalta sobretudo no seu heroacutei principal acima da valentia que
passa a lugar secundaacuterio a prudecircncia e a astuacutecia (JAEGER 2001 p 27) Muitas outras
2 De acordo com Renato Romizi (2007) o tema deste nome abrvbarre eacute oriundo de abrvbarreskw piaccio ou seja
agradar seu radical abrvbarr indica superioridade daiacute abrvbarrethcent significa excelecircncia de bravura coragem no sentido
militar ou virtude meacuterito no sentido moral O Le grand Bailly daacute-nos a traduccedilatildeo meacuterite ou qualiteacute ou seja
meacuterito e qualidade num sentido de excelecircncia e tambeacutem nos aponta para abrvbarreiwn que se relaciona a coragem
valentia E o Liddell and Scottrsquos Greek-English Lexicon relaciona a abrvbarrethcent grega a uirtus latina e aponta
tambeacutem para uma diferenccedila de sentido em relaccedilatildeo ao valor guerreiro valour e o moral for virtue merit da
virtude ou do meacuterito Assim podemos entender abrvbarrethcent como a qualidade guerreira eou a distinccedilatildeo do meacuterito
da virtude de um homem nobre
19
diferenccedilas podem ser observadas mas por hora nos deteremos neste exemplo jaacute que no
proacuteximo toacutepico ―Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia discutiremos mais sobre essas questotildees
De todo o modo apesar de especificidades diversas o que importa eacute percebermos que
os heroacuteis homeacutericos buscam a timh a honra como meio de assegurarem sua a)reth
qualidade do guerreirodo nobre Isso porque ―() o homem homeacuterico soacute adquire consciecircncia
do seu valor pelo reconhecimento da sociedade a que pertence () ele mede a Arete proacutepria
pelo prestiacutegio que disputa entre seus semelhantes (Ibidem p 31) Portanto se tudo o que
almeja o homem homeacuterico eacute a timh para atraveacutes dela alcanccedilar a a)reth que eacute perpeacutetua daiacute
a sua negaccedilatildeo ou ultraje torna-se um grave problema pois ―Para o homem homeacuterico e para o
mundo da nobreza desse tempo a negaccedilatildeo da honra era em contrapartida a maior trageacutedia
humana(JAEGER 2001 p 31)
Muitos satildeo os exemplos na literatura grega a respeito dessa honra ultrajada
inclusive como disse Jaeger (2001) resultando em trageacutedia Aliaacutes o grande tema das
trageacutedias gregas seraacute justamente a queda de um heroacutei Em Aacutejax de Soacutefocles por exemplo o
heroacutei ao vecirc-se desonrado por ter sido preterido na disputa das armas de Aquiles parte para
vingar-se dos chefes gregos mas iludido por Atena mata animais do rebanho Ao reconhecer
a falha cometida resolve entatildeo matar-se por vecirc-se totalmente desonrado
Bem provavelmente estaacute no Canto I da Iliacuteada um dos maiores exemplos de
desonra da literatura grega Neste Canto Aquiles retira-se da guerra quando tem seu geraj
ou seja seu precircmio de guerra3 tomado por Agamecircmmnon Este geraj distingue o heroacutei dos
demais e sem ele natildeo pode ter a sua timh logo sem esta natildeo poderaacute alcanccedilar a a)reth A
importacircncia da timh fica bem clara nas palavras reclamantes de Aquiles a matildee vejamos
μῆτερ ἐπεί μ᾽ ἔτεκές γε μινυνθάδιόν περ ἐόντα
τιμήν πέρ μοι ὄφελλεν Ὀλύμπιος ἐγγυαλίξαι
355 Ζεὺς ὑψιβρεμέτης νῦν δ᾽ οὐδέ με τυτθὸν ἔτισεν
ἦ γάρ μ᾽ ἈτρεἸδης εὐρὺ κρείων Ἀγαμέμνων
ἠτίμησεν ἑλὼν γὰρ ἔχει γέρας4 αὐτὸς ἀπούρας5
(Iliacuteada I 353-357)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
3 O referido precircmio era Briseide escrava de Aquiles que eacute tomada por Agamecircmnon ao ter que ceder a sua
escrava Criseide a fim de aplacar a fuacuteria de Apolo 4 Os destaques satildeo nossos
5 Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il01html acessado em 22 de
abril agraves 1604 hs
20
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar aquele que
355 ressoa do alto ceacuteu Agora em verdade ele natildeo me honra nem um
[pouco
pois o Atrida Agamecircmnon o poderoso senhor desonrou-me
jaacute que capturando tem o meu precircmio de guerra tendo ele mesmo
[arrancado-me
Esta busca de Aquiles em ter seu geraj e consequentemente sua timh eacute
natural e justificaacutevel pois este mundo grego arcaico girava em torno desses elementos Nesta
cena em que reclama agrave matildee sua honra e questiona o compromisso de Zeus com sua causa natildeo
haacute arrogacircncia por parte de Aquiles ele busca a realizaccedilatildeo de aidwj e nemesij ou seja do
pudor e da justiccedila Pois natildeo eacute justo que ele aleacutem de morrer jovem tenha tambeacutem que morrer
desonrado E tanto aidwj quanto nemesij ―satildeo em Homero conceitos constitutivos do
ideal eacutetico da aristocracia (JAEGER 2001 p28) Devemos perceber a significaccedilatildeo que estes
conceitos tecircm para o mundo homeacuterico e como satildeo representados a fim de que entendamos
seus valores e significados A citaccedilatildeo abaixo eacute bastante esclarecedora deste fato
Os heroacuteis travavam-se mutuamente com respeito e honra constantes
Assentava nisso toda a sua ordem social A acircnsia de honra era neles
simplesmente insaciaacutevel sem que isto seja caracteriacutestica moral peculiar aos
indiviacuteduos como tais Era natural e indiscutiacutevel que os heroacuteis maiores e os
priacutencipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta Ningueacutem
receia na Antiguidade reclamar a honra devida a um serviccedilo prestado
(JAEGER 2001 p 31)
Como vemos eacute natural dos heroacuteis buscarem sua timh a fim de alcanccedilarem a
a)reth e isso para os gregos natildeo se confunde com vaidade mas pelo contraacuterio relaciona-
se agrave aspiraccedilatildeo do valor pessoal Na Odisseacuteia como jaacute foi dito essa a)reth estaacute relacionada agrave
virtude intelectual e natildeo guerreira como ocorre na Iliacuteada Por isso Odisseu destaca-se como
o polumhtij o muito astuto que remete a um valor intelectual diferentemente do epiacuteteto de
Aquiles aOacuteristoj a)xaiwcurrenn o melhor dos aqueus que se refere a sua qualidade guerreira de
superioridade de batalha em relaccedilatildeo aos demais
Aleacutem de observarmos essa modificaccedilatildeo conceitual que existe na a)reth da Iliacuteada
para a Odisseacuteia vecirc-se tambeacutem nesta a busca da gloacuteria feita atraveacutes da sobrevivecircncia e natildeo da
morte como ocorre na Iliacuteada Aquiles por exemplo pretende para ser imortalizado morrer
em campo de batalha jaacute Odisseu busca natildeo soacute viver mas sobreviver a todos os obstaacuteculos
para que em sua casa e em sua paacutetria alcance a gloacuteria domiciliar Esses fatos satildeo importantes
21
para que enxerguemos a natildeo homogeneidade nas representaccedilotildees e significaccedilotildees homeacutericas e
devem ser compreendidos em sua completude e diversidade O mundo grego representado por
Homero natildeo eacute homogecircneo assim sendo tambeacutem natildeo pode ser homogecircneo o mundo homeacuterico
de que tantos falam
A respeito da religiosidade Walter Friedrich Otto em Os deuses da Greacutecia (2005)
diz haver em Homero uma clara e natural expressatildeo religiosa Neste mundo de Homero vecirc-se
tambeacutem a organizaccedilatildeo divina a partir da religiatildeo oliacutempica que era segundo Otto mais
paternalista diferente da primordial relacionada agrave Gaicurrena a Terra e portanto mais ao
feminino Otto diz-nos tambeacutem que no mundo homeacuterico o contato com o morto natildeo vai
significar contaminaccedilatildeo ao contraacuterio do que comeccedila a ocorrer nas trageacutedias gregas Ao fazer
uma comparaccedilatildeo entre Hesiacuteodo e Homero ou seja dois representantes do mundo grego
arcaico Otto observa que em Hesiacuteodo temos narrativas mais proacuteximas do fantaacutestico do que
em Homero Segundo o autor Hesiacuteodo aproximar-se-ia do fantaacutestico com suas narraccedilotildees
sobre o surgimento do universo dos deuses dos poetas enfim Jaacute Homero ao contraacuterio
poupar-nos-ia de descriccedilotildees mais proacuteximas do fantaacutestico Para exemplificar sua tese Otto cita
o fato de que Atena mesmo epitetada por o)brimopater ou seja a filha do pai poderoso
natildeo teraacute em nenhum momento descriccedilatildeo do seu nascimento Atena como sabemos eacute
concebida a partir da cabeccedila do proacuteprio pai Zeus inclusive jaacute nascendo adulta e armada
Homero pode ateacute natildeo descrever este episoacutedio mas Hesiacuteodo o faz na Teogonia Vejamos o
excerto abaixo
Ζεὺς δὲ θεῶν βασιλεὺς πρώτην ἄλοχον θέτο Μῆτιν
πλεῖστα θεῶν εἰδυῖαν ἰδὲ θνητῶν ἀνθρώπων
ἀλλ ὅτε δὴ ῥ ἤμελλε θεὰν γλαυκῶπιν Ἀθήνην
τέξεσθαι τότ ἔπειτα δόλωι φρένας ἐξαπατήσας
890 αἱμυλίοισι λόγοισιν ἑὴν ἐσκάτθετο νηδὺν
Γαίης φραδμοσύνηισι καὶ Οὐρανοῦ ἀστερόεντος ()
Αὐτὸς δ ἐκ κεφαλῆς γλαυκώπιδα γείνατ Ἀθήνην
925 δεινὴν ἐγρεκύδοιμον ἀγέστρατον ἀτρυτώνην
πότνιαν ἧι κέλαδοί τε ἅδον πόλεμοί τε μάχαι τε
Ἥρη δ Ἥφαιστον κλυτὸν οὐ φιλότητι μιγεῖσα
γείνατο καὶ ζαμένησε καὶ ἤρισε ὧι παρακοίτηι
ἐκ πάντων τέχνηισι κεκασμένον Οὐρανιώνων6
(Teogonia 886-891924-929)
6 Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml acessado em 22 de abril agraves 2048
hs
22
Zeus rei dos Deuses primeiro desposou Astuacutecia
mais saacutebia que os deuses e os homens mortais
Mas quando ia parir a Deusa de olhos glaucos Atena
ele enganou sua entranhas com ardil
890 com palavras sedutoras e engoliu-a ventre abaixo
por conselhos de Terra e do Ceacuteu constelado
()
Ele proacuteprio da cabeccedila gerou a de olhos glaucos
925 Atena terriacutevel estrondante guerreira infatigaacutevel
soberana a quem apraz fragor combate e batalha
Hera por raiva e por desafio a seu esposo
natildeo unida em amor gerou Hefesto
nas artes brilho agrave parte de toda raccedila do Ceacuteu7
Ainda segundo Otto em Homero temos pela primeira vez uma ideacuteia clara a
respeito do destino humano Por isso no Canto XXII da Iliacuteada Atena ao impelir Heitor ao
combate com Aquiles natildeo o faz agir assim apenas por desafeto mas tambeacutem para ajudaacute-lo a
cumprir seu destino como bem explica Otto ―O divino se faz demoniacuteaco para quem foi
chamado pelo destino (2005 p 252)
Otto chama-nos a atenccedilatildeo para outro aspecto importante na representaccedilatildeo
homeacuterica a respeito da significaccedilatildeo das Moiras e as diferenccedilas de posicionamento em relaccedilatildeo
a elas por parte de Hesiacuteodo e Homero Desta maneira as Moiras referidas por Hesiacuteodo na
Teogonia fazem parte do mundo grego arcaico e cada uma cumpre uma funccedilatildeo especiacutefica
Cloto tece o fio da vida a Laacutequesis mede e a Aacutetropos corta
Na Teogonia elas satildeo sempre referidas no plural Moiras e satildeo representadas
como aquelas que nos datildeo bens e males ou seja datildeo a parte que nos cabe e esta pode ser boa
ou maacute Elas aparecem nomeadas tambeacutem por Queres Eriacutenias sempre no plural estatildeo sempre
pressentes em nascimentos mortes e casamentos e satildeo perseguidoras implacaacuteveis daqueles
que cometem crimes de sangue derramando sangue de parente Em Homero ao contraacuterio
essa representaccedilatildeo do destino eacute realizada no singular Moicurrenra e estaacute relacionada agraves
determinaccedilotildees negativas de morte quinhatildeo cataacutestrofe destino ndash esta observaccedilatildeo pode ser
feita principalmente na Iliacuteada Na Odisseacuteia contudo observamos uma exceccedilatildeo pois apesar
de serem unificadas daiacute a utilizaccedilatildeo do singular elas seratildeo responsaacuteveis pela determinaccedilatildeo do
destino de Odisseu e este estaacute destinado a alcanccedilar a meta traccedilada Mesmo assim apesar da
Moicurrenra ter-lhe destinado bens futuros Odisseu teraacute que passar por inuacutemeras dificuldades ateacute
7 Traduccedilatildeo de Jaa Torrano (2009)
23
que possa retornar ao lar Ateacute porque em Homero o caraacuteter da Moicurrenra eacute restritivo Assim
mesmo para Odisseu ela prescreve em muitos momentos que ele voltaraacute mas ainda natildeo ateacute
que venha a sofrer e cumprir todos os desiacutegnios
Na eacutepoca homeacuterica segundo Otto vemos tambeacutem a representaccedilatildeo de perda do
culto ao divino mais especificamente na Odisseacuteia Como exemplo maior desta situaccedilatildeo em
que o culto ao divino mostra-se enfraquecido constatamos em VIII v 267 a narraccedilatildeo por
Demoacutedoco do caso amoroso entre Ares e Afrodite servindo de contentamento para os
ouvintes assim o culto divino eacute transformado em diversatildeo Na Odisseacuteia Telecircmaco chega a
desconfiar se mesmo com a ajuda de Atena consiguiraacute vencer os pretendentes Esta
peculiaridade em Homero eacute importante pois influencia produccedilotildees poeacuteticas posteriores a
exemplo das trageacutedias em que o poder divino seraacute questionado
Sobre as variadas representaccedilotildees culturais que faz Homero do mundo grego
arcaico sabemos que ela natildeo eacute uniforme mesmo sendo a micecircnica a realidade central da
eacutepica homeacuterica Desse modo diz-nos Denys Page (1977) acerca da heterogeneidade
mimetizada por Homero que ―quando nos voltamos para o ambiente poliacutetico e social de
Homero a dificuldade estar em ele nos parecer um quadro composto com elementos de
civilizaccedilotildees diferentes (PAGE 1977 p 19) Assim temos nas obras homeacutericas todo um
arcabouccedilo de representaccedilotildees e evoluccedilotildees do mundo grego sejam estas religiosas culturais
linguumliacutesticas dos versos dos mitos heroacuteicos sejam divinas entre outras
12 Apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia
A respeito da literatura grega podemos identificar no geral trecircs momentos
baacutesicos de produccedilatildeo literaacuteria ocorridos antes de Cristo satildeo eles o Periacuteodo Arcaico que se
inicia no seacuteculo VIII aC e termina em V aC o Periacuteodo Claacutessico de V aC ao seacuteculo IV aC
e o denominado Periacuteodo Alexandrino iniciado em IV aC e estendendo-se ateacute III aC
O Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C) eacute o iniciador da literatura ocidental marcado
notadamente por forte influecircncia da oralidade dos rapsodos e aedos Nesse periacuteodo satildeo
compostas as obras iniciadoras de toda a literatura ocidental Iliacuteada e Odisseacuteia de Homero e
Teogonia e Os Trabalhos e os Dias de Hesiacuteodo A visatildeo de mundo dessa eacutepoca eacute regida pelas
24
leis da qemij para os deuses e dimacrkh para os homens o muordfqoj8 explica o mundo e sua
organizaccedilatildeo os heroacuteis defendem a paacutetria a famiacutelia e sua timh a honra para consagrarem-se
com a a)reth (a virtude guerreira intelectual da nobreza)
No Periacuteodo Claacutessico (seacuteculo V ndash IV a C) representa-se o mundo da poacutelis Nesse
periacuteodo natildeo haacute a centralizaccedilatildeo na lei divina dos deuses qemij nem na lei divina direcionada
aos homens dikh como ocorre no mundo arcaico Agora haacute o nomoj a lei escrita que deve
nortear os cidadatildeos da poacutelis Assim o loacutegoj atraveacutes do discurso e do raciociacutenio loacutegico eacute
quem explica o mundo sob a reflexatildeo filosoacutefica A literatura dessa fase representa por meio
das trageacutedias o conflito e a fragilidade humana diante desse mundo Dessa maneira observar-
se-aacute o conflito entre o muordfqoj e o loacutegoj ou seja os heroacuteis do mundo arcaico estaratildeo em
conflito com o novo mundo e suas novas leis Representam essa fase os tragedioacutegrafos
Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
No Periacuteodo Alexandrino (seacuteculo IV ndash III a C) temos a expansatildeo do mundo
grego atraveacutes de Alexandre o Grande (335-323 a C) e aproximadamente no seacuteculo III
aC a construccedilatildeo da Biblioteca de Alexandria que como sabemos reuacutene uma infinidade de
obras de extrema importacircncia sendo das maiores bibliotecas que o mundo antigo registra
Nesse periacuteodo Apolocircnio de Rhodes produz Argonaacuteuticas por volta de 295 aC Mas logo
apoacutes o povo romano que comeccedila a expandir suas conquistas e domiacutenios pelo mundo toma a
Greacutecia e a partir dessa influecircncia forma a sua proacutepria literatura
A Odisseacuteia entatildeo composta no seacuteculo VIII aC pertence ao chamado Periacuteodo
Arcaico (VIII ndash V a C) da literatura grega Sua autoria eacute atribuiacuteda a Homero e sabe-se que
foi produzida posteriormente agrave Iliacuteada apesar de natildeo podermos determinar com certeza qual o
periacuteodo de produccedilatildeo de ambas Contudo de acordo com Jaeger observamos que ―do ponto de
vista histoacuterico a Iliacuteada eacute um poema muito mais antigo A Odisseacuteia reflete um quadro muito
posterior da histoacuteria da cultura (JAEGER 2001 p 37) Na Iliacuteada temos como eixo central
da narraccedilatildeo a ira funesta de Aquiles sua retirada e retorno aos combates na Guerra de Troacuteia
Jaacute na Odisseacuteia o eixo estaacute no retorno de Odisseu agrave sua paacutetria e os combates que iraacute travar
com os pretendentes que apoacutes sua saiacuteda para a Guerra de Troacuteia invadem a sua casa
banqueteam-se diariamente pretendendo casar com a sua esposa e apossar-se de seus bens
8 Conforme nos esclarece Vernant em La gregravece ancienne du mythe agrave la raison (1990 p 9-11) em grego
arcaico mucurrenqoj significa palavra discurso mas a partir das discussotildees filosoacuteficas do seacuteculo V aC passa a
figurar em oposiccedilatildeo a logoj designando entatildeo a palavra pronunciada sem reflexatildeo racional contrariamente a
logoj que passa a ser o discurso racional diferenccedilas estas que natildeo existiam no mundo grego arcaico
25
Odisseu enfrenta muitos obstaacuteculos a fim de que possa retornar ao lar apoacutes vinte anos
afastado E ao voltar vecirc que desde entatildeo muitas coisas aconteceram seu filho que quando
ele saiacutera era apenas uma crianccedila cresceu sua matildee faleceu de saudades seu pai preferiu a
reclusatildeo sua esposa para ludibriar os pretendentes de dia tece uma mortalha para Laertes e
agrave noite desfaz-a Em suma o seu palaacutecio encontra-se invadido por pretendentes que natildeo
respeitaram os dons da hospitalidade e por isso seratildeo punidos
Realizando uma anaacutelise comparada entre a Iliacuteada e a Odisseacuteia podemos observar
algumas siginificativas diferenccedilas Entre elas podemos destacar a relaccedilatildeo entre o homem e o
divino Na Odisseacuteia por exemplo os homens possuem maior consciecircncia dos atos e
independecircncia em relaccedilatildeo aos deuses tanto que haacute pouca interferecircncia divina Natildeo
pretendemos dizer natildeo haver presenccedila divina na Odisseacuteia tanto que ilustramos algumas
dessas apariccedilotildees a trama inicia com uma assembleacuteia divina Palas Atena sempre acompanha
Odisseu eou Telecircmaco em suas jornadas e Possidon aparece para vingr-se para vingar-se de
quem feriu seu filho Polifemo Contudo percebe-se que haacute uma interferecircncia divina menor
se compararmos com a Iliacuteada Para este fato eacute bem ilustrativa a fala de Zeus abrindo a
Assembleacuteia dos Deuses no Canto I da Odisseacuteia sob o argumento de que os homens erram e
culpam os deuses por suas falhas Vejamos
ὢ πόποι οἷον δή νυ θεοὺς βροτοὶ αἰτιόωνται
ἐξ ἡμέων γάρ φασι κάκ᾽ ἔμμεναι οἱ δὲ καὶ αὐτοὶ
σφῆισιν ἀτασθαλίηισιν ὑπὲρ μόρον ἄλγε᾽ ἔχουσιν
35 ὡς καὶ νῦν Αἴγισθος ὑπὲρ μόρον ἈτρεἸδαο
γῆμ᾽ ἄλοχον μνηστήν τὸν δ᾽ ἔκτανε νοστήσαντα9 (Odisseacuteia I 32-36)
Oh grandes deuses Agora os mortais culpam os deuses
Pois de noacutes dizem vir a causa de todos seus males quando
eles mesmos por suas loucas presunccedilotildees suportam dores contra o destino
35 assim tambeacutem Egisto contra a decisatildeo do destino do Atrida
desposou a mulher legiacutetima e o matou depois do seu retorno
Na Iliacuteada ao contraacuterio temos a apariccedilatildeo e interferecircncia de diversos deuses em
diversos momentos da narrativa a fim de favorecerem seus aliados Apolo Atena Hera
Posiacutedon Ares Afrodite Apoacutes eles terem lutado a favor dos seus protegidos Zeus no Canto
VIII poriacutebe que eles atuem no campo de batalha vindo a liberaacute-los no Canto XX
9 Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
agraves 1100hs de 15 de julho
26
Como vimos na Iliacuteada os deuses estatildeo o tempo todo a intervir a favor dos seus
Uma outra caracteriacutestica desta obra e que difere em relaccedilatildeo agrave Odisseacuteia estaacute no relato e
representaccedilatildeo social Isto ocorre porque na primeira haacute uma maior restriccedilatildeo em relaccedilatildeo aos
grupos sociais representados na obra em especial a aristocracia Jaacute a segunda possui um
quadro social mais amplo aparecendo a representaccedilatildeo natildeo soacute da aristocracia como tambeacutem
de pessoas de outra classe como porqueiros mendigo criadas enfim A representaccedilatildeo de
embates eacute mais acentuada na Iliacuteada que na Odisseacuteia por isso
O mais antigo dos poemas mostra-nos o predomiacutenio absoluto do estado de
guerra tal como devia ser no tempo das grandes migraccedilotildees das tribos gregas
A Iliacuteada fala-nos de um mundo situado num tempo em que domina
exclusivamente o espiacuterito heroacuteico da areteacute () A Odisseacuteia ao contraacuterio tem
poucas ocasiotildees para descrever o comportamento dos heroacuteis na luta
(BRANDAtildeO 1998 p 40)
A caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais Aquiles da Iliacuteada e Odisseu da Odisseacuteia
tambeacutem forma outro ponto de divergecircncia entre os poemas Como sabemos o primeiro heroacutei
distingue-se por sua habilidade guerreira enquanto o segundo por sua habilidade com o
pensamento inteligecircncia Albin Lesky comparando os dois personagens resume de forma
esclarecedora a diferenccedila entre eles dizendo-nos que haacute ―uma prudente reflexatildeo frente a uma
nobre imoderaccedilatildeo um haacutebil espiacuterito de conciliaccedilatildeo face a uma brusca aspereza um prudente
caacutelculo do procedimento mais oportuno face agrave corrida precipitada pelo caminho mais curto
(LESKY 1995 p 60)
Em relaccedilatildeo agrave estrutura da Odisseacuteia comparando-a com a da Iliacuteada diz-nos
Aristoacuteteles no capiacutetulo 24 verso 1458b da Poeacutetica que aquela eacute bem mais complexa ateacute
mesmo por ter cenas de asup1nagnwiquestrisij Este como sabemos eacute um elemento estrutural
importante por atribuir mais complexidade ao enredo e na Odisseacuteia temos mais de uma
ocasiatildeo em que aparece asup1nagnwiquestrisij Por exemplo no Canto XVII versos 290-327 o
cachorro Argos reconhece Odisseu apoacutes vinte anos e jaacute cansado e velho aleacutem de toda a
emoccedilatildeo pela qual eacute tomado vem a falecer Observemos a cena como ocorre
300 ἔνθα κύων κεῖτ᾽ Ἄργος ἐνίπλειος κυνοραιστέων δὴ τότε γ᾽ ὡς ἐνόησεν10 Ὀδυσσέα ἐγγὺς ἐόντα
10
Este verbo ecopynoiquesthsen eacute o aoristo de noew que significa conhecer perceber Neste caso eacute importante
entendermos que o aoristo natildeo eacute tempo verbal nem modo e sim aspecto indicando a accedilatildeo pontual Essa
27
οὐρῆι μέν ῥ᾽ ὅ γ᾽ ἔσηνε καὶ οὔατα κάββαλεν ἄμφω ἆσσον δ᾽ οὐκέτ᾽ ἔπειτα δυνήσατο οἷο ἄνακτος ἐλθέμεν αὐτὰρ ὁ νόσφιν ἰδὼν ἀπομόρξατο δάκρυ ()
326 Ἄργον δ᾽ αὖ κατὰ μοῖρ᾽ ἔλαβεν μέλανος θανάτοιο αὐτίκ᾽ ἰδόντ᾽ Ὀδυσῆα ἐεικοστῶι ἐνιαυτῶι11 (Odisseacuteia XVII 290-327)
Ali jazia o cachorro Argos cheio de carrapatos
Por um lado como percebeu Odisseu passando proacuteximo
por outro abanou a cauda e baixou ambas orelhas
depois natildeo pocircde de ir para perto do seu senhor
Este tendo visto isso ao longe enxugou uma laacutegrima
Por sua vez o destino de negra morte levou Argos para baixo
Logo depois de ver Odisseu apoacutes vinte anos
Outros encontros de reconhecimento tambeacutem ocorrem ao longo da Odisseacuteia
como o de Telecircmaco que reconhece o pai quando este por orientaccedilatildeo de Atena aparece para
o filho em sua forma original (Canto XVI versos 180-219) o da ama Euricleacuteia que
reconhece Odisseu por meio de uma cicatriz (Canto XIX versos 467-500) Peneacutelope tambeacutem
reconhece o esposo quando este revela ter construiacutedo o proacuteprio leito ao casarem (Canto
XXIII versos 181-206) e Laertes pai de Odisseu reconhece o filho quando este lhe indica
todas as plantas que haacute na propriedade (Canto XXIV versos 320-346)
Como pudemos ver a Odisseacuteia possui suas peculiaridades em relaccedilatildeo agrave Iliacuteada
inclusive nas representaccedilotildees sociais e todas essas convergem para a afirmativa de que ela foi
escrita posteriormente A modificaccedilatildeo do sentido da abrvbarrethcent a ampliaccedilatildeo nas representaccedilotildees
sociais a relaccedilatildeo com os deuses a caracterizaccedilatildeo dos heroacuteis principais a complexidade
estrutural e o ponto de vista histoacuterico satildeo alguns exemplos de diferenccedilas existentes entre as
duas eacutepicas homeacutericas Por isso natildeo podemos referir-nos agraves eacutepicas homeacutericas englobando-as
num todo homogecircneo ateacute porque numa anaacutelise mais especiacutefica observamos diferenccedilas
relevantes apesar de possuiacuterem ligaccedilotildees claras uma com a outra
peculiaridade do verbo grego explica-se atraveacutes do verbo indo-europeu cujas formas indicavam apenas a noccedilatildeo
de aspecto E eram trecircs as noccedilotildees de aspecto o imperfectivo o perfectivo e o pontual (FARIA 1958) O
primeiro designava a accedilatildeo era inacabada o segundo a accedilatildeo acabada e o terceiro a accedilatildeo pontual por isso eacute
bastante usado em narrativas Na citaccedilatildeo acima Homero utilizou-se da forma do aoristo ecopynoiquesthsen que
traduzimos por ―percebeu ou seja indicando um fato pontual (aoristo) do momento em que o cachorro
reconhece Odisseu numa accedilatildeo que nem estaacute acabada (perfectivo) nem inacabado (imperfectivo) 11
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od17html
28
A explanaccedilatildeo que fizemos tem como objetivo contextualizar situar e caracterizar o
nosso objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia Tais referecircncias satildeo relevantes para que
compreendamos o seu todo e assim mais facilmente seja compreendida a nossa anaacutelise
especiacutefica que eacute analisar o traacutegico na Odisseacuteia mais especificamente no Canto XI
121 A Estrutura do poema
Como jaacute dissemos A Odisseacuteia enquadra-se no Periacuteodo Arcaico (VIII ndash V a C)
da literatura Grega e portanto possui marcas da oralidade como a repeticcedilatildeo e o uso de
epiacutetetos aleacutem de ter a partir do muordfqoj as explicaccedilotildees dos fatos Essa sociedade retratada
tem na a)reth a distinccedilatildeo de excelecircncia do nobre principalmente por meio do seu heroacutei
principal Odisseu soacute que mais especificamente relacionada agrave virtude intelectual de
inteligecircncia de astuacutecia e de prudecircncia
De estrutura complexa e narrada in medias res a Odisseacuteia naturalmente condiz
com os aspectos estruturais da epopeacuteia e que satildeo descritos por Aristoacuteteles no momento em
que a compara com a estrutura da trageacutedia Mas para que possamos entender a estrutura da
epopeacuteia faz-se necessaacuterio que entendamos primeiramente o que ela significa Esta
denominaccedilatildeo eacute oriunda do termo grego iexclepopoiia e serve para designar genericamente a
poesia eacutepica Esta palavra como indica Romizi (2007) eacute formada por eAtildepoj que significa
palavra o que eacute dito esta por sua vez relaciona-se ao verbo eagravepw dizer cantar nomear e a
poiew verbo temaacutetico que significa criar produzir Estes nomes possuem o mesmo radical
das palavras poihsij e poihthj a primeira refere-se agrave criaccedilatildeo poeacutetica e o segundo ao
criador da poesia A partir desse referencial etimoloacutegico podemos entender iexclepopoiia natildeo
simplesmente como poesia eacutepica como genericamente definem muitos dicionaacuterios mas como
o canto (eagravepw) daquilo que fora criado (poihsij) pelo poeta (poihthj) daiacute a formaccedilatildeo de
epopeacuteia (ecopypopoiia)
Assim entendido agora o que designamos como epopeacuteia podemos compreender
melhor a sua estrutura delineada primeiramente por Aristoacuteteles Na Poeacutetica o filoacutesofo define
a trageacutedia e para tanto realiza um estudo comparativo com a comeacutedia e com a epopeacuteia A
partir dessa comparaccedilatildeo podemos extrair o entendimento sobre a estrutura e as caracteriacutesticas
29
da epopeacuteia jaacute que em alguns momentos ela se assemelha e em outros diferencia-se da
trageacutedia objeto central da anaacutelise aristoteacutelica
Segundo Aristoacuteteles a trageacutedia e a epopeacuteia possuem uma semelhanccedila em relaccedilatildeo
aos objetos da imitaccedilatildeo isto porque em ambas imitam-se seres superiores os heroacuteis a
aristocracia enquanto que na comeacutedia satildeo imitados os chamados seres inferiores e todas as
suas caracteriacutesticas risiacuteveis Homero assim como os tragedioacutegrafos teria cantado com
unidade de accedilatildeo Assim explica Aristoacuteteles no capiacutetulo VII da Poeacutetica que Homero em suas
epopeacuteias delinea um argumento uacutenico agrupando-o com episoacutedios que convergem para o seu
eixo por isso natildeo canta toda a Guerra de Troacuteia nem muito menos todos os acontecimentos
da vida de Odisseu Apesar de que para Lesky (1995) haacute na Odisseacuteia algumas discussotildees
sobre a sua unidade principalmente em relaccedilatildeo agrave Telemaquia que vai do Canto I ao IV e que
alguns pensam ter sido uma parte ou um acreacutescimo Todavia mesmo diante dessas
controveacutersias Lesky diz-nos que nos importa saber que ela ―daacute voz a uma forccedila de
composiccedilatildeo e uma mestria de narraccedilatildeo que soacute se encontram nas grandes obras de arte Nesse
sentido tambeacutem ela constitui uma unidade (LESKY 1995 p 71)
Continuando a definiccedilatildeo sobre os gecircneros no capiacutetulo XXIV Aristoacuteteles diz que
a epopeacuteia difere da trageacutedia em relaccedilatildeo ao emprego e dimensatildeo do metro como tambeacutem pela
extensatildeo jaacute que a trageacutedia deve limitar seus fatos a um periacuteodo do sol enquanto a epopeacuteia
natildeo tem duraccedilatildeo limitada em contrapartida assemelham-se por tratarem de assuntos seacuterios
Como vemos a partir das comparaccedilotildees realizadas por Aristoacuteteles na tentativa de
elucidar as caracteriacutesticas da trageacutedia acabamos por compreender tambeacutem a estruturaccedilatildeo da
epopeacuteia Dessa maneira como epopeacuteia a Odisseacuteia nosso objeto de estudo realiza imitaccedilatildeo
de homens superiores possui argumento uacutenico e episoacutedios que o desenvolvem neste caso o
retorno de Odisseu Aleacutem de natildeo ter limitaccedilatildeo de duraccedilatildeo jaacute que durante toda a epopeacuteia
narram-se fatos ocorridos ao longo de vinte anos
Somado aos elementos estruturais da eacutepica apresentados por Aristoacuteteles e jaacute
exemplificados por noacutes anteriormente destacaremos agora a partir da Odisseacuteia o proecircmio a
narraccedilatildeo e o epiacutelogo que satildeo trecircs importantes elementos constitutivos do um texto eacutepico
O proecircmio eacute composto pela invocaccedilatildeo e pela proposiccedilatildeo Na Odisseacuteia ele se
encontra nos dez primeiros versos Atraveacutes da Teogonia (2007) entendemos o porquecirc da
invocaccedilatildeo processo no qual o poeta chama as Musas Vejamos o trecho abaixo
25 Μοῦσαι Ὀλυμπιάδες κοῦραι Διὸς αἰγιόχοιο
ποιμένες ἄγραυλοι κάκ ἐλέγχεα γαστέρες οἶον
30
ἴδμεν ψεύδεα πολλὰ λέγειν ἐτύμοισιν ὁμοῖα
ἴδμεν δ εὖτ ἐθέλωμεν ἀληθέα γηρύσασθαι
ὣς ἔφασαν κοῦραι μεγάλου Διὸς ἀρτιέπειαι
30 καί μοι σκῆπτρον ἔδον δάφνης ἐριθηλέος ὄζον
δρέψασαι θηητόν ἐνέπνευσαν δέ μοι αὐδὴν
θέσπιν ἵνα κλείοιμι τά τ ἐσσόμενα πρό τ ἐόντα
καί μ ἐκέλονθ ὑμνεῖν μακάρων γένος αἰὲν ἐόντων
σφᾶς δ αὐτὰς πρῶτόν τε καὶ ὕστατον αἰὲν ἀείδειν
35 ἀλλὰ τίη μοι ταῦτα περὶ δρῦν ἢ περὶ πέτρην12 (Teogonia 22-35)
Musas olimpiacuteades virgens de Zeus porta-eacutegide
―Pastores agrestes vis infacircmias e ventres soacute
sabemos muitas mentiras dizer siacutemeis aos fatos
e sabemos se queremos dar a ouvir revelaccedilotildees
Assim falaram as virgens do grande Zeus veriacutedicas
por cetro deram-me um ramo a um loureiro viccediloso
colhendo-o admiraacutevel e inspiraram-me um canto
divino para que eu glorie o futuro e o passado
impeliram-me a hinear o ser dos venturosos sempre vivos
e a elas primeiro e por uacuteltimo sempre cantar13
Assim como foi indicado na citaccedilatildeo acima na Odisseacuteia o poeta invocaraacute as
Musas a fim de que o ajudem a cantar o polumhtij ou seja o muito astucioso Odisseu No
proecircmio da Odisseacuteia como jaacute foi dito entre o primeiro e o deacutecimo verso do Canto I
encontramos tambeacutem a proposiccedilatildeo do poema e naturalmente o seu argumento que eacute cantar as
muitas aventuras e desventuras vividas por Odisseu e seus companheiros durante dez anos
desde que saiacuteram da Guerra de Troacuteia ateacute o retorno a Iacutetaca Vejamos
Ἄνδρα μοι ἔννεπε μοῦσα πολύτροπον ὃς μάλα πολλὰ
πλάγχθη14 ἐπεὶ Τροίης ἱερὸν πτολίεθρον ἔπερσεν
πολλῶν δ᾽ ἀνθρώπων ἴδεν ἄστεα καὶ νόον ἔγνω
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐν πόντωι πάθεν ἄλγεα ὃν κατὰ θυμόν
5 ἀρνύμενος ἥν τε ψυχὴν καὶ νόστον ἑταίρων
ἀλλ᾽ οὐδ᾽ ὣς ἑτάρους ἐρρύσατο ἱέμενός περ
αὐτῶν γὰρ σφετέρηισιν ἀτασθαλίηισιν ὄλοντο
νήπιοι οἳ κατὰ βοῦς Ὑπερίονος Ἠελίοιο
12
Texto diponiacutevel em httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Hesiodoshes_theohtml
retirado agraves 1633hs do dia 27 de abril de 2010 13
Traduccedilatildeo de Torrano (2009) 14
Neste proecircmio da Odisseacuteia verificamos que praticamente todas as formas verbais estatildeo no aoristo satildeo elas
plaiquestgxqh eOacutepersen iOacuteden eOacutegnw paiquestqen ecopyrruiquestsato oOacutelonto e acopyfeiiquestleto Essa constataccedilatildeo linguumliacutestica eacute
bem coerente com o teor literaacuterio desta citaccedilatildeo ateacute porque por tratar-se de um proecircmio em que os fatos satildeo
aunciados e resumido ao iniacutecio da narrativa entendemos natiralmente que natildeo deve haver noccedilatildeo verbal de
aspecto acabado (perfectivo) ou inacabado (imperfectivo) jaacute que as accedilotildees estatildeo sendo apenas pontualmente
assinaladas daiacute a pertinecircncia do uso do aoristo
31
ἤσθιον αὐτὰρ ὁ τοῖσιν ἀφείλετο νόστιμον ἦμαρ
10 τῶν ἁμόθεν γε θεά θύγατερ Διός εἰπὲ καὶ ἡμῖν15 (Odisseacuteia I 1-10)
Musa conta-me sobre o varatildeo de muitas voltas que muito
vagou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Poreacutem natildeo salvou os companheiros mesmo lanccedilando-se para isso
Pois pereceram por causa das accedilotildees insensatas deles mesmos
Tolos que devoravam os bois do Hiperiocircnio Sol
Por outro lado este os tirou o dia do retorno
Deusa filha de Zeus conta para noacutes a partir de qualquer ponto
Jaacute atraveacutes da narraccedilatildeo que eacute o desenvolvimento do argumento satildeo cantadas ao
longo dos vinte e quatro cantos e de seus quase treze mil versos todas as viagens e encontros
de Odisseu sua estada em Ogiacutegia a visita agrave Feaacutecia onde narra sua visita aos Lotoacutefagos aos
Ciclopes Eacuteolo os Lestrigotildees Circe a realizaccedilatildeo da evocaccedilatildeo aos mortos o encontro com as
Sereias Cila Cariacutebdes os Bois do Sol ateacute a sua volta para Iacutetaca onde efetua a chacina dos
pretendentes
No epiacutelogo por sua vez ocorre o fechamento da narrativa com uma nova
invocaccedilatildeo e com a abertura de perspectiva para um novo canto Na Odisseacuteia natildeo haacute uma
manifesta invocaccedilatildeo agraves Musas no fim da narraccedilatildeo como temos no iniacutecio mas deixa-se
abertura para um novo canto que neste caso seria o da instalaccedilatildeo da paz e da harmonia em
Iacutetaca Mas a paz para Odisseu e seu povo mesmo depois de vinte anos de aacuterduos e de intensos
trabalhos soacute iria se concretizar caso Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Tireacutesias dadas no
Canto XI fizesse uma nova viagem e cumprisse com os desiacutegnios divinos
Para que melhor possamos entender os episoacutedios ocorridos ao longo da Odisseacuteia e
o contexto em que se realiza o Canto XI - nosso objeto de anaacutelise - abaixo realizamos uma
siacutentese de cada Canto
Canto I - Ocorre a Assembleacuteia dos Deuses Os divinos reuacutenem-se com exceccedilatildeo de Posiacutedon a
fim de decidir o regresso de Odisseu a Iacutetaca visto que o heroacutei permanece na ilha de Calipso
haacute muito tempo sem perspectiva de regresso Fica decidido que ele deve voltar para sua paacutetria
e Atena disfarccedilada em Mentes rei dos Taacutefios vai ateacute Telecircmaco filho de Odisseu com
15
Texto disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html retirado agraves 2107hs
de 27 de abril de 2010
32
Peneacutelope para aconselhaacute-lo e orientaacute-lo na busca do pai Neste iacutenterim ocorre a Festa dos
Pretendentes no palaacutecio de Odisseu
Canto II - Telecircmaco exortado por Atena convoca uma assembleacuteia com os itacenses para
solicitar um navio que o levasse a Pilo cidade de Nestor e a Esparta paacutetria do atrida
Menelau para que pudesse buscar informaccedilotildees sobre o pai Ele entatildeo parte escondido de sua
matildee logo apoacutes receber um navio de Noeacutemone e de revelar soacute a Euricleacuteia sobre sua partida
Canto III - O jovem priacutencipe chega a Pilo acompanhado por Atena disfarccedilada de Mentor e
encontram os Piacutelios no teacutermino da realizaccedilatildeo de sacrifiacutecios ao deus Posiacutedon Telecircmaco dirige-
se a Nestor perguntando por seu pai As suas respostas natildeo satildeo muito animadoras apenas faz
relatos sobre Troacuteia seu retorno com Menelau e o fim traacutegico de Agamecircmmnon Todavia
Nestor auxilia Telecircmaco em sua jornada enviando-lhe para Lacocircnia com Pisiacutestrato seu filho
Canto IV - Em Esparta Menelau recebe Telecircmaco com Pisiacutestrato O Atrida lhes conta sobre
o seu retorno dificultoso a destruiccedilatildeo de Troacuteia a profecia de Proteu a tristeza pela morte do
irmatildeo Agamecircmnon e a estadia de Odisseu na ilha de Calipso Telecircmaco natildeo tendo obtido as
notiacutecias que esperava prepara-se para retonar Em Iacutetaca ocorre uma assembleacuteia entre os
pretendentes a fim de tramarem uma emboscada para raptar Telecircmaco
Canto V ndash Na segunda Assembleacuteia dos Deuses fica decidido pelo imediato retorno de
Odisseu Atena solicita a Zeus para que Hermes vaacute a Ogiacutegia onde Odisseu estaacute retido e
liberte-o O cronida cumpre Entatildeo o heroacutei parte em uma jangada que construiu Jaacute no deacutecimo
oitavo dia em que navegava Odisseu eacute visto por Posiacutedon que levanta uma tempestade
destruindo a sua jangada Odisseu eacute salvo pelo veacuteu de Ino e chega agrave ilha dos Feaacutecios
Canto VI - Jaacute na terra dos Feaacutecios Odisseu eacute ajudado por Nausiacutecaa filha do rei dos Feaacutecios
A moccedila ao dormir sonha com Atena a pedir-lhe que fosse lavar roupas no rio Nausiacutecaa
obedece agraves instruccedilotildees de Atena e segue com algumas companheiras Apoacutes lavar as roupas
comeccedilam a brincar Odisseu que dormia desperta com o barulho e recorre ao auxiacutelio de
Nausiacutecaa Esta lhe concede oferece-lhe roupas e alimentos Eles partem para cidade
Canto VII - Seguindo as orientaccedilotildees de Nausiacutecaa ao chegar ao palaacutecio Odisseu ajoelha-se
aos peacutes da rainha Arete para que ela o envie para casa Alciacutenoo o rei dos Feaacutecios concede
33
sua solicitaccedilatildeo coloca-o ao seu lado e oferece-lhe comida Odisseu sem revelar-se conta
sobre o que lhe ocorreu desde que partira da ilha de Calipso ateacute o auxiacutelio de Nausiacutecaa
Canto VIII - Uma assembleacuteia eacute realizada pelos Feaacutecios para decidirem os meios de
devolverem o estrangeiro agrave sua terra Decidem pocircr a disposiccedilatildeo um navio para o seu retorno
Depois banqueteiam-se na casa do rei Alciacutenoo e jogam do disco Demoacutedoco o aedo dos
Feaacutecios comeccedila a cantar a amor de Ares e Afrodite e o cavalo de madeira que penetrou as
muralhas troianas Odisseu derrama laacutegrimas initerruptamente Alciacutenoo natildeo compreende
desconfia do heroacutei e pergunta o porquecirc do choro de onde ele vem e quem ele eacute
Canto IX - Odisseu revela sua identidade e filiaccedilatildeo iniciando a narraccedilatildeo de tudo o que
passou desde a sua saiacuteda da guerra de Troacuteia no paiacutes dos Ciacuteconos na Maleacuteia onde um vento
forte fez-lhes desviar-se do caminho indo para a terra dos Lotoacutefagos Depois param no paiacutes
dos Ciclopes onde o Polifemo devorou seis dos seus guerreiros O heroacutei astutamente
consegue escapar
Canto X - Odisseu vai buscar ajuda com Eacuteolo guardiatildeo dos ventos e recebe dele uma sacola
com todos os ventos O heroacutei dorme Seus companheiros pensando haver ouro na sacola
abrem-na entatildeo os ventos satildeo disparados aleatoriamente Odisseu acorda e volta para Eacuteolo
Este agora recusa a ajuda e expulsa-os A narraccedilatildeo aos Feaacutecios continua sobre a passagem
pela terra dos Lestrigotildees antropoacutefagos e de Circe feiticeira em Eacuteeia Nesta terra Odisseu jaacute
acomodado eacute exortado pelos companheiros para retornar Circe como prometera auxilia-o
no retorno e diz para ele ir ao Hades para falar com o adivinho Tireacutesias
Canto XI - Odisseu narra aos Feaacutecios como chegou agrave borda do Hades para consultar
Tireacutesias e sua evocaccedilatildeo aos mortos Pergunta a Tireacutesias se voltaria para casa e como deveria
proceder Tireacutesias daacute-lhe todas as informaccedilotildees diz-lhe inclusive que ele conseguiraacute o retorno
agrave paacutetria mas que enfrentaraacute muitas dificuldades Depois muitos mortos vatildeo se aproximando
de Odisseu como sua matildee Anticleacuteia e os companheiros de Troacuteia Aquiles Agamecircmnon e
Aacutejax
Canto XII - Relata sobre seu retorno desde o Hades ateacute Eacuteeia na ilha de Circe Esta o
adverte sobre os desafios que encontraraacute e como deve proceder Entatildeo Odisseu lanccedila-se ao
mar Primeiro resiste ao belo canto das Sereias depois passa por Cila e Cariacutebdes ateacute chegar agrave
34
ilha de Heacutelio Nesta seus companheiros natildeo resistem agrave fome e alimentam-se com as vacas do
deus Heacutelio desrespeitado o deus eacute vingado por Zeus que fulmina a nau de Odisseu e dos
demais Odisseu narra tambeacutem como sozinho chegou agrave ilha de Calipso apenas em uma balsa
Canto XIII - Termina a narraccedilatildeo aos Feaacutecios Impressionados Alciacutenoo e os demais
oferecem-lhe presentes em sinal de honra Como havia sido combinado os Feaacutecios levam
Odisseu a Iacutetaca e o deixam em solo paacutetrio Por castigo de Posiacutedon o navio que o leva eacute
petrificado ao retornar Atena auxilia Odisseu aconselha-o sobre a vinganccedila dos pretendentes
e desfigura-o em mendigo para natildeo ser reconhecido
Canto XIV - O agora aparente mendigo Odisseu chega agrave casa de um fiel serviccedilal o porqueiro
Eumeu Apesar de natildeo reconhecer seu rei concede-lhe toda a hospitalidade e o informa sobre
o que sofre com os desmandos do palaacutecio como as coisas estatildeo ocorrendo na cidade e diz que
acredita no retorno de Odisseu
Canto XV - Neste canto ocorre o retorno de Telecircmaco O priacutencipe permanecia ainda no reino
de Menelau mas em sonho Atena exorta-o retornar para Iacutetaca indicando-lhe o que fazer
para evitar a emboscada armada pelos pretendentes Presenteado por Menelau Telecircmaco
parte Em Iacutetaca vai direto para a casa de Eumeu
Canto XVI ndash Na casa de Eumeu Telecircmaco orienta o porqueiro para que avise a sua matildee do
seu retorno Odisseu e Tlecircmaco por obra de Atena se reconhecem e tramam a vinganccedila dos
pretendentes Eumeu retorna do palaacutecio apoacutes dar a notiacutecia a Peneacutelope do retorno do seu filho
Canto XVII - Odisseu vai com Eumeu para o seu palaacutecio enquanto Telecircmaco conta agrave matildee o
que ocorreu em sua viagem No paacutetio do palaacutecio Argos o velho catildeo de Odisseu reconhece-o
apoacutes os vinte anos decorridos e morre O rei disfarccedilado em mendigo eacute insultado por
Antiacutenoo um dos pretendentes
Canto XVIII - A fim de satisfazer os pretendentes Odisseu luta com Ino um mendigo no
palaacutecio Peneacutelope recrimina o tratamento dado ao estrangeiro questiona a Telecircmaco a falta de
firmeza diante daquela injusticcedila Odisseu como hoacutespede por decisatildeo de Peneacutelope fica esta
noite na sala da casa Todos vatildeo dormir depois de beberem e comerem
35
Canto XIX - Odisseu diz a Peneacutelope ser de Creta e garante que seu esposo iraacute voltar
Peneacutelope muito astuta natildeo acredita na histoacuteria criada e questiona Ele responde corretamente
mas ela natildeo acredita que o Rei regressaraacute Manda que as criadas sirvam bem o hoacutespede A
ama Euricleacuteia lava seus peacutes e o reconhece por uma antiga cicatriz Diante das evidecircncias o
heroacutei confirma a descoberta mas diz para que ela natildeo o revele
Canto XX - Os pretendentes novamente reuacutenem-se em banquete Odisseu pede a Zeus que
de sua casa surja algueacutem para ajudar-lhe na vinganccedila como um sinal de que sairia vitorioso
Zeus faz trovejar e aparece uma criada que lhe conta o pressaacutegio Pede ainda que Zeus
sinalize se aquele eacute o uacuteltimo dia de gozo dos pretendentes em seu palaacutecio Mais uma vez
Zeus faz trovejar Odisseu alegra-se e vai conversar com Eumeu e Fileacutecio Os pretendentes
banqueteiam-se
Canto XXI - Atena instiga no coraccedilatildeo de Peneacutelope uma atitude para pocircr fim agravequela indecisatildeo
e agraves regalias dos pretendentes os quais vinham a sua casa banquetear-se desrespeitando os
dons da hospitalidade Entatildeo ela corre pega o arco de Odisseu e diz que casaraacute com aquele
que o envergar retesar a corda e remessar a seta pelos doze orifiacutecios Os pretendentes vatildeo
tentando inutilmente Eacute a vez de Odisseu ainda como mendigo Todos desacreditam mas eis
que ele cumpre o indicado e triunfa sobre todos
Canto XXII ndash Odisseu revela-se como o senhor de Iacutetaca e inicia a chacina dos pretendentes
Atena estaacute presente em seu auxiacutelio Melacircntio aparece com armas e escudos Odisseu abalado
diz a Telecircmaco que algueacutem os traiu O priacutencipe revela ser o culpado em deixar a porta aberta
e manda fechar a porta Telecircmaco e os fieacuteis serventes Eumeu e Fileacutecio partem para vingar-se
dos serviccedilais e de Melacircntio O aedo e o arauto satildeo poupados da chacina
Canto XXIII ndash Euricleacuteia apoacutes a chacina avisa a Peneacutelope que seu esposo chegara e havia se
vingado dos pretendentes Desconfiada diz que a ama enlouqueceu Mas quis ver a chacina e
quem a realizou De frente para Odisseu permaneceu descrente Telecircmaco acusa a matildee de
frieza mas Odisseu o conteacutem Ela soacute acredita no retorno do esposo quando ele diz como foi
quem construiu o leito do casal Ela entatildeo abraccedila-o saudando seu regresso
Canto XXIV - As almas dos pretendentes satildeo guiadas por Hermes ateacute o Hades Odisseu vai
ateacute seu pai Laertes que demora a acreditar em seu retorno e pede um sinal Odisseu mostra a
36
cicatriz nomeia e quantifica cada fruteira do pomar O pai convencido fraqueja os joelhos e
vai em laacutegrimas abraccedilar o filho Nem tudo estaacute apaziguado pois as famiacutelias dos
pretendentes mortos realizam uma revolta Atena interveacutem para que a ordem seja instaurada
Objetivando comentar acerca da estrutura da Odisseacuteia vimos primeiramente os
periacuteodos da literatura grega com sua duraccedilatildeo e especificidade Depois a fim que pudeacutessemos
melhor explicar a significaccedilatildeo da epopeacuteia claacutessica remetemos nosso estudo para a etimologia
de epopeacuteia do grego epopoiia e sua significaccedilatildeo Passamos entatildeo para as ponderaccedilotildees de
Aristoacuteteles sobre a estrutura da epopeacuteia seu objeto de imitaccedilatildeo duraccedilatildeo suas semelhanccedilas e
diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave trageacutedia a fim de compreendermos agrave luz da Poeacutetica as
peculiaridades do gecircnero eacutepico A invocaccedilatildeo a proposiccedilatildeo e a narraccedilatildeo as trecircs partes
estruturais da eacutepica tambeacutem foram referidas por noacutes neste toacutepico e que foram
exemplificados na Odisseacuteia Apoacutes identificar os cantos e versos em que cada parte se realiza
fizemos uma siacutentese de cada Canto Este uacuteltimo processo foi importante para que pudeacutessemos
destacar os episoacutedios narrados ao longo dessa epopeacuteia como tambeacutem para situar o nosso
objeto de pesquisa o Canto XI da Odisseacuteia dentro da obra e do processo sequencial dos
acontecimentos que nele se inserem Por meio dessas etapas constitutivas e construtivas do
presente trabalho acreditamos ter realizado uma apresentaccedilatildeo geral sobre a obra na qual se
insere o nosso corpus
122 Odisseu o heroacutei multifacetado
Antes de inciarmos nossa discussatildeo sobre o multifacetado Odisseu pretendemos
expor brevemente sobre heroacutei e sua significaccedilatildeo no mundo claacutessico Buscando as definiccedilotildees
do Le Grand Bailly (2000) deparamo-nos com a seguinte traduccedilatildeo para hAgraverwj maicirctre chef
noble e completa ―de tout homme noble par la naissance le courage ou le talent (BAILLY
2000 p 909) ou seja o senhor o chefe o nobre e ―todo homem de descendecircncia nobre de
coragem ou de talento Liddell amp Scottlsquos em A Greek-English lexicon (1996) datildeo-nos a
traduccedilatildeo primaacuteria hero (heroacutei) e exemplificam que ―in Homer not restricted to warriors but
applied to all free men of that age as to minstrel the herald (LIDDEL amp SCOTT 1996 p
309) Quer dizer ―em Homero natildeo se restringe apenas aos guerreiros mas se aplica a todo
37
homem livre daquela eacutepoca o menestrel o arauto (Ibidem) Vale ressaltar que essas
definiccedilotildees dos dicionaacuterios baseiam-se na vasta literatura do mundo claacutessico grego a fim de
tentar defini-lo
Para compreendermos melhor a significaccedilatildeo do heroacutei claacutessico veremos tambeacutem
os posicionamentos de Hesiacuteodo e Aristoacuteteles No mito das cinco raccedilas presente em Os
trabalhos e os dias Hesiacuteodo enumera a existecircncia de cinco raccedilas humanas A Raccedila de Ouro a
Raccedila de Prata a Raccedila de Bronze a Raccedila dos Heroacuteis e a Raccedila de Ferro Como vemos as raccedilas
satildeo nomeadas a partir do valor dos metais ouro prata bronze mas entre a de bronze e a de
ferro temos a dos heroacuteis Esta se encontra especificamente dos versos 156 ao 172 Hesiacuteodo a
define como a os hcedilmiqeoi (V 160) os semi-deuses dos oAtildelbioi hAgraverwej (V 172) os heroacuteis
venturosos Uma raccedila criada por Zeus mais justa mais corajosa e de descendecircncia divina dos
que atuaram em Tebas levando muitos agrave morte e outros em Troacuteia por causa de Helena
Diante disso ao morrerem os heroacuteis satildeo levados por ZeuUumlj Kronidhj (V 168) o Zeus
Cronida para a Ilha dos Bem-Aventurados
Aristoacuteteles na Poeacutetica em 1453a define os heroacuteis como seres de situaccedilatildeo
intermediaacuteria pelo fato de que nem satildeo virtuosos nem justos em demasia como tambeacutem natildeo
satildeo tatildeo maldosos aleacutem de pertencerem ao grupo dos que gozam de prestiacutegio e poder e que
satildeo superiores aos homens Por isso seriam os personagens ideais da trageacutedia mesmo porque
as falhas que cometem satildeo muito mais por consequecircncia de um erro do que por falha de
caraacuteter Assim o erro dos heroacuteis conforme preconiza Aristoacuteteles eacute proveniente da accedilatildeo e
natildeo do caraacuteter do personagem Aleacutem do mais o fato de ter prestiacutegio perante a sociedade
tambeacutem facilita a realizaccedilatildeo da empatia do puacuteblico para com o personagem traacutegico e
consequentemente a efetivaccedilatildeo da katarsij16
Odisseu como heroacutei possui os elementos descritos anteriormente Assim como eacute
mostrado no Le Grand Bailly (2000) eacute de descendecircncia nobre um homem de coragem jaacute
segundo Liddlel amp Scott (1996) ele eacute tanto o guerreiro como tambeacutem o aedo basta-nos
lembrar dos Cantos VIII IX X XI e XII da Odisseacuteia quando o heroacutei relata todos os
acontecimentos pelos quais passou ateacute o presente momento Como pressupotildee Hesiacuteodo ele eacute
da raccedila dos heroacuteis que atuou em Troacuteia portanto eacute justo e corajoso de descendecircncia divina
Vale lembrar que Odisseu filho de Laertes eacute descendente da raccedila de Deucaliatildeo e este por
sua vez do titatilde Prometeu Vejamos abaixo a genealogia de Odisseu
16
Esse termo aristoteacutelico seraacute melhor discutido por noacutes no segundo e terceiro capiacutetulos quando detivermos a
nossa anaacutelise para a conceituaccedilatildeo e anaacutelise do traacutegico
38
Prometeu ~ Cliacutemene
darr
Deucaliatildeo ~ Pirra
darr
Deacuteion ~ Diomedes
darr
Ceacutefalo Hermes ~ Quiacuteone
darr darr
Arciacutesio ~ Calcomedusa Autoacutelico ~ Antiacutefea
Laertes ~ Anticleacuteia
darr
Odisseu ~ Peneacutelope
darr
Telecircmaco
Aleacutem disso como pressupotildee Aristoacuteteles Odisseu possui como todo e qualquer
heroacutei prestiacutegio e poder e seu caraacuteter nem eacute tatildeo virtuoso nem tatildeo maleacutefico Deste modo apoacutes
esta breve elucidaccedilatildeo a respeito do heroacutei grego entendemos que natildeo eacute aleatoacuterio o fato de
Odisseu ser o personagem principal e por isso mesmo seu nome daacute o tiacutetulo de uma das mais
importantes obras do ocidente a Odisseacuteia Esta como jaacute dissemos propotildee cantar os seus
feitos desde que partiu de Troacuteia ateacute seu tatildeo pretendido retorno ao lar Por tudo isso Odisseu
eacute um dos maiores e mais completos siacutembolos do heroiacutesmo claacutessico ndash eacute piedoso astuto viril
Aleacutem de assumir as funccedilotildees do heroacutei indo-europeu sacerdotal empreendedor e guerreiro
prescritas por Dumeacutezil em Mythe et Epopee (1995) Natildeo iremos nos alongar nestas
ponderaccedilotildees mas a seguir comentaremos brevemente acerca das identificaccedilotildees de Odisseu
com essas funccedilotildees
A primeira funccedilatildeo a sacerdotal realiza-se a partir do caraacuteter piedoso e temente
aos deuses de Odisseu Para exemplificar eacute soacute nos remetermos ao Canto XII ao contraacuterio dos
seus companheiros Odisseu natildeo se alimenta dos bois do Sol Por saber que tal ato ofende uma
divindade ele evita a imprudecircncia da desonra jaacute seus companheiros cometem a cediluagravebrij e por
isso todos eles seratildeo punidos por Zeus
A segunda a de empreendedor daacute-se atraveacutes de seu empreendedorismo de
fundador e solidificador de cidades fato que pode ser observado ateacute mesmo pela busca da
gloacuteria domeacutestica e natildeo em campo de batalha Lembremos inclusive que Odisseu prefere a
39
mortalidade agrave imortalidade bem como renega a eterna juventude oferecida por Calipso para
regressar a Iacutetaca
A terceira funccedilatildeo do indo-europeu a de guerreiro pode ser vista mais
explicitamente no Canto XXII entre os versos 401 a 406 quando Odisseu realiza a chacina
dos pretendentes e eacute comparado a um leatildeo ensanguentado em meio a suas viacutetimas Estas
compotildeem um nuacutemero de cento e dezesseis jaacute contando com os pretendentes e os servos
Vejamos a referida passagem
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν17
(Odisseacuteia XXII 401- 406)
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
manchado de sangue e impureza Do mesmo modo que um leatildeo
apoacutes devorar um boi do campo vai embora
Todo o seu peito e as mandiacutebulas de ambos os lados tinha ensanguumlentados
Assim terriacutevel nas faces era de se ver
Deste modo Odisseu em cima tinha manchados as matildeos e os peacutes
Como jaacute antecipamos em toacutepico anterior a Iliacuteada e Odisseacuteia diferem em alguns
aspectos e um deles eacute a caracterizaccedilatildeo do heroacutei Uma diferenccedila baacutesica eacute que a gloacuteria de
Odisseu natildeo se relaciona agrave morte no campo de batalha Jaacute para Aquiles a kaloj qanatoj
a bela morte deve ser imprescindivelmente conquistada em campo de batalha pois de outra
maneira o heroacutei natildeo alcanccedilaria a gloacuteria eterna Deste modo para conseguir a pretendida
gloacuteria Aquiles natildeo pode voltar a seu lar jaacute Odisseu tem de voltar por isso Vernant diz que
ele eacute ―o homem da relembranccedila disposto a aceitar todas as provas e todos os sofrimentos para
cumprir seu destino () voltar e encontrar-se consigo mesmo (VERNANT 2000 p 36)
Assim eacute o ―heroacutei do retorno (Ibidem)
Na Iliacuteada por exemplo por mais que saibamos que o heroacutei principal cantado seja
Aquiles este em muitos momentos divide seu posto com outros heroacuteis os quais inclusive
tecircm um momento especiacutefico soacute para serem cantados Deste modo no Canto V temos a aristia
de Diomedes no VII o combate singular entre Heitor e Aacutejax no XI a aristia de Agamecircmnon
17
Texto retirado em 30 de abril de 2010 agraves 1024hs de httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html
40
no Canto XVI os feitos gloriosos de Paacutetroclo e no XVII a aristia de Menelau entre outros
Como se pode ver cantos seratildeo dedicados agrave exaltaccedilatildeo de outros heroacuteis e dos seus feitos
proporcionando uma descentralizaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave figura do heroacutei maior Aquiles
Na Odisseacuteia ao contraacuterio temos uma centralizaccedilatildeo do siacutembolo heroacuteico a partir de
Odisseu Este conduz o percurso de quase todos os cantos como eixo de glorificaccedilotildees salvo
em alguns momentos em que se daacute espaccedilo para Telecircmaco a chamada Telemaquia (nos
Cantos I ao IV) mas esta natildeo proporciona uma descentralizaccedilatildeo e sim uma acentuaccedilatildeo da
centralizaccedilatildeo visto que eacute a saga do filho de Odisseu assim constitui o siacutembolo da
descendecircncia heroacuteica18
Siacutembolo de piedade de prudecircncia e de respeito ao pudor (aidwj) Odisseu
sempre honra as divindades e esse eacute o argumento utilizado por Atena para Zeus ao pedir que
Odisseu possa regressar ao lar No Canto XXII entre os versos 401 a 416 apoacutes ter matado os
pretendentes e encontrar-se ensanguentado em meio a todos eles Odisseu encontra a ama
Euricleacuteia e esta regozijando-se de alegria eacute contida pelo heroacutei Observemos a accedilatildeo do
prudente Odisseu
εὗρεν ἔπειτ᾽ Ὀδυσῆα μετὰ κταμένοισι νέκυσσιν
αἵματι καὶ λύθρωι πεπαλαγμένον ὥστε λέοντα
ὅς ῥά τε βεβρωκὼς βοὸς ἔρχεται ἀγραύλοιο
πᾶν δ᾽ ἄρα οἱ στῆθός τε παρήϊά τ᾽ ἀμφοτέρωθεν
405 αἱματόεντα πέλει δεινὸς δ᾽ εἰς ὦπα ἰδέσθαι
ὣς Ὀδυσεὺς πεπάλακτο πόδας καὶ χεῖρας ὕπερθεν
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
410 καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
415 οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον19 (Odisseacuteia XXII 401- 416)
18
Ver quadro genealoacutegico na paacutegina 40 19
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html agraves 1500hs de 15 de julho de
2010
41
Entatildeo encontrou Odisseu junto aos cadaacuteveres que havia matado
Tendo sido manchado com sangue e impureza Do mesmo modo
que um leatildeo apoacutes devorar um boi do campo que em consequumlecircncia
possui todo o peito e as mandiacutebulas ensanguumlentadas dos dois lados
assim ele se encontra e faz-se ver em direccedilatildeo ao terror
Deste modo as matildeos e os peacutes de Odisseu estavam em cima manchados
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Junito Brandatildeo em Introduccedilatildeo ao mito dos heroacuteis (1998) relata sobre a origem
do termo grego hAgraverwj que teria sido oriunda da forma do indo-europeu serva relacionada
tambeacutem ao termo latino seruuare daiacute o fato de a palavra heroacutei significar aquele que nasceu
para servir Odisseu cumpre bem esta tarefa de servidor de uma naccedilatildeo haja vista seu
importante papel na Guerra de Troacuteia participando da embaixada a Aquiles idealizando o
Cavalo de Troacuteia e em seu retorno a Iacutetaca estabelecendo a paz e a ordem junto com Atena
em sua paacutetria
Ainda segundo Junito o heroacutei tem que enfrentar dificuldades em sua trajetoacuteria
como tambeacutem em seu nascimento ser filho de mortal com imortal ter educaccedilatildeo diferenciada
dos demais e passar pelos ritos de formaccedilatildeo iniciaacutetica e de passagem No primeiro rito o
heroacutei ausenta-se do pai eou da paacutetria como faz Telecircmaco no Canto I da Odisseacuteia que em
busca do seu pai teve que sair de Iacutetaca sua paacutetria no segundo o heroacutei realiza seu momento
de transiccedilatildeo com algum grande feito como descer ao Hades desvendar a saiacuteda de um
labirinto entre tantos outros Na Odisseacuteia por exemplo o rito de passagem do Laertida eacute
realizado no Canto XI apoacutes realizar a nemacrkuia20 e vecirc-se devidamente pronto e experimentado
para saber como fazer e como deve agir para retornar a seu tatildeo pretendido lar
No geral como explica-nos Brandatildeo o heroacutei eacute representado belo mas sempre tecircm
algumas deficiecircncias fiacutesicas como o gigantismo em excesso a exemplo de Heacuteracles ou
estatura baixa demais como eacute o caso de Odisseu Sobre este fato Charles Beye comenta ―a
20
Em grego nemacrkuia indica o ritual de sacrifiacutecio feito aos mortos
42
definiccedilatildeo tradicional de heroacutei pressupotildee em geral beleza fiacutesica e forccedila O Odisseu pode ter
sido forte mas parece que natildeo foi nenhum modelo de beleza (BEYE 2006 p 58)
Ateacute o momento discutimos caracteriacutesticas gerais a respeito dos heroacuteis gregos
sejam atraveacutes das definiccedilotildees baacutesicas como a dos dicionaacuterios didaacuteticas como as de Hesiacuteodo
filosoacuteficas e literaacuterias como as de Aristoacuteteles sejam as analiacuteticas e teoacutericas como as de
Junito Neste percurso tentamos relacionar as caracteriacutesticas citadas de heroiacutesmo ao
personagem maior da Odisseacuteia
Neste instante partiremos para uma anaacutelise mais especiacutefica do perfil de Odisseu
representado na Odisseacuteia Para tanto escolhemos os cinco primeiros versos do seu proecircmio21
e dois dos epiacutetetos de Odisseu polutropoj e polumhtij Esta delimitaccedilatildeo faz-se
relevante para que possamos abarcar da melhor maneira possiacutevel o objeto em questatildeo
Como sabemos os epiacutetetos satildeo recursos comuns na literatura grega em geral
principalmente na arcaica por sua ligaccedilatildeo com a oralidade Deste caraacuteter oral proveacutem a
importacircncia da utilizaccedilatildeo de alguns recursos como por exemplo o dos epiacutetetos as repeticcedilotildees
num processo mnemocircnico Diante deste fato Junito Brandatildeo (1998) informa-nos a partir dos
dados colhidos por Lloyd-Jones que na eacutepica homeacuterica haacute ao todo vinte e oito mil versos e
vinte e cinco mil frases pequenas ou longas repetidas Os epiacutetetos tambeacutem fazem parte destes
recursos mnemocircnicos por isso Junito cita a pesquisa realizada por Joseacute Marques Leite a qual
atesta a existecircncia de quatro mil quinhentos e sessenta epiacutetetos utilizados nos seus dois
poemas
Desta maneira importante natildeo apenas como recurso literaacuterio como tambeacutem
mnemocircnico Homero utiliza-se aleacutem da representaccedilatildeo pela accedilatildeo dos epiacutetetos para simbolizar
os atributos heroacuteicos de Odisseu ilustrando as caracteriacutesticas especiacuteficas do heroacutei
Selecionamos o proecircmio e os dois epiacutetetos jaacute citados para que a partir deles possamos
revelar os elementos qualitativos que constituem a formaccedilatildeo do Odisseu Ateacute porque assim
como passa vinte anos distante de sua paacutetria seu nome natildeo consta nos vinte primeiros versos
sendo entatildeo sua referecircncia realizada pela citaccedilatildeo de seus feitos e pelo epiacuteteto polutropoj
Observemos os cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia
21 Haacute um estudo interessante sobre o proecircmio da Odisseacuteia e que nos auxiliou na construccedilatildeo deste trabalho Este
eacute intitulado ―Polluacute Pollaacute Pollocircn Multiplicidade no proecircmio da Odisseacuteia de Andreacute Malta (USP) e estaacute
disponiacutevel em httpwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S0328-12052007000100004
43
Ἄλδξα κνη ἔλλεπε κνῦζα πολύτροπον ὃο κάια πολλὰ
πιάγρζε ἐπεὶ Τξνίεο ἱεξὸλ πηνιίεζξνλ ἔπεξζελ
πολλῶν δ᾽ ἀλζξώπσλ ἴδελ ἄζηεα θαὶ λόνλ ἔγλσ
πολλὰ δ᾽ ὅ γ᾽ ἐλ πόληση πάζελ ἄιγεα ὃλ θαηὰ ζπκόλ
5 ἀξλύκελνο ἥλ ηε ςπρὴλ θαὶ λόζηνλ ἑηαίξσλ22
Musa conta-me sobre o heroacutei de muitas voltas que muito
errou depois que saqueou a sagrada cidade de Troacuteia
Viu as cidades de muitos homens e conheceu sua mente
no mar padeceu muitos sofrimentos de encontro ao seu acircnimo
esforccedilando-se por sua alma e pelo regresso dos companheiros
Como vemos o primeiro epiacuteteto utilizado para Odisseu eacute o de polutropoj para
o qual Bailly daacute a traduccedilatildeo ―qui se tourne en beaucoup de sens (BAILLY 2000 p 1601) ou
seja o que se volta em muitos sentidos ou versatile astuto versaacutetil astuto como traduz
Romizi (2007) Mas estudando a formaccedilatildeo deste epiacuteteto polutropoj observamos que ele eacute
feito pela junccedilatildeo de polu expressatildeo adjetiva de quantidade intensificadora que significa
muito mais o substantivo masculino tropoj que significa modo maneira atitude direccedilatildeo
Este substantivo por sua vez eacute originado do verbo trepw voltar tornar dirigir Esta
retomada ao verbo que origina o epiacuteteto muito nos esclarece visto que Odisseu anda por
muitos lugares e volta para os mesmos Por exemplo Oisseu sai da Ilha de Circe no Canto X
e volta no Canto XI depois de ter estado na entrada do Hades
Ao mesmo tempo aleacutem do sentido fiacutesico este epiacuteteto tambeacutem nos revela o poder
de arguiccedilatildeo de habilidade com o pensamento Este epiacuteteto talvez seja o mais representativo
de Odisseu que como sabemos eacute o heroacutei do regresso da volta agrave paacutetria sem falar que seus
discursos tambeacutem satildeo cheios de contornos No Canto IX com Polifemo ele diz chamar-se
oucurrentij Ningueacutem no verso 366 mas jaacute no verso 455 diz chamar-se Odisseu revelando seu
verdadeiro nome assim ele vai e volta em seu discurso Seria entatildeo polutropoj o de
muitas voltas de muitos contornos de muitas maneiras intensificando o caraacuteter maleaacutevel e
multiforme de Odisseu de adaptar-se agraves circunstacircncias para no final sair vencedor Assim
ele se esconde como o rebanho de Polifemo eacute o amante de Circe o amante de Calipso o
mendigo de Iacutetaca o navegante o hoacutespede isto eacute muitas figuras para o mesmo heroacutei que com
todas elas tem a vitoacuteria como uacutenico objetivo A exposiccedilatildeo semacircntica do termo polutropoj
nem sempre fica clara nas traduccedilotildees o que afeta o sentido tatildeo necessaacuterio para uma
compreensatildeo do heroacutei e da obra como um todo vejamos algumas exemplificaccedilotildees
22
Os destaques satildeo nossos Texto retirado agraves 2107hs de 27 de abril de 2010 do site
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od01html
44
Musa reconta-me os feitos do heroacutei astucioso que muito
peregrinou decircs que esfez as muralhas sagradas de Troacuteia
muitas cidades dos homens viajou conheceu seus costumes
como no mar padeceu sofrimentos inuacutemeros na alma
para que a vida salvasse e de seus companheiros a volta
(NUNES 2009 p 28)
Oacute Musa fala-me do solerte varatildeo que depois de ter destruiacutedo a cidade
sagrada de Troacuteia andou errante por muitas terras viu as cidades de
numerosas gentes e conheceu-lhes os costumes e por sobre o mar sofreu
no seu coraccedilatildeo afliccedilotildees sem conta no intento de salvar a sua vida e de
conseguir o regresso dos companheiros
(PALMEIRA amp CORREIA 1980 p 1)
Clsquoest llsquoHomme aux mille tours Muse qulsquoil faut me
dire Celui tant erra quand de Troade il eut pilleacute la
ville sainte Celui qui visita les citeacutes de tant dlsquohommes
et connut leur esprit Celui qui sur ler mers passa par
tant dlsquoangoisses en luttant pour survivre et ramener ses gens23
(BEacuteRARD 2009 p1)
Como vemos as traduccedilotildees do termo polutropoj natildeo datildeo conta do seu potencial
semacircntico principalmente porque os autores deixam de traduzir o seu qualificador e
acentuador polu A exceccedilatildeo fica para a traduccedilatildeo de Beacuterard que usa a expressatildeo ―mille
tours ou seja ―mil voltas Ainda assim o numeral ―mil natildeo exatamente reflete a expressatildeo
grega jaacute que esta natildeo eacute quantificada pois se traduz como ―muitos ―indeterminadamente
Esquecer ou ignorar a traduccedilatildeo de polu natildeo eacute adequado mesmo porque se o quisesse
Homero poderia deixaacute-lo impliacutecito ou natildeo o ter utilizado mas se o fez eacute porque considera
importante ser dada a ecircnfase ao substantivo tropoj
Ao longo dos cinco primeiros versos deste proecircmio vemos a repeticcedilatildeo dos
intensificadores pollaUuml pollwordfn pollaUuml fora o polu de polutropoj que jaacute foi
estudado por noacutes O primeiro termo um adveacuterbio pollaUuml refere-se agrave plagxqh indicando
aquele que muito vagou errou O segundo pollwordfn relaciona-se a a)nqrwpwn para
expressar que ele andou por cidades de muitos homens E o terceiro pollaUuml direciona-se
23
Traduccedilatildeo
Eacute o homem de mil voltas Musa que eacute preciso me dizer
Este que tanto vagou errante quando da Trocircade tinha saqueado
a cidade santa este que visitou as cidades de tantos homens
e conheceu seu espiacuterito Este que sobre os mares passou por
tantas anguacutestias lutando para sobreviver e o seu povo fazer retornar
45
para especificar aAtildelgea ou seja as muitas dores sofrimentos pelos quais passou no mar
buscando os seus retornos e o dos seus companheiros Essa sequecircncia de intensificadores
logo ao iniacutecio do proecircmio apesar de breve eacute uma boa representaccedilatildeo da multiplicidade
representada ao longo da Odisseacuteia epopeacuteia em que tudo eacute grandioso excessivo sejam os
feitos do heroacutei os locais pelos quais ele passa sejam tambeacutem suas dores Sem falar no seu
poder ilustrado pelo primeiro epiacuteteto polutropoj que exprime sua capacidade de muitas
voltas o multiforme ou pelo sentido concreto ou abstrato
Outro epiacuteteto bastante relevante eacute o de polumhtij pois aleacutem de configurar a
persona de Odisseu acentua essa qualificaccedilatildeo jaacute que eacute caracteriacutestico de outros personagens e
evoca nomes importantes como os de Zeus e Atena Deste modo Hesiacuteodo no verso 457 de
Teogonia (2009) define o pai dos deuses e dos homens como o Zhordfna te mhtioenta ou
seja Zeus astuto saacutebio sagaz Ainda na Teogonia (2009) Hesiacuteodo conta-nos dos versos 881
ateacute o 900 que Zeus aconselhado por Terra engole Meacutetis sua primeira esposa ainda graacutevida
de Atena para que seus filhos natildeo o destronassem Desta forma com a prudecircncia dentro de si
Zeus torna-se ainda mais poderoso Atena sendo filha de Meacutetis tambeacutem tem a caracteriacutestica
da prudecircncia aleacutem de que o proacuteprio Hesiacuteodo (2009) sempre a compara a seu pai tanto em
poder quanto em prudecircncia24
Segundo Otto (2005) no hino homeacuterico agrave Atena Meacutetis a
chama de polumhtij Sem falar que no Canto XIII verso 297 da Odisseacuteia a proacutepria Atena
compara-se a Odisseu Isto ocorre quando ela se revela para o heroacutei e diz que ele eacute um exiacutemio
astucioso muito sagaz que consegue tudo o que almeja Na formaccedilatildeo desse epiacuteteto temos o
intensificador polu muito e o substantivo mhordftij que significa prudecircncia sagacidade
Assim o epiacuteteto polumhtij que evoca e relaciona Odisseu a Zeus e a Atena significa o de
muita prudecircncia muita sagacidade E sabemos que ambos os deuses protegem Odisseu em
sua erracircncia ateacute retornar agrave paacutetria
Esse epiacuteteto eacute importante pois aleacutem de relacionar Odisseu agraves caracteriacutesticas de
Zeus relaciona-o tambeacutem ao de sua proacutepria deusa-guia Atena Esta eacute a deusa que acompanha
Odisseu como tambeacutem seu filho Telecircmaco em toda a sua jornada Telecircmaco Atena auxilia
no rito de iniciaccedilatildeo heroacuteica e Odisseu em sua longa jornada em busca da gloacuteria domeacutestica25
Na proacutepria Iliacuteada (2009) ela jaacute acompanha Odisseu em sua empreitada noturna com
24
Versos 892 e 898 da Teogonia 25
A gloacuteria que Odisseu busca eacute a domiciliar ateacute porque a kleoj aOacutefqiton gloacuteria impereciacutevel ele jaacute havia
conquistado ainda em vida Uma prova disso eacute que no Canto VIII da Odisseacuteia entre os versos 499-531
Demoacutedoco canta a construccedilatildeo do cavalo de madeira idealizado por Odisseu E o Laertida vai agraves laacutegrimas tendo
percebido que se tornara mito ainda em vida
46
Diomedes no Canto X ajudando-os a matar os inimigos e a voltar com seguranccedila para o
acampamento Sob essa proteccedilatildeo divina Odisseu cumpre sua jornada retorna ao seu lar apoacutes
vinte anos realiza a chacina dos pretendentes e instaura a paz em Iacutetaca
Por tudo isso que foi explicitado acerca deste multiforme heroacutei eacute que ―()
Odisseu era o modelo supremo para o homem do mundo antigo (BEYE 2006 p 206) aleacutem
de ser apontado como ―o heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade (GRIMAL 2005 p 458)
A fim de mostrar a importacircncia deste heroacutei trabalhamos neste toacutepico com dois aspectos
centrais no primeiro fizemos elucidaccedilotildees a respeito da definiccedilatildeo e caracterizaccedilatildeo do heroacutei
sua funccedilatildeo no mundo grego a partir dos estudos de Hesiacuteodo em Teogonia (2009) e Os
trabalhos e os dias (2008) Aristoacuteteles na Poeacutetica Dumegravezil (1995) Junito Brandatildeo (1995)
No segundo fizemos um breve estudo dos cinco primeiros versos do proecircmio da Odisseacuteia e
de dois importantes e ilustrativos epiacutetetos de Odisseu o polumhtij e o polutropoj Tudo
isso para poder mostrar a relevacircncia heroacuteica que este personagem tem natildeo soacute na epopeacuteia que
o retrata mas em toda a representatividade da literatura claacutessica
47
2 O TRAacuteGICO - ASPECTOS TEOacuteRICOS E CONCEITUAIS
21 Uma breve consideraccedilatildeo sobre o nosso estudo do Traacutegico
Antes de iniciarmos nossas ponderaccedilotildees teoacutericas e conceituais a respeito do
traacutegico consideramos importante elucidar que iremos fundamentar nossas discussotildees a partir
dos preceitos aristoteacutelicos do traacutegico presentes na Poeacutetica Contudo reconhecemos que este
autor assim como diz-nos Albin Lesky (1996) natildeo nos deixou tatildeo claro esses aspectos
Vejamos
Haacute algo sem duacutevida que podemos afirmar com inteira seguranccedila os gregos
criaram a grande arte traacutegica e com isso realizaram uma das maiores
faccedilanhas do campo do espiacuterito mas natildeo desenvolveram nenhuma teoria do
traacutegico que tentasse ir aleacutem da plasmaccedilatildeo deste no drama e chegasse a
envolver a concepccedilatildeo do mundo como um todo (LESKY 1996 p 21)
Lesky coloca-nos a exposiccedilatildeo de maneira clara foram os gregos que nos legaram
o traacutegico legado esse importantiacutessimo todavia natildeo deixaram para posteridade o
desenvolvimento e a interpretaccedilatildeo desse traacutegico ou seja nenhuma ―teoria do traacutegico Apesar
de que ele proacuteprio ao longo de A trageacutedia Grega (1996) percorre os elementos traacutegicos
presentes na Poeacutetica E para esclarecer esses aspectos que natildeo estatildeo desenvolvidos em
profundidade por Aristoacuteteles outros autores aleacutem do jaacute citado Albin Lesky tambeacutem se
dedicam ao desvendamento da significaccedilatildeo do traacutegico a citar Jean Pierre Vernant Pierre
Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo e Sandra Luna A seleccedilatildeo
destes autores realiza-se atraveacutes de criteacuterios que levam em consideraccedilatildeo a adequaccedilatildeo ao nosso
trabalho
Acreditamos ser importante fazer esta ressalva pois como se sabe muitos
trabalhos foram realizados sobre o traacutegico principalmente pelos filoacutesofos alematildees legando-
nos uma ―filosofia do traacutegico Esta foi realizada por autores como Schelling Houmllderlin
Hegel Solger Goethe Schopenhauuer Vischer Kierkegaard Hebbel Nietzscche Simmel e
Schiler Todos eles detiveram parte de seus estudos para entenderem a manifestaccedilatildeo do
traacutegico Reconhecemos as contribuiccedilotildees dadas por cada um mas no presente trabalho
delimitamos alguns autores por considerarmos mais adequados ao nosso objetivo central que
48
eacute analisar o traacutegico jaacute existente na eacutepica especificamente no Canto XI da Odisseacuteia a partir
dos encontros que Odisseu tem no Hades
Ao longo deste capiacutetulo desenvolveremos trecircs eixos do traacutegico que seratildeo
importantes para a compreensatildeo e embasamento de nossa anaacutelise ―O traacutegico e a trageacutedia ―O
traacutegico na Poeacuteticardquo e ―A busca do traacutegico - outras acepccedilotildees teoacutericas No primeiro
discorreremos sobre as diferenccedilas e especificidades da trageacutedia e do traacutegico no segundo
sobre os conceitos do traacutegico jaacute referidos por Aristoacuteteles na Poeacutetica interpretando-os a partir
da traduccedilatildeo de excertos extraiacutedos do original no terceiro iremos expor e discutir os estudos
de outros autores sobre o traacutegico claacutessico sempre observando sua aplicabilidade agrave nossa
anaacutelise central que seraacute desenvolvida especificamente no capiacutetulo subsequente
22 O traacutegico e a trageacutedia
No momento em que comeccedilamos a discutir sobre as questotildees da trageacutedia e do
traacutegico desde o iniacutecio nos eacute imposto mesmo que indiretamente o dilema da anterioridade de
um ou de outro Assim perguntamo-nos quem teria vindo primeiro A trageacutedia ou o traacutegico
Aparentemente eles satildeo indissociaacuteveis tornando difiacutecil definir quem veio primeiro e a
delimitaccedilatildeo onde um inicia e o outro termina Ateacute que ponto ser-nos-ia possiacutevel contemplar
traacutegico sem trageacutedia ou ainda mais trageacutedia claacutessica sem o traacutegico Diante destas
interrogativas jaacute adiantamos que a realizaccedilatildeo daquele (traacutegico sem trageacutedia) eacute viaacutevel ao
contraacuterio deste (trageacutedia claacutessica sem traacutegico) em que sua estrutura prescinde do elemento
traacutegico como jaacute bem nos disse Aristoacuteteles na Poeacutetica inclusive para a efetivaccedilatildeo da
kaqamacrrsij26
Para que possamos entender essa dita viabilidade de traacutegico sem trageacutedia e a
inviabilidade da trageacutedia claacutessica sem o traacutegico iremos discorrer sobre a origem a
conceituaccedilatildeo e a significaccedilatildeo que eles possuem dentro do contexto da literatura claacutessica
grega
A palavra tragikoj tem como sentido geral aquilo que concerne agrave trageacutedia ou
ateacute mesmo ao ator ou ao poeta traacutegico algo de natureza grave majestosa poeacutetica assim nos
26
Sabe-se que a respeito deste termo grego existem algumas discussotildees as quais seratildeo expostas no decorrer do
trabalho Por hora basta-nos compreender que este termo oriundo do verbo kaqairw tem como sentido
primaacuterio o significado meacutedico de purgaccedilatildeo aleacutem de ter uma acepccedilatildeo religiosa de purificaccedilatildeo
49
define A Bailly (2000) e Liddlel e Scott (1996) Mas a partir de uma perspectiva
etimoloacutegica indicada por Renato Romizi (2001) tragikoj com o radical de tragoj
(bode) e o sufixo adjetivo ikoj significa primordialmente o que eacute proacuteprio do bode ou
semelhante ao bode Contudo considerando as utilizaccedilotildees deste nome no cenaacuterio da literatura
grega claacutessica com o surgimento das trageacutedias tragikoj passa a significar tambeacutem o
traacutegico elemento proacuteprio da trageacutedia vista aqui como gecircnero literaacuterio e natildeo como
manifestaccedilatildeo de ritual religioso que inclusive deu origem a sua nomeaccedilatildeo Todavia
veremos estes aspectos mais agrave frente quando formos tratar especificamente da trageacutedia
Como vimos o aspecto etimoloacutegico natildeo nos esclarece por completo os enigmas
do traacutegico todavia jaacute nos daacute pistas de sua significaccedilatildeo e origem Podemos entender que o
tragikoj estaacute ligado ao siacutembolo do bode este que por sua vez passa a ser relacionado ao
gecircnero literaacuterio da trageacutedia (do grego tragwlaquodimacra ou seja canto do bode) E sendo o bode
siacutembolo do sacrifiacutecio realizado a Dioniso dentro de um ritual religioso importante
socialmente podemos entender porque ambos tanto o traacutegico quanto a trageacutedia estatildeo
envoltos em uma accedilatildeo grandiosa
Em nossa pesquisa bibliograacutefica os estudos sobre o traacutegico que encontramos estatildeo
dentro dos estudos da trageacutedia numa intriacutenseca relaccedilatildeo que tanto pode ser beneacutefica como
pode tambeacutem natildeo nos beneficiar por acreditarmos nem sempre ter sido assim O traacutegico
como desenvolveremos a seguir jaacute se manifestava socialmente entre os gregos e em suas artes
desde muito cedo ao contraacuterio da trageacutedia que soacute viria a existir a partir do seacuteculo V aC
Diante dos estudos a respeito do traacutegico claacutessico a que jaacute nos referimos
destacamos o trabalho realizado por Sandra Luna em Arqueologia da accedilatildeo traacutegica (2005)
Neste temos algumas consideraccedilotildees sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia o que
pode ser comprovado por estudos antropoloacutegicos verificando-se que ―natildeo surpreende o
adentramento precoce do traacutegico na tessitura das artes verbais (LUNA 2005 p 29) Um
exemplo bastante claro dessa preacute-existecircncia do traacutegico natildeo soacute na perspectiva social mas na
produccedilatildeo literaacuteria satildeo as epopeacuteias homeacutericas pois eacute fato que
() Homero convida-nos a ponderar gravemente sobre o traacutegico fim da
existecircncia humana Contudo a despeito do tratamento refinado de elementos
traacutegicos na eacutepica grega natildeo parece ser exatamente ―traacutegico o efeito
pretendido pelo poeta (Ibidem)
Assim apesar de o traacutegico como diz a autora natildeo ser objetivo de Homero eacute
inegaacutevel que nas duas primeiras obras de nossa literatura ocidental precursoras de tantas
50
categorias literaacuterias inaugura-se tambeacutem o traacutegico mesmo que ―a estrutura da accedilatildeo na
narrativa eacutepica dispersa o efeito traacutegico em favor de outros efeitos (LUNA 2005 p 30)
Compartilhamos com esse pensamento de que Homero realiza a dispersatildeo do traacutegico e isso
ele faz utilizando-se de recursos como a modificaccedilatildeo de uma cena traacutegica para outra sem
tragicidade diluindo a tragicidade da cena anterior Entre tantos exemplos desse fato
podemos citar o Canto XXIV no qual Priacuteamo natildeo soacute pede o resgate do corpo do seu filho
Heitor como tambeacutem beija a matildeo do assassino de seu filho Aquiles (v 506) Este concede o
pedido feito pelo rei dos troianos e convida-o para um banquete Vejamos
ἦ ῥα θαὶ ἐο θιηζίελ πάιηλ ἤτε δῖνο Ἀρηιιεύο
ἕδεην δ᾽ ἐλ θιηζκη πνιπδαηδάιση ἔλζελ ἀλέζηε
ηνίρνπ ηνῦ ἑηέξνπ πνηὶ δὲ Πξίακνλ θάην κῦζνλ
πἱὸο κὲλ δή ηνη ιέιπηαη γέξνλ ὡο ἐθέιεπεο
600 θεῖηαη δ᾽ ἐλ ιερέεζζ᾽ ἅκα δ᾽ ἠνῖ θαηλνκέλεθηλ
ὄςεαη αὐηὸο ἄγσλ λῦλ δὲ κλεζώκεζα δόξπνπ27
(Iliada XXIV 596-601)
Dizia e em seguida o divino Aquiles volta para o seu acampamento
sentou-se em seu alto trono e entatildeo fez-se ficar do
outro lado do muro diante de Priacuteamo a quem declarou o discurso
Velho como incitavas o seu filho foi libertado para ti
estaacute colocado em um atauacutede Que tu o revejas raiando a manhatilde
ao mesmo tempo conduzindo-o Mas nesse instante pensemos no banquete
Nesta cena e nas outras que a antecedem temos a realizaccedilatildeo do pedido de Priacuteamo
pelo resgate do filho morto e ultrajado Nesta passagem o aspecto comovente poderia
desencadear no traacutegico mas Homero natildeo a intensifica e sim atenuando a manifestaccedilatildeo do
sentimento traacutegico dirige a cena para uma celebraccedilatildeo simbolizada pelo banquete Segundo
informa-nos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) o banquete eacute um siacutembolo universal
que representa a alianccedila um rito comunial de participaccedilatildeo social envolta e direcionada a um
mesmo projeto geralmente festivo Reconhecemos tambeacutem que nem sempre o banquete
ocorre numa situaccedilatildeo comemorativa apesar de geralmente ser assim e a citaccedilatildeo acima eacute bem
ilustrativa disso Ainda que sejam inimigos Priacuteamo e Aquiles celebram um pacto de respeito
e natildeo uma festividade Mas de todo o modo tal conciliaccedilatildeo representada pelo siacutembolo do
banquete ameniza o conflito este que por sua vez atenua o traacutegico
Deste modo concordamos que o autor da Odisseacuteia ―natildeo alimenta o traacutegico
(Ibidem p 31) ateacute mesmo porque ―() mal comeccedilamos a experimentar a dor somos
27
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_il24html agraves 1018hs de 12 de julho de 2010
51
convidados a mais um dos banquetes de Homero () (LUNA 2005 p 34) Contudo aleacutem
de ser natural eacute bastante coerente da parte do Homero natildeo se aprofundar no efeito traacutegico
natildeo o objetivando pois ao inveacutes de ter produzido o gecircnero eacutepico ele teria legado-nos uma
incipiente trageacutedia Isso ocorre porque como sabemos o objetivo da eacutepica relaciona-se agrave
exaltaccedilatildeo dos grandes homens e de seus magnos feitos logo natildeo seria coerente Homero
direcionar-se unicamente ao traacutegico Tal fato seria uma relevante incongruecircncia estrutural
com o gecircnero eacutepico com o qual produziu duas notificadas obras que exaltaram as accedilotildees de
Aquiles e Odisseu respectivamente a partir da Iliacuteada e da Odisseacuteia
Todavia jaacute encontramos nas eacutepicas de Homero uma forte e inegaacutevel evidecircncia
traacutegica esta que se natildeo eacute objetivo deste poeta eacutepico seraacute das trageacutedias gregas produzidas
entre os seacuteculos V e IV aC Por isso os tragedioacutegrafos que iratildeo produziacute-las seratildeo bastante
influenciados pela produccedilatildeo homeacuterica inclusive aproveitam-se de certas passagens de teor
traacutegico natildeo desenvolvidas para construiacuterem suas peccedilas Eacute o que provavelmente ocorreu com
Aacutejax de Soacutefocles e com Agamecircmnon de Eacutesquilo que tecircm como prenuacutencios o Canto XI da
Odisseacuteia canto esse permeado de tragicidade Desta forma concordamos com o seguinte
posicionamento de Jacqueline de Romilly
Como quer que seja os autores das trageacutedias foram buscar o assunto das
suas obras agrave epopeacuteia E natildeo eacute duvidoso que ao mesmo tempo tenham ido
buscar a arte de construir personagens e cenas capazes de comover
Apresentar o sentimento da vida inspirar terror e piedade obrigar a partilhar
um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia fizera-o sempre e ensinou os
tragedioacutegrafos a fazecirc-lo Poderiacuteamos ainda dizer que se a festa criou o
gecircnero traacutegico foi a influecircncia da epopeacuteia que fez dele um gecircnero literaacuterio
(ROMILLY 2008 p 22)
Assim tendo jaacute nos inspirado o traacutegico Homero seraacute fundamental para os
tragedioacutegrafos pois ele consegue apresentar-nos a tragicidade em suas eacutepicas mesmo em
meio a tantos banquetes celebraccedilotildees e grandes feitos visto que ―A transfiguraccedilatildeo do traacutegico
contudo natildeo rasura completamente os momentos de intensa dramaticidade presente nas
epopeacuteias (Luna 2005 p 34) Diante dessa constataccedilatildeo do traacutegico em Homero reiteramos
que o traacutegico veio antes da trageacutedia natildeo soacute pela sua manifestaccedilatildeo social na vida humana mas
atraveacutes da proacutepria representaccedilatildeo literaacuteria como nos fica claro a partir das epopeacuteias
homeacutericas
Um elemento que nos propicia essa relaccedilatildeo do traacutegico nas eacutepicas vindo a
influenciar a produccedilatildeo das trageacutedias eacute a figura do heroacutei eacutepico pois muitos deles estatildeo fadados
52
a um final traacutegico e inclusive jaacute prenunciados por Homero Sobre este fato elucida-nos
Sandra Luna
() sobre o heroacutei eacutepico tambeacutem paira o terriacutevel horizonte da uacutenica certeza
humana ou seja ao final de sua trajetoacuteria para aleacutem de todas as honras das
quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute sempre suspensa sobre sua
cabeccedila ndash a proacutepria construccedilatildeo eacutepica se encarregou de evidenciar que o
desfecho da vida eacute irrevogavelmente traacutegico Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus
os mortais Com isso queremos dizer que das alturas do heroacutei eacutepico seraacute
sempre possiacutevel vislumbrar momentos de tragicidade (LUNA 2005 p 31)
Como vemos na proacutepria estrutura eacutepica de eixo celebrativo haacute um elemento
favorecedor para o surgimento do traacutegico o heroacutei Sobre este fato tambeacutem complementa
Vernant ―No novo quadro do jogo traacutegico portanto o heroacutei deixou de ser um modelo
tornou-se para si mesmo e para os outros um problema (VERNANT 2008 p 2) Esta
problemaacutetica em relaccedilatildeo agrave representatividade do heroacutei que seraacute distinta no gecircnero eacutepico do
traacutegico pode ser bem ilustrada nos encontros que Odisseu tem no Hades narrado por Homero
no Canto XI da Odisseacuteia com Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon e Aacutejax Tanto que no caso de
Agamecircmnon e Aacutejax temos duas trageacutedias para contar-nos o fim traacutegico desses heroacuteis A saga
de Agamecircmnon eacute contada por Eacutesquilo no primeiro livro da Oresteacuteia e Soacutefocles lega-nos a
peccedila que relata o descontrole e suiciacutedio de Aacutejax Estes dois destinos traacutegicos dos heroacuteis
gregos que antes brilharam nas eacutepicas como modelos principalmente em seus feitos narrados
na Iliacuteada jaacute satildeo prenunciados no Canto XI da Odisseacuteia como veremos detalhadamente no
proacuteximo capiacutetulo
Aleacutem dessa figura eacutepica que posteriormente figuraraacute nas trageacutedias haacute outros
elementos propiacutecios ao traacutegico jaacute presentes na epopeacuteia como nos alerta Aristoacuteteles e reforccedila-
nos Jacqueline de Romilly (2008) como por exemplo a accedilatildeo uacutenica28
os personagens nobres
e a base miacutetica do conteuacutedo desenvolvido No caso do mito destaca-nos Lesky (1995) que a
sua presenccedila evidencia-se natildeo apenas na eacutepica e na trageacutedia mas tambeacutem na liacuterica A
diferenccedila eacute que na primeira e na terceira o mito representa a simboacutelica origem e organizaccedilatildeo
do mundo diante de sua grandiosidade jaacute na trageacutedia o mito passa a ser traacutegico
Diante dos aspectos discutidos percebemos a anterioridade do traacutegico
principalmente no que concerne agraves epopeacuteias homeacutericas visto que nestas o traacutegico jaacute se efetiva
28
O proacuteprio Aristoacuteteles na Poeacutetica (1555b) diz-nos que a accedilatildeo das epopeacuteias transcorre a partir de um eixo
centralizador os demais satildeo episoacutedios Assim desenvolvidas em vinte e quatro cantos cada uma a Iliacuteada e a
Odisseacuteia possuem um argumento uacutenico a primeira a ira funesta de Aquiles a segunda o regresso de Odisseu a
Iacutetaca
53
como manifestaccedilatildeo literaacuteria Assim aleacutem de tantos outros elementos literaacuterios as epopeacuteias de
Homero legaram-nos o traacutegico
Observada a presenccedila do traacutegico jaacute nas epopeacuteias de Homero discutiremos sobre a
trageacutedia sua estrutura e relaccedilatildeo com as epopeacuteias e com o traacutegico A partir deste percurso
acreditamos que entendendo melhor a trageacutedia elucidaremos melhor o traacutegico jaacute que este se
realiza atraveacutes daquela inegavelmente pois ―eacute fato que na trageacutedia os traccedilos do traacutegico se
tornaratildeo mais evidentes e seus efeitos mais perceptiacuteveis (LUNA 2005 p 34) Daiacute urge a
necessidade de voltarmos atenccedilatildeo ao entendimento da trageacutedia a fim de adquirirmos suporte
suficiente para compreender o traacutegico e assim no capiacutetulo subsequente aplicarmos esta
exposiccedilatildeo teoacuterica na anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia
Do mesmo modo que ocorre com o traacutegico falar sobre a trageacutedia ainda nos impotildee
certas incertezas principalmente no que se trata de sua origem mesmo que sobre ela haja um
nuacutemero bem maior de livros e artigos Ao que nos parece ―o nuacutemero dos ensaios explica-se
precisamente pela ausecircncia de certezas De fato uma grande sombra paira sobre essas
origens (ROMILLY 2008 p 13) Outro autor que compartilha e explicita essa ideacuteia das
dificuldades no estudo da trageacutedia eacute Albin Lesky em Histoacuteria da Literatura Grega (1995)
Segundo o autor natildeo podemos conhecer precisamente o trabalho dos tragedioacutegrafos por falta
de dados satisfatoacuterios ―assim a questatildeo referente agraves origens do drama traacutegico eacute desde a
eacutepoca da ciecircncia alexandrina um dos problemas mais difiacuteceis e discutidos (LESKY 1995
p 253) Finley refletindo sobre a formaccedilatildeo do gecircnero traacutegico sobretudo em comparaccedilatildeo com
outros como a eacutepica e a liacuterica afirma ―Sus oriacutegenes son oscuras (FINLEY 1970 p 101) 29
ressaltando o caraacuteter nebuloso da origem deste gecircnero literaacuterio
De todas estas discussotildees o que podemos concluir eacute que o ditirambo as festas
dionisiacuteacas os saacutetiros os festivais o estado satildeo referecircncias certas de qualquer estudo que
almeja explicar a origem da trageacutedia Adiante poderemos avaliar melhor essa assertiva
Segundo Aristoacuteteles a origem da trageacutedia estaacute relacionada ao ditirambo
Vejamos
Γελνκέλε30
δ᾽ νὖλ ἀπ᾽ ἀξρῆο αὐην[10]ζρεδηαζηηθῆο (θαὶ αὐηὴ θαὶ ἡ
θσκσηδία θαὶ ἡ κὲλ ἀπὸ ηλ ἐμαξρόλησλ ηὸλ δηζύξακβνλ ἡ δὲ ἀπὸ ηλ ηὰ
θαιιηθά ἃ ἔηη θαὶ λῦλ ἐλ πνιιαῖο ηλ πόιεσλ διαμένει νομιζόμενα )
κατὰ μικρὸν ηὐξήθη προαγόντων ὅσον ἐγίγνετο φανερὸν αὐτῆς
29
Traduccedilatildeo nossa Suas origens satildeo obscuras 30
A utillizaccedilatildeo deste particiacutepio aoristo gενομένη indica a anterioridade da accedilatildeo (MURACHO 2007) diferente
do uso do particiacutepio presente que indica a simultaneidade dos fatos Por isso a traduccedilatildeo ―tendo surgido que nos
reflete a noccedilatildeo de anterioridade jaacute que a trageacutedia tem sua existecircncia anterior ao que estaacute sendo descrito
54
θαὶ πνιιὰο κεηαβνιὰο κεηαβαινῦζα ἡ [15] ηξαγσηδία ἐπαύζαην ἐπεὶ ἔζρε
ηὴλ αὑηῆο θύζηλ31 ((Poeacutetica IV 1449a 9-15)
Portanto tendo surgido de um princiacutepio de improvisaccedilatildeo natildeo soacute ela mesma
(a trageacutedia) quanto a comeacutedia aquela pelos iniciantes do ditirambo e esta
pelos iniciantes dos cantos faacutelicos que ainda permanece estimada em muitas
cidades Estas coisas fazem-me crer que pouco a pouco a trageacutedia cresceu
desenvolvendo-se o que se tornava proacuteprio dela E tendo se transformado
apoacutes muitas mudanccedilas a trageacutedia estabilizou-se quando alcanccedilou sua
natureza proacutepria
Percebe-se que a origem da trageacutedia estaria intrinsecamente relacionada ao
ditirambo diquramboj ateacute que ela comeccedila a desenvolver-se adquirindo especificidades
proacuteprias Sendo o ditirambo um canto de louvor ao deus Dioniso entendemos o porquecirc de a
trageacutedia ser relacionada a esta divindade e ao seu culto religioso Algumas vezes essa
conexatildeo traz-nos certas complicaccedilotildees para o entendimento do gecircnero traacutegico que mesmo
tendo origem ligada ao culto do deus posteriormente veio a se distanciar como jaacute nos indica
Aristoacuteteles na passagem que citamos Daiacute entendemos porque em alguns momentos natildeo nos
eacute tatildeo clara a relaccedilatildeo entre a trageacutedia claacutessica e o culto ao deus Tal fato justifica-se por essa
relaccedilatildeo remontar agraves suas origens e natildeo ao seu desenvolvimento pois a trageacutedia transformou-
se e estabeleceu-se com caracteriacutesticas proacuteprias
Ulrich Von Moellendorff-Wilamowitz em Qursquo est-ce qursquo une trageacutedie
attique(2001) sobre as definiccedilotildees aristoteacutelicas referidas acima considera que ―Aristote
nlsquoavait pas pour but de deacutefinir historiquement la trageacutedie attique il voulait parvenir agrave une
deacutefinition conceptuelle de la trageacutedie32
(WILAMOWITZ 2001 p 118) Entatildeo seguindo as
consideraccedilotildees iniciadas por Aristoacuteteles o autor desenvolve o preceito da origem da trageacutedia
relacionada ao ditirambo e reforccedila a contribuiccedilatildeo dada pelos tragedioacutegrafos Eacutesquilo e
Soacutefocles Diz-nos
La trageacutedie a pour origine les chanteurs de dithyrambe elle a tout dlsquo abord
eacuteteacute un jeu satyrique composeacute dans des rythmes vifs et dans une langue
amusante il fallut attendre Eschyle pour que soit introduit le deuxiegraveme
acteur et pour qulsquo on retire du choeur as place de protagoniste le trosiegraveme
acteur fut introduit pour la premieacutere fois par Sophocle33
(Ibidem p 19)
31
Texto retirado de httpwwwhs-augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html
agraves 1152hs em 12 de julho de 2010 32
Traduccedilatildeo nossa Aristoacuteteles natildeo tinha por objetivo definir historicamente a trageacutedia aacutetica ele queria chegar a
uma definiccedilatildeo conceitual da trageacutedia 33
Traduccedilatildeo nossa A trageacutedia tem a origem nos cantores de ditirambo ela foi inicialmente um jogo composto
em ritmos vivos e de uma linguagem divertida foi necessaacuterio esperar Eacutesquilo para que fosse introduzido o
segundo ator e que se retirasse do coro sua posiccedilatildeo de protagonista o terceiro ator foi introduzido pela primeira
vez por Soacutefocles
55
Wilamowitz contribui ainda com outras informaccedilotildees contextuais sobre a trageacutedia
informando-nos que em 534 aC ocorre a primeira representaccedilatildeo de uma trageacutedia durante o
festival das Grandes Dionisiacuteacas por Teacutespis34
de Lesbos Este se consagra como o primeiro
ganhador do precircmio quando o festival foi reorganizado por Pisiacutestrato Apoacutes estas
informaccedilotildees gerais o autor diante de seus estudos cria situaccedilatildeo adequada para expor uma
definiccedilatildeo de trageacutedia afirmando
Une trageacutedie attique est un eacutepisode tireacute de la leacutegende heacuteroiumlque
ayant son uniteacute propecirc traiteacute de faccedilon poeacutetique dans un style noble et destine
agrave ecirctre representeacute par um choeur de citoyens attique e deux voire trois
acteurs dans le sanctuaire de Dionysos comme partie integrante de la
ceacuteleacutebration publique du culte du dieu35
(WILAMOWITZ 2001 p 117)
Percebe-se que esta definiccedilatildeo eacute respaldada pela concepccedilatildeo que Aristoacuteteles nos
legou a partir da Poeacutetica vindo esta a ser reiterada por Wilamowitz (2001) Sabemos que
muitos estudos posteriores ao do filoacutesofo grego tentaram abarcar suas ideacuteias explicando-as
exemplificando-as de modo a atualizaacute-las para o entendimento da modernidade de uma
temaacutetica de discussotildees inesgotaacuteveis Esse eacute o caso dos autores que discutiremos a seguir
Para Romilly em A trageacutedia Grega (2008) o fator religioso eacute inegaacutevel no
surgimento e formaccedilatildeo da trageacutedia Ele reconhece tambeacutem a influecircncia poliacutetica da tirania
Ressalta que as representaccedilotildees das trageacutedias dependem do culto a Dioniso mesmo porque soacute
nas festas dedicadas ao filho de Secircmele eacute que havia a encenaccedilatildeo das peccedilas Informa-nos
ainda
A grande ocasiatildeo era na eacutepoca claacutesssica as festas das Dionisiacuteacas
urbanas que se celebrava na Primavera mas tambeacutem havia concursos de
trageacutedias na festa das Leneias que tinha lugar pelo final de Dezembro A
proacutepria representaccedilatildeo inseria-se assim num conjunto eminentemente
religioso era acompanhada de procissotildees e sacrifiacutecios (ROMILLY 2008 p
14)
Jacqueline de Romilly completa que no centro do teatro havia um assento de
pedra destinado ao deus como tambeacutem um altar onde ocorria a evoluccedilatildeo do coro Diante
34
Grimal (2002) registra atraveacutes de Soacutelon e Heroacutedoto a existecircncia de Aacuterion que em Siacutecion (Peloponeso) seria
reconhecido como o autor da primeira trageacutedia por volta de VII aC 35
Traduccedilatildeo nossa Uma trageacutedia aacutetica eacute um episoacutedio tirado de uma lenda heroacuteica tendo unidade proacutepria tratada
de modo poeacutetico em um estilo nobre e destinado a ser representado por um coro de cidadatildeos aacuteticos com dois e
ateacute mesmo trecircs atores no santuaacuterio de Dioniso como parte integrante da celebraccedilatildeo puacuteblica do culto ao deus
56
dessa constataccedilatildeo e embasada pela teorizaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Poeacutetica 1449 a) ela afirma que
a trageacutedia tendo vindo do ditirambo seria uma amplificaccedilatildeo do rito religioso assim como a
comeacutedia
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) afirma natildeo poder dar uma explicaccedilatildeo
clara sobre o termo ―trageacutedia Isto porque haacute certa dificuldade em encaixar os dois elementos
distintos que compotildeem a formaccedilatildeo do vocaacutebulo tragwlaquodimacra ou seja tragomacrj bode e wlaquocopydimacra
(de Acircdhmacr) canto Para Grimal natildeo haacute uma relaccedilatildeo direta entre os termos tragomacrj e wlaquocopydimacra por
isso levanta diversos questionamentos o coro vestia-se com a pele do bode ou o bode seria o
precircmio para o poeta vencedor ou o bode era a viacutetima sacrifical do que era cantado Enfim
sem poder chegar a uma definiccedilatildeo mais objetiva ele conclui que essa palavra natildeo pode ser
primitiva e sim contemporacircnea ao surgimento da trageacutedia relacionada ao ritual de Dioniso
O autor ainda nos alerta citando Romilly que natildeo podemos esquecer que os
rituais religiosos passam das improvisaccedilotildees para formas literaacuterias ateacute mesmo por causa da
reorganizaccedilatildeo poliacutetica e social e daiacute surge o advento dos concursos Diante disso Grimal
aponta duas causas para o surgimento da trageacutedia a literaacuteria que teria sido iniciada por
Teacutespis e a poliacutetica relacionada ao desejo da tirania de forjar ao povo atraveacutes das festas a
centralizaccedilatildeo do poder
Como jaacute foi dito Pierre Grimal refere-se a uma importante influecircncia das
transformaccedilotildees soacutecio-poliacuteticas para as modificaccedilotildees da trageacutedia Tais influecircncias justificariam
o porquecirc de antigas manifestaccedilotildees ritualiacutesticas ligadas a Dioniso como os ditirambos e os
cantos faacutelicos viessem a originar gecircneros literaacuterios como a trageacutedia e a comeacutedia Para melhor
entendermos a importacircncia desses elementos sociais e poliacuteticos na formaccedilatildeo de um gecircnero
literaacuterio como a trageacutedia vejamos o que nos diz Arnould Hauser
A trageacutedia eacute a criaccedilatildeo artiacutestica mais caracteriacutestica da democracia
ateniense em nenhuma outra forma de arte satildeo apreciados tatildeo direta e
claramente quanto nela os conflitos internos da estrutura social de Atenas
Os aspectos externos de sua apresentaccedilatildeo agraves massas eram democraacuteticos mas
o conteuacutedo as sagas heroacuteicas com sua perspectiva traacutegico-heroacuteica da vida
eram aristocraacuteticos (HAUSER 1995 p 84)
Esta relaccedilatildeo social em que a arte traacutegica estaacute firmada natildeo pode ser dissociada
facilmente ateacute porque ―Fue Atenas la democraacutetica ciudad-estado por excelecircncia la que
produjo y patrocinoacute estrictamente hablando ndash la trageacutedia ()36
(FINLEY 1970 p 101)
36
Traduccedilatildeo nossa Foi Atenas a democraacutetica cidade-estado por excelecircncia que produziu e patrocinou -
estritamente falando ndash a trageacutedia ()
57
Ainda sobre esse momento histoacuterico da trageacutedia suas condiccedilotildees sociais e ateacute mesmo
psicoloacutegicas Jean-Pierre Vernant em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) informa-nos
que muitas discussotildees nos uacuteltimos cinquenta anos ocorreram sobre trageacutedia e mais
precisamente sobre suas origens E diante de todas as interrogaccedilotildees dos helenistas e
proposiccedilotildees de respostas natildeo foram suficientes para resolver o problema da trageacutedia A este
problema exposto por Vernant incluiacutemos o que consideramos como intriacutenseco agrave trageacutedia a
manifestaccedilatildeo traacutegica Isto porque esta foi iniciada na literatura a partir das eacutepicas homeacutericas e
estabilizada a partir das trageacutedias gregas Diante deste quadro complexo que gerou tanto a
comeacutedia quanto a trageacutedia Vernant concebe esta da seguinte maneira
A trageacutedia natildeo eacute apenas uma forma de arte eacute uma instituiccedilatildeo
social que pela fundaccedilatildeo dos concursos traacutegicos a cidade coloca ao lado dos
seus oacutergatildeos puacuteblicos e judiciaacuterios () um espetaacuteculo aberto a todos os
cidadatildeos dirigido desempenhado julgado por representantes qualificados
das diversas tribos a cidade se faz teatro ela se toma de certo modo como
objeto de representaccedilatildeo e desempenha a si proacutepria diante do puacuteblico
(Ibidem p 10)
Irredutivelmente traacutegica em sua essecircncia a trageacutedia reflete a realidade em que ela
se originou e se estabeleceu por isso diz-nos Vernant que ―a proacutepria consciecircncia traacutegica
nasce e desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) Mas para aleacutem da representaccedilatildeo a
trageacutedia questiona a sociedade em que se instaurou E o seu constituinte traacutegico eacute elemento
importante nesse fato visto que potildee em cena o conflito da condiccedilatildeo humana diante de sua
fragilidade e limitaccedilatildeo
E esse elemento traacutegico estaacute relacionado ao deus que assiste do centro do teatro agrave
representaccedilatildeo da tragicidade humana Referimo-nos a Dioniso o deus que representa
contraditoriamente (ou natildeo) tanto a trageacutedia quanto a comeacutedia gecircneros que chegam a ser
completamente opostos a depender da perspectiva em que sejam analisados Um deus tatildeo
associado agrave celebraccedilatildeo ao vinho ao canto faacutelico ao ecircxtase causa-nos certa estranheza em
estar na representaccedilatildeo do gecircnero traacutegico
Mas essa ligaccedilatildeo entre o deus e o traacutegico pode ser bem entendida pelo fato de
que assim como a trageacutedia questiona a proacutepria realidade que representa tambeacutem ―Dioniso
questiona essa ordem Ele a faz despedaccedilar-se ao revelar por sua presenccedila outro aspecto do
sagrado jaacute natildeo regular estaacutevel e definido mas estranho inapreensiacutevel e desconcertante
(VERNANT 2006 p 77) Como vemos assim como o traacutegico o deus que o representa
possui os mesmos atributos daiacute a adequaccedilatildeo entre ambos E toda essa complexidade
58
representativa ocorre porque Dioniso ―nos ensina ou nos obriga a tornar-nos o contraacuterio
daquilo que somos comumente (VERNANT 2006 p 80) Toda essa transmutaccedilatildeo pela qual
passa o personagem traacutegico que segundo Vernant eacute obrigada ou ensinada por Dioniso
reitera a proacutepria situaccedilatildeo traacutegica prescrita por Aristoacuteteles que se baseia numa passagem da
fortuna ao infortuacutenio ou vice-versa (Poeacutetica 1451a) Apesar de que a passagem da fortuna ao
infortuacutenio segundo Aristoacuteteles (1453a) eacute considerada mais traacutegica tal aspecto pode ser
observado no corpus do nosso trabalho jaacute que no Canto XI Agamecircmnon Aacutejax Aquiles e
Anticleacuteia mostram-se infelizes lamuriantes com o destino que tiveram e esse fim desditoso eacute
o mais traacutegico
Permeada pela tragicidade em sua essecircncia a trageacutedia possui uma estrutura formal
geralmente bem delimitada Para Aristoacuteteles um fato decisivo na qualificaccedilatildeo da estrutura de
uma trageacutedia eacute a sua caracterizaccedilatildeo como complexa Na Poeacutetica (1452a) o filoacutesofo diz-nos
que haacute trageacutedias de estrutura simples e complexa Nesta a mudanccedila da fortuna ocorre com
reconhecimento37
do grego a)nagnwiquestrisij eou peripeacutecia38
do grego peripemacrteia
diferentemente da simples em que a mudanccedila da fortuna ocorre sem nenhum desses
elementos Segundo o filoacutesofo as faacutebulas mais belas satildeo as complexas desde que toda a accedilatildeo
esteja conexa com a necessidade e a verossimilhanccedila
Aleacutem desse aspecto baacutesico da estrutura da trageacutedia Aristoacuteteles indica-nos os seus
elementos constitutivos presentes em todas as peccedilas a saber proacutelogo episoacutedio ecircxodo canto
coral com este se distinguindo entre paacuterodo e estaacutesimo39
O primeiro constitui a parte da
trageacutedia que precede a entrada do coro o episoacutedio eacute uma parte da peccedila que fica situada entre
dois cantos completos do coro apoacutes o ecircxodo natildeo haacute canto do coro o canto do coro possui
dois momentos distintos um eacute o paacuterodo que eacute o primeiro pronunciar do coro e o outro eacute o
estaacutesimo que eacute o canto realizado no final de um episoacutedio em anapestos e troqueus
Completando essa determinaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a estrutura da trageacutedia citamos
a divisatildeo estrutural da trageacutedia de Jacqueline de Romilly (2008) A autora apesar de basear-se
e em muitos momentos apenas transcrever a definiccedilatildeo de Aristoacuteteles determina dois
37
Do grego a)nagnwiquestrisij proveniente do verbo a)nagnwricentzw formado pelo prefixo a)na de novo
mais o radical gnwrizw que indica fazer conhecer saber Deste modo a)nagnwiquestrisij significa fazer
conhecer novamente ou seja reconhecer de novo fazer saber revelar 38
Do grego peripemacrteia esta palavra eacute composta pela preposiccedilatildeo periindicando o entorno a sobre de
mais o radical pemacrt do verbo piiquestptw que significa queda atirar-se em indicando a mudanccedila a
imprevisibilidade o inesperado Assim peripemacrteia indica o que estaacute envolta do imprevisto acerca do
inesperado aquilo estaacute estaacute relacionado a queda 39
Haacute tambeacutem o canto dos atores e o koacutesmos que era o canto de lamento do coro estes dois natildeo satildeo comuns em
todas as trageacutedias por isso natildeo nos iremos ater neste momento em suas ponderaccedilotildees
59
elementos centrais na estrutura da trageacutedia que a distingue dos demais gecircneros satildeo eles o
coro e os personagens O primeiro desde a origem da trageacutedia relacionada ao ditirambo
figura como importante elemento da peccedila O segundo passa por transformaccedilotildees no nuacutemero de
atores que o representam ao longo do desenvolvimento da trageacutedia Assim com Teacutespis havia
apenas um ator com Eacutesquilo esse nuacutemero foi elevado para dois e com Soacutefocles para trecircs
Assim como faz Aristoacuteteles Romilly (2008 p 43-51) afirma ainda ser a accedilatildeo um elemento
primordial na estrutura da trageacutedia poreacutem natildeo eacute especiacutefico jaacute que na epopeacuteia tanto quanto
na trageacutedia a accedilatildeo deve ser una Ou seja a epopeacuteia pode tambeacutem ter sua accedilatildeo envolta de
peripeacutecias e reconhecimentos e no fim essa accedilatildeo pode levar o personagem agrave cataacutestrofe
Diante desses aspectos estruturais da trageacutedia que ora a distingue ora a identifica
com outros gecircneros entendemos porque Jaeger considera que ―a trageacutedia tanto pelo seu
material miacutetico como pelo seu espiacuterito eacute a herdeira integral da epopeacuteia (JAEGER 2003 p
70) Tal constataccedilatildeo reforccedila nossa tese sobre a tragicidade presente na epopeacuteia Por essa
relaccedilatildeo entre os gecircneros gregos sejam eles arcaicos ou claacutessicos Jaeger afirma
A trageacutedia devolve agrave poesia grega a capacidade de abarcar a
unidade de todo humano Nesse sentido soacute a epopeacuteia homeacuterica se pode
comparar a ela Apesar da grande fecundidade da literatura nos seacuteculos
intermediaacuterios soacute a epopeacuteia a iguala quanto agrave riqueza do conteuacutedo agrave forccedila
estruturadora e amplitude do seu espiacuterito criador Eacute como se o renascimento
do gecircnio poeacutetico da Greacutecia se tivesse mudado da Jocircnia para Atenas A
epopeacuteia e a trageacutedia satildeo como duas grandes formaccedilotildees montanhosas ligadas
por uma seacuterie ininterrupta de serras menores (Ibidem p 287)
A partir da reflexatildeo acima e das consideraccedilotildees realizadas ao longo deste toacutepico
acerca do traacutegico e da trageacutedia percebemos que satildeo elementos num certo ponto
indissociaacuteveis mas que podem ser visto agrave luz de uma anaacutelise que os distingue e que nos faz
perceber a anterioridade do traacutegico em relaccedilatildeo agrave trageacutedia Tal constataccedilatildeo pode ser verificada
tanto na sociedade grega levando em consideraccedilatildeo o traacutegico como elemento soacutecio-cultural
verificado nos estudos antropoloacutegicos como na literatura grega arcaica Assim se quisermos
ver o surgir do traacutegico na literatura ocidental devemos recorrer agraves epopeacuteias homeacutericas pois laacute
encontramos os germes da manifestaccedilatildeo traacutegica estabilizada no periacuteodo claacutessico da literatura
grega atraveacutes das trageacutedias
No decorrer deste capiacutetulo aleacutem de discorrermos sobre o traacutegico sua
manifestaccedilatildeo e origem permeamos nosso estudo tambeacutem com ponderaccedilotildees sobre a trageacutedia
sua formaccedilatildeo e estrutura porque consideramos que essas relaccedilotildees satildeo fundamentais para o
objetivo geral de nosso trabalho que eacute analisar a presenccedila do traacutegico num texto eacutepico a partir
60
do Canto XI da Odisseacuteia Essa realizaccedilatildeo do traacutegico na eacutepica mesmo natildeo sendo seu objetivo
eacute para a literatura ocidental a primeira apariccedilatildeo traacutegica que fundamentaraacute as trageacutedias gregas
no seacuteculo IV aC
23 O traacutegico na Poeacutetica
Antes de iniciarmos nossas discussotildees sobre a perspectiva do traacutegico presente na
Poeacutetica iremos expor brevemente as consideraccedilotildees realizadas por Platatildeo na Repuacuteblica
sobre a arte literaacuteria e mais especificamente sobre a arte traacutegica Esta introduccedilatildeo faz-se
importante para que percebamos e possamos avaliar ateacute que ponto Aristoacuteteles foi
influenciado por seu mestre ou ao contraacuterio construiu teorizaccedilatildeo oposta mais centrada na
estrutura e verossimilhanccedila textual do que no valor moral e educativo que a arte poderia
veicular aos jovens do estado
Faz-se necessaacuterio retomar a teorizaccedilatildeo platocircnica visto que esta eacute de algum modo
relevante na produccedilatildeo de Aristoacuteteles pois no miacutenimo fez parte de sua formaccedilatildeo intelectual
Aleacutem do mais foi Platatildeo o primeiro a iniciar uma discussatildeo sobre a arte literaacuteria e noacutes diante
desse pioneirismo devemos entender o que foi preconizado
Para tanto selecionamos os Livros III e X da Repuacuteblica a fim de avaliarmos os
posicionamentos de Platatildeo e as diferenccedilas que seu disciacutepulo Aristoacuteteles teraacute diante da
perspectiva da anaacutelise do texto literaacuterio Esses dois livros foram selecionados por
considerarmos que neles encontramos reflexotildees importantes de Platatildeo a respeito da arte
literaacuteria
Platatildeo como dissemos iniciou as discussotildees sobre a literatura contudo avaliou-a
a partir do ponto de vista da utilidade se ela poderia servir ao estado ou ao contraacuterio se
prejudicaria na formaccedilatildeo dos jovens A seguir podemos avaliar melhor essa assertiva atraveacutes
da anaacutelise do proacuteprio texto platocircnico
No Livro III praticamente todas as exposiccedilotildees de Platatildeo convergem para um
mesmo foco no estado ideal deve-se estar vigilante a fim de eliminar a arte literaacuteria que natildeo
contribui positivamente na formaccedilatildeo dos jovens isto eacute aquela que os incita agrave impiedade Mas
o que a arte poderia veicular que natildeo favorecesse a formaccedilatildeo do jovens Platatildeo deixa bem
claro quais seriam as faacutebulas inadequadas pois quase como em um manual ele descreve o
que natildeo deve fazer parte da narraccedilatildeo pura e moderada Entre tantas inadequaccedilotildees literaacuterias a
61
que ele se refere podemos citar falsificaccedilatildeo das situaccedilotildees ocorridas no inferno descriccedilatildeo de
heroacuteis em lamentaccedilatildeo pela morte ou pela perda material chorosos homens nobres em
situaccedilatildeo de arrependimento e fraqueza dados ao riso excessivo entre tantas outras indicaccedilotildees
feitas pelo filoacutesofo Diante dessas prerrogativas Platatildeo chega inclusive ao ponto de
considerar que a beleza poeacutetica natildeo caminha ao lado do valor moral tanto que diz
[387β] ηαῦηα θαὶ ηὰ ηνηαῦηα πάληα παξαηηεζόκεζα Ὅκεξόλ ηε θαὶ ηνὺο
ἄιινπο πνηεηὰο κὴ ραιεπαίλεηλ ἂλ δηαγξάθσκελ νὐρ ὡο νὐ πνηεηηθὰ θαὶ ἡδέα ηνῖο πνιινῖο ἀθνύεηλ ἀιι᾽ ὅζῳ πνηεηηθώηεξα ηνζνύηῳ ἧηηνλ
ἀθνπζηένλ παηζὶ θαὶ ἀλδξάζηλ νὓο δεῖ ἐιεπζέξνπο εἶλαη δνπιείαλ ζαλάηνπ
κᾶιινλ πεθνβεκέλνπο40
(Repuacuteblica III 387b)
Pediremos a Homero e aos outros poetas para excluir estas espeacutecies (de
narrativas) assim como natildeo as invalidariacuteamos por falta de poeacutetica e agrado
aos muitos que as ouvir Pelo contraacuterio quanto mais poeacuteticas tanto menos
audiacutevel seratildeo para crianccedilas e homens os quais devem ser livres tendo
receado mais a escravidatildeo do que a morte
Platatildeo natildeo apenas se refere agraves circunstacircncias que devem ser evitadas como cita as
passagens literaacuterias muitas delas de Homero as quais ele natildeo considera beneacuteficas para
compor a estruturaccedilatildeo do estado ideal Uma dessas referecircncias remete-nos ao Canto XI da
Odisseacuteia constataccedilatildeo esta que fazemos mesmo sem o filoacutesofo referir-se diretamente ao seu
objeto de criacutetica Vejamos
[386c] ἐμαιείςνκελ ἄξα ἦλ δ᾽ ἐγώ ἀπὸ ηνῦδε ηνῦ ἔπνπο ἀξμάκελνη πάληα
ηὰ ηνηαῦηαmdash―βνπινίκελ θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ41
(Repuacuteblica III 386c)
Dizia eu neste discurso portanto anulemos de iniacutecio todas as coisas desta
natureza que assim tenham iniciado ndash ―pois eu preferiria viver sendo um
trabalhador do campo para um outro homem ateacute mesmo sem nobreza e
que eventualmente sua vida natildeo fosse de posses do que reinar sobre
cadaacuteveres que tiveram sido destruiacutedos
Como nos fica evidente temos na citaccedilatildeo acima uma criacutetica agrave produccedilatildeo literaacuteria
homeacuterica especificamente ao Canto XI da Odisseacuteia em que Odisseu encontra-se no Hades
com alguns companheiros da Guerra de Troacuteia Nesse encontro os guerreiros de alta estirpe
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Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D387b agraves 1523hs de 12 de julho de 2010 41
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Asection
3D386c agraves 1530hs de 12 de julho de 2010
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como Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax mostram-se numa situaccedilatildeo natildeo gloriosa A morte para
eles representa um infortuacutenio
Na conversa que Odisseu tem com Agamecircmnon percebe-se que o Atrida vecirc-se
desolado pela traiccedilatildeo da esposa que o levou a uma morte traacutegica inclusive chama atenccedilatildeo
para que Odisseu tenha cuidado no retorno ao lar precavendo-se de uma armadilha que assim
como Cliteminestra Peneacutelope poderia ter preparado para o Laertida Agamecircmnon conta em
detalhes a sua morte de seus companheiros e de Cassandra todos pegos pela artimanha
realizada por sua esposa Cliteminestra junto com seu amante Egisto E depois da narraccedilatildeo o
Atrida no verso 412 conclui ―wAgravej qanon oi)ktistwi qanatwi rdquo42 isto eacute ―Assim morri
com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
O diaacutelogo entre Odisseu e Aquiles natildeo seraacute diferente tanto que Platatildeo chega a falar
(III ndash 386c-d) que narraccedilotildees desse tipo devem ser anuladas O teor desse diaacutelogo sugere para
Platatildeo certa inutilidade para composiccedilatildeo do estado ideal por significar uma ameccedila ao estado
beacutelico E como sabemos nessa passagem Aquiles revela-se insatisfeito em ser rei dos
mortos preferindo ser um ―bouloimhn krsquo e)parouroj e)wUumln qhteuemenrdquo43 (Odisseacuteia
Canto XI v 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo trabalhador do campo desde que
ainda estivesse vivo Uma narraccedilatildeo como essa segundo Platatildeo abalaria a propensatildeo guerreira
dos heroacuteis que natildeo devem temer a morte pois se um heroacutei como Aquiles mostra-se
arrependido os jovens ver-se-atildeo influenciados negativamente Por isso Platatildeo
definitivamente indica que tais faacutebulas devem ser eliminadas do estado jaacute que natildeo satildeo
beneacuteficas na formaccedilatildeo dos homens dos jovens enfim da sociedade em geral
Aacutejax conhecido como o maior guerreiro grego depois de Aquiles tambeacutem natildeo se
encontra em estado de graccedila e glorificado no Hades Pelo contraacuterio aparece ainda ressentido e
negando-se a falar com Odisseu magoado pela destinaccedilatildeo das armas de Aquiles Estas ao
inveacutes de ficarem com ele satildeo destinadas a Odisseu justificando-se entatildeo a sua atitude de
desdeacutem Esta passagem tambeacutem natildeo eacute adequada aos jovens pois natildeo os enobrece e sim
mostra a desobrigaccedilatildeo para com a filiiquesta ou seja com aqueles que compotildeem o grupo de
amizade
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augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010 43
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augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1540hs de 12 de julho de
2010
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Seja atraveacutes de Agamecircmnon Aquiles eou Aacutejax o que queremos mostrar com a
explanaccedilatildeo acima eacute o posicionamento e os criteacuteios utilizados por Platatildeo diante da avaliaccedilatildeo
do texto literaacuterio que como se vecirc eacute baseada em criteacuteios morais de utilidade Platatildeo avalia a
arte atraveacutes de sua utilidade ou inutilidade buscando um fundamento de serventia para a
sociedade e para os homens que a compotildee Assim perguntado sobre quais gecircneros poderiam
permanecer no estado apoacutes ter apontado tantas ―faacutebulas inuacuteteis a exemplo das de Homero
responde
[397δ] ηί νὖλ πνηήζνκελ ἦλ δ᾽ ἐγώ πόηεξνλ εἰο ηὴλ πόιηλ πάληαο ηνύηνπο
παξαδεμόκεζα ἢ ηῶλ ἀθξάησλ ηὸλ ἕηεξνλ ἢ ηὸλ θεθξακέλνλ44
(Repuacuteblica
III 397d)
Entatildeo como realizaremos Dizia eu Seraacute por acaso que aceitaremos para
cidade todos (gecircneros) desta espeacutecie ou outro puro ou o que mistura
O Canto XI nosso objeto central de anaacutelise no proacuteximo capiacutetulo eacute avaliado por
Platatildeo a partir de um criteacuterio utilitaacuterio daiacute a sua opccedilatildeo em eliminar tal arte do estado Jaacute
Aristoacuteteles diferentemente natildeo analisa o texto literaacuterio pelo pressuposto da utilidade mas da
estrutura e verossimilhanccedila interna do texto independentemente da accedilatildeo narrada vir a ser
positiva ou negativa para a formaccedilatildeo do cidadatildeo Por haver essas distinccedilotildees teoacutericas
consideramos explanar mesmo que resumidamente acerca dos paracircmetros de avaliaccedilatildeo que
Platatildeo faz da arte literaacuteria ainda que a nossa pesquisa fundamente-se nos escritos
aristoteacutelicos
Ainda no Livro III (393d) Platatildeo diz preferir a exposiccedilatildeo a narraccedilatildeo pois
considera que no momento em que o poeta se oculta dando voz aos personagens transfigura-
se em outros seres Essa transfiguraccedilatildeo ocorre bem nitidamente nas trageacutedias e comeacutedias
mas no preceito platocircnico ao realizar tal imitaccedilatildeo o poeta afasta-se trecircs vezes da realidade
No Livro X esta distacircncia da arte imitativa em relaccedilatildeo agrave realidade seraacute ainda mais
desenvolvida por Platatildeo chegando afirmar que a arte poeacutetica estaacute muito afastada da realidade
por isso ele afirma que todos os poetas desde Homero ―thordfj deUuml a)lhqeiaj ousup1x
aAgraveptesqairdquo45 (Ibidem 601a) ou seja ―da verdade natildeo consegue se unir Mais proacutexima da
irracionalidade e distante da realidade a arte segundo Platatildeo pode causar danos aos homens
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Textop retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101673Abook3D33Dsection
3D3976d agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 45
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10A601ac agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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E uma cidade sob sua influecircncia acaba sendo governada pela dor pela emoccedilatildeo e natildeo pelo
nomoj46
Uma outra exposiccedilatildeo de Platatildeo no Livro X tambeacutem nos interessa Eacute que o autor
da Repuacuteblica apesar das criacuteticas feitas a Homero admite haver uma certa dificuldade eou
estranheza em ter que falar o que pensa a respeito da arte homeacuterica tendo em vista que haacute de
sua parte uma dedicaccedilatildeo e respeito fruto de sua infacircncia Segue abaixo esse discurso aleacutem de
outro que mostra a importacircncia de Homero para a sociedade grega natildeo soacute a arcaica como
tambeacutem a claacutessica Por isso Platatildeo realiza as seguintes afirmaccedilotildees sobre o autor da Odisseacuteia
θαίηνη θηιία γέ ηίο κε θαὶ αἰδὼο ἐθ παηδὸο ἔρνπζα πεξὶ Ὁκήξνπ ἀπνθσιύεη
ιέγεηλ47
(Repuacuteblica X 595b)
E de fato haacute alguma amizade e respeito que possuo desde a infacircncia a
respeito de Homero que impede-me de falar
() γὰξ ηῶλ θαιῶλ ἁπάλησλ ηνύησλ ηῶλ ηξαγηθῶλ πξῶηνο δηδάζθαιόο ηε
θαὶ ἡγεκὼλ γελέζζαη48
(Ibidem 595c)
Na verdade vem a ser ele o primeiro mestre e guia de todos esses belos
autores traacutegicos
Essa afirmaccedilatildeo de Platatildeo mais uma vez confirma-nos a influecircncia que Homero
realizou sobre os autores traacutegicos Influecircncia essa que pode ser observada natildeo apenas na base
mitoloacutegica como tambeacutem nas cenas homeacutericas aproveitadas e desenvolvidas pelos autores
traacutegicos Ainda mais essa influecircncia pode ser observada nisso acreditamos na proacutepria
elaboraccedilatildeo do traacutegico Este seraacute afixado na literatura grega por meio dos tragedioacutegrafos mas
como podemos notar jaacute se manifesta nas eacutepicas homeacutericas em especial Essa influecircncia
exercida por Homero nos autores traacutegicos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes justifica sua
intitulaccedilatildeo como o primeiro mestre dos traacutegicos ldquoprwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfnrdquo
como bem nos caracterizou Platatildeo
46
Em grego nocentmoj de necentmw verbo que significa distribuir partilhar dividir Tem como sentido
primordial o que eacute estabelecido pelo uso o costume justamente por ser uma accedilatildeo de partilha entre os integrantes
da comunidade daiacute o radical derivar de necentmw Como segundo sentido indicado por Romizi (2006) ) nocentmoj indica o que ocorre segundo o termo da lei da norma distribuiacuteda pelo estado 47
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10cD595b agraves 1530hs de 15 de julho de 2010 48
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10cD595c agraves 1530hs de 15 de julho de 2010
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Diante da exposiccedilatildeo acima jaacute podemos inferir que Aristoacuteteles ao contraacuterio do seu
mestre analisa a arte literaacuteria em sua estrutura e construccedilatildeo poeacutetica como criaccedilatildeo bem no
sentido etimoloacutegico do termo poihsije natildeo como fez Platatildeo pela perspectiva da
funcionalidade social da arte dos valores e da moral propagada Vejamos pois em siacutentese as
concepccedilotildees aristoteacutelicas da arte literaacuteria presentes na Poeacutetica
Na PeriUuml PoihtikhUumlj49 de Aristoacuteteles que conhecemos geralmente como
Poeacutetica ou Arte Poeacutetica temos comentaacuterios acerca da poeacutetica como indica sua proacutepria
etimologia ou seja da criaccedilatildeocomposiccedilatildeo artiacutestica A poeacutetica central para qual se dirigem os
comentaacuterios do autor eacute a trageacutedia Esta ele considera como mais elevada do que os demais
gecircneros ao ponto de no capiacutetulo XXVI apoacutes suscitar um grau de comparaccedilatildeo entre a
trageacutedia e a epopeacuteia (1461b) demonstrando os atributos de uma e de outra Aristoacuteteles afirma
Eicopy ouAcircn toumacrtoij te diafemacrrei pacurrensi kaiUuml eaumlti twcurrenlaquo thcurrenj temacrxnhj eaumlrgw ()
fanerocentn oagraveti kreittwn aatilden eiOacuteh maIacutellon toucurren Iacutetelouj tugxaiquestnousa
thIacutej epopoiiaj50 (Poeacutetica 26 1462b 11-14)
Entatildeo se ela se distingue por todas essas coisas e ainda pelo trabalho
artiacutestico () eacute claro que a trageacutedia eacute superior agrave epopeacuteia obtendo melhor sua
finalidade
Antes de iniciarmos as nossas consideraccedilotildees sobre o traacutegico a partir da Poeacutetica
ressaltamos que natildeo haacute objetivamente um esclarecimento de Aristoacuteteles do que seria o
traacutegico ao contraacuterio do que ocorre com a trageacutedia cuja estrutura ele conceitua e define
Portanto o que faremos eacute por meio de uma leitura arguta tentar depreender quais elementos
constituem uma accedilatildeo traacutegica e para tanto nos serviremos das exposiccedilotildees que Aristoacuteteles faz
da trageacutedia Ateacute porque como dissemos anteriormente eacute nesta poeacutetica que encontramos de
fato a efetuaccedilatildeo do traacutegico apesar de este jaacute se manifestar nas eacutepicas homeacutericas
Logo ao iniacutecio de sua exposiccedilatildeo no capiacutetulo I Aristoacuteteles afirma-nos que a
epopeacuteia a trageacutedia enfim a criaccedilatildeo poeacutetica de modo geral eacute uma mimhsij51 (1447a) ou
49
Em grego PeriUuml eacute uma preposiccedilatildeo que significa o que estaacute em torno de algo envolta de acerca de eou sobre
algo PoihtikhUumlj eacute formada pelo radical Poihoriundo do verbo temaacutetico poieiquestw que indica o fazer o
compor o criar jaacute o sufixo tikhj conforme nos informa Romizi (2007) indica a atitude a relaccedilatildeo com alguma
coisa o que pertence a algo daiacute PoihtikhUumlj vir a significar o que eacute relativo a criaccedilatildeo a poeacutetica Logo
poderiacuteamos sugerir como traduccedilatildeo para PeriUuml PoihtikhUumljliteralmente ―sobre o que pertencerelativo a
poeacutetica 50
ARISTOacuteTELES 1979 p 75 51
Etimologicamente a palavra mimhsij eacute formada pelo radical mimhiquest do verbo meacutedio mimemacromai que
significa imitar representar reproduzir por meio da imitaccedilatildeo Este verbo por ser meacutedio jaacute nos daacute outra
informaccedilatildeo eacute a de que esta accedilatildeo para que se realize necessita da participaccedilatildeo do envolvimento subjetivo de
66
seja eacute o produto de uma representaccedilatildeo Portanto a concepccedilatildeo aristoteacutelica da arte literaacuteria jaacute eacute
bem demonstrada neste iniacutecio em que estabelecendo a poeacutetica como mimhsij afasta dela
os criteacuterios de avaliaccedilatildeo eacutetica e moral visto que ela natildeo eacute a realidade e sim uma
representaccedilatildeo criativa baseada na necessidade do contexto e na verossimilhanccedila
A anaacutelise literaacuteria seguindo os ditames aristoteacutelicos deve centrar-se na estrutura do
texto e na sua coerecircncia interna e natildeo nos preceitos morais que ela veicula aos jovens como
doutrina Platatildeo baseado na funcionalidade social da poesia Aleacutem da anaacutelise natildeo dever
pautar-se nos valores transmitidos tambeacutem natildeo deve ser feita atraveacutes do aspecto meramente
formal por exemplo preso agrave meacutetrica Essa consideraccedilatildeo de Aristoacuteteles pode ser esclarecida
quando ele distingue a composiccedilatildeo de Empeacutedocles com a de Homero (1447b) tanto que
mesmo ambos utilizando-se da meacutetrica Homero seraacute identificado como poihthmacrj52 e aquele
como o fusioloiquestgoj53
No capiacutetulo II da Poeacutetica o autor explicita-nos que o objeto da imitaccedilatildeo tanto da
trageacutedia quanto da epopeacuteia satildeo os homens superiores (1448a) o que bem nos demonstra a
poeacutetica de Soacutefocles e Homero Tais personagens diferem dos da comeacutedia pois esta imita os
homens natildeo elevados O pressuposto levantado jaacute nos daacute um indiacutecio a respeito do sujeito
traacutegico que eacute pertencer necessariamente a essa dita classe dos superiores honrados e
gloriosos porque estes satildeo os objetos de imitaccedilatildeo da trageacutedia gecircnero em que o traacutegico
realiza-se
Este conhecimento tambeacutem nos ilumina sobre outro aspecto do traacutegico que eacute a
sua relaccedilatildeo com a epopeacuteia pois como observamos eles tecircm em comum o mesmo perfil
Assim as personagens da eacutepica e da arte traacutegica tatildeo diferentes em alguns pontos identificam-
se essencialmente por serem pertencentes a uma mesma classe de homens e mulheres
nobres a citar Agamecircmnon Aacutejax Eacutedipo Antiacutegona Medeacuteia Ifigecircnia enfim Os nomes
citados satildeo de personagens que compotildee a trageacutedia e a epopeacuteia e ainda mais nos casos de
Agamecircmnon e Aacutejax temos personagens de trajetoacuteria eacutepica como tambeacutem traacutegica eles
quem age jaacute que a voz meacutedia inclui o sujeito na accedilatildeo verbal Portanto o imitar parte de um interesse do sujeito
natildeo eacute uma accedilatildeo pragmaacutetica A palavra em estudo possui tambeacutem o sufixo sij Este indica a accedilatildeo e o efeito da
accedilatildeo logo mimhsij traduz-se como a accedilatildeoefeito do imitar do representar 52
Este vocaacutebulo refere-se ao criador da composiccedilatildeo literaacuteria jaacute que poihthmacrj eacute formado pelo radical poihdo
verbo poieiquestw criar mais o sufixo thmacrjindicador da pessoa que realiza a accedilatildeo Assim poihthmacrj representa a
pessoa que cria que compotildee logo o que podemos chamar de poeta artiacutefice 53
O termo referido fusioloiquestgoj eacute formado pela composiccedilatildeo de fusija natureza mais loiquestgoj
genericamente tido como razatildeo proveniente de lemacrgw o dizer atraveacutes da racionalidade da reflexatildeo intelectual
Aleacutem do mais o sufixo oj como diz-nos Romizi (2007) reflete a pessoa que age Logo fusioloiquestgoj vem a
significar aquele que estuda a nureza que se traduz como o fisioacutelogo
67
protagonizam cenas na Iliacuteada e na Odisseacuteia bem como em peccedilas de Eacutesquilo e de Soacutefocles
Ressaltamos poreacutem que na Odisseacuteia jaacute percebemos o caraacuteter traacutegico desses heroacuteis mesmo
estando presentes numa narrativa eacutepica
No capiacutetulo IV dissertando sobre a origem da poesia Aristoacuteteles informa-nos que
Homero foi o responsaacutevel por traccedilar as diretrizes para outros gecircneros literaacuterios Ou seja o
autor da Odisseacuteia natildeo soacute instaurou a literatura no mundo Ocidental como nos legou os
direcionamentos para as demais produccedilotildees literaacuterias vejamos
Ὥζπεξ δὲ θαὶ ηὰ ζπνπδαῖα κάιηζηα πνηεηὴο Ὅκεξνο [35] ἦλ (κόλνο γὰξ νὐρ
ὅηη εὖ ἀιιὰ θαὶ κηκήζεηο δξακαηηθὰο ἐπνίεζελ) νὕησο θαὶ ηὸ ηῆο
θσκσηδίαο ζρῆκα πξηνο ὑπέδεημελ νὐ ςόγνλ ἀιιὰ ηὸ γεινῖνλ
δξακαηνπνηήζαο ὁ γὰξ Μαξγίηεο ἀλάινγνλ ἔρεη ὥζπεξ Ἰιηὰο [1449a] θαὶ ἡ
δύζζεηα πξὸο ηὰο ηξαγσηδίαο νὕησ θαὶ νὗηνο πξὸο ηὰο θσκσηδίαο54
(Poeacutetica IV144b-1449a 34-39)
Assim como Homero era sobretudo poeta com relaccedilatildeo aos (gecircneros)
nobres pois sozinho criou bem representaccedilotildees de accedilotildees desse modo
tambeacutem primeiro mostrou a forma da comeacutedia natildeo o censurado mas a
poesia dramaacutetica que provoca o riso Na verdade o Margites tem sua
analogia pois assim como a Iliacuteada e a Odisseacuteia estatildeo relacionadas as
trageacutedias desse modo aquele (Margites) estaacute para as comeacutedias
Como pode ser visto a importacircncia de Homero daacute-se natildeo apenas pela produccedilatildeo
dos gecircneros que produziu como a epopeacuteia mas para os que natildeo chegou a compor como
comeacutedia e trageacutedia Isto porque a partir de suas obras legou-nos a dramaticidade e outros
elementos que constituem as linhas baacutesicas para a trageacutedia e comeacutedia Desse modo tendo
traccedilado as linhas da trageacutedia e da comeacutedia como Aristoacuteteles afirma-nos acreditamos tambeacutem
que Homero traccedilou as linhas do traacutegico legando-nos o que veio a ser elemento essencial da
trageacutedia
Apoacutes no capiacutetulo V comentar a respeito da comeacutedia sua estrutura e
caracteriacutestica distinguindo-a e comparando-a com a trageacutedia e a epopeacuteia Aristoacuteteles no
capiacutetulo VI propotildee uma definiccedilatildeo para a trageacutedia e descreve suas partes essenciais Logo ao
iniacutecio ele expotildee uma definiccedilatildeo esclarecedora e sinteacutetica sobre a trageacutedia
Ἔζηηλ νὖλ ηξαγσηδία κίκεζηο πξάμεσο ζπνπδαίαο [25] θαὶ ηειείαο κέγεζνο
ἐρνύζεο ἡδπζκέλση ιόγση ρσξὶο ἑθάζηση ηλ εἰδλ ἐλ ηνῖο κνξίνηο
54
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1800hs em 16 de julho de
2010
68
δξώλησλ θαὶ νὐ δη᾽ ἀπαγγειίαο δη᾽ ἐιένπ θαὶ θόβνπ πεξαίλνπζα55
ηὴλ ηλ
ηνηνύησλ παζεκάησλ θάζαξζηλ56 (Poeacutetica VI 1449b 24-28)
Portanto a trageacutedia eacute representaccedilatildeo de uma accedilatildeo grave e acabada que possui
certa extensatildeo com uma linguagem ornada cada uma das partes aparece em
seccedilatildeo em que se age e natildeo atraveacutes de narraccedilatildeo levando a atingir por meio
da piedade e do temor a catarse de tais sofrimentos
Pela passagem acima selecionada depreendemos a partir de quatro caracteriacutesticas
baacutesicas o que Aristoacuteteles entende por trageacutedia Primeiro a trageacutedia representa uma accedilatildeo que
deve ser completa e ter certa extensatildeo segundo a linguagem dever ser ornada o que mais agrave
frente o proacuteprio autor explica como uma linguagem que possui ―rucedilqmoUumln kaiUuml acedilrmonimacran
kaiUuml memacrloj ou seja ―ritmo harmonia e melodia terceiro na trageacutedia natildeo deve haver
narraccedilatildeo isto porque os atores eacute quem agem sem a necessidade da intervenccedilatildeo de um
narrador para esclarecer o que ocorre pois a accedilatildeo transcorre aos nossos olhos quarto e muito
importante a trageacutedia mediante toda a estrutura citada deve suscitar ―esup1leou kaiUuml
fomacrbou57 (Ibidem) isto eacute ―compaixatildeo e medo
Desse modo a trageacutedia mediante as accedilotildees encenadas faz surgir o temor e a
piedade sentimentos contraacuterios mas que se completam pois um a esup1leoj aproxima os
espectadores propicia a identificaccedilatildeo para que possam apiedar-se do sujeitosituaccedilatildeo traacutegico
enquanto o outro o fomacrboj faz com que haja um certo afastamento do espectador em
relaccedilatildeo ao traacutegico posto em cena Assim nessa posiccedilatildeo intermediaacuteria envolta pelo sentimento
55
A utilizaccedilatildeo de perainousa uma forma de particiacutepio presente de perainw que siginifa atingir alcanccedilar
levar denota a simultaneidade da accedilatildeo verbal Por isso ele eacute construiacutedo a partir do tema do infectum que indica
a accedilatildeo inacabada (MURACHO 2007) No caso da citaccedilatildeo o uso de perainousa sugere-nos que
simultaneamente ao processo de narraccedilatildeo traacutegica somos levados a atingir a catarse 56
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi1html agraves 1805hs em 16 de julho de
2010 57
Fomacrboj eacute segundo Romizi (2007) a forma nominal do verbo femacrbomai indicando a fuga apavorada em
temor que tambeacutem se relaciona ao verbo fobemacrw que tem o sentido primeiro de fazer pavor aterrorizar fazer
fugir meter em fuga pelo temor Como vemos haacute uma semacircntica ligada ao aterrorizante do que potildee medo ao
ponto de fazer algoalgueacutem lanccedilar-se em fuga Por isso haacute algumas complicaccedilotildees na traduccedilatildeo que fazem deste
termo Uns optam por terror como Eudoro de Sousa (1992) e outros por temor como Jaime Bruna (1995) J
Hardy (1979) traduz-se como crainte ou seja receio num campo semacircntico mais proacuteximo de temor do que
terror Com base nessas discussotildees Lessing e John citados por Sandra Luna (2005) preferem traduzir Fomacrboj
apenas como temor jaacute que terror indicaria um sentimento mais desmedido Diante dessas controveacutersias e da
referecircncia etimoloacutegica consideramos a traduccedilatildeo por temor mais adequada jaacute que ela em si traz ainda o sentido
daquilo que de tatildeo apavorante faria fugir todavia natildeo o faz pelo sentimento de esup1leoj da compaixatildeo piedade
que eacute suscitado junto com ele estabelecendo assim um certo equiliacutebrio Se traduziacutessemos Fomacrboj por terror
acabariacuteamos por indicar um sentimento desmedido que de tatildeo aterrorizante paralisa proacuteximo ao mostruoso
bem contraacuterio ao sentido etimoloacutegico que vimos de fobemacrw Por tudo isso a traduccedilatildeo por terror natildeo eacute
apropriada para as trageacutedias gregas
69
de piedade e de temor a trageacutedia que promove o surgimento dessas emoccedilotildees ―perainousa
thUumln twordfn toioutwn paqhmatwn kaqarsinrdquo (Poeacutetica 1449b) isto eacute ―levando a atingir a
catarse de tais sofrimentos
Sobre a kaqarsij muitas satildeo as discussotildees sobre o sentido real e o uso desse
termo verificado nas trageacutedias tanto que Alfredo Carvalho citado por Sandra Luna (2005)
sugere que se mantenha transcrito nas traduccedilotildees a palavra catarse natildeo delimitando seu
sentido como purgaccedilatildeo eou purificaccedilatildeo fato que ocorre em muitas ediccedilotildees O motivo para
tal indicaccedilatildeo estaacute justamente no fato de essa palavra remeter-nos a uma plurisignificaccedilatildeo
para qual natildeo temos em nossa liacutengua uma palavra que possa vir a cobrir sua semacircntica
A palavra catarse do grego kamacrqarsij tem seu radical kamacrqarproveniente do
verbo kaqaimacrrw que genericamente traduz-se como purificar a exemplo de Bailly (2000)
Romizi (2007) e Liddell amp Scottlsquos (1996) Por isso kaqaromacrj de mesmo radical significa
puro Formada pelo radical kamacrqar- mais o sufixo -sijque indica a accedilatildeo eou efeito da
accedilatildeo kamacrqarsij entatildeo etimologicamente significaria purificaccedilatildeo Todavia atentamos que
esta palavra pode ter uma semacircntica diversa a depender do contexto em que eacute utilizada seja
este meacutedico seja religioso
Assim na utilizaccedilatildeo meacutedica o uso deste verbo kamacrqarsij indica purgaccedilatildeo
limpeza esvaziamento do que for de maleacutefico para a sauacutede orgacircnica do inviacuteduo Na utilizaccedilatildeo
religiosa kamacrqarsij significa purificaccedilatildeo que simboliza a limpeza do espiacuterito impuro que
desagrada ao divino Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) a purificaccedilatildeo eacute um
rito presente em todas as religiotildees
Na verdade mesmo diante dessas aparentes distacircncias entre os termos
acreditamos que purgaccedilatildeo e purificaccedilatildeo encontram-se num mesmo campo semacircntico apesar
de utilizadas em contextos diferentes pois ambas indicam a eliminaccedilatildeo de impurezas e
malefiacutecios sejam eles fiacutesicos (purgaccedilatildeo) ou espirituais (purificaccedilatildeo) De todo o modo para
que possamos explicitar essa duplicidade semacircntica presente no termo em questatildeo
utilizaremos ao longo do nosso trabalho como indica Carvalho o vocaacutebulo catarse Assim
natildeo pomos fim a essa vaacutelida discussatildeo linguiacutestica e literaacuteria aleacutem de sua duplicidade
semacircntica
Entendida a explanaccedilatildeo sobre a carga semacircntica presente em
kamacrqarsijrelacionaremos esse conceito e sua importacircncia inseridos no entendimento da
trageacutedia e do traacutegico Para Lesky (1995) a catarse pode ser um instrumento para
70
entendermos melhor o traacutegico e seu efeito jaacute que seria o resultado da accedilatildeo traacutegica Se para
Aristoacuteteles a trageacutedia propicia o despertar de sentimentos como o temor e a piedade e aleacutem
disso vem a operar a catarse dessas emoccedilotildees que ela mesma fez surgir entendemos que isso
natildeo ocorre apenas pela linguagem condimentada pelo ritmo ou melodia Entatildeo o componente
da trageacutedia essencial para inspirar esses sentimentos eacute justamente o traacutegico
Toda essa explanaccedilatildeo sobre a kamacrqarsij nos eacute importante por acreditarmos que
o Canto XI da Odisseacuteia passa por um processo kartaacutetico Ao ver os grandes heroacuteis em
infortuacutenio Odisseu apieda-se perante o sofrer de seus semelhantes ao mesmo tempo em que
tambeacutem sente temor de que pudesse vir a ter um destino desventuroso o que natildeo seria difiacutecil
por haacute tanto vir enfrentando sofrimentos diversos na busca de retornar ao lar Tendo passado
pelo processo de kamacrqarsij Odisseu purificado livre das enfermidades espirituais do
excesso e da desmedida pode finalmente alcanccedilar seu objetivo buscado jaacute por longos anos
chegar a Iacutetaca
Aliado aos demais elementos da trageacutedia o traacutegico eacute o responsaacutevel para que se
suscitem as emoccedilotildees de piedade e temor as quais segundo Aristoacuteteles satildeo fruto das accedilotildees
representadas na peccedila e natildeo narraccedilotildees Pois mais do que as outras partes da trageacutedia como
ritmo melodia e linguagem condimentada eacute o traacutegico que essencialmente tem a capacidade
de provocar e inspirar a esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor
Deste modo uma representaccedilatildeo traacutegica como a de Agamecircmnon que apoacutes dez
anos volta agrave sua terra glorificado pela vitoacuteria mas que logo eacute pego por uma armadilha da
esposa e de seu amante matando-o indignamente faz surgir dois sentimentos
esup1leojpiedade e o fomacrbojo temor O primeiro porque diante de um sofrer que parece
indigno injusto imerecido acaba-se por sentir compaixatildeo Lembremos de que Agamecircmnon
um homem de grandes feitos aAtildenac asup1ndrwIacuten58 o senhor dos heroacuteis retorna trazendo a gloacuteria
para o lar e como recepccedilatildeo encontra a morte preparada pela esposa numa banheira Tudo
isso nos inspira a esup1lemacroj Ao mesmo tempo toda essa situaccedilatildeo traacutegica se veio atingir um
grande rei como Agamecircmnon por este ter cometido uma accedilatildeo errocircnea poderia vir atingir
tambeacutem os demais menos ilustres Logo desponta-se entatildeo o receio de que o traacutegico possa
tambeacutem nos atingir E essa circunstacircncia inspira o fomacrboj Por isso o coro diz em
Agamecircmnon
58
Este eacute um epiacuteteto bastante utilizado para Agamecircmnon na Iliacuteada e que o distingue dos demais indicando que
ele eacute o que comanda os demais heroacuteis e reis como Aquiles Aacutejax Odisseu enfim
71
ἰὼ ἰὼ βαζηιεῦ βαζηιεῦ
πο ζε δαθξύζσ
θξελὸο ἐθ θηιίαο ηί πνη᾽ εἴπσ
θεῖζαη δ᾽ ἀξάρλεο ἐλ ὑθάζκαηη ηῶδ᾽
ἀζεβεῖ ζαλάηῳ βίνλ ἐθπλέσλ
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Ioacute ioacute Rei rei
Como chorar-te-ei
O que falar a partir do coraccedilatildeo amigo
Eacutes posto nessa teia de aranha expirando
a vida por uma impiedosa morte
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
A trageacutedia por meio do traacutegico tendo feito surgir os sentimentos de temor e
piedade realiza a catarse desses sentimentos assim os sentimentos que ela mesma inspirou
formam um processo cartaacutetico Processo possiacutevel pela existecircncia do traacutegico na composiccedilatildeo
estrutural da trageacutedia pois como vimos o traacutegico eacute o elemento responsaacutevel por inspirar o
temor e a piedade Desta maneira proporcionando meios de ser efetuado o que eacute
provavelmente o maior objetivo da trageacutedia a kaqarsij
Apesar de Aristoacuteteles natildeo nos definir exatamente o que eacute o traacutegico podemos
percorrer suas ponderaccedilotildees na Poeacutetica sobre os elementos da trageacutedia Com isso se natildeo
chegamos ao traacutegico aristoteacutelico pelo menos nos aproximamos de sua significaccedilatildeo Assim a
partir do raciociacutenio de que o traacutegico tem a capacidade de fazer surgir os sentimentos de temor
e piedade e depois realizar a catarse deles podemos chegar a mais uma conclusatildeo sobre o
traacutegico Porque se o inspirar do temor e da piedade como nos diz Aristoacuteteles ocorre atraveacutes
da accedilatildeo dos atores e natildeo da narraccedilatildeo chegamos a mais uma caracteriacutestica sobre o traacutegico ele
decorre da accedilatildeo dos personagens
E essa accedilatildeo traacutegica segundo Aristoacuteteles eacute o elemento mais importante da trageacutedia
grega porque nela encontramos a origem para a fortuna humana seja ela boa ou maacute (1450a)
e eacute tambeacutem atraveacutes da accedilatildeo que o caraacuteter se revela jaacute que a qualidade dos personagens estaacute
exposta em suas accedilotildees Desta maneira elencando o mito o caraacuteter a elocuccedilatildeo o pensamento
o espetaacuteculo e a melopeacuteia como as seis partes componentes da trageacutedia ele afirma
72
Μέγηζηνλ δὲ ηνύησλ ἐζηὶλ ἡ ηλ πξαγκάησλ ζύζηαζηο ἡ γὰξ ηξαγσηδία
κίκεζίο ἐζηηλ νὐθ ἀλζξώπσλ ἀιιὰ πξάμεσλ θαὶ βίνπ θαὶ εὐδαηκνλία θαὶ
θαθνδαηκνλία ἐλ πξάμεη ἐζηίλ θαὶ ηὸ ηέινο πξᾶμίο ηηο ἐζηίλ νὐ πνηόηεο59
(Poeacutetica VI 1450a 15-19)
O mais importante (elemento) eacute a composiccedilatildeo dos fatos pois a trageacutedia eacute
representaccedilatildeo natildeo de seres humanos mas de accedilotildees e da vida Tambeacutem a
fortuna e o infortuacutenio estatildeo na accedilatildeo e a finalidade eacute alguma accedilatildeo natildeo uma
qualidade
Apoacutes ter identificado a accedilatildeo como a parte mais importante da trageacutedia Aristoacuteteles diz
que sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia Tal definiccedilatildeo como vemos faz parte de um argumento bem
loacutegico pois se antes ele havia dito que a accedilatildeo eacute o elemento mais importante da trageacutedia logo
supomos que sem ela natildeo haacute trageacutedia e eacute isso que ele nos confirma ―brvbarbrvbarEti aAtildeneu meUumln
pracewj ousup1k aAtilden genoito tragdia aAtildeneu deUuml hsup1qwordfn ge noitrsquo aAtilden60 (Ibidem 23-25)
ou seja ―Ainda assim a trageacutedia natildeo poderia vir a ser sem accedilatildeo mas sim sem os caracteres
Mesmo porque a accedilatildeo ―sup1ArxhUuml meUumln ouaringn kaiUuml oiaringon yuxhUuml ocedil muordfqoj thordfj tragdiaj61
(Poeacutetica VI 1450a 39-40) ― Portanto o mito eacute como que o princiacutepio e a alma da trageacutedia
Seguindo tambeacutem o raciociacutenio loacutegico de Aristoacuteteles poderiacuteamos dizer o traacutegico eacute
proveniente da accedilatildeo dos personagens sem accedilatildeo natildeo haacute trageacutedia logo concluiacutemos que sem
traacutegico natildeo haacute trageacutedia Chegamos entatildeo temos mais um pressuposto para legitimar nossa
tese do traacutegico como essecircncia da trageacutedia grega seja esse refletido no destino ou apenas em
uma situaccedilatildeo de vida
Esta accedilatildeo traacutegica deve tambeacutem estar ligada a dois meios que realizam a comoccedilatildeo
dos acircnimos satildeo eles asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia ou seja reconhecimento e peripeacutecia
Anteriormente jaacute explicamos a etimologia e o significado de cada um agora nos eacute importante
compreender a importacircncia deles na estrutura da trageacutedia percebamos
Πξὸο δὲ ηνύηνηο ηὰ κέγηζηα νἷο ςπραγσγεῖ ἡ ηξαγσηδία ηνῦ κύζνπ κέξε
ἐζηίλ αἵ ηε πεξηπέηεηαη θαὶ ἀλαγλσξίζεηο62 (Poeacutetica VI 1450a 33-35)
59
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1905hs de 16 de julho de
2010 60
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010 61
Ibidem 62
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 1910hs de 16 de julho de
2010
73
Para junto disso a trageacutedia extasia-os com seus importantes elementos que
satildeo parte do mito as peripeacutecias e os reconhecimentos
Entatildeo se asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo meios fundamentais atraveacutes dos
quais a trageacutedia alcanccedila a comoccedilatildeo do espiacuterito portanto satildeo tambeacutem fundamentais para
intensificaccedilatildeo do traacutegico jaacute que este corresponde ao elemento miacutetico na estrutura da trageacutedia
Ressaltamos que esses dois elementos para que o traacutegico seja desenvolvido devem estar
aliado a outros elementos pois sozinho natildeo realizam o traacutegico Ateacute porque como sabemos
asup1nagnwiquestrisij e peripemacrteia satildeo elementos comuns tambeacutem da comeacutedia Mas como partes
do mito reconhecimento e peripeacutecia aleacutem de fazerem a estrutura literaacuteria ser como define
Aristoacuteteles mais complexa tambeacutem corroboram para a intensificaccedilatildeo do efeito traacutegico Por
isso classificando os tipos de reconhecimento no capiacutetulo XVI da Poeacutetica o filoacutesofo
informa-nos que apesar de existirem vaacuterias realizaccedilotildees do reconhecimento a melhor delas eacute a
que deriva do conflito (1455a v 17-22) da accedilatildeo Como a de Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) e a de
Eacutedipo Rei (2001) e natildeo as que se realizam por meios artificiais a exemplo de sinais da
memoacuteria e do silogismo
Isto porque quando sofre uma peripeacutecia o sujeito traacutegico vecirc-se num conflito
Basta lembrarmos de Eacutedipo Rei em que o rei procura o assassino de Laio quando ele mesmo
vem a ser a proacutepria causa de tantos malefiacutecios Do mesmo modo com o reconhecimento pois
quando o indiviacuteduo vecirc-se tomado pela indesejada circunstacircncia ou destino traacutegicos ele se
reconhece como sujeito traacutegico proacuteximo de sua cataacutetrofe Para tanto eacute soacute nos lembrarmos
por exemplo de Eacutedipo Aacutejax Ifigecircnia e Hipoacutelito quando se reconhecem como figuras
traacutegicas O primeiro ao perceber que era ele mesmo a causa do mal que procurava o
segundo ao entender que havia matado animais e natildeo os guerreiros gregos a terceira ao ver
que sua vida seraacute aniquilada pelo proacuteprio pai e o quarto enxergando-se como vitimado por
um crime que natildeo cometera Observemos
ἰνὺ ἰνύ ηὰ πάλη᾽ ἂλ ἐμήθνη ζαθῆ
ὦ θο ηειεπηαῖόλ ζε πξνζβιέςαηκη λῦλ
ὅζηηο πέθαζκαη θύο η᾽ ἀθ᾽ ὧλ νὐ ρξῆλ63
(Eacutedipo Rei 1182-1184)
Ioacuteu ioacuteu Atingiste-me e todas as coisas estatildeo claras
Oacute luz nesse instante eu poderia olhar-te o fim
eu fiz aparecer o filho de que natildeo havia necessidade
63
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101913Acard3D1196 agraves
1940hs de 17 de julho de 2010
74
ἰὼ
ζθόηνο ἐκὸλ θάνο
ἔξεβνο ὦ θαελλόηαηνλ ὡο ἐκνί
ἕιεζζ᾽ ἕιεζζέ κ᾽ νἰθήηνξα
ἕιεζζέ κ᾽ νὔηε γὰξ ζελ γέλνο νὔζ᾽ ἁκεξίσλ
ἔη᾽ ἄμηνο βιέπεηλ ηηλ᾽ εἰο ὄλαζηλ ἀλζξώπσλ
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
64
(Aacutejax 394-403)
Ioacute Treva toda minha luz
Oacute Eacuterebo como eacutes brilhantiacutessimo para mim
Leva-me leva-me para tua morada
leva-me Pois nem mereccedilo olhar nem por um dia
para a raccedila dos deuses nem igualmente para a dos homens
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
νἲ γώ κᾶηεξ ηαὐηὸλ ηόδε γὰξ
κέινο εἰο ἄκθσ πέπησθε ηύρεο
θνὐθέηη κνη θο
νὐδ᾽ ἀειίνπ ηόδε θέγγνο
ἰὼ ἰώ65
(Ifigecircnia em Aacuteulis 1279-1283)
Ai de mim matildee Pois este mesmo
canto do acaso caiu para ambas
Para mim natildeo (haveraacute) mais luz
e nem a claridade do sol
Ioacute ioacute
αἰαῖ αἰαῖ
δύζηελνο ἐγώ παηξὸο ὡο ἀδίθνπ
ρξεζκνῖο ἀδίθνηο δηειπκάλζελ
ἀπόισια ηάιαο νἴκνη κνη
()
αἰαῖ αἰαῖ
θαὶ λῦλ ὀδύλα κ᾽ ὀδύλα βαίλεη
κέζεηέ κε ηάιαλεο
θαί κνη ζάλαηνο Παηὰλ ἔιζνη
πξνζαπόιιπη᾽ ἀπόιιπηε66
(Hipoacutelito 1348-501370-74)
64
Tento disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101833Acard3D394 `s 2000hs
de 17 de julho de 2010 65
Texto disponiacutevel em httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseustext1999010107 agraves 2020hs de
17 de julho de 2010 66
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101053Acard3D1370 agraves
2030hs de 17 de juho de 2010
75
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
Eu sou miseraacutevel por causa de um pai injusto
de profecias injustas desfeitas vergonhosamente
fui destruiacutedo estou desgraccedilado ai de mim
Aiacuteaiacute aiacuteaiacute
E agora vai causa-me dor causa-me dor
deixais-me ir desgraccedilado
e que o Curador da morte venha para mim
destroacutei-me destroacutei-me
As passagens citadas ilustram bem que a tragicidade da peccedila eacute aumentada quando
os personagens passam do estado da ignoracircncia para o conhecimento e consciecircncia dos fatos
Para entendermos mais claramente eacute soacute imaginarmos um homem que mata o pai e casa com a
matildee mas sem saber ou seja sem a asup1nagnwiquestrisij Isso nos causaria piedade eou temor
Acreditamos que natildeo e o proacuteprio Eacutedipo retifica-nos pois antes de saber que ele era o
responsaacutevel pelo mal que assolava Tebas ele natildeo se lamentava apenas buscava o culpado
enfim ele natildeo se reconhecia como um personagem traacutegico Do mesmo modo a falta de
reconhecimento com Aacutejax Ifigecircnia Hipoacutelito pode diminuir ou ateacute mesmo vir a extinguir
toda a tragicidade
Como percebemos peripemacrteia e asup1nagnwiquestrisij surgidas da estrutura interna
do mito satildeo importantes natildeo apenas para a trageacutedia e seus aspectos formais mas para o
desdobramento intensificado do traacutegico Aristoacuteteles diz-nos ainda que ocorrendo juntas a
peripeacutecia e o reconhecimento compotildeem uma estrutura complexa Podemos depreender pela
explanaccedilatildeo e exemplificaccedilatildeo que fizemos acima que juntas a peripeacutecia e o reconhecimento
reforccedilam a dramaticidade da peccedila Tal ideacuteia talvez nos permita afirmar que uma trageacutedia
aristotelicamente complexa possui mais teor traacutegico do que as de estrutura simples sem
reconhecimento e peripeacutecia
Para Aristoacuteteles a estrutura do mito traacutegico bem realizado deve ser uniforme e
como um todo deve ter iniacutecio meio e fim Por isso ele explica que um ser muito grande ou
muito pequeno natildeo se aproximaria do que eacute belo (1451a) Esse comentaacuterio ajuda-nos a
compreender entre outros fatores o porquecirc da unidade de accedilatildeo ser tatildeo relevante para a
teorizaccedilatildeo aristoteacutelica devendo estar presente tanto numa trageacutedia quanto numa epopeacuteia
Tanto que Aristoacuteteles aponta as epopeacuteias homeacutericas como exemplos dessa unidade de accedilatildeo jaacute
que apesar de extensas os episoacutedios convergem para accedilatildeo central compondo o todo Aleacutem
do mais tambeacutem podemos perceber o porquecirc de a extensatildeo da trageacutedia ser baseada no tempo
76
suficiente em que se possa transcorrer a mudanccedila da fortuna do personagem Vejamos o que
ele diz
ὡο δὲ ἁπιο δηνξίζαληαο εἰπεῖλ ἐλ ὅζση κεγέζεη θαηὰ ηὸ εἰθὸο ἢ ηὸ
ἀλαγθαῖνλ ἐθεμῆο γηγλνκέλσλ ζπκβαίλεη εἰο εὐηπρίαλ ἐθ δπζηπρίαο ἢ ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κεηαβάιιεηλ ἱθαλὸο [15] ὅξνο ἐζηὶλ ηνῦ κεγέζνπο67
(Poeacutetica VII 1451a 11-15)
Em certa extensatildeo simplesmente devem realizar o narrar um apoacutes outro
segundo a verossimilhanccedila e a necessidade e que ocorra com o traspassar
para a fortuna a partir do infortuacutenio e da fortuna para o infortuacutenio este eacute o
limite conveniente de sua extensatildeo
A unidade de accedilatildeo segundo os preceitos aristoteacutelicos eacute fundamental para a
estruturaccedilatildeo de uma faacutebula Assim mesmo numa epopeacuteia os episoacutedios devem convergir para
a accedilatildeo central tornando-a una e coesa E essa limitaccedilatildeo temporal da trageacutedia que deve
desenvolver-se numa temporalidade suficiente para que possamos ter a mudanccedila de fortuna
tambeacutem nos colabora para outra compreensatildeo do traacutegico Pois este para ser melhor realizado
tambeacutem deve ter unidade pois faltaria totalidade a um mito que depois de ocorrer a accedilatildeo
traacutegica passasse a desenvolver outros temas dispersando e diluindo o traacutegico Isso nos faz
compreender o porquecirc das criacuteticas agrave peccedila de Soacutefocles Aacutejax Nesta peccedila apoacutes concretizada a
mudanccedila da fortuna do heroacutei com o seu suiciacutedio vemos o desenvolver da defesa de seu corpo
por Teucro seu meio-irmatildeo Muitos criacuteticos entendem que essa continuidade da peccedila
prejudicaria sua qualidade Natildeo entraremos nessa discussatildeo contudo podemos compreender
que a accedilatildeo traacutegica deve ser condensada deve ter unidade a fim de que natildeo se dilua por
completo nem se disperse Assim sendo conforme as indicaccedilotildees de Aristoacuteteles o tempo da
accedilatildeo traacutegica deve limitar-se agrave mudanccedila de fortuna
No capiacutetulo XIII Aristoacuteteles expotildee-nos mais diretamente a respeito do traacutegico
comentando o que viria a ser uma situaccedilatildeo traacutegica por excelecircncia para que possa inspirar o
temor e a piedade e depois a catarse desses sentimentos Para termos essa ―plausiacutevel
situaccedilatildeo traacutegica ela natildeo deve ter homens muito bons passando para o infortuacutenio - o que
causaria excesso de piedade - nem muito maus o que levaria a um distanciamento Mesmo
porque essas circuntacircncias natildeo fazem surgir o temor fomacrboj nem a piedade esup1lemacroj estes
sentimentos que devem vir da accedilatildeo dos personagens e que satildeo inspirados em determinadas
situaccedilotildees
67
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2025hs de 17 de julho de
2010
77
ἔιενο κὲλ πεξὶ ηὸλ ἀλάμηνλ θόβνο δὲ πεξὶ ηὸλ ὅκνηνλ68
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
Diante disso resta ao heroacutei uma situaccedilatildeo intermediaacuteria (1453a) pois nem tatildeo
virtuoso nem tatildeo maldoso Sua tragicidade viraacute natildeo pelo caraacuteter mas por uma accedilatildeo errocircnea
Este erro a aumlmartian seria o responsaacutevel por fazer algueacutem passar da fortuna ao infortuacutenio
ou vice-versa Muitas discussotildees haacute sobre essa hamartia aristoteacutelica e qual seria seu
significado essencial mas por hora vejamos o que nos diz o filoacutesofo referindo-se ao heroacutei
que natildeo cai no erro por falha de caraacuteter mas por causa de
ἁμαρτίαν τινά ηλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο θαὶ
Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηλ ηνηνύησλ γελλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ εὐηπρίαο εἰο
δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ νἵνπ εἴξεηαη ἢ
βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο69 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
A primeira referecircncia de hamartia presente no texto de Aristoacuteteles diz ἁμαρηίαν
ηινά Liddell e Sccottlsquos (1996) informam-nos que aumlmartia significa filure error ou seja
falha erro Este substantivo eacute originado pelo verbo aumlmartanw definido como to miss miss
the mark quer dizer falharerrar eou errar o alvo Seu qualificador tina sendo pronome
indefinido expressa a indefiniccedilatildeo por meio de ―um algum Podemos entatildeo chegar agrave
traduccedilatildeo para aumlmartian tina como ―errar um alvo Este sentido indefinido dificulta-nos
para sabermos a que erro Aristoacuteteles se refere contudo essa indefiniccedilatildeo daacute-nos um indiacutecio
importante esse erro pode ser de origens diversas
Em aumlmartian megalhn poderemos entender melhor o que seria o erro traacutegico
indicado por Aristoacuteteles O termo megalhn equivale a megaj que significa aquilo que eacute
largo grande importante Logo aumlmartian megalhn pode ser traduzido por ―grande erro
68
Ibidem 69
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
78
Percebemos entatildeo que este erro fundamental para o decorrer da accedilatildeo traacutegica eacute grandioso
grave muito importante para todo o contexto em que se estabelece
Baseada nas discussotildees acima sobre a hamartia aristoteacutelica podemos chegar agrave
conclusatildeo de que a hamartia natildeo estaacute relacionada como poder-se-ia pensar a um erro moral
originado em decorrecircncia de uma falha de caraacuteter Na verdade apesar de ser um grande eou
grave erro ele eacute sem intencionalidade Todavia esta falta de intenccedilatildeo natildeo o exime do traacutegico
Este natildeo deve ser confundido como um castigo e sim como uma mudanccedila de fortuna que
geralmente ocasiona para o agente um infeliz resultado
Esse grandioso erro tambeacutem eacute indefinido por isso o aumlmartian tina que nos
sugere uma falha natildeo especiacutefica impedindo-nos de definir o que seria um erro traacutegico ou natildeo
mas que eacute um aumlmartian megalhn um grande erro Todavia ressaltamos que haacute falhas
traacutegicas por excelecircncia como por exemplo as cometidas contra os deuses aleacutem das
realizadas como diz-nos o proacuteprio Aristoacuteteles (19791995) no capiacutetulo XIV contra pessoas
da famiacutelia
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον70 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando venha ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
O fato de existirem essas situaccedilotildees traacutegicas por natureza faz com que entendamos
o impacto traacutegico das trageacutedias Medeacuteia Oresteacuteia e Eacutedipo Rei ateacute hoje pelos assassinatos
entre familiares Por isso temos a existecircncia de famiacutelias em que se delineiam o traacutegico
mesmo com o passar das geraccedilotildees a exemplo da dos Labdaacutecidas e dos Atridas E eacute esse
aspecto do conflito familiar somado aos finais infortunados que segundo Aristoacuteteles acaba
por fazer Euriacutepedes ser o mais tragikomacrj dos poetas
Atraveacutes das consideraccedilotildees acima realizadas tentamos compreender definiccedilotildees e
aspectos relativos ao traacutegico a partir da Poeacutetica Esta obra legou-nos as primeiras reflexotildees
teoacutericas sobre a literatura mais especificamente sobre a trageacutedia e a epopeacuteia Tentamos
70
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
79
depreender atraveacutes dela a estrutura e significaccedilatildeo do traacutegico para as trageacutedias gregas como
tambeacutem para as epopeacuteias homeacutericas jaacute que nelas podemos encontrar consideraacutevel
manifestaccedilatildeo de tragicidade presente por exemplo no Canto XI da Odisseacuteia
24 A busca do traacutegico outras reflexotildees teoacutericas
Na tentativa de compreender melhor a categoria do traacutegico claacutessico
continuaremos em busca de seu entendimento mas desta vez percorrendo os conceitos e as
discussotildees realizadas por outros autores Este processo assim como os demais que
desenvolvemos ateacute entatildeo tem o propoacutesico de subsidiar-nos para a compreensatildeo do nosso
objetivo geral que eacute o de analisar a tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Em auxiacutelio agrave nossa
proposta contribuem os seguintes autores Jean-Pierre Vernant Grimal Jacqueline de
Romilly Anatol Rosenfeld Junito Brandatildeo Albin Lesky e Sandra Luna
Em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) Jean-Pierre Vernant discorre que na
trageacutedia o homem (heroacutei) eacute posto para realizar uma escolha definitiva diante de um mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Para o autor isso seria a ―mateacuteria-prima da trageacutedia o primeiro aspecto
do conflito Diante disso a trageacutedia possui tambeacutem algumas marcas que seriam tensatildeo entre
mito e pensamento citadino conflitos humanos de valores do mundo e do universo divino
caracteriacutestica ambiacutegua e equiacutevoco linguumliacutestico Estas marcas da trageacutedia satildeo fundamentais
tambeacutem para a realizaccedilatildeo do traacutegico principalmente no que diz respeito agrave tensatildeo e ao conflito
do homem para com os demais O homem como ―mateacuteria-prima do traacutegico vecirc-se desafiado
por decisotildees e suscetiacutevel perante sua fragilidade pois ―neste jogo do qual natildeo eacute senhor o
homem sempre corre o risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT
2008 p 21)
Estas decisotildees afligem muitas vezes a jornada do homem que acaba por se tornar
uma sujeito traacutegico E assim aquele homem na eacutepica que exalta seu vigor e alcanccedila a gloacuteria
depara-se com sua fragilidade e finitude diante da vida e de suas circunstacircncias Por isso
Vernant (2008) considera que no traacutegico a accedilatildeo e o agir humano dividem-se em dois poacutelos o
primeiro eacute o de deliberar pesar eou prevecirc a melhor opccedilatildeo de escolha e o segundo eacute
considerar a presenccedila do incompreensiacutevel do desconhecido e de forccedilas sobrenaturais que
possam vir preparar seu sucesso ou sua derrota Assim o traacutegico estaacute indissoluvelmente
aliado a uma accedilatildeo que pressupotildee uma escolha
80
O autor afirma que a culpa traacutegica pode ser realizada de duas formas uma eacute
atraveacutes da hamartia que ele define como uma concepccedilatildeo religiosa do erro uma ―doenccedila do
espiacuterito em que o sujeito coagido por elementos superiores chega a cometer o delito a
outra eacute por meio do adikon71
em que o sujeito sem nenhuma coaccedilatildeo decide cometer o erro
Assim entendemos que o indiviacuteduo poder torna-se traacutegico ou por um erro sem
voluntariedade hamartia sob forccedilas superiores ou por deliberaccedilatildeo proacutepria por isso eacute
chamado de adikon injusto
Um aspecto bastante discutido sobre o traacutegico refere-se agrave existecircncia ou natildeo da
vontade e da responsabilidade humana Natildeo pretendemos aprofundar-nos nessa questatildeo
contudo ela nos serve para entender as circuntacircncias que levam ao traacutegico Assim Vernant
(2008) afirma que no Periacuteodo Arcaico da literatura grega natildeo haacute vocaacutebulo para designar a
vontade o querer direcionado ao homem mas sabemos que ela havia em relaccedilatildeo aos deuses
como se vecirc por exemplo na Iliacuteada (v5) No Periacuteodo Claacutessico mesmo ainda sem a existecircncia
dessa palavra para os homens jaacute comeccedilamos a ter o levantamento desses questionamentos
Mesmo porque o autor defende que para haver uma decisatildeo tem que existir alguma vontade
Desde que o indiviacuteduo se empenha numa decisatildeo que se decide
qualquer que seja o plano em que se situe sua resoluccedilatildeo ele se constitui a si
proacuteprio como agente isto eacute como sujeito responsaacutevel e autocircnomo que se
manifesta em atos e por atos que lhe satildeo imputaacuteveis (Ibidem 2008 p 26)
A necessidade (asup1namacrgkh) imposta pelos deuses eou pela ocasiatildeo impulsiona o
homem a tomar decisotildees Estas possuem de alguma maneira expressotildees de seus desejos
apesar de que muitas vezes soacute haacute uma escolha Por isso diz Vernant que se haacute uma vontade
ela natildeo eacute autocircnoma e sim ―amarrada pelo temor que o divino inspira se natildeo constragida por
potecircncias sagradas que assediam o homem no seu proacuteprio iacutentimo (VERNANT 2008 p 28)
Entatildeo concluimos que a partir da necessidade emana a accedilatildeo do homem pois segundo
Vernant ainda natildeo podemos falar em vontade na trageacutedia grega Na verdade ela ―marca uma
etapa e como que uma virada na histoacuteria dos avanccedilos do homem grego antigo na direccedilatildeo da
vontade (Ibidem p 42)
A partir de sua exposiccedilatildeo Vernant (2008) define o traacutegico como a interrogaccedilatildeo do
homem sobre seus atos chegando ao ponto de fazer daquele heroacutei eacutepico exemplar o
responsaacutevel por sua accedilatildeo errocircnea Tal accedilatildeo volta-se contra ele mesmo ocasionando o
71
Esta palavra em grego aatildedikoj eacute formada pelo a privativo mais o radical dik de dikhmacr justiccedila Logo
aatildedikoj significa injusto
81
contraacuterio do que ele pretendia Percebemos por isso que o traacutegico faz-nos interrogar sobre a
condiccedilatildeo humana e suas fronteiras estas que satildeo colocadas a cada um sejam aos grandes
heroacuteis como Aquiles ou aos deuses como vemos em Prometeu Cadeeiro (2009) Por
exemplo o Pelida no encontro com Odisseu no Hades mostra-se arrependido da escolha que
fez de morrer em campo de batalha Como se vecirc a decisatildeo de Aquiles voltou-se contra ele
mesmo Entretanto tal situaccedilatildeo analisaremos melhor no capiacutetulo a seguir
Pierre Grimal em O Teatro Antigo (2002) diz que a trageacutedia grega desenvolve-se
num periacuteodo histoacuterico de bastante relevacircncia jaacute que nesse momento foi realizada uma
elevada criaccedilatildeo filosofia Diante desse contexto as trageacutedias em forma de accedilatildeo de drama
representavam acontecimentos oriundos das lendas heroacuteicas tatildeo cantadas pelos autores
eacutepicos todavia Grimal faz-nos a seguinte ressalva se para noacutes os acontecimentos encenados
possuem caraacuteter lendaacuterio para os gregos havia um significado histoacuterico E mais ainda na
trageacutedia aquele heroacutei que para os gregos fazia parte da histoacuteria vecirc sua fragilidade diante de
um impasse porque
A trageacutedia mais do que esclarescer o significado metafiacutesico do mito
(como o faraacute Heacutercules no Etna de Secircneca) traz agrave luz do dia a infeliz
condiccedilatildeo dos mortais incapazes de compreenderem as consequumlecircncias de
suas accedilotildees quando cedem natildeo soacute ao irresistiacutevel poder do Amor como agraves
outras paixotildees que os deuses lhes enviam (GRIMAL 2002 p 45)
Se no Periacuteodo Arcaico as eacutepicas ilustram as grandes guerras e os magistrais
combates dos heroacuteis no Periacuteodo Claacutessico tanto poetas quanto filoacutesofos conforme indica
Grimal (2002) centralizam suas discussotildees no ser humano Este seraacute o protagonista do
traacutegico pois deparando-se com o conflito as armas e o vigor fiacutesico natildeo mais podem fazecirc-lo
vencedor como ocorria nas eacutepicas Ao contraacuterio toda a sua accedilatildeo reverte-se para si mesmo e
levando-o ao traacutegico Isso veremos bem no proacuteximo capiacutetulo atraveacutes do relato de
Agamecircmnon no Canto XI da Odisseia em que se percebe que toda a sua nobreza e heroiacutesmo
relatados na Iliacuteada natildeo o impediu de ter uma morte traacutegica e indigna
Em A trageacutedia Grega (2008) Jacqueline de Romilly considera que o mito se
introduz na trageacutedia proporcionando-lhe sentido Assim podemos concluir que o traacutegico alia-
se ao mito e natildeo agrave estrutura formal da trageacutedia e ainda mais que o traacutegico eacute que daacute sentido a
trageacutedia grega Vejamos como ela considera a importacircncia do traacutegico dentro do panorama da
trageacutedia claacutessica
82
No conjunto a trageacutedia grega adquire assim mais uma ressonacircncia
particular por ter conservado um contato constante com as realidades
colectivas da vida poliacutetica tal como adquire uma forccedila mais rude por ter
conservado o contacto com os mitos originais mas nem num caso nem no
outro se confunde com a mateacuteria que lhe eacute fornecida assim O seu
verdadeiro alcance vem da interpretaccedilatildeo humana que daacute dos males evocados
E soacute esta interpretaccedilatildeo define verdadeiramente o traacutegico (ROMILLY 2008
p 168)
Por isso eacute que o traacutegico aleacutem de natildeo se relacionar tambeacutem natildeo deve ser
confundido com o melodrama moderno Mas para que essa proximidade natildeo ocorra e que
crimes como os de Medeacuteia Clitemnestra e Eacutedipo por exemplo natildeo sejam melodramas deve
haver o que Romilly (2008) chama de ―luz traacutegica Esta fundamentada na asup1namacrgkh
(necessidade) ou seja nas ―causas que ultrapassem o caso individual e que os tornem
necessaacuterios em nome das circuntacircncias que se impotildee aos homens Tanto que essas situaccedilotildees
traacutegicas poreacutem necessaacuterias ―ao mesmo tempo em que inspiram piedade pelas viacutetimas
inspiram tambeacutem piedade por eles piedade pelo homem (Ibidem p 168-169) E a accedilatildeo
dessas forccedilas sobrehumanas que impulsionam o homem pela necessidade satildeo indicadas pelo
proacuteprio coro segundo Romilly (2008)
Este sentimento de piedade Odisseu sentiraacute ao deparar-se com seus distintos
companheiros no Hades e ouvir o lamuacuterio pelo final traacutegico que a vida lhes reservou Isto
ocorre ateacute no caso de Aacutejax que mesmo sem falar ignorando a presenccedila de Odisseu
demonstra seu rancor por aquele que julga culpado de seu mal No caso de Agamecircmnon
segundo Romilly (2008) eacute a accedilatildeo do daacuteimon daimacrmwn 72 enquanto para Aacutejax eacute a accedilatildeo do
destino Teriacuteamos em suma duas causalidades uma que eacute regida pela forccedila superior e outra
pela vontade humana e que segundo a autora ―jaacute presente em Homero esta dupla
causalidade existe para sempre na trageacutedia (Ibidem p 172) ateacute porque no mundo grego em
geral elas coexistiam sem haver contradiccedilotildees
A autora por mais que natildeo acredite haver vontade nas trageacutedias considera que haacute
algum comprometimento humano Pois certo eacute que tudo ocorre pela vontade divina mas
tambeacutem o homem toma para si a responsabilidade no momento em que adere a accedilatildeo Natildeo haacute
renuacutencia entatildeo o sujeito traacutegico compromete-se Isto faz Romilly (2008) afirmar que ―o
divino e o humano combinam-se sobrepotildee-se A trageacutedia implica necessariamente a accedilatildeo e
seu autor sempre tenta agir bem ou mal Mas esta accedilatildeo traz-lhe graves consequecircncias Por
72
O daimacrmwn representa o divino sua vontade a sorte dividida pelo deus por isso o radical dai de daimacromai que eacute dividir partilhar
83
isso Romilly defende que haacute sempre uma espeacutecia de inocecircncia esta funcionando como
sinocircnimo de heroiacutesmo Vejamos
Que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos erros
dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre
neles uma parte de inocecircncia E mesmo quando nos satildeo apresentados como
culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro eacute o
lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o
lote do homem (ROMILLY 2008 p 175)
Esse heroiacutesmo imanente e ao mesmo tempo indissociaacutevel do heroacutei traacutegico faz
com que seja conservada a sua grandeza tendo triunfo mesmo na queda Isto eacute o personagem
traacutegico mesmo vendo mudar a sua figura de heroacutei eacutepico para a de heroacutei traacutegico ainda
manteacutem certa expressatildeo de inocecircncia de heroiacutesmo que provoca a simpatia e justifica o surgir
da piedade Como poderemos ver no momento de nossa anaacutelise Odisseu sente piedade pelos
seus companheiros ao reencontraacute-los no Hades por constatar o destino lamuriado de cada um
E mesmo apoacutes ouvir os relatos traacutegicos dos guerreiros manteacutem ainda o sentimento de
respeito natildeo se esquecendo da distinccedilatildeo proacutepria que ele mesmo testemenhou um dia
Anatol Rosenfeld em A teoria dos Gecircneros (1985) observa que a definiccedilatildeo e
classificaccedilatildeo dos gecircneros eacute artificial pois ―natildeo existe pureza de gecircneros em sentido absoluto
(ROSENFELD 1985 p 16) Contudo o autor avalia como importante esta sistematizaccedilatildeo
dos gecircneros por definir as diversas categorias literaacuterias E esta artificialidade eacute comprovada
com o fato de natildeo haver gecircnero puro O que haacute para o autor eacute o significado substantivo e
adjetivo dos gecircneros Naquele encontramos a essecircncia estiliacutestica de cada gecircnero eacute o que nos
possibilita definir o gecircnero de um texto pois eacute especiacutefico Por significado adjetivo
entendemos o traccedilo estiliacutestico aquilo que pode ser encontrado em todos os outros gecircneros
Por exemplo o corpus de nossa pesquisa Canto XI da Odisseacuteia tem como significado
substantivo o gecircnero eacutepico e como adjetivo o traccedilo do traacutegico Tal exemplificaccedilatildeo pode ser
feita com muitas outras obras porque ―no fundo poreacutem toda obra literaacuteria de certo gecircnero
conteraacute aleacutem dos traccedilos estiliacutesticos mais adequados ao gecircnero em questatildeo tambeacutem traccedilos
estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (Ibidem p 19)
Todas essas ponderaccedilotildees de Rosenfeld (1985) a respeito da teoria dos gecircneros e
de seus significados adjetivo e substantivo contribuem para o nosso trabalho em alguns
pontos Elas creditam nossa pesquisa em analisar a presenccedila do traacutegico numa epopeacuteia
homeacuterica Tais consideraccedilotildees aleacutem de reforccedilar que natildeo haacute gecircnero puro (e que talvez nunca
tenha existido) permite-nos demonstrar que essa pureza nem mesmo na Antiguidade Claacutessica
84
existiu apesar de muitos verem esse periacuteodo como sinocircnimo de uma produccedilatildeo literaacuteria
regrada de estrutura fechada A anaacutelise do nosso trabalho abre perspectivas para entendermos
que as inovaccedilotildees estiliacutesticas as influecircncias e a interpenetraccedilatildeo de gecircneros satildeo procedimentos
realizados desde a Antiguidade e natildeo como uma singularidade moderna No final das
avaliaccedilotildees como diz o proacuteprio Rosenfeld (1985) ser puro ou natildeo natildeo define a qualidade de
um trabalho
Apoacutes discorrer sobre o nascimento da trageacutedia Junito Brandatildeo em Teatro Grego
(2009) fala-nos a respeito de outro elemento importante para a compreensatildeo do traacutegico
uAgravebrij73 e aatildeth74
A primeira ocorre quando o heroacutei ultrapassa o meacutetron a medida
cometendo entatildeo a uAgravebrij A segunda eacute o resultado da hyacutebris pois diante desta soacute resta ao
heroacutei ser punido pelos deuses que lhe lanccedilam a ateacute Tomado pela uAgravebrij e aatildeth todo e
qualquer ato que o heroacutei realizar se voltaraacute contra ele Para o autor o traacutegico se enquadra com
os seguintes envolvimentos apoacutes a ultrapassagem do meacutetron hyacutebrisrarr neacutemesis (nemacrmesij-
ciuacuteme divino)rarr ateacuterarr Moira (Moiordfra- destino cego puniccedilatildeo divina) Por esse processo ele
afirma que no sentido religioso a trageacutedia grega suplica contra a desmedida
No Canto XI da Odisseacuteia avaliaremos a presenccedila desses elementos da trageacutedia
(uAgravebrij aatildeth nemacrmesij Moiordfra) Observaremos atraveacutes do destino dos heroacuteis mais
precisamente de Agamecircmnon e de Aacutejax a influecircncia destas forccedilas sobre-humanas
Junito Brandatildeo faz uma distinccedilatildeo importante entre conflito traacutegico fechado e uma
situaccedilatildeo traacutegica A primeira implica um final desditoso eacute a accedilatildeo do destino traacutegico como
vemos em Eacutedipo Rei e em Antiacutegona Jaacute no segundo o final natildeo eacute desditoso Parte-se do
infortuacutenio para a fortuna pois o que eacute traacutegica eacute a situaccedilatildeo vivida natildeo o seu fim como o
exemplo lido em Alceste Porque ―() o traacutegico pode natildeo estar no fecho mas no corpo da
trageacutedia Chamamos por isso mesmo trageacutedia a peccedila cujo conteuacutedo eacute traacutegico e natildeo
necessariaamente o fecho (Ibidem p 15) Esta diferenccedila eacute importante para a nossa anaacutelise
porque observaremos uma situaccedilatildeo traacutegica jaacute que na Odisseacuteia natildeo haacute espaccedilo para se falar
em destino traacutegico No Canto XI podemos observar tanto uma ―situaccedilatildeo traacutegica como por
exemplo a vivida por Odisseu como tambeacutem um ―conflito traacutegico fechado o que pode ser
73
Em grego uAgravebrij indica a accedilatildeo de insolecircncia violecircncia soberba excesso ou seja uma accedilatildeo fruto de uma
desmedida 74
Em grego aatildeth significa um infortuacutenio segundo o Bailly (2000) eacute um flagelo enviado pelos deuses como a
puniccedilatildeo por algum fato conhecida tambeacutem como uma cegueira enviada pelos deuses
85
visto por exemplo atraveacutes do relato de Agamecircmnon e da visualizaccedilatildeo de Aacutejax e seu eterno
sentimento de desonra
Albin Lesky em A trageacutedia Grega (2006) alerta-nos logo ao iniacutecio de que natildeo
tentaraacute encontrar uma foacutermula para o traacutegico Entre outras coisas sua obra ajuda-nos a tentar
compreender se o traacutegico estaacute unicamente relacionado agrave trageacutedia ou se como acreditamos a
outros meios literaacuterios Tendo em vista que ―() jaacute se encontram os germes em que se prepara
a primeira e ao mesmo tempo a mais perfeita objetivaccedilatildeo da visatildeo do mundo no drama do
seacuteculo V (LESKY 2006 p 23) Inclusive a partir dos novos estudos feitos da Iliacuteada e da
Odisseacuteia o autor informa-nos que ―suscita-se com crescente vivacidade a questatildeo relativa aos
germes do traacutegico nas duas epopeacuteias (Ibidem) Eacute por isso que Karl Jaspers citado por Lesky
(2006) refere-se a Homero como a mais antiga manifestaccedilatildeo do traacutegico Tal posicionamento
respalda nossa pesquisa
Na comprovaccedilatildeo dessa existecircncia do traacutegico jaacute nas epopeacuteias homeacutericas Lesky
(2006) aponta-nos alguns fatores para esse entendimento Assim em Homero jaacute vemos que
os heroacuteis apesar de na maioria das vezes serem exaltados podem ter um destino venturoso
ou desventuroso a depender dos desiacutegnios divinos Como exemplo ele cita o Canto I da
Iliacuteada mas noacutes exemplificaremos pelo Canto XI da Odisseacuteia pois neste vemos a desventura
narrada por exemplo por Aquiles dizendo preferir ser um trabalhador do campo a reinar
sobre os mortos Eacute narrada tambeacutem a desventura de Agamecircmnon que pelo histoacuterico da
famiacutelia Atrida e por ter sacrificado sua filha seraacute penalizado pelo proacuteprio cocircnjuge Como
destino venturoso podemos citar o do proacuteprio Odisseu que cumpre uma das suas mais
difiacuteceis missotildees que eacute descer ateacute a entrada do Hades e depois voltar tendo o direito de poder
continuar em sua jornada
Aleacutem dessa mobilidade humana entre a ventura e a desventura Lesky (2006) cita
tambeacutem que vemos em Homero o encadeamento das accedilotildees e de tudo o que as envolvem Haacute
tambeacutem a centralidade do tempo e da accedilatildeo ocorrendo em alguns momentos a
presentificaccedilatildeo de algumas narraccedilotildees como se elas ocorressem naquele instante mesmo com
narraccedilotildees em flah-back Para noacutes vale destacar que estes elementos tambeacutem podem ser
verificados na Odisseacuteia em que as accedilotildees assim como na Iliacuteada satildeo encadeadas havendo
para cada uma delas um resultado que leva o personagem ao seu objetivo No Canto XI por
exemplo o cumprimento do ritual (nemacrkuia) por Odisseu o leva para casa Vecirc-se tambeacutem
neste canto uma narraccedilatildeo bastante centralizada no tempo em que os fatos ocorrem e de tudo
86
que estaacute em volta De modo que ateacute as narraccedilotildees feitas por Odisseu aos Feaacutecios de tudo que
passara aparentam estar ocorrendo naquele mesmo instante
Assim segundo o autor como natildeo eacute faacutecil descrever o processo de evoluccedilatildeo do
traacutegico tambeacutem natildeo eacute de entendecirc-lo no contexto claacutessico por natildeo ter sido legada uma teoria
pelos gregos Mesmo diante da complexidade expressa ele faz alguns comentaacuterios sobre o
traacutegico conforme Aristoacuteteles Para este o traacutegico possui o sentido de algo solene desmedido
mas depois passou a indicar o terriacutevel estarrecedor o bombaacutestico perdendo completamente o
sentido da induccedilatildeo e da necessidade Lesky (2006) considera ainda que para haver o
sentimento traacutegico ―o caso deve interessar-nos afetar-nos comover-nos Quando nos
sentimos atingidos nas profundas camadas de nosso ser eacute que experimentamos o traacutegico
(Ibidem p 33) Aleacutem disso o imerecimento tambeacutem eacute fundamental para que alcancemos a
sensaccedilatildeo traacutegica pois o imerecido faz-nos sentir compaixatildeo Jaacute o sujeito para se identificar
como traacutegico deve ter consciecircncia conhecimento do seu padecer No Canto XI da Odisseacuteia
poderemos verificar alguns desses elementos como a desmedida o despertar da comoccedilatildeo a
compaixatildeo o imerecido e toda uma vivecircncia do traacutegico mesmo que incipiente
Questionando se o traacutegico natildeo teria seu significado estabelecido na Poeacutetica Lesky
diz acreditar que na catarse estaria a essecircncia do traacutegico Por tudo o que foi referido
consideramos que Homero deu os passos iniciais das trageacutedias que estavam por vir e com
isso tambeacutem entendemos o porquecirc de ele jaacute ter sido considerado o pai da trageacutedia Natildeo
entraremos nessa discussatildeo mas concordamos com Lesky de que Homero eacute ―um preluacutedio agrave
objetivaccedilatildeo do traacutegico na obra de arte (LESKY 2006 p 25)
Sandra Luna em Arqueologia da Accedilatildeo Traacutegica (2005) realiza importantes
explicaccedilotildees sobre o traacutegico que seratildeo relevantes para a nossa pesquisa Depois de expor os
indiacutecios antropoloacutegicos e literaacuterios sobre a existecircncia do traacutegico antes da trageacutedia a autora
afirma que Homero pelas epopeacuteias jaacute nos apresentava o traacutegico apesar de este natildeo ser seu
objetivo Explica ainda que essa veiculaccedilatildeo do traacutegico com Homero deve ser feita por haver
algumas discussotildees a esse respeito Aleacutem do mais diz ser inegaacutevel a presenccedila dos momentos
de tragicidade verificadas ao longo de suas epopeacuteias Para tanto ela cita o Canto IX da
Odisseacuteia e ressalta que a morte dos companheiros de Odisseu alerta-nos sobre o destino e
sobre a fragilidade humana Pois ―() a vida gloriosa do heroacutei eacutepico projeta-se
necessariamente sobre o fundo sombrio das desventuras () (LUNA 2005 p 30)
Ao longo de nossa anaacutelise verificaremos essa tragicidade homeacuterica reforccedilada
pelos desiacutegnios divinos pela accedilatildeo do destino e da fragilidade humana pois o heroacutei um dia iraacute
deparar-se com sua condiccedilatildeo humana portanto com a fraqueza e a instabilidade Destino esse
87
que tanto conduz Odisseu agrave ventura em seu retorno ao lar como tambeacutem fez sua matildee
Anticleacuteia padecer de saudades do filho de quem ela natildeo mais tinha notiacutecias Esse destino
infortunado tambeacutem natildeo permitiu que Agamecircmnon morresse na guerra Desta forma tendo jaacute
retornado pensa estar protegido em seu palaacutecio mas eacute surpreendido pela morte traiccediloeira Por
isso Luna afirma-nos
Vale a pena refletir mais pausadamente sobre a recorrecircncia dos
elementos traacutegicos nas epopeacuteias gregas atentando para os episoacutedios que
reiteradamente fazem ecoar a condiccedilatildeo de instabilidade da vida humana Satildeo
inuacutemeras as incidecircncias aleacutem daquelas implicadas nas duas centenas de
mortes referenciadas na Iliacuteada (Ibidem p 31)
Sandra Luna natildeo considera Homero como pai da trageacutedia com isso podemos
tambeacutem concordar todavia consideramos que ele foi o responsaacutevel pela fundamentaccedilatildeo
literaacuteria do traacutegico A autora afirma tambeacutem que Homero natildeo alimenta o traacutegico dispersando-
o por meio de banquetes e mudanccedilas de cena ele apenas o deixa entrever Tal constataccedilatildeo eacute
verdadeira assim como eacute verossiacutemil que Homero natildeo o alimente senatildeo teria feito uma eacutepica
sem coerecircncia o que natildeo ocorre pois a presenccedila do traacutegico natildeo desnorteia o teor eacutepico ao
contraacuterio sua presenccedila o enriquece Mas tambeacutem natildeo podemos negar que as mortes narradas
por Homero satildeo carregadas de envolvimentos externos que aumentam a tragicidade ele natildeo
nos poupa dos detalhes traacutegicos Basta-nos lembrar das narraccedilotildees que Odisseu ouve de como
ocorreram as mortes de sua matildee de Aquiles e de Agamecircmnon e ao final de cada relato
todos se derramavam em laacutegrimas
Luna (2005) informa-nos ainda que o conflito entre mito e razatildeo seraacute
―determinante para o surgimento do que estamos chamando de espiacuterito traacutegicolsquo na trageacutedia
manifestando-se esse espiacuterito na consciecircncia da morte natildeo como parte da vida mas como fim
da vida portanto como fenocircmeno aterrorizante e lutuoso (LUNA 2005 p 169) No
proacuteximo capiacutetulo analisaremos a presenccedila desse ―espiacuterito traacutegico no Canto XI da Odisseacuteia
em que o heroacutei protagonista deparando-se com a morte de amigos e familiares vive a
assustadora finitude da vida aleacutem de sua circunstacircncia imerecida Outro fator reitera a nossa
fundamentaccedilatildeo em estudar o traacutegico na Odisseacuteia pois a autora indica-nos a existecircncia de
estudos sobre o conflito entre muordfqoj e lomacrgoj (mito e razatildeo) na Odisseacuteia
Ao falar sobre sua tese de racionalizaccedilatildeo do traacutegico Luna aponta-nos a presenccedila
de alguma responsabilidade humana nem que seja por suas fraquezas que ―() contribuem
para acionar a maacutequina traacutegica (Ibidem p 171) Pois natildeo soacute os deuses os encaminham para
o traacutegico como eles mesmos podem dirigir-se a ele Talvez seja por essa possibilidade de
88
escolha que Agamecircmon no Hades alerta Odisseu para natildeo confiar em sua esposa Peneacutelope
pois isso poderia levaacute-lo a uma indigna morte assim como havia ocorrido com ele proacuteprio
E apoacutes considerar que a catarse eacute o objetivo maior da trageacutedia a autora diz-nos
que o caminho do heroacutei eacutepico deve servir de modelo Ele eacute um exemplo de honra e vigor a ser
seguido Ao contraacuterio do heroacutei traacutegico que muitas vezes sendo ateacute o mesmo que jaacute figurou
distinto nas eacutepicas deve ter sua trajetoacuteria como modelo do que natildeo deve ser seguido e sim
do que devemos evitar Tal afirmaccedilatildeo eacute bastante vaacutelida para nossa anaacutelise do Canto XI pois
neste temos claramente perfis apresentados de heroacuteis eacutepicos e traacutegicos Deste modo
Odisseu passando pela catarse vive um processo forte de aprendizagem do que natildeo deve
seguir atraveacutes do traacutegico relato de Aquiles e Agamecircmnon e do fim de Aacutejax que pode
contemplar Assim enquanto Odisseu nos representa o que devemos seguir como modelo os
relatos do Pelida e do Atrida somada agrave lamentaacutevel condiccedilatildeo de Aacutejax ilustra-nos a condiccedilatildeo
de um heroacutei traacutegico cujo exemplo devemos evitar
Ao longo desse capiacutetulo desenvolvemos trecircs toacutepicos que consideramos
importantes para uma melhor apreensatildeo do traacutegico No primeiro discorremos sobre as
relaccedilotildees e especificidades do traacutegico e da trageacutedia As diferenccedilas estabelecidas permitem-nos
compreender a pertinecircncia em estudar uma configuraccedilatildeo do traacutegico em uma epopeacuteia No
segundo toacutepico destacamos as teorizaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre as trageacutedias gregas e a partir
delas tentamos entender o que o filoacutesofo comprende do traacutegico e dos elementos que
circundam em sua realizaccedilatildeo No terceiro foram expostas algumas explanaccedilotildees teoacutericas do
traacutegico feitas por autores diversos De modo geral toda a abordagem realizada contribuiu
para a compreensatildeo de alguns pontos que seratildeo importantes para o nosso proacuteximo capiacutetulo no
qual nos aprofundaremos na anaacutelise da tragicidade verificada no Canto XI da Odisseacuteia
89
3 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
31 Odisseacuteia momentos de tragicidade
Neste terceiro capiacutetulo propomos realizar a anaacutelise da tragicidade identificada ao
longo do deacutecimo primeiro livro da Odisseacuteia Para tanto dedicamos este primeiro subtoacutepico agrave
ilustraccedilatildeo de que a tragicidade a ser analisada no Canto XI natildeo eacute uma exceccedilatildeo dentro da obra
tanto que em outros cantos podem ser vistas tambeacutem situaccedilotildees com teor traacutegico E apoacutes o
desenvolvimento dos aspectos citados dedicaremos um segundo toacutepico ―Tragicidade no
Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles Agamecircmnon Aacutejax para a anaacutelise especiacutefica do
traacutegico no Canto XI principalmente a partir das circunstacircncias em que Odisseu encontra-se
com a sua matildee Anticleacuteia e seus antigos companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e
Aacutejax Como pode ser percebido adiantamos que o fator de parentesco e os viacutenculos de
amizade satildeo intensificadores da accedilatildeo traacutegica ocasiatildeo que seraacute analisada no proacuteximo toacutepico
Como abordamos nos dois capiacutetulos anteriores Homero aleacutem de ter nos deixado
as duas grandes epopeacuteias do Ocidente Iliacuteada e Odisseacuteia legou-nos tambeacutem as primeiras
representaccedilotildees literaacuterias do traacutegico Representaccedilotildees estas que por volta do seacuteculo V e IV aC
seratildeo o cerne das trageacutedias elaboradas por tragedioacutegrafos como Eacutesquilo Soacutefocles e Euriacutepedes
Estes satildeo bastante influenciados pelas obras homeacutericas ao ponto de desenvolverem em suas
obras situaccedilotildees jaacute prenunciadas em Homero a exemplo da Oresteacuteia de Eacutesquio e Aacutejax de
Soacutefocles
Considerado por alguns como o ―pai da trageacutedia Homero natildeo nos poupou
representaccedilotildees traacutegicas Por isso apesar de elegermos o Canto XI da Odisseacuteia como o livro
em que haacute maior intensidade nessas representaccedilotildees destacamos tambeacutem que no transcorrer
da obra outros momentos de grande teor traacutegico podem ser contemplados Com isso
objetivamos respaldar ainda mais a nossa pesquisa mostrando que a tragicidade pode ser
encontrada na Odisseacuteia em momentos distintos natildeo estando restrita a um uacutenico canto
Lesky (2006) ressalta-nos que Homero legou-nos germes do traacutegico em suas
epopeacuteias Em congruecircncia com esta afirmaccedilatildeo Sandra Luna (2005) diz ser possiacutevel a
identificaccedilatildeo de momentos traacutegicos na literatura homeacuterica Tais assertivas jaacute discutidas no
segundo capiacutetulo acabam sendo motivadoras deste nosso percurso ao longo dos versos da
90
Odisseacuteia em busca de momentos traacutegicos ou ao menos de episoacutedios que nos vislumbrem
tragicidade Sabemos que para a ocorrecircncia de uma vivecircncia do traacutegico satildeo importantes
elementos como o imerecido a ideacuteia de culpa75
pela ultrapassagem do meacutetron a compaixatildeo o
temor pois todas essas circunstacircncias propiciam o despertar da comoccedilatildeo Assim logo ao
iniacutecio da epopeacuteia no Canto I deparamo-nos com a representaccedilatildeo de um sofrimento que nos eacute
apresentado como imerecido Tal situaccedilatildeo ocorre quando Telecircmaco entre os versos 214-220
responde agrave deusa Atena transfigurada como Mentes sobre sua ascendecircncia jaacute que esta havia
perguntado se ele seria filho de Odisseu e ele responde
215 κήηεξ κέλ ηέ κέ θεζη ηνῦ ἔκκελαη αὐηὰξ ἐγώ γε
νὐθ νἶδ᾽ νὐ γάξ πώ ηηο ἑὸλ γόλνλ αὐηὸο ἀλέγλσ
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ κάθαξόο λύ ηεπ ἔκκελαη πἱὸο
ἀλέξνο ὃλ θηεάηεζζηλ ἑνῖο ἔπη γῆξαο ἔηεηκε
λῦλ δ᾽ ὃο ἀπνηκόηαηνο γέλεην ζλεηλ ἀλζξώπσλ
220 ηνῦ κ᾽ ἔθ θαζη γελέζζαη ἐπεὶ ζύ κε ηνῦη᾽ ἐξεείλεηο76
((Odisseacuteia I 215-220)
Minha matildee diz que fui gerado por ele mas
pelo menos eu natildeo o sei na verdade natildeo
existe algueacutem que saiba de sua sproacutepria origem
Como eu desejei ser filho de algueacutem abenccediloado
de um varatildeo que vegasse agrave velhice com suas riquezas
Agora do mais infeliz dos homens mortais
eu descendo digo-te jaacute que tu perguntas
Como podemos perceber Telecircmaco sente anguacutestia e sofre pelo desaparecimento
do pai de quem ele natildeo se lembra da fisionomia tendo em vista que era muito pequeno
quando haacute vinte anos Odisseu partira para Troacuteia A passagem citada provoca-nos o
sentimento de piedade o que nos incita a sensaccedilatildeo do traacutegico Ou seja natildeo queremos dizer
que Telecircmaco seja um personagem traacutegico e sim que possui um estado permeado por
elementos importantes para a efetivaccedilatildeo do traacutegico como o imerecimento e o suscitar da
75
O termo referido natildeo se relaciona a ideacuteia de culpa cristatilde ligada ao pecado do indiviacuteduo a algo noscivo do qual
os cristatildeos devem distanciar-se para que natildeo sejam punidos Ao utilizarmos a palavra ―culpa remetemo-nos ao
sentimento de responsabilizaccedilatildeo projetada no homem que foi resultado de accedilotildees do divino do destino de sua
desmedida ou seja resultado de uma construccedilatildeo coletiva E essa responsabilizaccedilatildeo a que nos referimos natildeo pode
ser compreendida pelo o que concebemos de ―culpa cristatilde jaacute que esta estaacute envolta com a noccedilatildeo de indiviacuteduo
culpado e que portanto deve ser punido pelos seus proacuteprios atos No processo de realizaccedilatildeo do traacutegico podemos
encontrar a culpa a responsabilizaccedilatildeo do homem por seus atos fazendo-os chegarem ao destino ou a momentos
traacutegicos Contudo sabemos que na eacutepica e nas trageacutedias gregas a accedilatildeo divina e todo um construto coletivo
impulsionam-os ao erro daiacute o distanciamento com o sentimento de culpa apregoada pelo cristianismo 76
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D178 retirado agraves 2035h em 20 de dezembro de 2010
91
piedade Mesmo porque diz-nos Lesky (2006) que o sentimento traacutegico ocorre quando algo
nos afeta nos comove fazendo com que nos sintamos atingidos ―nas profundas camadas de
nosso ser77
(LESKY 2006 p33) Contudo sentimo-nos ainda mais aflitos ao sabermos que
Telecircmaco natildeo sofre apenas por natildeo se recordar do pai e saber de seu estado se vivo ou morto
mas tambeacutem por ver toda a sua heranccedila ser consumida dia a dia pelos pretendentes que
cortejam sua matildee e destroem seus bens Vejamos o que ele diz a Atena sobre sua afliccedilatildeo
uacutenica heranccedila que ele considera que o pai deixou
νὐδέ ηη θεῖλνλ ὀδπξόκελνο78
ζηελαρίδσ
νἶνλ ἐπεί λύ κνη ἄιια ζενὶ θαθὰ θήδε᾽ ἔηεπμαλ
()
ηξύρνπζη δὲ νἶθνλ
ἡ δ᾽ νὔη᾽ ἀξλεῖηαη ζηπγεξὸλ γάκνλ νὔηε ηειεπηὴλ
250 πνηῆζαη δύλαηαη ηνὶ δὲ θζηλύζνπζηλ ἔδνληεο
νἶθνλ ἐκόλ ηάρα δή κε δηαξξαίζνπζη θαὶ αὐηόλ79
(Odisseacuteia I 243-244 248-251)
Natildeo eacute soacute por este algueacutem que eu lamento mas
nesse instante sofro por mim com os males que os deuses ocasionam-me
()
A matildeo e o palaacutecio eles me consomem e
ela nem recusa o casamento abominaacutevel nem aceitar
eacute capaz de fazer assim eles acabam consumindo
meu palaacutecio e rapidamente destruiratildeo a mim mesmo
Diante de tais lamuacuterios como sabemos a narrativa prossegue e Atena aconselha-o
a partir em busca de notiacutecias do pai Nessa citaccedilatildeo percebemos que Telecircmaco natildeo se sente
apenas angustiado por sofrer pelo pai o sentimento que o toma eacute ainda mais traacutegico a dor
imerecida A partida do pai mesmo a contragosto para a Guerra de Troacuteia provoca em
Telecircmaco a anguacutestia espera do pai que ele natildeo conheceu efetivamente A guerra se encerra
mas Odisseu natildeo retorna e nenhuma notiacutecia eacute trazida sobre o paradeiro do rei de Iacutetaca soacute
77
Apesar de servir para nossa anaacutelise destacamos que a afirmaccedilatildeo de Lesky (2006) pode ser relativizada tendo
em vista que ele define o sentimento traacutegico a partir de seu caraacuteter metafiacutesico relacionado agrave recepccedilatildeo dos
espectadoresleitores 78
A utilizaccedilatildeo do particiacutepio presente ὀδσρόμενος eacute apropiada ao contexto por indicar a simultaneidade da accedilatildeo
expressa pelo verbo Assim ὀδσρόμενος indica-nos que a lamentaccedilatildeo de Telecircmaco natildeo estaacute acabada
(perfectum) nem eacute pontual (aoristo) e sim inacabada por isso Homero coerentemente utilizou um tema do
infectum 79
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D230 retirado agraves 2041h em 20 de dezembro de 2010
92
comentaacuterios incertos Sua matildee Peneacutelope comeccedila entatildeo a ser cortejada por muitos homens
de Iacutetaca antigos conterracircneos de Odisseu ou de cidades vizinhas Para adiar o enlace com um
dos pretendentes ela tece pela manhatilde uma mortalha para Laertes e agrave noite quando todos
dormem destece num trabalho infindo Nesse transcorrer de tempo os servos e os bens
deixados pelo pai satildeo consumidos pelos pretendentes jaacute que estes vatildeo ao palaacutecio todos os
dias para banquetes e festejos enquanto esperam a decisatildeo da rainha Desse modo como se jaacute
natildeo bastasse natildeo ter vivido com o pai e a incerteza se ele se encontrava vivo ou morto
Telecircmaco sofre pelos bens que via sendo diluiacutedos a cada dia que se passava Desde crianccedila
sem ter cometido erro algum imerecidamente sofria males sem razatildeo E eacute esse sentimento
diante de uma dor imerecida que nos faz sentir esup1lemacroj a piedade ao mesmo tempo em que
nos faz temer passar por tal sofrimento o fomacrboj Assim sentindo compaixatildeo e temor
aproximamo-nos de um processo cataacutertico e entatildeo experimentamos o traacutegico Lembremos do
que nos diz Aristoacuteteles sobre o sentimento provocado pela imagem traacutegica
ἔλεος μὲν περὶ τὸν ἀνάξιον φόβος δὲ περὶ τὸν ὅμοιον80
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
() a piedade sobre o imerecido o temor sobre o semelhante
O imerecido sentimento que acentua nossa vivecircncia do traacutegico como jaacute vimos eacute
tambeacutem representado na vida de Odisseu o polutropoj81 que em suas muitas voltas e
maneiras protagoniza no decorrer dos cantos da Odisseacuteia cenas em que sofre com seus
muitos trabalhos Natildeo eacute pois sem propoacutesito que Atena logo no Canto I reclama a Zeus os
tantos sofrimentos de Odisseu por considerar que satildeo imerecidos diferentemente dos de
Egisto que satildeo bem cabidos agraves suas accedilotildees Por isso reclama a deusa
ἱέκελνο θαὶ θαπλὸλ ἀπνζξῴζθνληα λνῆζαη
ἧο γαίεο ζαλέεηλ ἱκείξεηαη νὐδέ λπ ζνί πεξ
80
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html retirado agraves 2025hs de 17 de julho
de 2010 81
Esse epiacuteteto foi explicado por noacutes anteriormente no primeiro capiacutetulo desse trabalho
93
60 ἐληξέπεηαη θίινλ ἦηνξ ιύκπηε νὔ λύ η᾽ δπζζεὺο
Ἀξγείσλ παξὰ λεπζὶ ραξίδεην ἱεξὰ ῥέδσλ
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ηί λύ νἱ ηόζνλ ὠδύζαν Ζεῦ82
(Odisseacuteia I 58-62)
Contudo Odisseu fica colocando-se a pensar sobre a fumaccedila
que se solta da sua terra que anseia ou ateacute mesmo agora morrer
Oliacutempico teu coraccedilatildeo natildeo se move Odisseu natildeo era querido
Quando ao lado das naves dos Argivos agradava-te fazendo sacrifiacutecios
Na ampla Troacuteia Agora o odeias tanto por que Zeus
A deusa questiona natildeo o sofrer de um homem mas o incompreensiacutevel fato de ver
um valoroso guerreiro um heroacutei que sempre respeitou e sacrificou pelos deuses sofrer
imerecidamente Neste caso o incompreensiacutevel soma-se ao imerecido para intensificar o
traacutegico pois aquele que cumpre com seus deveres natildeo pode sofrer sem causa o que nos
sugere a sensaccedilatildeo de injusticcedila de um destino indevido Questionado Zeus responde natildeo ter
ressentimento para com Odisseu ateacute mesmo porque ele sempre foi distinguido entre os
demais e sempre ofertou aos eternos Todavia uma uAacutebrij cometida para com Polifemo o
filho de Posiacutedon fez este desejar-lhe todo mal explica Zeus
ἀιιὰ Πνζεηδάσλ γαηήνρνο ἀζθειὲο αἰεὶ
Κύθισπνο θερόισηαη83
ὃλ ὀθζαικνῦ ἀιάσζελ
70 ἀληίζενλ Πνιύθεκνλ ὅνπ θξάηνο ἐζηὶ κέγηζηνλ84
(Odisseacuteia I 68-70)
Entretanto Posiacutedon que a terra estremece cultiva para sempre
o oacutedio enfurecido por ele ter tornado cego do olho o Ciclope
O dado agora acrescentado do desagrado cometido por Odisseu a Polifemo e
consequentemente ao seu pai Posiacutedon mostra tambeacutem que os atos iacutempios satildeo
inevitavelmente punidos A desmedida a uAacutebrij cometida eacute traacutegica porque eacute necessaacuteria
sendo portanto inevitaacutevel Um exemplo dessa uAacutebrij inevitaacutevel necessaacuteria encontramos
82
Texto disponiacuteevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2039h em 20 de novembro de 2010 83
O uso do perfectum kexolwtai de xolow ndash enfurecer sugere-nos que a accedilatildeo verbal neste caso a raiva de
Posiacutedon eacute perfeita acabada ou seja natildeo indica o processo e sim o resultado de uma accedilatildeo (MURACHO 2007)
Por isso na citaccedilatildeo acima a utilizaccedilatildeo de kexolwtai representa o ―enfurecido deus como resultado da accedilatildeo
de Odisseu ao ter furado o olho do seu filho 84
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D13Acard3
D44 retirado agraves 2040h em 20 de novembro de 2010
94
no Canto IX em que se narra a perda de Odisseu dos seus doze dos mais fortes companheiros
que satildeo comidos pelo Ciclope Polifemo Tal situaccedilatildeo faraacute com que o Laertida e os soacutecios
sobreviventes presenciem cenas horrendas e dolorosas daiacute todos se vecircem impelidos pela
necessidade de agirem contra o Ciclope Para entendermos melhor a explanaccedilatildeo vejamos
uma dessas cenas em que o Polifemo devora seus companheiros
ζὺλ δὲ δύσ κάξςαο ὥο ηε ζθύιαθαο πνηὶ γαίῃ
290 θόπη᾽ ἐθ δ᾽ ἐγθέθαινο ρακάδηο ῥέε δεῦε δὲ γαῖαλ
ηνὺο δὲ δηὰ κειετζηὶ ηακὼλ ὡπιίζζαην δόξπνλ
ἤζζηε δ᾽ ὥο ηε ιέσλ ὀξεζίηξνθνο νὐδ᾽ ἀπέιεηπελ
ἔγθαηά ηε ζάξθαο ηε θαὶ ὀζηέα κπειόεληα
ἡκεῖο δὲ θιαίνληεο ἀλεζρέζνκελ Δηὶ ρεῖξαο
295 ζρέηιηα ἔξγ᾽ ὁξόσληεο ἀκεραλίε δ᾽ ἔρε ζπκόλ85
(Odisseacuteia IX 289-295)
Tendo apreendido dois como a cachorros sobre a terra
os lanccedilou o ceacuterebro de cada um correu ao chatildeo e molhou o solo
O jantar preparou com eles tendo partido seus membros
comia como um leatildeo montanhecircs natildeo deixava sair nada
entranhas carnes e ossos com tutanos
Chorando noacutes erguemos as matildeos para Zeus
enquanto assistiacuteamos aquelas terriacuteveis obras
a impotecircncia possuiacutea nosso acircnimo
Diante do espetaacuteculo horrendo Odisseu e os demais companheiros apavoram-se
pois sabem que seratildeo as proacuteximas viacutetimas Para escapar do fim aparentemente inevitaacutevel
Odisseu com toda a sua astuacutecia o polumhtij86 resolve entatildeo ludibriar o monstro
Primeiro oferece-lhe vinho O monstro aceita e bebe ainda mais por trecircs vezes O Ciclope
pergunta o nome do heroacutei Este percebendo que o vinho jaacute havia alterado a razatildeo do
Polifemo responde Oucurrentij (IX 366) ou seja Ningueacutem O monstro avisa a Odisseu que ele
seraacute o uacuteltimo a ser comido e depois acaba dormindo O heroacutei presencia outro espetaacuteculo
horriacutevel que soacute o impulsiona mais a encontrar uma saiacuteda A asup1namacrgkh a necessidade e o
daimwn um democircnio uma forccedila divina impelem-nos a agir desmedidamente observemos
() θάξπγνο δ᾽ ἐμέζζπην νἶλνο
ςσκνί η᾽ ἀλδξόκενη ὁ δ᾽ ἐξεύγεην νἰλνβαξείσλ
85
Texto disponeacutevel em
dehttpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard
3D281 retirado agraves 2045h em 20 de outubro de 2010 86
O epiacuteteto polumhtij como explicamos no capiacutetulo primeiro evoca e relaciona Odisseu aos deuses Zeus e
Atena e indica o de muita prudecircncia e sagacidade
95
375 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼ ηὸλ κνριὸλ ὑπὸ ζπνδνῦ ἤιαζα πνιιῆο
ἧνο ζεξκαίλνηην ()
380 θαὶ ηόη᾽ ἐγὼλ ἆζζνλ θέξνλ ἐθ ππξόο ἀκθὶ δ᾽ ἑηαῖξνη
ἵζηαλη᾽ αὐηὰξ ζάξζνο ἐλέπλεπζελ κέγα δαίκσλ
νἱ κὲλ κνριὸλ ἑιόληεο ἐιάηλνλ ὀμὺλ ἐπ᾽ ἄθξῳ
ὀθζαικῶ ἐλέξεηζαλ ἐγὼ δ᾽ ἐθύπεξζελ ἐξεηζζεὶο
δίλενλ87
(Odisseacuteia IX 373-376 380-384)
() para fora da garganta colocava vinho e
pedaccedilos crus de carne dos humens arrotou embriagado
alguns E eu coloquei a vara embaixo da numerosa cinza
ateacute que queimasse ()
eu o transportava de dentro do fogo os companheiros ficaram
em ambos os lados mas um grande democircnio dotou-nos de coragem
Eles levantaram a vara afiada de madeira de oliveira
e sua ponta empurraram no olho (do Ciclope) eu tendo-me
apoiado por cima fazia (a vara) girar
A asup1namacrgkh e o daimwn impulsionam Odisseu e seus companheiros a decidirem
pela tomada de accedilatildeo independente dos resultados que ela traria pois naquele momento
tinham que fugir do monstro Constrangidos pela necessidade e pelo divino tomados pelo
temor de que aquilo viesse ocorrer com eles assim enfiam o pau de oliveira no olho do
monstro Polifemo cegando o filho de Posiacutedon Como diz-nos Vernant (2008) a accedilatildeo do
homem mesmo natildeo voluntariosa emana da necessidade Eacute o que Romilly (2008) como foi
visto no segundo capiacutetulo nomeia de ―luz traacutegica jaacute que a situaccedilatildeo ocorre ―em nome das
circunstacircncias que se impotildeem aos homens (ROMILLY 2008 p 168) Ainda segundo a
autora isso nos faz sentir piedade natildeo apenas pelas viacutetimas neste caso o Polifemo mas
tambeacutem pelos agentes Odisseu e seus companheiros pois o que sentimos na verdade eacute a
―piedade pelo homem (Ibidem p169) E esse sentimento de piedade somado ao temor que
temos de vivenciar tais fatos propiciam-nos a experiecircncia do traacutegico que pelo que vimos ateacute
entatildeo pode ser conferida em muitos momentos da Odisseacuteia
No Canto IX ainda sabemos que o Ciclope pede ajuda mas quando perguntado
sobre quem teria lhe feito mal ele responde Oucurrentij (IX 366) Ningueacutem Traiacutedo e enganado
pela astuacutecia do heroacutei polumhtij Polifemo natildeo consegue ajuda Odisseu e os demais natildeo
podem sair da caverna trancada por uma imensa pedra que soacute o monstro consegue tirar Mais
87
Texto disponiacutevem em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D360 Texto retirado agraves 2010h em 15 de novembro de 2010
96
uma vez sua aliada astuacutecia lhe serve e ele resolve que todos devem amarrar-se aos carneiros
pois ao raiar o filho de Posiacutedon retiraraacute a pedra da entrada da caverna para que os carneiros
possam pastar e eles presos aos animais possam escapar Assim eles fazem Ao terem
fugido Odisseu com palavras de jactacircncia ataca o Ciclope Os companheiros amedrontados
com tudo o que viram tentam deter o heroacutei Mas nada o que fazem adianta pois Odisseu
continua desmedidamente a atacar o Ciclope apesar de jaacute estar a salvo
Κύθισς αἴ θέλ ηίο ζε θαηαζλεηλ ἀλζξώπσλ
ὀθζαικνῦ εἴξεηαη88
ἀεηθειίελ ἀιασηύλ
θάζζαη δπζζῆα πηνιηπόξζηνλ ἐμαιαζαη
505 πἱὸλ Λαέξηεσ Ἰζάθῃ ἔλη νἰθί᾽ ἔρνληα89
(Odisseacuteia IX 502- 505)
Ciclope se algum dos homens mortais vier e
perguntar a causaa de tua vergonhosa cegueira do olho
podes dizer que completamente cegou-te Odisseu o saqueador de
cidades]
o filho de Laertes que em Iacutetaca tem morada
Diante do descomedimento do heroacutei e das palavras injuriosas de vaidade e
orgulho o Polifemo implora ao seu pai vinganccedila Pede que Odisseu natildeo mais retorne ao lar
mas se o seu destino natildeo o permitir que ao menos venha a ter dificuldades perdendo os
soacutecios e atraveacutes de navio estrangeiro chegue ao seu lar e laacute venha encontrar tambeacutem muitas
afliccedilotildees
Esse breve relato que fizemos da histoacuteria eacute importante para que possamos entender
como viraacute o castigo de Odisseu por sua atitude desmedida Antes do seu encontro com o
Ciclope eacute verdade ele jaacute havia andado errante mas nada em comparaccedilatildeo com o que ele iraacute
passar tendo agora como seu perseguidor Posiacutedon Depois que Odisseu e os seus soacutecios
partiram de Troacuteia haviam passado apenas pela terra dos Ciacuteconos e Lotoacutefagos Na primeira
cidade satildeo perseguidos por terem-na saqueado Depois partindo para Iacutetaca fortes ventos e
uma corrente os fazem passar nove dias errantes ateacute que chegam ao paiacutes dos Lotoacutefagos Nesta
cidade trecircs companheiros comem as flores de loto e esquecem de querer retornar Odisseu
diante do risco traz de volta os amigos Daiacute aportam no paiacutes dos Ciclopes onde ocorre tudo
88
Omodo subjuntivo exprime a ideacuteia de uma accedilatildeo possiacutevel eventual que pode vir ocorrer no futuro
(MURACHO 2007) por isso Odisseu utilizou-se desse modo em eiAtilderhtai de eAtilderomai- perguntar questionar
Assim ele exprime o fato possiacutevel de algueacutem perguntar por isso traduzimos ―se perguntar na tentativa de
transmitir essa ideacuteia do provaacutevel 89
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D93Acard3
D500 retirado agraves1520h em 2 de novembro de 2010
97
o que anteriormente narramos o Polifemo come doze dos seus companheiros mais fortes
Odisseu e os demais cegam o monstro e partem antes poreacutem o heroacutei exclama palavras
injuriosas A partir de entatildeo eacute que Odisseu amaldiccediloado por Polifemo e perseguido por
Posiacutedon iraacute sofrer errante vagando de paiacutes em paiacutes ateacute chegar a Iacutetaca
Essa contextualizaccedilatildeo faz-se importante para que possamos compreender as
circunstacircncias traacutegicas na vida de Odisseu em contraposiccedilatildeo agraves situaccedilotildees traacutegicas e
principalmente ao destino traacutegico de seus companheiros Tais diferenccedilas entre o destino de
Odisseu e dos seus soacutecios como orienta Aristoacuteteles seratildeo determinadas pelas accedilotildees dos
personagens e natildeo pelos seus caracteres Daiacute a personagem ideal da trageacutedia ser o heroacutei que
tem o caraacuteter intermediaacuterio nem valoroso demais nem maldoso em excesso Nas passagens
acima referidas sobre Odisseu e seus companheiros na terra dos Ciclopes pudemos ver que a
tragicidade atingiu a todos Mas um fator determinante faraacute com que o destino de seus
companheiros seja desventuroso fato este que estaacute relacionado ao que eles faratildeo com as vacas
do Sol no Canto XII Contudo antes que cheguemos laacute sigamos linearmente e do Canto IX
partamos para o X
No Canto X da Odisseacuteia Odisseu e seus companheiros chegam agrave ilha de Eacuteolo
onde satildeo bem recebidos e laacute permanecem por um mecircs ateacute que o heroacutei resolve partir Para
ajudaacute-los Eacuteolo daacute ao Laertida uma sacola de couro com os ventos Deste modo eles partem
Mais uma vez o daimwn a forccedila superior age prejudicando a todos Odisseu dorme e
curiosos os companheiros abrem a sacola espalhando ventos por todos os lados De volta agrave
ilha Eacuteolo recusa-se a um novo auxiacutelio por perceber que um daimwn natildeo desejava vecirc-los
bem indicando que algo de mal eles teriam feito Assim Eacuteolo potildee todos para fora de sua
cidade jaacute que natildeo satildeo homens querido pelos deuses pelo contraacuterio satildeo odiados pelos divinos
(Odisseacuteia X 72-75)
Eacuteolo percebe logo que uma vontade divina ou seja uma accedilatildeo superior ocasionou
o mal agravequeles viajantes fazendo Odisseu adormecer e os seus companheiros serem tomados
pela curiosidade Ferozmente punidos estes personagens despertam nossa comoccedilatildeo por
percebermos que uma vontade superior empurra-os ao erro Como percebemos a situaccedilatildeo
descrita tem os elementos importantes que constituem uma vivecircncia traacutegica o imerecido
injusto o erro (aumlmartia) a accedilatildeo divina (daimwn) enfim Diante desses componentes
traacutegicos fazemos lembrar Rosenfeld ao afirmar que todo gecircnero literaacuterio de alguma forma
conteacutem os ―traccedilos estiliacutesticos mais tiacutepicos dos outros gecircneros (ROSENFELD 1985 p19)
Assim apesar de estarmos analisando uma obra de gecircnero eacutepico percebemos fortes marcas
98
que satildeo mais especificamente caracteriacutesticas da trageacutedia Pela linha de Rosenfeld (1985) a
obra em sua substacircncia possui categorias baacutesicas do gecircnero eacutepico ao passo que tambeacutem traz
o traacutegico como elemento adjetivo visto ser este uma categoria mais especiacutefica do gecircnero
dramaacutetico
Ainda no Canto X temos a narraccedilatildeo de que tendo saiacutedo da ilha de Eacuteolo Odisseu
e seus companheiros vagam por seis dias ateacute chegarem agrave terra dos Lestrigotildees em Lamo
Ancoram o barco e alguns homens que satildeo enviados para conhecerem a cidade deparam-se
com a filha do rei Esta os leva ao palaacutecio local onde um deles eacute logo feito de almoccedilo
deixando os demais apavorados Em fuga alguns ainda satildeo arrebatados e levados para serem
devorados E Odisseu resolve partir imediatamente Atraveacutes dessa narrativa percebemos a
perseguiccedilatildeo incansaacutevel que eles estatildeo sofrendo sem nem se darem conta do que fizeram para
merecerem tamanha hostilidade Nesse percurso de volta para casa a accedilatildeo desmedida que eles
cometeram principalmente contra Polifemo faz com que eles sejam punidos mesmo que
tenham sido impulsionados pela asup1namacrgkh e pelo daimwn mesmo que a accedilatildeo tenha sido
involuntaacuteria e natildeo por falha de caraacuteter Nesses casos em anaacutelise aristotelicamente a accedilatildeo eacute
que os encaminha para a cataacutestrofe como veremos especificamente com os companheiros de
Odisseu no Canto XII
Guiando a nau Odisseu e seus companheiros partem de Lamo e aportam na ilha de
Eeacuteia morada de Circe Odisseu percebe a accedilatildeo do daimwn pois esse natildeo era o destino
imaginado contudo naturalmente alcanccedilam a ilha O Laertida conclui que um dos deuses
havia servido como guia Apoacutes dois dias na embarcaccedilatildeo partem para a cidade e aproximam-
se da casa de Circe onde se viam leotildees e lobos possuiacutedos por feiticcedilo Circe canta e ao vecirc-los
chama-os para entrar oferecendo-lhes bebida e comida Todos aceitam com exceccedilatildeo de
Euriacutecolo Mais uma vez por accedilatildeo inconsequente deles proacuteprios inconscientemente satildeo
levados para o seu fim Vejamos
αὐηὰξ ἐπεὶ δθέλ ηε θαὶ ἔθπηνλ αὐηίθ᾽ ἔπεηηα
ῥάβδῳ πεπιεγπῖα θαηὰ ζπθενῖζηλ ἐέξγλπ
νἱ δὲ ζπλ κὲλ ἔρνλ θεθαιὰο θσλήλ ηε ηξίραο ηε
θαὶ δέκαο αὐηὰξ νοῦς90
ἦλ ἔκπεδνο ὡο ηὸ πάξνο πεξ91
(Odisseacuteia X 237-240)
90
Do grego nooj que significa inteligecircncia consciecircncia dicernimento Os destaques satildeo nossos 91
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D103Acard3
D208 retirado em 20 de outubro de 2010
99
(Circe) deu-lhes e eles tudo beberam entatildeo imediatamente
tendo sido tocados com a varinha ela ia confinando-os nos chiqueiros
Eles tinham de porcos as cabeccedilas o grunhir as cerdas e
tambeacutem o corpo Contudo a consciecircncia anterior estava conservada
Transformados de homem em porcos nesta citaccedilatildeo podemos identificar
humanos numa representaccedilatildeo traacutegica deparando-se com a sua proacutepria finitude e fragilidade
Por uma accedilatildeo de feiticcedilo os antes vigorosos combatentes de guerra e viajantes passam a
figurar como porcos tragicamente ainda mantendo a consciecircncia de homens - fato que
intensifica o sofrer de todos por terem consciecircncia de sua fraacutegil condiccedilatildeo Essa transmutaccedilatildeo
faz-nos visualizar as maneiras pelas quais Homero nos insere num contexto traacutegico mesmo
que este natildeo seja seu objetivo final Contudo eacute inegaacutevel que ele ―convida-nos a ponderar
gravemente sobre o traacutegico fim da existecircncia humana (LUNA 2005 p 29) Eacute-nos
importante ressaltar que essa traacutegica finitude humana natildeo deve ser visualizada apenas com a
passagem da vida para a morte pois acreditamos que essa significaccedilatildeo pode ser mais ampla
No momento em que os homens passam a figurar como porcos temos tambeacutem uma marcante
representaccedilatildeo da diluiccedilatildeo da vida humana neste caso de humanos a bichos Assim seguindo
a afirmaccedilatildeo de Sandra Luna (2005) deparamo-nos tambeacutem com a diluiccedilatildeo da vida e a traacutegica
finitude da existecircncia dos mortais
Esta figuraccedilatildeo em porcos tem um siacutembolo importante jaacute que este animal
representa de um modo geral as ―tendecircncias obscuras sob todas as suas formas da
ignoracircncia da gula da luxuacuteria e do egoiacutesmo (Chevalier Gheerbrant 2009 p 734) De
maneira mais particular no caso em que Circe transforma os companheiros de Odisseu em
porcos Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2009) citando Grid dizem que a deusa feiticeira
transformava os homens em animais que representavam a essecircncia e o caraacuteter dos homens
aprisionados Podemos observar entatildeo que tal mutaccedilatildeo de homens para porcos revela-nos a
essecircncia desses viajantes que por sua proacutepria ignoracircncia (daiacute o siacutembolo dos porcos) padecem
na tragicidade
No capiacutetulo anterior desenvolvemos a ideacuteia de que uma accedilatildeo traacutegica eacute ainda mais
efetiva quando o seu sujeito reconhece-se como traacutegico identificando-se e tendo plena
consciecircncia de sua condiccedilatildeo Eacute a asup1nagnwiquestrisij que intensifica a vivecircncia traacutegica natildeo
apenas para os espectadoresleitores mas principalmente por seu proacuteprio sujeito que se vecirc
natildeo mais como um homem de coragem valoroso e respeitado mas como vemos neste caso
como simples porcos Assim ao dizer-nos Vernant que ―a consciecircncia traacutegica nasce e
desenvolve-se com a trageacutedia (2008 p 9) vemo-nos impulsionados a levantar uma
100
problematizaccedilatildeo pois como nos mostram os versos em discussatildeo esses personagens
homeacutericos possuem consciecircncia de sua tragicidade Diante do grave conflito da condiccedilatildeo
humana sua fragilidade e limitaccedilatildeo Homero explicita-nos sobre os companheiros de Odisseu
apoacutes a transformaccedilatildeo de homens viris em porcos mas que ainda mantecircm sua consciecircncia de
homens (X 240) Por isso consideramos importante confrontarmos essa afirmaccedilatildeo de
Vernant (2008) com a passagem em anaacutelise jaacute que esta e as outras que estamos destacando
mostram-nos que em Homero certamente natildeo se desenvolveu a dita ―consciecircncia traacutegica
mas bem provavelmente foi com o autor da Odisseacuteia que ela nasceu mesmo que
incipientemente Esse fato vem a respaldar nossa pesquisa que propotildee identificar e analisar
na epopeacuteia homeacuterica o despontar dos elementos traacutegicos que mais tarde seriam
desenvolvidos nas trageacutedias gregas Por tudo isso concordamos com Platatildeo ao considerar
Homero como o ―prwordftoj didaskaloj twordfn tragikwordfn (Repuacuteblica X 595b) ou seja o
mestre primeiro dos traacutegicos
Na continuidade da narrativa do Canto X Euriacuteloco que desconfiado natildeo vai ateacute a
deusa presencia tudo e corre apavorado para contar a Odisseu o que sucedera Este decide ir
sozinho ajudar os demais No caminho encontra com Hermes transfigurado em um rapaz
que lhe oferece a erva de Molu para imunizaacute-lo ao feiticcedilo de Circe Aleacutem disso indica como o
heroacutei deve proceder ateacute deitar-se ao seu leito da deusa para que consiga salvar seus
companheiros Assim Odisseu o faz Deste modo consegue salvar os companheiros que antes
transformados em porcos voltam a seus corpos humanos Esse desfazer do feiticcedilo remete-nos
agrave defesa de Sandra Luna (2005) de que Homero natildeo alimenta o traacutegico pois atraveacutes de outros
elementos como por exemplo a ocorrecircncia de banquetes ele dispersa o efeito traacutegico Neste
caso vemos que a cena traacutegica eacute dissolvida pelo desfazer do feiticcedilo jaacute que certamente natildeo eacute
―traacutegico o efeito pretendido pelo poeta (LUNA 2005 p 29) Contudo esta constataccedilatildeo natildeo
invalida ou atenua o meacuterito de nossa pesquisa mesmo porque como deixamos evidente no
segundo capiacutetulo Homero foi coerente com seu propoacutesito literaacuterio de composiccedilatildeo de uma
epopeacuteia e natildeo de uma trageacutedia apesar de ter deixado para esta valoroso legado
Circe diz a Odisseu para que ele vaacute ateacute a nau para pegar seus tesouros armas e
homens Ele assim o faz A deusa diz tambeacutem para que ele esqueccedila de todas as suas dores
Odisseu segue seu conselho e permanece na ilha de Eeacuteia por um ano em festejos ateacute que seus
companheiros exortam-no a retornar ao solo paacutetrio O Laertida resolve entatildeo falar com Circe
e esta aceita sua partida inclusive adianta-lhe que antes de chegar a Iacutetaca teraacute que ir ao
Hades falar com Tireacutesias Sabendo desta revelaccedilatildeo ele se desespera
101
ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐκνί γε θαηεθιάζζε θίινλ ἦηνξ
θιαῖνλ δ᾽ ἐλ ιερέεζζη θαζήκελνο92
νὐδέ λύ κνη θῆξ
ἤζει᾽ ἔηη δώεηλ θαὶ ὁξᾶλ θάνο ἠειίνην93
(Odisseacuteia X 496-498)
Assim ele dizia e rompeu-me o querido coraccedilatildeo
sentou no leito agora chorava pelo meu destino
natildeo desejava viver nem ainda ver a luz do sol
Diante da revelaccedilatildeo feita por Circe o ―heroacutei mais ceacutelebre de toda a antiguidade
(GRIMAL 2005 p 458) angustia-se por saber que para cumprir seus objetivos ndash de retorno
ao lar - ainda teraacute que passar por obstaacuteculos maiores Ir ateacute o Hades e depois voltar era uma
tarefa que poucos cumpriram Heacuteracles Orfeu Teseu e Piriacutetoo O tamanho desse desafio
desespera o heroacutei Desse modo Homero acaba por nos ―Apresentar o sentimento da vida
inspirar terror e piedade obrigar a partilhar um sofrimento ou uma ansiedade ndash a epopeacuteia
fizera-o sempre e ensinou os tragedioacutegrafos a fazecirc-lo (ROMILLY 2008 p 22) Assim
Odisseu espera o amanhecer do novo dia para contar a nova empreitada aos companheiros
Estes ficam ainda mais desesperados pensam natildeo suportar mais tantos trabalhos por isso
com o coraccedilatildeo partido eles sentam gemem aos prantos chegando a arrancar os cabelos da
frente (Odisseacuteia X 566-567)
Apoacutes toda a anguacutestia ao terem conhecimento da missatildeo de ir ao Hades Odisseu e
os demais partem para a empreitada Eles foram sabendo que apoacutes retornarem do Hades
deveriam retornar a ilha de Circe para que ela pudesse informa-lhes dos proacuteximos
acontecimentos dando-lhe as novas coordenadas Essa circunstacircncia lembra-nos o capiacutetulo
anterior em que discutimos a caracterizaccedilatildeo do heroacutei seja na epopeacuteia eou na trageacutedia e
observamos que uma relevante diferenccedila eacute a de que ―No novo quadro do jogo traacutegico
portanto o heroacutei deixou de ser um modelo tornou-se para si mesmo e para os outros um
problema (VERNANT 2008 p 2) Observemos que apesar de natildeo estarmos falando de
uma trageacutedia grega especificamente a cena citada possibilita-nos enxergar a alusatildeo de um
heroacutei no caso Odisseu figurado como um problema natildeo apenas para si mas tambeacutem para os
outros Seus companheiros embarcam nas suas mesmas empreitadas e acabam sofrendo por
uma perseguiccedilatildeo que Posiacutedon realiza especificamente contra o heroacutei de Iacutetaca Vejamos que
92
O uso do particiacutepio perfeito kaqhmenoj de kaqhmai ndash sentar indica a noccedilatildeo do aspecto acabado
concluiacutedo (MURACHO 2007) por isso a traduccedilatildeo ―sentou exprimindo o ato perfeito terminado 93
Texto disponiacutevel em
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D475 retirado agraves 1630h em 18 de outubro de 2010
102
apesar de ter ocorrido uma accedilatildeo conjunta contra o Polifemo o grande mentor foi Odisseu
Aleacutem do mais este ao ter fugido ainda lanccedilou palavras injuriosas levando o Ciclope a
implorar a Posiacutedon que o pai de Telecircmaco fosse impedido de voltar agrave paacutetria ou no miacutenimo
ter seu retorno dificultado Como sabemos o deus concede ao filho o pedido e a partir daiacute
dificulta ainda mais o caminho de volta de Odisseu fato este que logo torna-se um
problema tambeacutem para os seus companheiros
No Canto XI Odisseu realiza o grande feito de ir agraves proximidades do Hades e
retornar para a terra Como jaacute adiantamos ao longo deste trabalho muitos satildeo os elementos
traacutegicos a serem analisados contudo por este ser o objetivo central do nosso trabalho
escolhido para anaacutelise deixaremos seu desenvolver para o toacutepico subsequente Partamos
entatildeo para o estudo do proacuteximo canto
Tendo retornado do Hades Odisseu e os demais vatildeo ateacute Circe Esta reforccedila os
apontamentos jaacute feitos por Tireacutesias e indica ao seu heroacutei predileto os outros tantos desafios
que teraacute de enfrentar e como deveraacute proceder para conseguir escapar Ela fala das Sereias de
Cila Cariacutebdes e da fome na ilha do Sol que enfrentaratildeo mas que deveratildeo resistir natildeo
alimentando-se de suas belas vacas para que natildeo venham padecer Odisseu minuciosamente
conta tudo aos companheiros antes de partirem e logo iniciam a jornada
Passando pelas Sereias Odisseu seguindo as orientaccedilotildees de Circe potildee cera nos
ouvidos dos viajantes enquanto estes o amarram Continuando a remar todos se apavoram ao
enxergarem uma grande neacutevoa e teriam deixado os remos se natildeo fosse Odisseu enchecirc-los de
acircnimo e confianccedila Deparam-se entatildeo com uma cena horripilante Cariacutebdes ao lado de Cila
chupava a aacutegua do mar terrivelmente e depois expelia com grande barulho metendo medo em
todos Mas Odisseu e os seus ainda vatildeo deparar-se com uma cena mais forte descrita pelo
heroacutei como a mais terriacutevel de todas que jaacute viu Nela Cila arranca da nave seis dos
companheiros engolindo-os Vejamos
αὐηνῦ δ᾽ εἰλὶ ζύξῃζη θαηήζζηε94
θεθιεγηαο
ρεῖξαο ἐκνὶ ὀξέγνληαο ἐλ αἰλῇ δεηνηῆηη
νἴθηηζηνλ δὴ θεῖλν ἐκνῖο ἴδνλ ὀθζαικνῖζη
πάλησλ ὅζζ᾽ ἐκόγεζα πόξνπο ἁιὸο ἐμεξεείλσλ95
(Odisseacuteia XII 256-259)
94
Tratando-se de uma forma verbal do imperfeito kathsqie de kathsqiw ndash devorar comer exprime a accedilatildeo
inacabada natildeo concluiacuteda (MURACHO 2007) Essa forma linguumliacutestica acentua ainda mais a tragicidade da cena
citada jaacute que Odisseu e seus companheiros acompanham a accedilatildeo em processo de Cila comer alguns de seus
soacutecios 95
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D234 retirado agraves 2014h em 18 de outubro de 2010
103
Na proacutepria entrada (da caverna) ela os comia eles gritaram
estendendo aos matildeos para mim numa terriacutevel batalha
Aquilo foi a cena mais lamentaacutevel para meus olhos que eu vi
De todas as outras grandes que sofri explorando as passagens do mar
A fragilidade e a efemeridade humana potildeem-se diante dos olhos daqueles homens
que muitas coisas terriacuteveis jaacute haviam presenciado O traacutegico observado nessa passagem estaacute
representado atraveacutes da aterrorizante fraqueza e finitude inerente agrave condiccedilatildeo humana visto
que fortes guerreiros todos vencedores na grande guerra de Troacuteia num segundo enxergam-se
como pequenas presas na boca de um feroz predador Assim verificamos a respeito do heroacutei
eacutepico que para ―aleacutem de todas as honras das quais venha a desfrutar a tragicidade estaraacute
sempre suspensa sobre sua cabeccedila (LUNA 2005 p 31) pois ―Apesar de sua caracteriacutestica
sobre-humana sabe-se que o heroacutei haveraacute um dia de ser igualado aos seus os mortais
(Ibidem) Assim o heroacutei traacutegico96
deparando-se com sua fragilidade e efemeridade comum a
todos os mortais luta contra a accedilatildeo das divindades e contra as leis da natureza E satildeo essas
forccedilas sobre-humanas contra as quais sua condiccedilatildeo humana natildeo o permite combater que o
levam ao traacutegico
Aleacutem disso a cena traacutegica realizada perante os olhos dos sobreviventes faz o fomacrboj
(o medo que faz fugir) apoderar-se de todos tementes de que viessem tambeacutem a figurar nessa
grande encenaccedilatildeo dramaacutetica como presas Mas tambeacutem a esup1leoj (a compaixatildeo) acarreta a
todos ao verem aqueles seis companheiros que haacute tanto tempo juntos lutavam pela
sobrevivecircncia e pelo retorno falecerem drasticamente e sem honra alguma A uniatildeo dos
sentimentos proporcionados pelo fomacrboj e pela esup1leoj proporciona aos viajantes passarem
pelo processo cartaacutetico de purificaccedilatildeo pois como nos elucida Aristoacuteteles (Poeacutetica VI
1449b) a kaqarsij soacute pode ser atingida quando fomacrboj e esup1leoj satildeo suscitados
No transcorrer da narrativa Odisseu e os seus soacutecios saem da tenebrosa passagem
entre Cila e Cariacutebde e aportam na ilha do Sol A fim de evitar o grande mal prenunciado
Odisseu sugere afastarem-se da ilha pois bem lembra dos avisos de Tireacutesias e Circe a respeito
dos sofrimentos que passariam e da necessidade que tinham para o proacuteprio bem de deixarem
ilesas as vacas do sol Os demais retrucam e Euriacutecolo como porta-voz acusa Odisseu de
crueldade jaacute que apoacutes tantos enfrentamentos estavam todos muito cansados Sem o apoio
96
Nesse aspecto podemos destacar uma antonomia do heroacutei claacutessico com o heroacutei moderno pois enquanto o
primeiro luta contra forccedilas sobre-humanas deuses e natureza o heroacutei moderno tem seu conflito realizado no
embate contra as forccedilas sociais
104
dos soacutecios restou a Odisseu ficar Todavia o polumhtij percebe que a forccedila superior tenta
arruinaacute-los (XII 295-296) Odisseu jaacute havia avisado a todos em Eeacuteia do perigo que poderiam
enfrentar e ainda faz o mesmo ao chegarem agrave ilha do Sol Mas os companheiros
demonstravam natildeo ter ideacuteia do mal que estava por vir por isso o heroacutei impotildee a todos um
juramento O Laertida faz todos jurarem que por nada viriam a comer vacas ou ovelhas
divinas pois deveriam saciar-se apenas com as iguarias dadas por Circe Assim realizam o
juramento por isso diz Odisseu ―ὣο ἐθάκελ νἱ δ᾽ αὐηίθ᾽ ἀπώκλπνλ ὡο ἐθέιεπνλ97
ou seja
―Como eu dizia imediatamente eles juraram como eu recomendava(Odisseacuteia XII 303)
Assim conforme o filho de Laertes propocircs o juramento todos fizeram E logo
apoacutes terem selado o acordo com o juramento todos observam a tempestade que surge
mandada por Zeus Astuto Odisseu compreende o sinal enviado pela divindade e avisa mais
uma vez para que poupem as vacas do Sol para que nenhuma desgraccedila venha ocorrer a eles
Como podemos perceber atraveacutes do juramento e dos avisos o esposo de Peneacutelope teme que
um mal ainda pior venha acontecer pois naturalmente se algum mal vier acarretar seus
companheiros acarretaraacute tambeacutem em males para o proacuteprio heroacutei Por meio das ressalvas e do
juramento Odisseu tenta evitar que seus soacutecios cometam a uAgravebrij e que esta venha como um
miasmoj contaminar a todos os integrantes da nau ou no miacutenimo fazer com que sejam
perdido mais companheiros Ateacute porque a cada soacutecio perdido a jornada de Odisseu torna-se
ainda mais dolorosa tendo que tudo enfrentar sozinho - e esta eacute a justificativa para o seu
temor
Amedrontado pela uAgravebrij que seus soacutecios podem cometer Odisseu avia-os por trecircs
vezes aleacutem do juramento que orienta-os a fazer satildeo eles ainda na Ilha de Circe em Eeacuteia
depois logo ao chegarem na ilha do Sol avisa e pede-lhes o juramento e por uacuteltimo recorda-
os novamente do perigo apoacutes a tempestade lanccedilada por Zeus Apesar de todos os avisos e do
juramento estabelecido os companheiros de Odisseu natildeo suportam e jaacute tendo passado-se um
mecircs da estada na ilha do Sol falta-lhes comida Como vemos a asup1namacrgkh a necessidade
impele-os e entatildeo decidem ir procurar alimento Odisseu percebe o perigo aproximar-se e
ora mas natildeo adianta pois o daimwn age pondo-lhe em sono profundo Euriacutecolo aproveita a
ausecircncia do Laertida e discursa aos demais que morrer de fome eacute pior que morrer navegando
e sugere que faccedilam os sacrifiacutecios e devorem as vacas Diante desse discurso de Euriacuteloco
97
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3D1 retirado agraves 0803h em 20 de outubro de 2010
105
todos manifestam estar de acordo e devoram as vacas ou seja cometem a uAgravebrij a
desmedida para com um ser divino o Hiperiocircnio Apoacutes a accedilatildeo consumada que os levaraacute ao
traacutegico Odisseu acorda e desespera-se ao perceber que havia dormido e que portanto natildeo
tinha podido controlar seus companheiros a natildeo comerem as vacas O heroacutei queixa-se com
Zeus e com os demais deuses considerando que foi para o seu mal que eles mandaram-lhe o
sono proporcionando que em sua ausacircncia os soacutecios pudessem ter cometido um terriacutevel
crime contra os deuses (Odisseacuteia XII 370-372) Essa conclusatildeo que chega Odisseu ao
acordar demonstra sua percepccedilatildeo da accedilatildeo superior do daimwn como responsaacutevel por todo o
mal que decorreria daquela accedilatildeo para o heroacutei e para os seus companheiros
A percepccedilatildeo do filho de Anticleacuteia estaacute correta ele percebe que o traacutegico aproxima-se
como resultado de uma uAgravebrij feita pelos seus soacutecios mas que foi impulsionada pelas forccedilas
superiores da asup1namacrgkh e do daimwn daiacute decorre o teor traacutegico dessa situaccedilatildeo Na
continuaccedilatildeo da narrativa o Sol recebe a notiacutecia do fim de suas vacas e implora a Zeus e aos
demais poderosos que todos os companheiros do filho de Laertes sejam punidos e ameaccedila de
que se seu desejo natildeo for atendido iraacute ao Hades para conduzir a luz aos mortos Defrontado
com o pedido divino e com a ameaccedila de acabar com a ordem do universo Zeus sinaliza
atender o pedido do Hiperiocircnio A fim de evitar o fim traacutegico que havia previsto o Laertida
tenta inultilmente recompor as vacas mas as carnes mortas gemem e movem-se Nesta cena
em que Odisseu luta contra a accedilatildeo traacutegica tentanto recompor o mal jaacute feito percebemos que a
inutilidade de sua accedilatildeo nos propicia um outro entendimento do traacutegico que eacute a
impossibilidade humana de desfazer o mal de voltar atraacutes Isso porque a accedilatildeo traacutegica eacute
fechada e natildeo se pode alterar sua jornada ou seja uma vez definida pelos deuses o traacutegico
natildeo mais pode ser evitado pelos mortais que natildeo possuem forccedilas para defrontar-se com a
determinaccedilatildeo divina Eacute por isso que apoacutes comerem as vacas por seis dias no seacutetimo com o
bom vento Odisseu e os demais partem e Zeus lanccedila um raio que lanccedila todos os soacutecios da
nau O traacutegico apanha os companheiros de Odisseu mas tambeacutem o contamina (miasmoj)
por isso ele fica sozinho a navegar
Podemos ver que apesar de todos os avisos os companheiros deixam-se levar
pela fragilidade humana ao contraacuterio de Odisseu que com sua coragem e astuacutecia heroacuteica
aleacutem da proteccedilatildeo divina consegue suportar a fome e tantos outros trabalhos que lhe foram
reservados a fim de que possa conseguir a gloacuteria domeacutestica Nesse momento da narrativa
fica-nos clara a diferenccedila do destino de Odisseu em relaccedilatildeo ao dos seus companheiros
Aristotelicamente falando o destino desventuroso destes foi ocasionado pelas suas proacuteprias
106
accedilotildees e natildeo pelos seus caracteres E isso estaacute anunciado desde os primeiros versos da
Odisseacuteia quando o cantor diz que Odisseu natildeo conseguiu salvar seus soacutecios natildeo por sua
culpa jaacute que seus soacutecios vieram a padecer pelas proacuteprias accedilotildees insensatas (Odisseacuteia I 7) A
partir dessa anaacutelise compreendemos bem a aumlmartia aristoteacutelica teorizada no nosso
segundo capiacutetulo que enfatiza o erro como fruto de uma accedilatildeo natildeo da falta de caraacuteter e eacute esse
erro que os leva agrave cataacutestrofe Vejamos o que diz Aristoacuteteles sobre a aumlmartia
ἁμαρτίαν τινά ηῶλ ἐλ κεγάιῃ δόμῃ ὄλησλ θαὶ εὐηπρίᾳ νἷνλ Οἰδίπνπο
θαὶ Θπέζηεο θαὶ νἱ ἐθ ηῶλ ηνηνύησλ γελῶλ ἐπηθαλεῖο ἄλδξεο () ἐμ
εὐηπρίαο εἰο δπζηπρίαλ κὴ δηὰ κνρζεξίαλ ἀιιὰ δη᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ
νἵνπ εἴξεηαη ἢ βειηίνλνο κᾶιινλ ἢ ρείξνλνο98 (Poeacutetica XIII 1453 a 10-
1215-17)
() algum erro daqueles de grande gloacuteria e boa fortuna como o de Eacutedipo e
Tiestes tambeacutem por homens ilustres de famiacutelias tais () a partir da fortuna
para o infortuacutenio natildeo por maldade mas atraveacutes de um grande erro ou como
o que foi dito ou de um (erro) melhor ou ainda pior
Assim como acreditamos ter ficado bem explicitado um dos argumentos que
justificam a diferenccedila entre o destino de Odisseu e dos seus soacutecios levando estes para
cataacutetrofe estaacute na aumlmartia e no descomedimento (uAacutebrij) cometido por eles no momento em
que desrespeitando todos os avisos e ateacute mesmo os proacuteprios juramentos comem as vacas da
divindade Ressaltemos que essa aumlmartia a accedilatildeo errocircnea eacute cometida natildeo por maldade
eou falta de caraacuteter mas pela forccedila da necessidade (asup1namacrgkh) e pelo impulso superior do
daimacrmwn Lembremos que eles jaacute estavam na ilha haacute um mecircs e a comida tinha acabado por
completo (asup1namacrgkh) e que Odisseu desde que chega na ilha constatou a accedilatildeo do daimacrmwn
duas vezes A primeira foi logo quando ele chegou e seus companheiros quiseram descansar
na ilha (XII 296) e a outra ao acordar e perceber que havia sido tomado por um sono
profundo natildeo podendo impedir os companheiros de cometerem a aumlmartia (XII 370-372)
No traacutegico o personagem de sua accedilatildeo muitas vezes natildeo eacute apresentado como
responsaacutevel ou inocente logo esse ―protagonista traacutegico funde a mimesis dupla de ―culpado
e inocente pois eacute o proacuteprio responsaacutevel por seus males ao mesmo tempo em que eacute tambeacutem
sua maior viacutetima Lembremos ―que sofram uma sorte querida pelos deuses que paguem pelos
98
Os destaques satildeo nossos Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010
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erros dos antepassados ou que paguem por sua proacutepria imprudecircncia haacute sempre neles uma
parte de inocecircncia (ROMILLY 2008 p 175) Isso eacute bem ilustrado com a situaccedilatildeo dos
companheiros de Odisseu jaacute que ao comeram as vacas do Sol fazem-nos perceber certa
inocecircncia pois foram levados pela sua fragilidade humana neste caso bem simbolizada pela
fome E esse choque de papeacuteis leva-nos a sentir piedade e temor como tambeacutem de termos
empatia para com eles Por isso para Romilly (2008) a accedilatildeo do heroacutei mesmo numa tentativa
boa ou maacute volta-se contra ele mesmo daiacute decorre sua defesa de haver sempre uma inocecircncia
no personagem traacutegico alimentando mesmo na queda o seu heroiacutesmo
Para entendermos ainda mais essa accedilatildeo traacutegica que inclusive diferencia os
destinos acima referidos recordemos que no capiacutetulo anterior expusemos a chamada ―dupla
causalidade traacutegica defendida por Romilly (2008) Dupla causalidade esta que apesar de
alicerccedilar as trageacutedias jaacute estava ―presente em Homero (Romilly 2008 p 172) Nessa ―dupla
causalidade o traacutegico decorre pelas accedilotildees dos proacuteprios personagens ou pela accedilatildeo do daacuteimon
daimacrmwn ou ainda mais elas podem coexistir sem se anularem e sem nenhuma contradiccedilatildeo
Essa accedilatildeo da ―dupla causalidade adequa-se perfeitamente agrave circunstacircncia das Vacas do Sol
pois nela observamos tanto a accedilatildeo superior do daimacrmwn como tambeacutem o traacutegico decorrendo
da proacutepria accedilatildeo humana a aumlmartia A primeira pode ser exemplificada quando Odisseu
logo percebe sua accedilatildeo convencendo-se de que um daimacrmwn tentava arruinaacute-los (XII 296) Jaacute a
segunda a aumlmartia exemplificamos a partir da descomedida atitude que os soacutecios de
Odisseu fizeram ao comer as vacas do Sol apesar dos avisos de Tireacutesias e Circe repassados
por Odisseu e do juramento realizado
Assim levados pela ―dupla causalidade traacutegica todos os companheiros padecem e
Odisseu navega sozinho durante nove dias ateacute que no deacutecimo chega agrave Ogiacutegia na ilha de
Calipso Como sabemos todas essas erracircncias de Odisseu estatildeo sendo narradas aos Feaacutecios
que tudo ouvem atentamente E pelo fato de a narrativa natildeo ser linear essa estada do heroacutei
em Ogiacutegia remete-nos ao Canto I e dura ateacute o V quando ele numa balsa feita a proacuteprio
punho parte de laacute para a Feaacutecia Contudo eacute mais precisamente no Canto V que temos a
narraccedilatildeo das lamuacuterias de Odisseu durante essa estadia com Calipso jaacute que seu anseio eacute o
mesmo de sempre retornar ao lar Intercedendo por seu protegido Atena jaacute havia desde o
Canto I cobrado de Zeus permitir que a vontade do heroacutei fosse atendida
Eacute por isso que no Canto V Hermes enviado por Zeus vai falar com Calipso para
que ela permita ao pai de Telecircmaco partir O mensageiro comparando-o com os demais
heroacuteis que combateram em Troacuteia define-o como o heroacutei mais sofrido (V 105) Hermes
108
reforccedila ainda que apesar de todo o sofrimento pelo qual Odisseu passou o seu destino exige
seu retorno por isso mesmo indignada Calipso permite o retorno do esposo de Peneacutelope
ajudando-o ainda com bons conselhos Hermes entatildeo parte e a deusa vai ao heroacutei contar-lhe
o ocorrido poreacutem encontra-o na praia aos prantos Leiamos
ηὸλ δ᾽ ἄξ᾽ ἐπ᾽ ἀθηῆο εὗξε θαζήκελνλ νὐδέ πνη᾽ ὄζζε
δαθξπόθηλ ηέξζνλην θαηείβεην δὲ γιπθὺο αἰὼλ
λόζηνλ ὀδπξνκέλῳ ἐπεὶ νὐθέηη ἥλδαλε λύκθε
() πόληνλ ἐπ᾽ ἀηξύγεηνλ δεξθέζθεην δάθξπα ιείβσλ
99
(OdisseacuteiaV 151-153 158)
Ela o encontrou sentado na margem em um
rumor de laacutegrimas ele derramava a doce vida
lamentando o retorno jaacute que a ninfa natildeo mais o agradava
()
Olhava fixo para o alto mar infecundo derramando laacutegrimas
Atraveacutes da citaccedilatildeo percebemos os sofrimentos que Odisseu sente apesar de poder
desfrutar do leito de uma deusa todos os dias bem como da eternidade Descontente o heroacutei
ansiava apenas o seu retorno Assim perante tantas dores a deusa avisa-lhe para partir jaacute que
eacute o seu desejo e orienta-o a construir uma jangada para sozinho atravessar o oceano
Odisseu desconfia e estremecido pelo medo pergunta se natildeo eacute nenhuma armadilha ela dizer-
lhe para atravessar o infindo oceano numa jangada Ele sabe que ―o homem sempre corre o
risco de cair na armadilha de suas proacuteprias decisotildees (VERNANT 2008 p 21) Por isso
Odisseu faz a deusa jurar que tem boa intenccedilatildeo e ela o faz pela Terra pelo Ceacuteu e pelo Estige
este que eacute o grande juramento o Mega oAgraverkoj100
Apoacutes ter a deusa realizado o grande juramento Odisseu parte de Ogiacutegia e navega
na pequena jangada por dezessete dias ateacute o momento em que Posiacutedon voltando do paiacutes dos
Etiacuteopes enxerga-o e fica indignado Como vemos o deus natildeo esquece a uAacutebrij cometida por
Odisseu contra seu filho o Ciclope Polifemo por isso uma nova situaccedilatildeo traacutegica seraacute
vivenciada pelo heroacutei Pois ao ver que Odisseu seguia rumo a concretizaccedilatildeo do retorno a
Iacutetaca o deus suscita uma tempestade faz surgir os ventos as nuvens cinzentas a Noite entatildeo
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D262 retirado agraves 1730h em 20 de outubro de 2010 100
Era atraveacutes do Estige que o juramento sagrado dos deuses era realizado Esse Mega oAgraverkoj pode ser melhor
compreendido por meio da Teogonia (2009) entre os versos 386 e 401
109
Euro e Noto chocam-se Zeacutefiro e Boacutereas agem Odisseu estremece e lastima-se mais uma
experiecircncia traacutegica
ὤ κνη ἐγὼ δεηιόο ηί λύ κνη κήθηζηα γέλεηαη
()
ηξὶο κάθαξεο Δαλανὶ θαὶ ηεηξάθηο νἳ ηόη᾽ ὄινλην
Τξνίῃ ἐλ εὐξείῃ ράξηλ Ἀηξεΐδῃζη θέξνληεο
ὡο δὴ ἐγώ γ᾽ ὄθεινλ ζαλέεηλ θαὶ πόηκνλ ἐπηζπεῖλ
() ηῶ θ᾽ ἔιαρνλ θηεξέσλ θαί κεπ θιένο ἦγνλ Ἀραηνί
λῦλ δέ ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ εἵκαξην ἁιλαη101
(Odisseacuteia V 299 306-308311-312)
Como eu sou fraco Agora o que me viraacute de pior
()
Trecircs e quatro vezes abenccediloados os Dacircnaos que morreram
na ampla Troacuteia suportando por causa dos Atridas
De qualquer forma eu preferiria seguir o destino e ali morrer
()
Eu obteria honras fuacutenebres e os Acaios divulgariam a minha gloacuteria
Agora sou capturado pelo destino para a morte miseraacutevel
Como vimos no paraacutegrafo anterior Odisseu havia desconfiado da permissatildeo de
Circe de que ele iria ao seu lar retornar Contudo nessa citaccedilatildeo vemos que o heroacutei entra em
conflito com a decisatildeo que ele mesmo havia tomado de sozinho numa jangada atravessar o
oceano Esse conflito gerado por uma escolha imposta ao heroacutei faz-nos recordar Jean-Pierre
Vernant em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008) de que na trageacutedia o heroacutei vecirc-se
obrigado a tomar uma decisatildeo mesmo diante de um entorno natildeo propiacutecio num mundo
ambiacuteguo e instaacutevel Exemplificando essa consideraccedilatildeo observemos que Odisseu vecirc-se
obrigado a aceitar a proposta de Calipso mesmo porque tudo o que ele fez e sofreu foi para
poder voltar para casa Mas por outro lado essa decisatildeo eacute conflituosa pois seu entorno natildeo eacute
dos melhores pelo contraacuterio teve que aceitar a proposta quase impossiacutevel de numa jangada
partir para atravessar o oceano infinito Para Vernant (2008) eacute esta tomada de decisatildeo muitas
vezes traiccediloeira que aflige o heroacutei tornando-o susceptiacutevel a sua transformaccedilatildeo em sujeito
traacutegico Isso seria a base da trageacutedia pois aquele heroacutei que normalmente na eacutepica tem seu
vigor exaltado e glorificado vecirc-se na trageacutedia como um fraacutegil homem viacutetima de suas
decisotildees cheio de limitaccedilotildees e assombrado pela finitude da vida
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D262 retirado agraves 2032h em 25 de outubro de 2011
110
Entre os versos 299-303 306-312 do Canto V deparamo-nos com essa situaccedilatildeo
tiacutepica da trageacutedia uma vez que Odisseu arrepende-se de sua decisatildeo dizendo inclusive
preferir ter morrido em batalha a vir a padecer em alto mar sem nenhuma honraria nenhuma
fama102
Assombrado pela morte que jaacute vislumbrava a sua frente desespera-se ao ver que iria
perecer miseraacutevel e na escuridatildeo (V 312) Podemos dizer entatildeo que nos versos referidos
temos os dois poacutelos nos quais segundo Vernant (2008) a accedilatildeo traacutegica divide-se a
deliberaccedilatildeo e a consideraccedilatildeo do incompreensiacutevel de forccedilas superiores que prepararam a sorte
seja de sucesso seja de derrota Portanto encontramos na eacutepica homeacuterica um aspecto traacutegico
comum nas trageacutedias o que para Vernant (2008) relaciona-se agrave accedilatildeo que pressupotildee uma
escolha conflituosa
Haviacuteamos dito que por causa da falta de lineariade da narrativa iriacuteamos retomar o
canto V em que melhor eacute descrita a passagem de Odisseu na caverna de Calipso e como se
deu sua jornada ateacute chegar aos Feaacutecios Esta chegada ocorre no Canto VI quando ele seraacute
auxiliado por intermeacutedio de Atena por Nausiacutecaa a filha do rei dos Feaacutecios Alciacutenoo No
Canto VII o heroacutei chega ao palaacutecio e lanccedila-se sobre os peacutes da rainha Arete pedindo-lhe para
enviaacute-lo para casa e o Alciacutenoo concorda Odisseu entatildeo conta-lhes como ali chegou desde a
ilha de Calipso seu naufraacutegio e a ajuda de Nausiacutecaa na Feaacutecia concedendo-lhe roupas No
Canto VIII Odisseu eacute recepcionado pelos Feaacutecios numa assembleacuteia em que decidem a
preparaccedilatildeo do retorno do estrangeiro Depois realizam disputas nos jogos ateacute que Demoacutedoco
comeccedila a cantar sobre o adulteacuterio de Ares e Afrodite e depois sobre o Cavalo de madeira
idealizado por Odisseu para adentrarem na cidade troiana O filho de Laertes natildeo se conteacutem e
chora levando o rei Alciacutenoo a perguntar-lhe o porquecirc do choro incontido e qual a sua origem
A partir daiacute no Canto IX comeccedilam as narrativas de Odisseu sobre todas as suas erracircncias103
102
Essa fala de Odisseu remete-nos a visatildeo de bela morte tatildeo estimada pelos gregos antigos e desenvolvida por
Vernant (1989) em Lrsquoindividu la mort lrsquoamour Nesta obra Vernant exemplifica atraveacutes do Canto XXII da
Iliacuteada o significado da bela morte para os gregos sua importacircncia e o desejo que os heroacuteis tinham de padecer
belamente em campo de batalha Para os valorosos heroacuteis essa morte conservaria-lhes a honra a nobreza a
distinccedilatildeo guerreira por isso era tatildeo almejada A bela morte buscada por Heitor no Canto XXII da Iliacuteada apesar
deste saber que sua morte estaacute proacutexima demonstra-nos que soacute a bela morte pode dar-lhe a gloacuteria impereciacutevel
conservando para sempre seu brilho guerreiro Assim na referida passagem da Odisseacuteia o filho de Laertes diz
preferir ter tido a bela morte combatendo em Troacuteia a padecer em alto mar Isso porque a bela morte conservaria
sua honra sua gloacuteria e seu nome para toda eternidade jaacute a morte no imenso mar ao contraacuterio faria com que ele
morresse esquecido sem honra sem fama E eacute desse morte fatalmente traacutegica que Odisseu luta para escapar
103
Assim Odisseu fala no Canto IX de suas erracircncias na terra dos Ciacuteconos dos Lotoacutefagos ateacute encontrar a dos
Ciclopes Depois no X fala de Eacuteolo Lestrigotildees e Circe No XI sobre a consulta com Tireacuterias no Hades No XII
sobre as Sereias Cila Caribde e os bois do Sol Essa siacutentese eacute importante para que natildeo nos percamos na
narrativa nem muito menos no nosso percurso de anaacutelise que naturalmente acaba tendo como necessaacuterias as
indas e voltas ao longo da Odisseacuteia por sua estrutura natildeo linear
111
Retomemos a anaacutelise do Canto XII quando Odisseu narra aos Feaacutecios a estada
com Calipso e sua partida Partida esta na qual por obra de Posiacutedon tornou-se um naacuteufrago e
foi ajudado por Leucoteacuteia que lhe entrega o seu veacuteu imortal Este veacuteu como ela o orientou
foi amarrado ao peito para que a Morte natildeo viesse pegaacute-lo ateacute que chegasse a terra firme
neste caso a dos Feaacutecios Ainda no Canto XII o cantor Odisseu termina sua narraccedilatildeo e
iniciam-se os preparativos para seu retorno Os cantos subsequentes ao XII mostram o
desenrolar do destino de Odisseu rumo a sua gloacuteria domeacutestica Eacute assim que no Canto XIII
finalmente o nosso heroacutei polutropoj apoacutes tantas voltas retorna a Iacutetaca Como os
proacuteximos cantos mostram o desenrolar e os preparativos para a vinganccedila dos pretendentes
saltaremos nossa anaacutelise para o Canto XXII Neste o filho de Laertes apoacutes ter planejado sua
vinganccedila apresenta-se para os pretendentes (XXII 35-41) fato marcante que levaraacute agrave chacina
dos mesmos sendo punidos por todo empreendimento que fizeram contra o heroacutei e sua
famiacutelia O Laertida diz a eles que ao arruinarem seus bens violentarem suas servas e
pretenderem sua esposa eles natildeo tiveram medo dos deuses nem da vinganccedila dos homens E
logo apoacutes sua apresentaccedilatildeo Odisseu inicia a matanccedila com a ajuda do seu filho e de alguns
servos
Na ocasiatildeo da chacina dos pretendentes temos marcadamente a ideacuteia de castigo
natildeo sendo nenhum deles poupado de suas accedilotildees apesar da estirpe e de suas nobres famiacutelias
Por isso viratildeo todos os pretendentes sobrerbos padecer pelas matildeos de Odisseu No Canto II
Atena transfigurada em Mentor aconselha Telecircmaco a ir buscar notiacutecias do pai e diz para
que ele natildeo se preocupe com os pretendentes anunciando o fim que restava a todos eles
Vejamos
η λῦλ κλεζηήξσλ κὲλ ἔα βνπιήλ ηε λόνλ ηε
ἀθξαδέσλ ἐπεὶ νὔ ηη λνήκνλεο νὐδὲ δίθαηνη
νὐδέ ηη ἴζαζηλ ζάλαηνλ θαὶ θῆξα κέιαηλαλ
ὃο δή ζθη ζρεδόλ ἐζηηλ ἐπ᾽ ἤκαηη πάληαο ὀιέζζαη104
(Odisseacuteia II 281-284)
Agora despreza os pretendentes como tambeacutem teu plano e teu
dicernimento]
eles insensatos nem satildeo justos nem satildeo disscretos105
natildeo sabem eles que a morte e o negro destino
estatildeo proacuteximos para eles a fim de que todos um dia venham perecer
104
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D267 retirado agraves 1010h em 25 de outubro de 2010 105
Os destaques satildeo nossos
112
Essa citaccedilatildeo eacute bem interessante para nossa discussatildeo do traacutegico na Odisseacuteia pois
bem podemos fazer a diferenccedila entre o destino dos pretendentes de Odisseu e dos seus soacutecios
O Laertida sofre como vimos passando por situaccedilotildees traacutegicas tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn
quanto por sua proacutepria accedilatildeo errocircnea - aumlmartia Mas isso natildeo faraacute que ele tenha um destino
traacutegico e sim algumas vivecircncias Por sua vez seus companheiros passam natildeo soacute por
vivecircncias traacutegicas como tambeacutem possuem o destino traacutegico fruto da ―dupla causalidade
Ou seja suas vivecircncias e destino traacutegicos provecircm tanto pela accedilatildeo do daimacrmwn como tambeacutem
de suas proacuteprias accedilotildees
Assim seja atraveacutes de Odisseu ou dos seus companheiros Homero nos daacute uma
formulaccedilatildeo traacutegica mostrando-nos como heroacuteis experienciam o traacutegico em circunstacircncias
(Odisseu) ou definitivamente em seus proacuteprios destinos (os seus soacutecios) Nestes dois casos
podemos ver vaacuterios dos elementos que compotildee uma accedilatildeo traacutegica a aumlmartia o daimacrmwn a
asup1namacrgkh a uAacutebrij a kaqarsij o fomacrboj a esup1leoj a asup1nagnwiquestrisij Elementos estes
que nos mostram o heroacutei em conflito tendo que necessariamente deliberar e deparar-se com
sua finitude e fragilidade comum a todos os mortais Como vimos ao longo deste toacutepico
somados estes elementos levam o heroacutei a vivenciar o traacutegico (Odisseu) ou a concretizaacute-lo em
seu destino (os seus companheiros) Ressalta-se que aristotelicamente natildeo falta caraacuteter a
esses personagens mas uma accedilatildeo eacute que os encaminha para cataacutestrofe
Poderiacuteamos entatildeo pensar que na chacina ocorrida com os pretendentes temos
aspectos traacutegicos por termos o sofrer destes e muitas mortes em torno de cento e dezesseis
contando com as servas que tambeacutem satildeo punidas por terem traiacutedo seu senhor ajudando os
pretendentes Inclusive ao longo da Odisseacuteia natildeo haacute nem de perto uma quantidade tatildeo
grande de representaccedilotildees de mortes Contudo Homero aleacutem de ter-nos deixado o despontar
de representaccedilotildees traacutegicas legou-nos tambeacutem as natildeo traacutegicas mesmo que superficialmente
pudessem assim ser entendidas Deste modo atraveacutes da chacina dos pretendentes Homero
demonstra-nos que o traacutegico natildeo estaacute necessariamente relacionado agrave morte pois se assim
fosse a corte dos cortejantes agrave matildeo de Peneacutelope seria a cena mais traacutegica na Odisseacuteia
Aristoacuteteles nos ensina (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) e Homero representa-nos que
para ocorrer o traacutegico natildeo basta encenar sangue dor e mortes haacute de se ter muitos outros
elementos a exemplo do imerecido para suscitar-nos piedade e a empatia para suscitar-nos
o temor Assim a chacina dos pretendentes nem eacute imerecida porque muito fizeram para
merecer tal castigo nem nos proporciona o temor jaacute que natildeo haacute construccedilatildeo de empatia para
com esses personagens Eacute por isso que Aristoacuteteles diz-nos (Poeacutetica 1453a 7-11) que os
113
heroacuteis com seus caracteres intermediaacuterios satildeo os protagonistas ideais do traacutegico ao contraacuterio
dos muito bons que incitam excesso de piedade e dos muito maus que incitam a satisfaccedilatildeo
humana de ver os maus em decadecircncia Por isso as cento e dezesseis mortes narradas no
Canto XXII representam a puniccedilatildeo de todos os males cometidos pelos pretendentes Males
estes resultantes natildeo apenas de uma accedilatildeo errocircnea mas tambeacutem pela falta de caraacuteter por isso
Atena diz que eles satildeo insensatos injustos e portanto agem sem bom-senso (II 281-284)
A situaccedilatildeo da chacina dos pretendentes natildeo nos incita o traacutegico pois pela falta do
imerecido e da empatia natildeo nos provoca o fomacrboj nem a esup1leoj Ao contraacuterio a nossa
tendecircncia em geral eacute de nos satisfazermos com a representaccedilatildeo dessas muitas mortes porque
consideramos que eles tiveram o fim merecido Basta-nos para entendermos melhor essa
afirmaccedilatildeo lembrar da reaccedilatildeo da ama Euricleacuteia ao ver Odisseu em meio aos corpos todo
ensanguentado Ela natildeo consegue conter a alegria sendo necessaacuteria a intervenccedilatildeo do heroacutei
para que ela se contenha (XXII 411-416) visto que natildeo eacute adequado regozijar perante os
mortos E sobre isso jaacute nos orientava Aristoacuteteles (Poeacutetica 1453a) porque um homem muito
malvado passando da felicidade para infelicidade naturalmente natildeo nos suscita nem temor
nem piedade ao contraacuterio satisfazemo-nos por considerarmos que a justiccedila foi feita e que os
pretendentes e as amas pagaram por seus erros Eacute isso que comemora Euricleacuteia e Odisseu
mostrando sua dignidade e saber reprime-a por natildeo ser divino alegrar-se diante dos que jaacute
foram castigados por seus males Lembremos
ἡ δ᾽ ὡς οὖν νέκυάς τε καὶ ἄσπετον εἴσιδεν αἷμα
ἴθυσέν ῥ᾽ ὀλολύξαι ἐπεὶ μέγα εἴσιδεν ἔργον
ἀλλ᾽ Ὀδυσεὺς κατέρυκε καὶ ἔσχεθεν ἱεμένην περ
καί μιν φωνήσας ἔπεα πτερόεντα προσηύδα
ἐν θυμῶι γρηῦ χαῖρε καὶ ἴσχεο μηδ᾽ ὀλόλυζε
οὐχ ὁσίη κταμένοισιν ἐπ᾽ ἀνδράσιν εὐχετάασθαι
τούσδε δὲ μοῖρ᾽ ἐδάμασσε θεῶν καὶ σχέτλια ἔργα
οὔ τινα γὰρ τίεσκον ἐπιχθονίων ἀνθρώπων
οὐ κακὸν οὐδὲ μὲν ἐσθλόν ὅτις σφέας εἰσαφίκοιτο
τῶι καὶ ἀτασθαλίηισιν ἀεικέα πότμον ἐπέσπον106 (Odisseacuteia XXII 407- 416)
Entatildeo a ama Euricleacuteia viu os cadaacuteveres e o imenso sangue
e eacute verdade que atacou a gritar quando viu o grande trabalho
Mas Odisseu a deteve e decerto segurou sua agitaccedilatildeo
106
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od22html retirado agraves 1500hs de 15 de julho
de 2010
114
Tambeacutem ele mesmo tendo falado alto dirigia-lhe essas palavras aladas
Na alma velha alegra-te mas natildeo grita reprime pois para si
Natildeo eacute da lei divina manifestar-se assim sobre os homens que perecem
Estes o destino dos deuses submeteu como tambeacutem a seus trabalhos
[funestos
Eles natildeo respeitavam nenhum dos homens viventes da terra
nem o mau nem certamente o bom que a eles se apresentou
E por essas accedilotildees insanas perseguiu-lhes o destino indigno
Essa discussatildeo tambeacutem nos faz recordar da explanaccedilatildeo de Junito Brandatildeo em
Homero e seus poemas deuses mitos e escatologia (1998) a respeito de que a Odisseacuteia
instaura na literatura ocidental representaccedilotildees novas Essas satildeo sobre a ideacuteia de culpa
castigo ―em que a hyacutebris a violecircncia a insolecircncia a ultrapassagem do meacutetron () comeccedilam
a despontar (BRANDAtildeO 1998 p 134) Junito Brandatildeo diz ainda que a culpa traacutegica
como jaacute foi dito no capiacutetulo anterior pode ser realizada de duas formas da hamartia em que
forccedilas superiores impulsionam o homem ao erro (a exemplo dos soacutecios de Odisseu no caso
das vacas do Sol) ou atraveacutes do adikon quando o sujeito deliberadamente sem coaccedilatildeo
comete o erro A esta uacuteltima culpa relacionamos os pretendentes pois por deliberaccedilatildeo
proacutepria intentaram contra Odisseu e sua famiacutelia consumindo seu palaacutecio seus bens
pretendendo sua esposa violentando suas servas aleacutem de terem chegado inclusive a planejar
a morte de seu filho Telecircmaco que soacute natildeo ocorreu por causa da proteccedilatildeo de Atena Assim
Odisseu mata-os para que eles e suas accedilotildees funestas sejam definitivamente reparadas e
abolidas
Atraveacutes de todo o percurso de anaacutelise que fizemos neste toacutepico Odisseacuteia
momentos de tragicidade pudemos perceber as valorosas contribuiccedilotildees que Homero legou-
nos tanto para literatura ocidental como mais especificamente para a trageacutedia grega Esta
desenvolveu os elementos traacutegicos jaacute bem traccedilados por Homero Nesses uacuteltimos paraacutegrafos
constatamos tambeacutem duas contribuiccedilotildees baacutesicas que nos lega Homero a representaccedilatildeo de
como os homens satildeo levados a sofrer vivecircncias traacutegicas (Odisseu) ou destinos traacutegicos (os
soacutecios do heroacutei) como tambeacutem uma amostra de como os personagens mesmo
impiedosamente mortos podem natildeo provocar nenhum sentimento de empatia nenhuma
comoccedilatildeo diante de seu sofrer Deste modo fica-nos evidente o que eacute necessaacuterio para termos
um personagem traacutegico pois natildeo basta o sofrimento ele tem tambeacutem que ter dignidade ser
levado pela asup1namacrgkh e pelo daimacrmwn a cometer a aumlmartia e a uAacutebrij e assim suscitando
o fomacrboj e a esup1leoj levar-nos agrave kaqarsij E essa tragicidade como vimos pode ser
acentuda por outros elementos a exemplo da asup1nagnwiquestrisij em que o personagem traacutegico
115
experiencia tudo com plena consciecircncia Essa accedilatildeo traacutegica apresenta-se para noacutes como
incompreensiacutevel proporcionando-nos uma vivecircncia do espiacuterito traacutegico ao observarmos o
homem defrontando-se com a sua fragilidade e limitaccedilatildeo comum aos mortais
32 TRAGICIDADE NO CANTO XI DA ODISSEacuteIA ANTICLEacuteIA AQUILES
AGAMEcircMNON AacuteJAX
Neste toacutepico realizaremos uma aplicaccedilatildeo teoacuterico-analiacutetica do traacutegico a partir do
Canto XI da Odisseacuteia em especial naqueles momentos em que Odisseu encontra-se no Hades
com a sua matildee Anticleacuteia e seus companheiros em Troacuteia Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax Como
veremos o Laertida iraacute ao deparar-se com sua matildee tomar conhecimento de sua morte aleacutem
de constatar que seus antigos companheiros em Troacuteia amarguravam um destino funesto
Agamecircmnon sofre pela desonra de sua morte fruto da traiccedilatildeo da esposa com o amante Egisto
Aquiles inconformado diz-se infeliz em reinar sobre mortos preferindo vivo ser um
trabalhador do campo e Aacutejax mesmo apoacutes a morte encontra-se ainda ressentido pelo fato de
ter perdido as armas de Aquiles para Odisseu Consideramos a anaacutelise que segue o cerne do
nosso trabalho tendo em vista as suas relevantes cenas que nos sugerem o espiacuterito do traacutegico
A afirmaccedilatildeo acima natildeo invalida ou diminui o valor dos capiacutetulos e toacutepicos
anteriores ao contraacuterio eles satildeo os responsaacuteveis pela fundamentaccedilatildeo da nossa anaacutelise
proporcionando-nos uma maior percepccedilatildeo do traacutegico e uma mais clara justificativa do porquecirc
da escolha do Canto XI Neste podemos ver Odisseu apoacutes ter sido orientado por Tireacutesias
passar por um processo cartaacutetico atraveacutes da vivecircncia traacutegica que passa junto a Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E assim por meio de sua catarse estaraacute pronto para prosseguir
seu objetivo alcanccedilar um destino glorioso de retorno e consagraccedilatildeo domeacutestica
Odisseu comunicado por Circe que deveria ir ao Hades desespera-se (X 496-
498) por saber que pouquiacutessimos homens tiveram esse privileacutegio Aflito e angustiado o heroacutei
teme natildeo ser capaz de tatildeo grande empreitada Contudo o que o aguarda no Hades eacute ainda
pior deparar-se com a matildee que havia deixado a vida como eiAtildedwlon morta e ouvir todas as
desventuras dos companheiros que antes alcanccedilaram a gloacuteria em Troacuteia
Entendamos como ocorre a chegada de Odisseu ao Hades e como seratildeo seus
encontros traacutegicos O Canto XI da Odisseacuteia inicia-se com Circe agrave beira mar enviando ventos
116
propiacutecios para Odisseu e seus companheiros Nesse momento percebamos que os mortos
comeccedilam a aproximar-se do heroacutei e quem o faz primeiro eacute Elpenor antigo soacutecio e que veio a
padecer Com a visatildeo o heroacutei sente o coraccedilatildeo apertar e vertendo laacutegrimas pergunta como ele
morreu O seu antigo soacutecio apoacutes responder suas perguntas pede para que seja sepultado
erguendo um monumento na beira do mar e fincando o remo que usara Como percebemos
Elpenor sente falta de ter seus ritos fuacutenebres realizados ateacute porque ele que combateu em
Troacuteia e que vagou com Odisseu por terras e mares morreu sem ao menos ter uma laacutepide
para lembrar sua morte Assim para evitar esse imerecido esquecimento de um companheiro
Odisseu logo se compromete a realizar seu desejo
Entatildeo apoacutes Elpenor distanciar-se a matildee do Laertida aparece Essa eacute a primeira
experiecircncia traacutegica que Odisseu tem no Hades ateacute mesmo porque ele natildeo sabia ainda da
morte da matildee jaacute que ao partir para Troacuteia havia deixado-a com vida em Iacutetaca Perante tal
visatildeo o heroacutei potildee-se a chorar pois ao ter aceitado o desafio de ir ao Hades natildeo havia
imaginado que em meio a dolorosa visatildeo das sombras encontraria sua matildee como mais uma
alma dos mortos (XI 87) Mas como ele tinha que primeiro falar com Tireacutesias o Laertida natildeo
deixa a matildee aproximar-se do sangue Para entendermos todo o cenaacuterio com o qual Odisseu
depara-se no Hades logo no iniacutecio do Canto XI em que o deinoj107 apodera-se do heroacutei
apoacutes ele ter feito todos os rituais vejamos o que nos explica Vernant (2000)
Entatildeo percebe que estaacute vindo em sua direccedilatildeo a multidatildeo formada pelos que
natildeo satildeo ningueacutem ouacutetis como ele pretendeu ser Satildeo os sem-nome os
noacutemymnoi os que natildeo tem mais rosto que natildeo satildeo mais visiacuteveis que natildeo
satildeo mais nada Formam uma massa indistinta de seres que outrora foram
indiviacuteduos mas dos quais natildeo se sabe mais nada Dessa massa que desfila a
sua frente sobe um rumor apavorante e indistinto Eles natildeo tem nome natildeo
falam eacute um barulho caoacutetico Ulisses eacute envadido por um medo terriacutevel diante
desse espetaacuteculo que representa a seus olhos e ouvidos a ameaccedila de uma
dissoluccedilatildeo completa num magma disforme sendo sua palavra tatildeo haacutebil
afogada num rumor inaudiacutevel sua gloacuteria sua fama e sua celebridade caindo
no esquecimento (VERNANT 2000 112-113)
Diante desta cena observamos que Odisseu fica rodeado por uma massa de
sombras sem nome sem rosto sem gloacuteria o que logo ao iniacutecio do Canto XI faz com ele ele
seja apoderado pelo sentimentos de foboj E este sentimento de temor inspirado o foboj
que eacute o medo que faz fugir que propicia ao heroacutei o desejo de querer afastar-se da morte
107
Em Retoacuterica das Paixotildees Aristoacuteteles diz que ao depararmo-nos com um parente proacuteximo em situaccedilatildeo
dolorosa o que sentimos natildeo eacute compaixatildeo e sim o deinoj Ou seja experienciamos o terriacutevel o apavorante por
tal fato narrado estaacute muito proacuteximo de noacutes
117
buscando retornar a Iacutetaca para que natildeo venha ser mais uma dessas sombras esquecidas
disformes e indistintas como as que ele se depara no Hades Pois toda a busca que Odisseu
faz desde que saiu de Troacuteia para retornar a Iacutetaca natildeo simboliza apenas o desejo de voltar
para casa e para os seus familiares mas tambeacutem o de fugir impelido pelo foboj da morte
desonrosa que o levaria ao esquecimento e tornaria-o mais um deinoj entre tantos que sem
gloacuteria vagueiam no Hades
E no decorrer da narrativa apoacutes a visatildeo amedrontadora das sombrasTireacutesias entatildeo
aparece e pede-lhe para recolher a espada para que possa provar do sangue e dizer-lhe toda a
verdade Observemos atraveacutes desta fala do adivinho que tudo o que ele vier a contar seraacute
verdade pois tendo Odisseu feito o ritual conforme Circe indicara todas as sombras soacute
poderatildeo falar a verdade para o heroacutei Assim o tebano prenuncia tudo o que o heroacutei teraacute que
enfrentar desde a sua saiacuteda do Hades ateacute o procedimento que deve ter ao chegar em Iacutetaca
Revela-lhe a perseguiccedilatildeo de um deus que atrapalharaacute o seu retorno mas natildeo o impediraacute caso
consiga refrear a sua cobiccedila e dos seus soacutecios diz-lhe ainda que ao chegar em Iacutetaca
enfrentaraacute muitos trabalhos pois homens soberbos destroem seus bens e pretendem sua
esposa Mas Tireacutesias tranquiliza-o com seu destino dizendo-lhe que ao chegar em Iacutetaca daraacute
castigo a todos os pretendentes (XI 118) Tireacutesias avisa ao heroacutei que conseguiraacute evitar o
destino traacutegico apoacutes cumprir as empreitadas reveladas e realizar os rituais sagrados Tudo
isso para que apoacutes vivenciar tantos momentos traacutegicos Odisseu possa enfim viver com sua
famiacutelia tranquilamente ateacute que a doce morte venha pegaacute-lo (XI 134-137)
Contudo sabemos que antes de vir a alcanccedilarr o seu pretenso destino Odisseu teraacute
que enfrentar muitos desafios e muitos momentos traacutegicos Momentos estes que ele enfrentaraacute
ainda no Hades atraveacutes dos encontros que com sua matildee e com alguns companheiros de Troacuteia
Assim tendo Tireacutesias terminado as revelaccedilotildees sobre o destino do heroacutei este pergunta-o o
porquecirc da indiferenccedila de sua matildee que natildeo o fala (XI 140-144) Esse questionamento do
filho de Laertes demonstra-nos sua inconformidade de enfrentar aleacutem da visatildeo da matildee morta
sua indiferenccedila e renuacutencia de falar-lhe O adivinho diz para o heroacutei deixaacute-la aproximar-se do
sangue a fim de que lhe fale tambeacutem soacute a verdade Esse ritual deve ser realizado com toda e
qualquer sombra com a qual Odisseu deseje falar
Como sabemos as pessoas com as quais Odisseu comeccedilaraacute a falar jaacute estatildeo mortas
Por isso gostariacuteamos de elucidar a condiccedilatildeo em que se encontra a consciecircncia dessas pessoas
Para entendermos o niacutevel de coerecircncia e verossimilhanccedila desses diaacutelogos primeiro resaltamos
que como foi avisado por Tireacutesias toda a sombra que Odisseu deixasse aproximar-se do
118
sangue iria falar-lhe apenas a verdade enquanto as demais recuariam Ou seja podemos
compreender logo que toda a sombra que se aproximar de Odisseu falaraacute fatos verdeiros
sem ilusotildees ou inverdades Aleacutem disso eacute significativo sabermos que geralmente ―() no
Hades a psiqueacute o eiacutedolon eacute uma sombra uma imagem paacutelida e inconsistente abuacutelica
destituiacuteda de entendimento sem precircmio nem castigo (BRANDAtildeO 1998 p 146) No
entanto o eiAtildedwlon 108
essa sombra abuacutelica e paacutelida como diz-nos Junito Brandatildeo (1998)
pode recuperar por alguns instantes a razatildeo mediante um complexo ritual como o que foi
detalhadamente descrito no Canto XI da Odisseacuteia (v 20-50) Perante tais consideraccedilotildees
sabemos que aleacutem de falarem a verdade as sombras que dialogam com Odisseu tecircm
recuperadas as consciecircncias e portanto falam com racionalidade pois o filho de Laertes
cumpriu com todos os rituais necessaacuterios
Neste momento em que entendemos a condiccedilatildeo mental do eiAtildedwlon
prosseguimos a nossa anaacutelise Como vimos o esposo de Peneacutelope falara com Tireacutesias e sabia
como proceder para conquistar seu desejado retorno O vate parte e Odisseu interessado em
falar com a matildee deixa ela se aproximar do sangue para poder falar-lhe Anticleacuteia aproxima-
se reconhece o filho instantaneamente e pergunta o que ele faz no Hades e se jaacute havia
retornado a seu paiacutes O eiAtildedwlon de sua matildee natildeo entende o porquecirc de o filho estar ali local
sobre o qual ela afirma ser aos vivos tatildeo difiacutecil de contemplar (XI 156) Odisseu responde-
lhe e pergunta-lhe como estatildeo seu pai seu filho sua esposa seu palaacutecio enfim Sobre a
esposa ela diz que vive em prantos sem fim (XI 182-183) o filho sozinho administra o
palaacutecio e seu pai passou a dormir no inverno junto aos servos e no veratildeo dorme sobre as
folhas no chatildeo vivendo triste agrave espera do filho amado jaacute ela proacutepria veio a falecer de
saudades Vejamos com detalhes o discurso de Anticleacuteia sobre as dores sentidas por ela e
pelo marido
νὔη᾽ ἐκέ γ᾽ ἐλ κεγάξνηζηλ ἐύζθνπνο ἰνρέαηξα
νἷο ἀγαλνῖο βειέεζζηλ ἐπνηρνκέλε θαηέπεθλελ
νὔηε ηηο νὖλ κνη λνῦζνο ἐπήιπζελ ἥ ηε κάιηζηα
ηεθεδόλη ζηπγεξῇ κειέσλ ἐμείιεην ζπκόλ
ἀιιά κε ζόο ηε πόζνο ζά ηε κήδεα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
ζή η᾽ ἀγαλνθξνζύλε κειηεδέα ζπκὸλ ἀπεύξαlsquo109
(Odisseacuteia XI 198-203)
108
Essa palavra deriva do grego eiAtildedwlon que segundo Romizi (2007) significa o aspecto a imagem de um
morto Por isso relaciona-se agrave figura de um fantasma de uma imaginaccedilatildeo de uma sombra 109
Texto diponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 0718h em 05 de novembro de 2010
119
No uqarto natildeo me matou a arqueira perspicaz
com suas lanccedilas gentis vindo-me de encontro
nem foi doenccedila que me veio para o grande
definhamento abominaacutevel e que o acircnimo dos membros tirou-me
Mas por ti notaacutevel Odisseu a saudade de ti as preocupaccedilotildees contigo
a tua gentileza e doccedilura tudo isso arrebatou minha vida
O heroacutei apoacutes jaacute ter enfrentado tantos desafios e por longo tempo ter ficado errante
por mar e por terra suportando hostilidades de povos diversos depara-se com uma nova
empreitada realizada por poucos de ir ao Hades e voltar No territoacuterio dos mortos depara-se
ainda com uma amedrontadora imagem e barulho sendo rodeado por sombras diversas
paacutelidas sem rosto e sem razatildeo O deinoj apodera-se do heroacutei Mas muito ainda o aguardava e
ele que ao sair de Iacutetaca havia deixado sua matildee viva vem encontraacute-la morta Todavia isso natildeo
eacute suficiente para um heroacutei de tantas dores por isso Anticleacuteia revela-lhe que sua esposa
Peneacutelope vive em pranto infindo e que seu pai Laertes vive plenamente triste e
acabrunhado suportando a velhice E mais ainda ela revela que natildeo a matou a velhice ou a
deusa frecheira mas o proacuteprio filho Odisseu e a saudade que ele deixara O Laertida apesar
de heroacutei eacute um mortal como os demais homens e a estes como diz-nos Vernant (2006) em
Mito e religiatildeo na Greacutecia Antiga as dores e os sofrimentos satildeo comuns E eacute esse caraacuteter
humano que faz dos heroacuteis personagens propensos a do alto do seu heroiacutesmo caiacuterem como
os mortais comuns em tragicidade O traacutegico como vemos ao longo deste trabalho eacute fato
comum na trajetoacuteria de Odisseu apesar de natildeo o ser em seus destinos pois
A Odisseu favorece um destino (moicurrenra) epecial que de fato natildeo estaacute dirigido
para morte mas natildeo obstante o caraacuteter negativo da Moira denuncia-se aiacute
com muita clareza ele deve atravessar graves sofrimentos () Tambeacutem
neste caso o fado trava eacute retributivo ―ainda natildeo ateacute que ndash este eacute o
autecircntico tom da Moira110
()
( OTTO 2005 p 245)
Apesar de estarmos no iniacutecio da anaacutelise fica-nos claro que mesmo diante do
destino fechado de Odisseu a Moicurrenra persegue-o para que antes de gozar de seu prestiacutegio
em Iacutetaca venha passar por muitas dores e sofrimentos Sofrimentos como os que estamos
estudando sua matildee conta-lhe que por culpa so proacuteprio heroacutei Peneacutelope chora infinitamente
seu pai Laertes vive incondicionalmente triste e ela mesma desceu ao Hades por culpa dele
natildeo suportando as saudades Assim tragicamente Odisseu vecirc-se sem o merecer como
culpado pela morte da matildee amada e do sofrer de seu pai e de sua esposa Daiacute decorrer a
110
Os destaques satildeo nossos
120
inocecircncia traacutegica que Romilly diz ser encontrada nas trageacutedias pois ―() mesmo quando nos
satildeo apresentados como culpados mesmo quando suas accedilotildees os arrastam satildeo-no porque o erro
eacute o lote do homem ou porque correspondem a situaccedilotildees que satildeo igualmente o lote do
homem (ROMILLY 2008 p 175)
Assim mesmo sem uma accedilatildeo direta Odisseu eacute responsabilizado pelos
sofrimentos dos seus familiares e principalmente pela morte de sua matildee (Odisseacuteia XI 195-
203) Tal constataccedilatildeo faz-nos recordar de Aristoacuteteles ao afirmar que as cataacutestrofes satildeo mais
traacutegicas quando ocorrem entre familiares
Ὅταν δ᾽ ἐν ταῖς φιλίαις ἐγγένηται τὰ πάθη οἷον ἢ ἀδελφὸς
ἀδελφὸν ἢ υἱὸς πατέρα ἢ μήτηρ υἱὸν ἢ υἱὸς μητέρα ἀποκτείνηι ἢ
μέλληι ἤ τι ἄλλο τοιοῦτον δρᾶι ταῦτα ζητητέον111 (Ibidem XIV
1453b 20-23)
Quando estas cataacutestrofes realizam-se em amizades ou com um irmatildeo que
mata irmatildeo ou um filho que mata o pai ou a matildee que mata o filho ou o
filho que mata a matildee ou quando vecircm ocorrer alguma outra coisa desta
natureza estas coisas tecircm que ser buscadas
Naturalmente entendemos essa concepccedilatildeo aristoteacutelica de que um contexto de
tragicidade entre familiares eou entre personagens que cultivam amizade proporcia maior
comoccedilatildeo e sofrimento sendo portanto ainda mais efetivo para a manifestaccedilatildeo do sentimento
traacutegico Para entendermos tal posiccedilatildeo basta-nos lembrar de Aristoacuteteles dizendo que em meio
agrave dor sofrimentos e mortes aproximamo-nos da cataacutestrofe e portanto do traacutegico (Poeacutetica
1452b 12-14) E esse fato eacute reforccedilado pela fala do porqueiro antigo servo de Odisseu e do
seu pai que no Canto XV ao ser perguntado pelo mendigo (Odisseu) qual o destino de
Laertes e Anticleacuteia responde que Laertes apesar de vivo pede a morte e que Anticleacuteia morta
de saudades teve o pior dos fins
ἡ δ᾽ ἄρετ νὗ παηδὸο ἀπέθζηην θπδαιίκνην
ιεπγαιέῳ ζαλάηῳ ὡο κὴ ζάλνη112
ὅο ηηο ἐκνί γε
ἐλζάδε λαηεηάσλ θίινο εἴε θαὶ θίια ἔξδνη113
111
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante04Aristotelesari_poi2html agraves 2035hs de 17 de julho de
2010 112
Nessa citaccedilatildeo temos trecircs verbos no modo optativo qanoi de qnhskw- morrer eiAtildeh de e)aw- permiter
deixar ocorrer e eAtilderdoi de eAtilderdw- fazer Essa observaccedilatildeo eacute importante pois essa forma lingiacutestica exprime de
modo coerente o contexto da passagem citado Isso porque o optativo exprime a possibilidade o voto o desejo
(MURACHO 2007) Assim o porqueiro exprime seu desejo de que seus conhecidos natildeo tenham a mesma morte
da matildee de Odisseu por isso traduzimos ―que ningueacutem morra ―quenatildeo ocorra ―que natildeo se faccedila
121
(Odisseacuteia XV 358-360)
Ela pereceu pela anguacutestia da morte miseraacutevel e sem gloacuteria
do filho Que ningueacutem meu morra assim que isso natildeo ocorra ao
habitante daqui amigo e que natildeo se faccedila ao que me eacute querido
Atraveacutes da fala de Eumeu o porqueiro percebemos que ele compreende que eacute
muito doloroso morrer indiretamente por culpa de um ente amado E assim diante dessa
morte estruturalmente dolorosa ele pede aos deuses para que ningueacutem em sua ilha ou com
quem ele tenha afeto venha padecer de tatildeo horrorosa morte Padecimento este em que um
filho leva a matildee agrave morte mesmo sem intenccedilatildeo e muito menos sem accedilatildeo direta Odisseu de
forma imerecida torna-se o culpado pelas dores da famiacutelia e pela morte da matildee que foi gerada
pela accedilatildeo da Moicurrenra e do daimacrmwn A riqueza dos detalhes dessa morte somada ao contexto
em que ela foi gerada faz com que esta morte na narrativa seja presentificada aumentando
sua tragicidade Por isso Odisseu natildeo se conteacutem e apoacutes ouvir o relato da matildee que soa para
ele como tortura ele exclama
―ὣο ἔθαη᾽ αὐηὰξ ἐγώ γ᾽ ἔζεινλ θξεζὶ κεξκεξίμαο
κεηξὸο ἐκῆο ςπρὴλ ἑιέεηλ θαηαηεζλεπίεο
ηξὶο κὲλ ἐθσξκήζελ ἑιέεηλ ηέ κε ζπκὸο ἀλώγεη
ηξὶο δέ κνη ἐθ ρεηξλ ζθηῇ εἴθεινλ ἢ θαὶ ὀλείξῳ
ἔπηαη᾽114
(Odisseacuteia XI 205-209)
Dizia eu desejava tecirc-la ao peito mas tendo-a apertado
o espiacuterito da minha matildee morta escapava-me
O acircnimo comandava-me e por trecircs vezes apertei-a
por trecircs vezes tambeacutem como se fosse sombra ou sonho
dos meus braccedilos ela se evolou
Natildeo bastasse todo o relato da matildee pondo-o como responsaacutevel por sua morte
Odisseu para atenuar a dor tenta abraccedilaacute-la por trecircs vezes em vatildeo O heroacutei natildeo compreende
que o corpo anterior de sua matildee agora eacute um eiAtildedwlon mais uma sombra entre tantas outras
vagantes no Hades E esse aspecto do morto intocaacutevel e natildeo palpaacutevel por natureza impede-o
de abraccedilar a matildee e aleacutem do mais isso o faz perceber que aquela eacute uma imagem de sua matildee
de outrora Mas resistindo ao reconhecimento (asup1nagnwiquestrisij) desse fato que sua matildee agora
113
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D153Acard3
D185 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010 114
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D180 retirado agraves 1352h em 10 de novembro de 2010
122
eacute mais um eiAtildedwlon Odisseu tenta agarraacute-la por trecircs vezes Em todas as tentativas
naturalmente ele se frustra por isso questiona agrave matildee o porquecirc daquilo e desconfia se natildeo
seria mais um castigo dessa vez enviado por Perseacutefone enganando-o e iludindo-o atraveacutes de
um fantasma Ela poreacutem explica-lhe que com a morte a carne e os ossos deixam os tendotildees
Isto eacute apoacutes a morte natildeo haacute mais o corpo anterior firme e palpaacutevel o que resta eacute apenas uma
sombra do que foi sombra esta que eacute exatamente o eiAtildedwlon Depois disso Anticleacuteia antes
de partir avisa ao filho que guarde o que ouviu para poder contar em Iacutetaca
Odisseu narra tudo isso aos Feaacutecios que quietos a tudo ouvem E no instante em
que o filho de Laertes pausa seu canto a rainha dos Feaacutecios Arete promete dar-lhe presentes
e Alciacutenoo garante que daraacute o pretenso retorno ao heroacutei Este agradece O rei da Feaacutecia entatildeo
pede para que relate se viu algum dos guerreiros que junto a ele combateu em Troacuteia pois
todos suportariam o sono para ouvi-lo Odisseu diz que se estatildeo dispostos a ouvir ele
continuaraacute a narrativa e assim o faz Diz que narraraacute fatos ainda mais graves pois viu padecer
seus companheiros diletos vitoriosos em Troacuteia O primeiro deles a aproximar-se eacute
Agamecircmnon que bebe do sangue e realiza altos gemidos estendendo as matildeos para Odisseu
Este percebe que o Atrida natildeo tem mais o vigor de antes quando em Troacuteia comandava os
guerreiros e diante dessa imagem o filho de Laertes sente o peito apertar e potildee-se a chorar
(Odisseacuteia XI 391-395)
Na guerra de Troacuteia Agamecircmnon era o detentor do cetro o aAtildenac asup1ndrwIacuten o
senhor dos heroacuteis era o responsaacutevel por comandar todos os gregos Nessa passagem Odisseu
dapara-se com o rei de Micenas o supremo chefe dos aqueus elevando altos gemidos
estendendo as matildeos como em pedido de auxiacutelio tambeacutem sem vigor nos membros Diante da
cena Odisseu com o peito apertado vai agraves laacutegrimas A cena suscita a esup1leoj pois
aristotelicamente sente-se compaixatildeo ao ver-se em semelhante desventura Mas Odisseu
ainda natildeo sabe o porquecirc da morte do Atrida e pergunta se foi obra de Posiacutedon de inimigos na
disputa de mulheres ou na conquista de cidades Agamecircmnon nega essas opccedilotildees e responde
ἀιιά κνη Αἴγηζζνο ηεύμαο ζάλαηόλ ηε κόξνλ ηε
ἔθηα ζὺλ νὐινκέλῃ ἀιόρῳ νἶθόλδε θαιέζζαο
δεηπλίζζαο ὥο ηίο ηε θαηέθηαλε βνῦλ ἐπὶ θάηλῃ
ὣο ζάλνλ νἰθηίζηῳ ζαλάηῳ πεξὶ δ᾽ ἄιινη ἑηαῖξνη
λσιεκέσο θηείλνλην () ἤδε κὲλ πνιέσλ θόλῳ ἀλδξλ ἀληεβόιεζαο
κνπλὰμ θηεηλνκέλσλ θαὶ ἐλὶ θξαηεξῇ ὑζκίλῃ
ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ ὀινθύξαν ζπκῶ
123
ὡο ἀκθὶ θξεηῆξα ηξαπέδαο ηε πιεζνύζαο
θείκεζ᾽ ἐλὶ κεγάξῳ δάπεδνλ δ᾽ ἅπαλ αἵκαηη ζῦελ115
(Odisseacuteia XI 409-413416-420)
Mas a mim Egisto causou a morte e o destino desgraccedilado
pois junto com minha esposa maldita ao chamar-me em sua casa para um
banquete]
matou-me do modo como algueacutem mata um boi na manjedoira
Assim morri da morte mais lamentaacutevel ao meu redor os demais
companheiros]
eles mataram continuamente ()
Jaacute presenciaste a morte de muitos guerreiros
seja morrendo em combates individuais ou em batalha poderosa
Mas tendo visto aquilo sofrerias muitiacutessimo no coraccedilatildeo
pois ao redor de crateras e mesas que tinham estado haacute pouco cheias
estaacutevamos deitados no salatildeo com o chatildeo todo ensanguumlentado116
Agamecircmnon ainda completa que mais doloroso foi ouvir os gritos de Cassandra
descendente dos troianos trazida por ele para servir-lhe como escrava Diante da narraccedilatildeo
acima podemos perceber muitos elementos que nos indicam a presenccedila do traacutegico Tanto que
Eacutesquilo (2004) iraacute se inspirar nesse episoacutedio para a composiccedilatildeo de sua trilogia traacutegica a
Oresteacuteia Desse modo o aAtildenac asup1ndrwIacuten apoacutes aacuterdua batalha em Troacuteia aguarda ser recebido
por festas e consagraccedilotildees em sua terra Mas o que o aguarda eacute a morte funesta elaborada por
sua esposa Clitemnestra junto com o seu amante Egisto Por isso o Atrida
conscientemente afirma ―ὣς θάνον οἰκτίστωι θανάτωιrdquo117 isto eacute ―Assim morri com a
morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia Canto XI v 412)
Eacute atraveacutes de passagens como essa que Homero lega aos tragedioacutegrafos o espiacuterito
traacutegico e seu contexto em que os deuses natildeo mais satildeo o siacutembolo da proteccedilatildeo como eacute comum
vermos na eacutepica Eles agora implusionam o homem para o erro este que por sua vez levaraacute o
homem ao traacutegico Pois os deuses ―jaacute natildeo mais iluminam antes seduzem e transviam eacute o
caminho da queda (OTTO 2005 p 259) como seraacute tiacutepico da trageacutedia no seacuteculo V aC
Temos a accedilatildeo da Moicurrenra impelindo o heroacutei para o destino mais catastroacutefico a morte sem
gloacuteria sem nobreza Nos diaacutelogos entre Odisseu com os antigos companheiros em Troacuteia
como eacute o caso do citado com Agamecircmnon percebemos que esses heroacuteis antes tatildeo protegidos
115
Retirado de
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D40 retirado agraves 1426h em 10 de novembro de 2010 116
Destaque nosso 117
Verso disponiacutevel em
httpwwwhsaugsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12
de julho de 2010
124
pelas divindades como ocorre na Iliacuteada vecircem-se desolados nas matildeos do destino Este guarda
para eles a morte funesta como uacuteltimo grande legado pois ―() eacute o destino da vida natildeo
alcanccedilar tais e tais coisas falhar aqui e ali e finalmente decair () (Ibidem p 258)
Entre os versos 412-413 o Atrida abatido pela morte vergonhosa sugere-nos
mais um elemento traacutegico que Vernant trata em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga (2008
p2) o heroacutei deixou de ser soluccedilatildeo para figurar como problema natildeo apenas para si mas
tambeacutem para os outros Assim o aAtildenac asup1ndrwIacuten que antes no comando dos demais heroacuteis
saiu vencedor na guerra de Troacuteia torna-se presa na matildee da esposa e do seu amante
Ao desembarcar em Argos o rei traz a vitoacuteria para os seus e em contrapartida
recebe a morte por matildeos familiares Contudo a morte natildeo atinge apenas o rei que pelo
miasmoj118 de sua famiacutelia e por accedilotildees proacuteprias deveria ser punido mas tambeacutem seus
companheiros que satildeo vitimados sem culpa nenhuma mesmo sem descenderem dos Atridas
nem serem responsaacuteveis pela morte de Ifigecircnia119
Mesmo assim imerecidamente eles que
pensavam ser exaltados ao retornarem agrave paacutetria satildeo tragicamente mortos
O mesmo ocorre com Cassandra pois apesar de natildeo cometer aumlmartia ou
uAacutebrij tem tambeacutem uma morte traacutegica ligada ao aspecto irracional do imerecido Assim
aquele rei que antes solucionava os problemas do seu povo torna-se o culpado pela morte sua
dos seus companheiros e de Cassandra que ele havia trazido como geiquestraj precircmio de guerra
Este distingue o heroacutei dos demais aleacutem de assegurar-lhe a timh120 a honra E para desonra e
humilhaccedilatildeo completa de Agamecircmnon Clitemnestra e Egisto natildeo apenas o matam mas
tambeacutem aniquilam Cassandra Assim natildeo vive nem mais a lembranccedila do heroacutei eacutepico que foi
Agamecircmnon nem o seu geiquestraj simbolizava Ao contraacuterio com a morte de Cassandra e dos
demais fica-nos o siacutembolo do Atrida como o heroacutei traacutegico que acarretou problema para si e
para os demais
Tendo reconhecido sua figuraccedilatildeo traacutegica Agamecircmnon ainda completa que apesar
de Odisseu jaacute ter presenciado todo o tipo de morte ainda assim ―ἀιιά θε θεῖλα κάιηζηα ἰδὼλ
118
Este termo indica a ―contaminaccedilatildeo transcendental que neste caso pode ser exemplificada pela
contaminaccedilatildeo gerada pela famiacutelia Atrida atraveacutes de fatos como por exemplo o Banquete de Tiestes e por isso
seus descendentes contaminados teriam de pagar pelos erros do passado sendo aniquilados 119
Essa referecircncia deve-se ao fato de que Clitemnestra utiliza como justificativa para matar o esposo o fato de
ele ter lhe tirado a querida filha Isso pode ser melhor avaliado atraveacutes de Ifigecircnia em Aacuteulis de Euriacutepedes (2002) 120
Para entendermos a importacircncia da timh para um heroacutei grego conveacutem voltarmos ao iniacutecio do primeiro
capiacutetulo do nosso trabalho em que fazemos um comentaacuterio elucidador a este respeito relacionando-a com
Aquiles na Iliacuteada
125
ὀινθύξαν ζπκῶ ―() ante aquele espetaacuteculo terias sentido piedaderdquo121
(XI 418) Neste
verso encontramos dois fatos que reforccedilam nossa tese A primeira eacute que nesse Canto XI
Odisseu presencia uma espeacutecie de ―espetaacuteculo traacutegico o que pode ser observado atraveacutes dos
detalhes que satildeo dados das cenas em que ocorre a accedilatildeo aleacutem de todos os elementos traacutegicos
como a morte por matildeo parental imerecida inesperada acarretando a desonra do heroacutei enfim
Detalhes esses que apesar de Odisseu apenas estar ouvindo propiciam-lhe uma vivecircncia do
fato traacutegico como se eles estivessem se realizando sob os seus olhos proporcionando-o uma
imagem teatral O proacuteprio narrador neste caso Agamecircmnon ao fazer a descriccedilatildeo de sua
morte refere-se a ela como um ―espetaacuteculo122
Nos versos acima a exemplo de ―Quando nos
visses no meio dos copos e mesas repletas pelo salatildeo a fazer e no soalho a sangueira
escorrendo a riqueza dos detalhes nos proporciona visualizar o narrado como uma imagem
presentificada aos nossos olhos Assim Odisseu como espectador desse ―teatro traacutegico
apieda-se
No iniacutecio do paraacutegrafo anterior dissemos que no verso 418 do Canto XI haacute dois
fatos que reiteram nossa proposta de anaacutelise O primeiro sobre o qual jaacute comentamos refere-
se agrave ―encenaccedilatildeo traacutegica que no Canto XI desenrola-se por meio dos diaacutelogos aos olhos de
Odisseu O segundo diz respeito ao que defendemos desde o iniacutecio deste trabalho sobre o
despertar do sentimento de piedade que seraacute gerado principalmente a partir dos encontros
que o heroacutei tem no Hades O sentimento de esup1leoj como enfatizamos eacute fator importante para
que tenhamos a kaqarjij desde que esteja junto a um outro sentimento que eacute o fomacrboj
(Poeacutetica XIII 1453a 5-6)
Como sabemos a esup1leoj eacute suscitada quando nos deparamos com o imerecido
Relacionando essa assertiva com a anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia percebamos que
Agamecircmnon narra a forma de sua morte de seus companheiros e de Cassandra Mortes estas
que de modo geral relacionam-se ao imerecido123
Portanto entendamos que o Atrida pelo
121
Destaque nosso 122
Esse espetaacuteculo traacutegico ao qual nos referimos e que eacute presentificado neste Canto XI foi responsaacutevel por
influenciar os autores traacutegicos do seacuteculo V a exemplo de Eacutesquilo (2004) Este inspirado na cena traacutegica jaacute
iniciada por Homero produziu as suas na trageacutedia Vejamos tambeacutem a riqueza dos detalhes jaacute que a morte natildeo
era encenada e sim anunciada pelo coro
ὤκνη κνη θνίηαλ ηάλδ᾽ ἀλειεύζεξνλ
δνιίῳ κόξῳ δακεὶο
ἐθ ρεξὸο ἀκθηηόκῳ βειέκλῳ
(Agamecircmnon v 1513 -1520)
Oacutemoi oacutemoi Neste indigno repouso
Tendo sido dominado sob trapaceira sorte
Pela matildeo com arma cortante de ambos os lados
123
Para podermos compreender melhor o sentido traacutegico dessas mortes seria necessaacuterio um estudo mais
especiacutefico da trageacutedia Agamecircmnon (2004) que neste momento natildeo eacute o nosso objetivo
126
fato de carregar desde o seu nascimento uma maacutecula transcendental (miasmoj) de sua
famiacutelia estaacute fadado a cometer a aumlmartia124 que por sua vez iraacute levaacute-lo agrave morte imerecida
E Odisseu sente compaixatildeo ao ver o seu comandante em Troacuteia vigoroso rei em choro
incontido Jaacute em relaccedilatildeo agrave morte dos seus companheiros e de sua escrava Cassandra esse
imerecido eacute bem mais claro de entender jaacute que eles nada fizeram para merecer esse triste fim
pois ateacute mesmo a relaccedilatildeo que tinham com o rei era de subordinaccedilatildeo Por isso a descriccedilatildeo
dessas imerecidas mortes eacute traacutegica inspirando em Odisseu a esup1leoj
Deste modo para reiterar nossa defesa de que nos diaacutelogos do Canto XI Odisseu
iraacute experienciar a kaqarjij inspirado pelo fomacrboj e pela esup1leoj consideramos importante
recorrermos agrave Retoacuterica das Paixotildees de Aristoacuteteles (2003) Assim vejamos primeiramente o
que Aristoacuteteles (2003) define sobre a esup1leoj E discorrendo sobre a compaixatildeo o filoacutesofo
daacute-nos tambeacutem uma informaccedilatildeo de que para sentirmos a piedade temos que estar vulneraacuteveis
a pensar que o mal com o qual nos compadecemos tambeacutem pode ocorrer conosco ou com
quem amamos
ἔζησ δὴ ἔιενο ιύπε ηηο ἐπὶ θαηλνκέλῳ θαθῶ θζαξηηθῶ ἢ ιππεξῶ ηνῦ
ἀλαμίνπ ηπγράλεηλ ὃ θἂλ αὐηὸο πξνζδνθήζεηελ
ἂλ παζεῖλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνῦην ὅηαλ πιεζίνλ θαίλεηαη δῆινλ γὰξ ὅηη
ἀλάγθε ηὸλ κέιινληα ἐιεήζεηλ ὑπάξρεηλ ηνηνῦηνλ νἷνλ νἴεζζαη παζεῖλ ἄλ ηη
θαθὸλ ἢ αὐηὸλ ἢ ηλ αὑηνῦ ηηλα θαὶ ηνηνῦην θαθὸλ νἷνλ εἴξεηαη ἐλ ηῶ ὅξῳ
ἢ ὅκνηνλ ἢ παξαπιήζηνλ125
(Retoacuterica das Paixotildees II 8 13-18)
Seja entatildeo a compaixatildeo certo pesar por um mal que se mostra destrutivo ou
penoso e atinge quem natildeo o merece mal que poderia esperar sofrer a
proacutepria pessoa ou um de seus parentes e isso quando esse mal parece
iminente com efeito eacute evidentemente necessaacuterio que aquele que vai sentir
compaixatildeo esteja em tal situaccedilatildeo que creia poder sofrer algum mal ou ele
proacuteprio ou um de seus parentes ()126
(ARISTOacuteTELES 2003 p53)
Buscando ampliar nossa concepccedilatildeo de compaixatildeo resolvemos procurar em
Retoacuterica das Paixotildees informaccedilotildees complementares que viessem auxiliar-nos a entender os
124
Para compreendermos melhor a aumlmartia cometida por Agamecircmnon devemos recorrer a duas trageacutedias
Agamecircmnon o primeiro livro da Oresteacuteia (2004) e Ifigecircnia em Aacuteulis (2002) Atraveacutes dessas obras observamos
que o Atrida derramou sangue parental de sua proacutepria filha daiacute a aumlmartia Contudo sabemos que sua accedilatildeo
foi necessaacuteria pois como puniccedilatildeo de Aacutertemis por ele querer medir-se com ela no arco se ele natildeo sacrificasse a
filha natildeo haveria ventos para os gregos alcanccedilarem Troacuteia ficando presos numa ilha 125
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D83Asection3D2 retirado agraves 1503h em 25 de novembro de 2010 126
(FONSECA 2003 p 53)
127
pressupostos do traacutegico presentes na Poeacutetica nossa base de estudo E nesse percurso de
ampliaccedilatildeo do entendimento sobre a esup1leoj obtemos mais uma informaccedilatildeo relevante que vem
reiterar nosso trabalho Ou seja segundo Aristoacuteteles (2003) aleacutem do fato de sentirmos
compaixatildeo diante de um fato doloroso e imerecido temos tambeacutem de estar vulneraacuteveis a
passar pelo mesmo padecimento soacute assim efetivamente o sentimento de compaixatildeo pode ser
suscitado Odisseu entatildeo tanto se depara com um sofrer imerecido como tambeacutem estaacute
vulneraacutevel a passar por tudo o que o Atrida passou pois ele tambeacutem apoacutes longos anos
distante retornaraacute ao seu lar podendo sim vir a encontrar sua morte armada pela esposa
junto com um amante Tanto estaacute susceptiacutevel a passar pelo mesmo que o rei de Argos alerta-o
para ter cuidado com a esposa natildeo lhe contando seus planos pois apesar de acreditar que
Peneacutelope natildeo seria capaz de tal ato diz que natildeo se pode confiar nas mulheres (XI 441-456)
Essa vulnerabilidade de Odisseu a vir a ser traacutegico como Agamecircmnon fica bem claro quando
no Canto XIII ao chegar em Iacutetaca as primeiras palavras que diz eacute em relaccedilatildeo a seu destino
que seria semelhante ao de Agamecircmnon caso natildeo fosse a proteccedilatildeo de Atena Pois assim
como o Atrida ele tambeacutem poderia ter a morte aguardando-lhe em casa o primeiro por causa
da esposa e do amante e no caso de Odisseu por accedilatildeo planejada dos pretendentes
Outra informaccedilatildeo tambeacutem nos eacute importante a respeito do suscitar da piedade Eacute
que para Aristoacuteteles (2003) noacutes nos compadecemos dos conhecidos ou dos nossos
semelhantes seja em idade seja em haacutebito enfim E nessa condiccedilatildeo Odisseu tambeacutem estaacute
inserido pois sabemos que eles natildeo satildeo apenas conhecidos como tambeacutem havia certa
semelhanccedila entre eles Aleacutem do mais a experiecircncia traacutegica do filho de Anticleacuteia e seu
compadecimento justificam-se tambeacutem porque ―com Agamecircmnon seu comandante-em-chefe
Odisseu se comportava com infaliacutevel lealdade () respeitava a hierarquia e reconhecia em
Agamecircmnon o portador do cetro (BEYE 2006 p 66) Essa relaccedilatildeo de companheirismo
entre Agamecircmnon e Odisseu pode ser observada tambeacutem na Iliacuteada Tatildeo marcante foi essa
relaccedilatildeo que ciente disso Eacutesquilo faz tambeacutem uma referecircncia a esse companheirismo em
Agamecircmnon (2004) Por isso ao desembarcar em Argos o Atrida saudado pelo coro por sua
volta relembra os enfrentamentos em Troacuteia e dos falsos homens com exceccedilatildeo de Odisseu Eacute
o que vemos no livro I Agamecircmnon da Oresteacuteia (2004) entre os versos 832-843
παύξνηο γὰξ ἀλδξλ ἐζηη ζπγγελὲο ηόδε
θίινλ ηὸλ εὐηπρνῦλη᾽ ἄλεπ θζόλνπ ζέβεηλ
δύζθξσλ γὰξ ἰὸο θαξδίαλ πξνζήκελνο
ἄρζνο δηπινίδεη ηῶ πεπακέλῳ λόζνλ
ηνῖο η᾽ αὐηὸο αὑηνῦ πήκαζηλ βαξύλεηαη
θαὶ ηὸλ ζπξαῖνλ ὄιβνλ εἰζνξλ ζηέλεη
128
εἰδὼο ιέγνηκ᾽ ἄλ εὖ γὰξ ἐμεπίζηακαη
ὁκηιίαο θάηνπηξνλ εἴδσινλ ζθηᾶο
δνθνῦληαο εἶλαη θάξηα πξεπκελεῖο ἐκνί
κόλνο δ᾽ δπζζεύο ὅζπεξ νὐρ ἑθὼλ ἔπιεη
δεπρζεὶο ἕηνηκνο ἦλ ἐκνὶ ζεηξαθόξνο
εἴη᾽ νὖλ ζαλόληνο εἴηε θαὶ δληνο πέξη127
ιέγσ (Eacutesquilo Agamecircmnon 832-843)
Poucos entre os homens tecircm congecircnito
Respeito sem inveja por amigo fausto
Maleacutevolo veneno sentado no coraccedilatildeo
Duplica o mal de quem dela adoece
Eacute oprimido por seu proacuteprio sofrimento
E pranteia ao ver alheia prosperidade
Ciente eu diria pois bem conheccedilo
O espelho social imagem de sombra
Satildeo aparentes os beneacutevolos comigo
Soacute Odisseu que invito navegou
Foi sob o jugo o meu pronto parceiro
Fale eu dele morto ou ainda vivo128
Atraveacutes dessa passagem percebemos que toda a relaccedilatildeo construiacuteda entre Odisseu
e Agamecircmnon intensifica seu compadecimento para com o Atrida E isto foi aproveitado
tambeacutem por Eacutesquilo (2004) na elaboraccedilatildeo do primeiro livro da Oresteacuteia Assim verificamos
que Homero legou aos tragedioacutegrafos a essecircncia do traacutegico como procuramos demonstrar
nesta anaacutelise do Canto XI Sabemos de um modo geral que algumas cenas eacutepicas serviram
de inspiraccedilatildeo para as trageacutedias mas no caso do Canto XI temos duas em especiacutefico uma
relacionada aos momentos de diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon e a outra do Laertida com
Aacutejax como veremos mais agrave frente E a influecircncia que duas cenas deste canto tiveram para o
surgimento de duas peccedilas Agamecircmnon de Eacutesquilo (2004) e Aacutejax de Soacutefocles (2008)
mostrando o quanto satildeo significativas as imagens traacutegicas que analisamos nesse canto jaacute que
estas produzem o que para muitos eacute o objetivo maior da trageacutedia a kaqarjij Mas isso
veremos com mais acuidade mais a frente por hora continuemos a analisar o texto pela
linearidade da narrativa
Pego por esse destino Agamecircmnon lamenta e ainda inconformado chora pois
jamais pensara que em casa aguardava-o a morte Ao contraacuterio apoacutes os dez anos de Guerra
dos combates dos sofrimentos comuns no campo de batalha da vitoacuteria sobre os troianos
sendo ele o comandante o aAtildenac asup1ndrwIacuten deparou-se com o inesperado destino
127
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100033Acard3D810 retirado agraves
1816h em 15 de outubro de 2010 128
(TORRANO 2004 p161)
129
() ἦ ηνη ἔθελ γε
ἀζπάζηνο παίδεζζηλ ἰδὲ δκώεζζηλ ἐκνῖζηλ
νἴθαδ᾽ ἐιεύζεζζαη ()129
(Odisseia XI 430-432)
Na verdade ele dizia
bem-vindo eu esperava ser para os filhos e para os escravos
em minha volta para casa
Na passagem acima podemos perceber dois fatos importantes o primeiro eacute o
conflito entre o plano humano e o divino o segundo eacute o confronto entre o heroacutei eacutepico e o
traacutegico Entre os versos 430 e 432 observamos que Agamecircmnon diante do grande feito em
Troacuteia espera em casa ser glorificado exaltado pelo povo de Argos e saudado pelos filhos e
pela consorte Ou seja o Atrida conta com a gloacuteria mas o que o espera eacute a morte vergonhosa
Esse conflito decorre do fato de termos dois planos incongruentes um feito pelo homem e
outro pelos deuses Neste caso o homem eacute Agamecircmnon planejando ser exaltado no retorno
da guerra e a divindade eacute a Moicurrenra que planeja sua morte indigna para apagar o miasmoj
da famiacutelia Atrida e a sua aumlmartia ao ter matado mesmo por necessidade a proacutepria filha E
neste caso ―haacute uma consciecircncia traacutegica da responsabilidade quando os planos humano e
divino satildeo bastante distintos para se oporem sem que entretanto deixem de parecer
inseparaacuteveis (VERNANT 2008 p 4) Nessa situaccedilatildeo naturalmente o plano divino se opotildee
levando o homem agrave cataacutestrofe Odisseu a tudo ouve atentamente e percebe que nenhum
homem pode medir-se com o plano divino pois apesar da ideacuteia de que ―a presenccedila divina
ilumina o homem e lhe evita o tropeccedilo (OTTO 2005 p253) sabe-se tambeacutem que ―() tudo
procede das matildeos dos deuses inclusive o traacutegico da vida humana (ibidem p 255)
O outro fato importante citado no iniacutecio do paraacutegrafo anterior diz respeito ao
choque de sua proacutepria figura enquanto heroacutei eacutepico tornando-se heroacutei traacutegico Como sabemos
na Iliacuteada (2009) Agamecircmnon teraacute papel fundamental sendo o chefe dos guerreiros e
comandando as decisotildees tanto que o Canto XI da Iliacuteada eacute dedicado a contar seus grandes
feitos eacute a aristia do Atrida E eacute esse personagem que chega em Argos com todo o seu orgulho
e toda a sua gloacuteria mas ao desembarcar ele jaacute natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico passando entatildeo
como vemos em Agamecircmon (2004) a representar o heroacutei traacutegico que encontra a morte nas
matildeos da esposa E nesse diaacutelogo com Odisseu Agamecircmnon deixa evidente o conflito que ele
129
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D404 retirado agraves 1800h em 15 de outubro de 2010
130
proacuteprio sofreu esperando ser tratado como eacutepico Por isso diz que esperava ser bem-recebido
pelos familiares e pelos servos do palaacutecio (XI 430-434)
Contudo na conversa em que Odisseu tem com o Atrida este deixa-nos perceber
seu conflito pois o que ele pensara ser (heroacutei eacutepico) antepotildee-se com o que ele veio a ser um
heroacutei traacutegico no momento em que desembarca em Argos Isso porque apesar de estarmos
estudando uma eacutepica podemos perceber que a configuraccedilatildeo de Agamecircmnon jaacute na Odisseacuteia eacute
a de um heroacutei de destino traacutegico fato esse que posteriormente Eacutesquilo desenvolveu na
trageacutedia E esse conflito que o proacuteprio Atrida nos expotildee ao esperar em casa ser tratado com
as honrarias do heroacutei eacutepico acentua ainda mais a tragicidade desse personagem refletido na
Odisseacuteia Isso porque atraveacutes da conversa com o Laertida o Atrida mostra a transposiccedilatildeo de
como ele se reconhecia eacutepico e passou a ver-se como traacutegico chegando a exclamar ―ὣς
θάνον οἰκηίζηῳ θανάηῳrdquo130 isto eacute ―Assim morri com a morte mais lamentaacutevel (Odisseacuteia
Canto XI v 412)
Apoacutes ter ouvido como o senhor dos heroacuteis morreu pelas matildeos da esposa e do
amante Odisseu apieda-se e mostra perceber a accedilatildeo do daimacrmwn no destino de Agamecircmnon
por isso fala que Zeus natildeo destinou coisas boas para os Atridas pois Menelau tinha uma
esposa Helena culpada pela morte de muitos homens em Troacuteia e ele tinha Cliptemenstra
que veio ocasionar sua proacutepria morte (Odisseia XI 436-439)
Essa percepccedilatildeo que Odisseu tem da accedilatildeo dos superiores no destino de
Agamecircmnon eacute uma habilidade que em muitos momentos ele nos mostra Tanto que ao
decorrer do toacutepico anterior vimos que ele sempre percebia quando o daimacrmwn agia sobre ele e
seus companheiros Entatildeo assim tambeacutem ele faz com o Atrida exemplificando a accedilatildeo do
daimacrmwn atraveacutes dos feitos de Helena e Clitmenestra Observemos que essa accedilatildeo do divino
pode levar o homem ao traacutegico ou agrave ventura No caso de Agamecircmnon leva-o ao destino
traacutegico no caso de Odisseu como foi visto no toacutepico anterior leva-o agraves situaccedilotildees traacutegicas E
o seu destino soacute natildeo eacute traacutegico por causa da accedilatildeo divina especificamente pela proteccedilatildeo de
Atena E isso o heroacutei de Iacutetaca tambeacutem observa Assim ao desembarcar em sua cidade e ser
avisado pela deusa do perigo dos pretendentes ele diz que se natildeo fosse pelos avisos de
Atena ele teria em casa o destino funesto assim como Agamecircmnon (XIII 383-386)
Na continuidade do diaacutelogo entre Odisseu e Agamecircmnon este pergunta sobre
notiacutecias do filho O esposo de Peneacutelope diz natildeo saber E insistentemente o Atrida repete para
130
Texto disponiacutevel em httpwwwhs-
augsburgde~harschgraecaChronologiaS_ante08Homeroshom_od11html agraves 1533hs ded 12 de julho de
2010
131
que Odisseu natildeo confie na esposa e tenha cuidado ao retornar pois um grande mal pode estar
aguardando-o E ficam conversando e chorando um por seu destino traacutegico e o outro pelas
situaccedilotildees traacutegicas que ateacute entatildeo vinha sofrendo
A dor manifestada por ambos eacute fruto do enlace traacutegico em que se assemelham um
no destino o outro nas circunstacircncias da vida E assim percebemos a presenccedila do traacutegico na
vida desses personagens Contudo para Odisseu este contato reserva-lhe natildeo apenas o
protagonismo do traacutegico como analisamos no toacutepico anterior mas tambeacutem a experiecircncia do
traacutegico como espectador Pois apesar de o fato natildeo ocorrer aos seus olhos a descriccedilatildeo
detalhada dos fatos torna possiacutevel a visualizaccedilatildeo de todo o ocorrido Aleacutem do mais jaacute nos diz
Aristoacuteteles
ηλ δὲ ινηπλ ἡ κεινπνηία κέγηζηνλ ηλ ἡδπζκάησλ ἡ δὲ ὄςηο
ςπραγσγηθὸλ κέλ ἀηερλόηαηνλ δὲ θαὶ ἥθηζηα νἰθεῖνλ ηῆο πνηεηηθῆο ἡ γὰξ
ηῆο ηξαγῳδίαο δύλακηο θαὶ ἄλεπ ἀγλνο θαὶ ὑπνθξηηλ ἔζηηλ ()131
(Poeacutetica
VI 1450b 18-20)
Assim mesmo sem atores e sem encenaccedilatildeo a trageacutedia por si proacutepria eacute
convincente aleacutem do mais para a montagem mais importante satildeo os
inteacuterpretes do que os poetas
Assim como espectador do traacutegico cantado satildeo suscitados em Odisseu tanto a
esup1leoj como jaacute explicamos assim tambeacutem como o fomacrboj levando-o agrave kaqarsij Para
que compreendamos tal afirmaccedilatildeo assim como fizemos para entender a esup1leoj recorramos
tambeacutem agrave Retoacuterica das Paixotildees para entendermos o fomacrboj Em nosso estudo da Poeacutetica no
segundo capiacutetulo vimos que Aristoacuteteles afirma que o sentimento de temor eacute gerado para com
nosso semelhante (Poeacutetica XIII 1453a 5-6) Entatildeo para que esse sentimento seja melhor
compreendido buscamos na Retoacuterica das Paixotildees um maior esclarecimento sobre o fomacrboj
o que ele significa como ele eacute suscitado enfim Assim Aristoacuteteles (2003) define o fomacrboj
ἔζησ δὴ ὁ θόβνο ιύπε ηηο ἢ ηαξαρὴ ἐθ θαληαζίαο κέιινληνο θαθνῦ
θζαξηηθνῦ ἢ ιππεξνῦ νὐ γὰξ πάληα ηὰ θαθὰ θνβνῦληαη νἷνλ εἰ ἔζηαη
ἄδηθνο ἢ βξαδύο ἀιι᾽ ὅζα ιύπαο κεγάιαο ἢ θζνξὰο δύλαηαη θαὶ ηαῦηα ἐὰλ
κὴ πόξξσ ἀιιὰ ζύλεγγπο θαίλεηαη ὥζηε κέιιεηλ132
(Retoacuterica das Paixotildees II 5 21-25)
131
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1450b
retirado agraves 0900h em 18 de outubro de 2010 132
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100593Abook3D23Achapter
3D53Asection3D1 retirado agraves 2012h em 15 de outubro de 2010
132
Seja entatildeo o temor certo desgosto ou preocupaccedilatildeo resultantes da suposiccedilatildeo
de um mal iminente ou danoso ou penoso pois natildeo se temem todos os
males por exemplo o de que algueacutem injusto ou de espiacuterito obtuso mas sim
aqueles males que podem provocar grandes desgostos ou danos e isso
quando natildeo se mostram distantes mas proacuteximos e iminentes133
(ARISTOacuteTELES 2003 p31)
Pela definiccedilatildeo observamos que o fomacrboj eacute suscitado por um mal que
injustamente acarreta danos graves a uma pessoa e aleacutem do mais aparece na iminecircncia de
ocorrer tambeacutem para outrem - assim este veraacute em si surgir o fomacrboj Aristoacuteteles (2003)
completa ainda que satildeo temiacuteveis os danos sem soluccedilatildeo gerados por forccedila superior e que soacute
tememos por aquilo que tambeacutem podemos vir a sofrer Aleacutem disso o temor surge quando o
ouvinte presencia o sofrimento de algueacutem mais forte superior ou semelhante a ele Explica-
nos Aristoacuteteles
ὥζηε δεῖ ηνηνύηνπο παξαζθεπάδεηλ ὅηαλ ᾖ βέιηηνλ ηὸ θνβεῖζζαη αὐηνύο ὅηη
ηνηνῦηνί εἰζηλ νἷνλ παζεῖλ (θαὶ γὰξ ἄιινη κείδνπο ἔπαζνλ) θαὶ ηνὺο
ηνηνύηνπο δεηθλύλαη πάζρνληαο ἢ πεπνλζόηαο θαὶ ὑπὸ ηνηνύησλ ὑθ᾽ ὧλ νὐθ
ᾤνλην θαὶ ηαῦηα ltἃgt θαὶ ηόηε ὅηε νὐθ ᾤνλην (Retoacuterica das Paixotildees II 5
8-12)
Assim quando eacute melhor que os ouvintes sintam temor eacute preciso pocirc-los nessa
disposiccedilatildeo de espiacuterito dizendo-lhes que podem sofrer algum mal pois
outros mais fortes que eles sofreram e mostrar-lhes que pessoas como eles
sofrem ou sofreram por parte de que natildeo imaginavam essas provaccedilotildees e em
circunstacircncias que natildeo esperavam (p 35)
Diante das definiccedilotildees e explicaccedilotildees acima podemos sugerir entatildeo que o fomacrboj eacute
suscitado em Odisseu atraveacutes do canto de Agamecircmnon tendo em vista que o Laertida eacute
colocado a defrontar-se com um grande mal imerecido injusto que ao mesmo tempo
aparece-lhe iminente jaacute que ele pode vir a passar pelo mesmo quando voltar a Iacutetaca Aleacutem
disso esse mal eacute sofrido por um superior que padeceu de um mal inesperado Assim
constatamos que Odisseu aleacutem de ser inspirado pela compaixatildeo (esup1leoj) tambeacutem o eacute pelo
temor (fomacrboj) podendo desta forma chegar agrave kaqarsij dos seus sofrimentos (Poeacutetica VI
1449b 24-28)
No Canto XI da Odisseacuteia por meio do diaacutelogo de Odisseu e Agamecircmnon no
Hades percebemos o traacutegico circundar a vida dos dois personagens O primeiro visualiza
como um espectador traacutegico a dolorosa e indigna morte do Atrida atraveacutes de sua narraccedilatildeo
133
(Trad FONSECA 2003 P31)
133
Essa visualizaccedilatildeo do traacutegico permite que em Odisseu sejam suscitados o fomacrboj e a esup1leoj
que o levam agrave kaqarsij ou seja a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo de todos seus padecimentos Jaacute em
relaccedilatildeo a Agamecircmnon percebemos atraveacutes da narraccedilatildeo que ele mesmo faz de sua morte que
ele natildeo eacute mais um heroacutei eacutepico como jaacute fora na Iliacuteada (2009) e sim bem mais proacuteximo do
heroacutei traacutegico atraveacutes do qual Eacutesquilo (2004) desenvolveu na trageacutedia Heroacutei esse envolto com
os elementos mais comuns de tragicidade o imerecido injusto aumlmartia a uAacutebrij a accedilatildeo
do daimacrmwn fazendo surgir a esup1leoj e o fomacrboj para desencadear na kaqarsij
No transcorrer da conversa lamuriosa entre Odisseu e o Atrida aparece o
eiAtildedwlon de Aquiles O Pelida questiona ao filho de Laertes o porquecirc dessa nova empreitada
e principalmente porque teve que ser logo no Hades local dos mortos sem consciecircncia em
que haacute apenas os simulacros dos homens que um dia viveram (XI 467-472) Jaacute podemos
perceber por essa fala de Aquiles a condiccedilatildeo miseraacutevel das sombras no Hades em que a
inconsciecircncia supera todas as gloacuterias que tiveram em vida O Laertida responde ao Pelida que
desde que saiu de Troacuteia natildeo retornou agrave paacutetria ao contraacuterio sofre a vagar pelas terras e que
sua visita ao Hades foi para consultar Tireacutesias para que este pudesse orientar-lhe sobre o
retorno para casa Odisseu depois de ter visto a lamentaacutevel situaccedilatildeo de Agamecircmnon espera
enfim ver que pelo menos o Pelida encontra-se glorificado apoacutes a morte por isso exclama
νὐ γάξ πσ ζρεδὸλ ἦιζνλ Ἀραηΐδνο νὐδέ πσ ἁκῆο
γῆο ἐπέβελ ἀιι᾽ αἰὲλ ἔρσ θαθά ζεῖν δ᾽ Ἀρηιιεῦ
νὔ ηηο ἀλὴξ πξνπάξνηζε καθάξηαηνο νὔη᾽ ἄξ᾽ ὀπίζζσ
πξὶλ κὲλ γάξ ζε δσὸλ ἐηίνκελ ἶζα ζενῖζηλ
Ἀξγεῖνη λῦλ αὖηε κέγα θξαηέεηο λεθύεζζηλ
ἐλζάδ᾽ ἐώλ ηῶ κή ηη ζαλὼλ ἀθαρίδεπ Ἀρηιιεῦlsquo134
(Odisseacuteia XI 481-486)
Pois ateacute esse momento nunca fui proacuteximo dos Acaios nem ainda
pus o peacute em nossa terra e sempre tenho enfrentado coisas maacutes
Contudo nenhum guerreiro Aquiles eacute mais abenccediloado do que tudo no
passado e no futuro]
Antes quando eras vivo eu e os Argivos honravamo-te tanto quanto aos
deuses]
agora aqui entre os mortos exerces grande poder
Assim sendo natildeo sofra por ter morrido Aquiles
Aquiles o maior e mais temido heroacutei grego na guerra de Troacuteia desceu ao Hades
com o destino que ele mesmo escolhera viver pouco mas ser honrado e glorificado em
134
Texto disponeacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D440 retirado agraves 1828h em 15 de outubro de 2010
134
campo de batalha135
Eacute por isso que no Canto I da Iliacuteada (2009) ao ter perdido Briseida seu
precircmio de guerra (geraj) ele pede agrave matildee que cobre de Zeus a sua honra a timh pois jaacute que
morreraacute jovem ao menos que tenha uma curta existecircncia poreacutem gloriosa Vejamos o que ele
dissera a sua matildee cobrando a vida curta mas honrada
κῆηεξ ἐπεί κ᾽ ἔηεθέο γε κηλπλζάδηόλ πεξ ἐόληα
τιμήν πέξ κνη ὄθειιελ ιύκπηνο ἐγγπαιίμαη
Ζεὺο ὑςηβξεκέηεο λῦλ δ᾽ νὐδέ κε ηπηζὸλ ἔηηζελ (Iliacuteada I 353-355)
Matildee como me geraste de curta existecircncia
seria justo o Oliacutempio Zeus a minha honra fazer aumentar
aquele que ressoa do alto ceacuteu
O discurso de Odisseu ao encontrar o Pelida mostra que seu desejo foi cumprido
uma existecircncia curta poreacutem gloriosa tanto que o filho de Laertes reforccedila que enquanto
esteve vivo foi honrado como um deus (XI 483) Como vemos Aquiles teve todas as
honrarias em vida sendo inclusive comparado a uma figura divina Assim jaacute que Zeus
concedeu-lhe o destino cobrado (ver Canto I da Iliacuteada) entatildeo eacute de se imaginar que agora
morto Aquiles continua feliz ateacute mesmo porque realiza domiacutenio sobre os mortos Esta razatildeo
faz com que Odisseu entenda que de nada poderia o Pelida se queixar (XI 485-486) Odisseu
apoacutes tanto ter sofrido ao ouvir a desonrosa morte que teve o seu comandante Agamecircmnon
imagina que enfim veraacute um de seus heroacuteicos companheiros satisfeito com a vida e com o
poacutes-morte que teve Vimos que na conversa com o Atrida ele se encheu de esup1leoj e fomacrboj
mas agora com o Pelida pensa ser diferente atenuando todo o seu temor ao ver que um de
seus companheiros tivera a vida e o destino que almejara que eacute desejo de todo o heroacutei ter
gloacuteria e honra tanto em vida quanto em morte Contudo mais uma vez sua expectativa seraacute
desconstruiacuteda e Aquiles responde-lhe
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ αὐηίθ᾽ ἀκεηβόκελνο πξνζέεηπε
κὴ δή κνη ζάλαηόλ γε παξαύδα θαίδηκ᾽ δπζζεῦ
βνπινίκελ136
θ᾽ ἐπάξνπξνο ἐὼλ ζεηεπέκελ ἄιιῳ
135
No primeiro capiacutetulo do nosso trabalho fizemos uma explanaccedilatildeo sobre o destino de Aquiles e a sua escolha
fato que estaacute narrado no Canto I da Iliacuteada (2009) 136
Atraveacutes dos optativos bouloimhn deboulomai ndash desejar preferir e eiAtildeh- infinitivo optativo de eiAcircmi-ser
exprime-se o desejo de Aquiles pois ele bem sabe que natildeo pode ser mais realizado pois seu destino jaacute foi
selado
135
ἀλδξὶ παξ᾽ ἀθιήξῳ ᾧ κὴ βίνηνο πνιὺο εἴε
ἢ πᾶζηλ λεθύεζζη θαηαθζηκέλνηζηλ ἀλάζζεηλ137
(Odisseacuteia XI 487-491)
Desse modo dizia ele imediatamente mudando falou
Natildeo me convenccedila da morte ilustre Odisseu
Pois eu preferiria viver sendo trabalhador de campo para um
Homem ateacute mesmo sem recursos se bem vivo eu estivisse
a ser rei de todos estes cadaacuteveres dos que morreram
Aquiles como mostra a passagem acima mostra-se arrependido da escolha que
fizera em ter uma vida guerreira curta ao inveacutes de uma vida longa e comum Esse discurso
potildee em questatildeo o valor da vida guerreira e toda a sua nobreza por isso Platatildeo considera
perigosas passagens como essas elaboradas por Homero (Repuacuteblica III ndash 386c-d) O Pelida
ao levantar o arrependimento da vida guerreira que tivera potildee em questatildeo os maiores valores
para o mundo grego E essa tomada de decisatildeo que eleva o homem mais tarde ao
arrependimento aflige-no e torna-o um sujeito traacutegico viacutetima de sua proacutepria escolha Por
isso diz-nos Vernant (2008) em Mito e trageacutedia na Greacutecia Antiga que o fato traacutegico
relaciona-se a deliberar tomar decisatildeo vindo desta sua proacutepria escolha todo seu mal daiacute o
fato traacutegico Isso tambeacutem nos lembra a exposiccedilatildeo no capiacutetulo anterior de Romilly (2008) em
A trageacutedia Grega de que o traacutegico implica uma accedilatildeo e esta seja boa ou maacute iraacute sempre trazer
ao heroacutei graves consequecircncias Em decorrecircncia disso a autora acredita na existecircncia de uma
inocecircncia do personagem traacutegico assegurando mesmo apoacutes a cataacutestrofe o seu heroiacutesmo
Aflito por sua proacutepria escolha e viacutetima inocente de sua proacutepria accedilatildeo o Aquiles
com o qual Odisseu depara-se no Hades natildeo eacute mais o heroacutei eacutepico honrado e glorificado
como um deus ele eacute agora se assemelha a um heroacutei traacutegico Naquele instante o Laertida
enxerga em Aquiles o arrependimento comum aos heroacuteis traacutegicos ―βοσλοίμην κ᾽ ἐπάροσρος
ἐὼν θηηεσέμενrdquo (Odisseacuteia Canto XI 489) ou seja ―pois eu preferiria viver sendo
trabalhador do campo mas para o qual natildeo haacute mais soluccedilatildeo pois o destino jaacute foi selado
Sandra Luna (2005) afirma-nos que no Hades Aquiles ―potildee em questatildeo os
valores mais aclamados entre os gregos a honra a nobreza e a riqueza (LUNA 2005 p
182) Valores estes que naturalmente tambeacutem aclamados por Odisseu fazem-no conflitar-se
natildeo apenas em ver Aquiles infeliz mas por vecirc-lo desprezar os valores que distinguem a honra
do guerreiro pela qual ele tanto lutou em Troacuteia Diante do espetaacuteculo inesperado Odisseu vecirc
137
Texto disponiacutevel em
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D486 retirado agraves 1924h em 16 de novembro de 2010
136
o maior heroacutei grego em Troacuteia preferindo ser um simples trabalhador do campo E esse destino
injusto e imerecido para um heroacutei tatildeo valoroso e distinto faz Odisseu apiedar-se para com seu
semelhante ao mesmo tempo em que tambeacutem sente temor de vir a ter a mesma trajetoacuteria
Todo esse cenaacuterio suscita-lhe o fomacrboj e a esup1leoj sentimentos responsaacuteveis por
proporcionar-lhe a kaqarsij
A respeito de todo esse ―espetaacuteculocenaacuterio traacutegico realizado perante os olhos de
Odisseu queremos esclarecer que estruturalmente haacute dois fatos que permitem-nos essa
interpretaccedilatildeo no Canto XI O primeiro deles eacute a riqueza de detalhes como ilustramos no caso
do diaacutelogo de Odisseu com Agamecircmnon Detalhes esses utilizados como recurso na epopeacuteia
homeacuterica que tambeacutem influenciaram as trageacutedias Ateacute porque sabemos que nas encenaccedilotildees
das trageacutedias gregas as mortes natildeo eram realizadas na frente do puacuteblico cabendo aos
espectadores saber da ocorrecircncia das mortes por outros meios a exemplo da fala do coro Daiacute
a necessidade de detalhes para proporcionar ao puacuteblico o entendimento da accedilatildeo traacutegica
Mas aleacutem dessa riqueza de detalhes para presentificaccedilatildeo da cena narrada temos
no Canto XI outro elemento fundamental para representaccedilatildeo dramaacutetica e que foi alicerce para
as trageacutedias gregas os diaacutelogos Podemos observar que a estrutura do Canto XI eacute baseada nos
diaacutelogos que Odisseu teraacute com as sombras de sua matildee Agamecircmnon Aquiles Aacutejax enfim
Sobre o diaacutelogo Anatol Rosenfeld (1985) em A teoria dos gecircneros diz-nos que eacute atraveacutes
dele que a accedilatildeo dramaacutetica eacute manifestada aleacutem de ser o responsaacutevel por levar a accedilatildeo dramaacutetica
ao conflito Este que por sua vez eacute base para o traacutegico pois o protagonista deve estar em
conflito com algo seja consigo mesmo com os outros ou com o seu destino A necessidade
do conflito para a accedilatildeo traacutegica pode ser ilustrada nos diaacutelogos acima pois como vimos
Agamecircmnon conflitua-se com o destino imposto pelos deuses a morte indigna pelas matildeos da
esposa e Aquiles estaacute em conflito com a decisatildeo de destino que ele proacuteprio fez morrer jovem
em campo de batalha mas que agora preferia viver como ―ἐπάροσρος θηηεσέμενrdquo (XI 489)
ou seja um trabalhador do campo E para aleacutem desses importantes elementos numa
construccedilatildeo dramaacutetica mesmo que esteja sendo analisada sua presenccedila numa eacutepica Aristoacuteteles
diz-nos que o fomacrboj e a esup1leoj podem ser suscitados natildeo soacute atraveacutes da encenaccedilatildeo teatral
Vejamos o porquecirc
δεῖ γὰξ θαὶ ἄλεπ ηνῦ ὁξᾶλ νὕησ ζπλεζηάλαη ηὸλ κῦζνλ ὥζηε ηὸλ [5]
ἀθνύνληα ηὰ πξάγκαηα γηλόκελα θαὶ θξίηηεηλ θαὶ ἐιεεῖλ ἐθ ηλ
137
ζπκβαηλόλησλ ἅπεξ ἂλ πάζνη ηηο ἀθνύσλ ηὸλ ηνῦ Οἰδίπνπ κῦζνλ138
(Poeacutetica XIV 1453b 4-7)
Pois eacute preciso que tendo o mito manifestado-se os ouvintes mesmo sem ver
os trabalhos venham a arrepiar-se e apiedar-se dos acontecimentos eacute o que
sofreria algueacutem ouvindo o mito de Eacutedipo
Assim Odisseu ao presenciar os fatos traacutegicos na vida de seus companheiros se
apieda como tambeacutem sente temor E apoacutes ter-lhe revelado ser infeliz mesmo reinando sobre
os mortos Aquiles diz ser melhor saber notiacutecias do filho e do pai a ficar falando desses
assuntos O Pelida pergunta se o filho Neoptoacutelemo nas batalhas fica agrave frente ou atraacutes e se o
pai Peleu vive ainda honrado junto aos Mirmidotildees Odisseu diz natildeo poder dar notiacutecias de
Peleu mas sobre Neoptoacutelemo diz que o conduziu e que nas assembleacuteias era o primeiro a
falar sempre de modo adequado No discurso soacute perdia para Nestor e Odisseu mas nas
batalhas a todos vencia saindo de Troacuteia sem nenhum ferimento Aquiles alegra-se contudo
o cenaacuterio traacutegico natildeo eacute atenuado apesar da alegria momentacircnea de Aquiles pois ao seu redor
o quadro eacute destoante
αἱ δ᾽ ἄιιαη ςπραὶ λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ
ἕζηαζαλ ἀρλύκελαη εἴξνλην δὲ θήδε᾽ ἑθάζηε139
(Odisseacuteia XI 541-542)
Mas as outras sombras dos que foram pegos para baixar a morte
tristes mantiveram-se a narrarem sua infelicidade
Discutimos no segundo capiacutetulo agrave luz de Sandra Luna (2005) que Homero
dissolve as cenas traacutegicas presentes em suas epopeacuteias exemplificando inclusive os
momentos dessa diluiccedilatildeo do traacutegico Contudo atraveacutes do que estamos analisando no Canto XI
da Odisseacuteia percebemos que as cenas traacutegicas satildeo sobrepostas sem atenuante Assim o
Laertida dialoga com Agamecircmnon depois com Aquiles e em cada um desses diaacutelogos
depara-se com a manifestaccedilatildeo do sentimento traacutegico E no fim do diaacutelogo com o Pelida ao
vermos este ter um instante de alegria logo pensamos que haveria uma dissolviccedilatildeo do traacutegico
mas ao contraacuterio a alegria momentacircnea do Pelida contrasta com o quadro de dor e
sofrimento de muitas almas tristes narrando umas para as outras seus proacuteprios infortuacutenios
138
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990100553Asection3D1453b
retirado agraves 2035h em 02 de dezembro de 2010 139
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httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2052h em 02 de dezembro de 2010
138
Isso nos mostra a presenccedila marcante da tragicidade no canto XI da Odisseacuteia e que natildeo eacute
dissolvida por atenuantes como banquetes confraternizaccedilotildees soluccedilotildees para o conflito cortes
de cena enfim Recursos atenuantes estes que vimos serem comuns na eacutepica homeacuterica e
inclusive ao longo da proacutepria Odisseacuteia como analisamos no toacutepico primeiro deste capiacutetulo O
que observamos ao lonho dos diaacutelogo eacute o traacutegico mediado em que Odisseu eacute o espectador
Odisseu na continuidade da narrativa ao ter-se deparado com a cena das almas
tristes a lamentarem seu destino observa Aacutejax afastado das outras almas Este aparenta ainda
estar inconformado com a disputa pelas armas de Aquiles da qual foram juiacutezes os filhos dos
troianos e a deusa Palas Atena Contudo Aacutejax natildeo consegue ver que a accedilatildeo do daimacrmwn foi
responsaacutevel por esta decisatildeo por isso ainda alimenta raiva de Odisseu fazendo com que este
imerecidamente sinta-se culpado pelo seu mal Assim o filho de Laertes exclama que
desejaria nunca ter ganho a disputa pelas armas de Aquiles jaacute que essa decisatildeo fez com que
Aacutejax o mais valoroso dos gregos depois de Aquiles viesse a morrer tragicamente (Odisseacuteia
XI 548-551)
Contudo o ressentimento era tatildeo grande para com Odisseu que o Telemocircnio natildeo
percebia que a forccedila superior fizera-o padecer E segundo Walter Friedrich Otto em
Teofania o reconhecimento de que uma forccedila maior levou-o ao traacutegico acaba por enobrececirc-
lo pois ―Por mais que o homem perceba ter cometido um erro e por graves que sejam para si
as consequecircncias isso natildeo o rebaixa enquanto ele reconhece estar nas matildeos da divindade
(OTTO 2006 p 80) Mas Aacutejax natildeo percebe a accedilatildeo do daimacrmwn ao contraacuterio responsabiliza
Odisseu que injustamente sofre a culpa da morte de um antigo e valoroso companheiro Natildeo
bastasse ter sido posto como responsaacutevel pela morte da matildee e pelos sofrimentos de seus
familiares o Laertida tem que carregar o traacutegico fardo do suiciacutedio de Aacutejax
O peso dessa imerecida culpa faz Odisseu lamentar-se por ter ficado com as armas
de Aquiles Entendamos a gravidade do desejo de Odisseu de natildeo ter sido contemplado com
as armas pois a disputa das armas do heroacutei que morria mostrava a distinccedilatildeo do heroacutei que as
herdava daiacute a inconformidade de Aacutejax Imaginemos entatildeo o valor das armas de Aquiles
que naturalmente simbolizaria para o seu herdeiro todo o prestiacutegio do maior heroacutei grego que
combateu em Troacuteia Desse modo as armas de Aquiles muito significavam Por obra divina
elas ficaram com Odisseu aiacute este encontra a grande queixa de Aacutejax Pois como era
considerado o maior depois de Aquiles considerava que ele deveria ser o detentor das armas
do Pelida Mas natildeo eacute o que ocorre Diante do sofrer do companheiro no Hades Odisseu
139
amargura-se desejando inclusive nunca ter ficado com aquelas armas apesar de todo o valor
delas
Ao natildeo reconhecer o desejo divino voltando toda a sua raiva para Odisseu Aacutejax
acaba sendo rebaixado ainda mais por natildeo ter como diz-nos Otto (2006) o ―reconhecimento
do erro que eacute enobrecido pela consciecircncia do divino e isso lhe preserva a grandeza de alma
() (Ibidem) Sem a consciecircncia da accedilatildeo divina Aacutejax culpa Odisseu por todo o seu mal
Sabemos que a partir dessa cena Soacutefocles inspira-se para composiccedilatildeo da peccedila Aacutejax em que
se narra a morte deste Morte esta que ele mesmo efetuou na busca de preservar ainda alguma
gloacuteria depois de ter matado animais pensando que matara os guerreiros gregos como
Agamecircmnon Menelau Odisseu Essa loucura como vemos na peccedila foi-lhe imposta para sua
cataacutestrofe por Atena a fim de proteger os demais de todo o seu oacutedio Mas Aacutejax natildeo se
convence por isso a peccedila iraacute refletir tambeacutem como jaacute o vemos neste Canto XI essa
responsabilidade dada por Aacutejax a Odisseu acusando este como culpado do seu mal140
Assim
culpado imerecidamente o filho de Laertes observa-se como aquele heroacutei traacutegico explicitado
por Vernant (2008) em Mito e Trageacutedia na Greacutecia Antiga que traz o mal natildeo soacute para si
como tambeacutem para os outros
Surpreendido pelo fato de Aacutejax ter-lhe rancor mesmo ali no Hades entre os
mortos Odisseu continua a falar ao Telamocircnio que as armas pelos deuses tornaram-se
malditas por isso que por elas veio a padecer o baluarte dos Aqueus Diz ainda que assim
como sofreram pela morte do Pelida sentiram tambeacutem profundamente a sua morte E mais
uma vez Odisseu tenta fazer com que Aacutejax reconheccedila a accedilatildeo divina e enobrecido por esse
reconhecimento venha a abrandar o coraccedilatildeo Vejamos
αἴηηνο ἀιιὰ Ζεὺο Δαλαλ ζηξαηὸλ αἰρκεηάσλ
ἐθπάγισο ἤρζεξε ηεῒλ δ᾽ ἐπὶ κνῖξαλ ἔζεθελ
ἀιι᾽ ἄγε δεῦξν ἄλαμ ἵλ᾽ ἔπνο θαὶ κῦζνλ ἀθνύζῃο
ἡκέηεξνλ δάκαζνλ δὲ κέλνο θαὶ ἀγήλνξα ζπκόλlsquo
140
Na Odisseacuteia Aacutejax natildeo reconhece ter sofrido pela accedilatildeo divina tanto que Odisseu enfatizaraacute isso vaacuterias vezes
para que ele natildeo lhe tenha oacutedio jaacute que ambos seja para o bem seja para o mal foram viacutetimas do desejo divino
Contudo por termos a leitura da peccedila sabemos que Aacutejax iraacute responsabilizar tanto Odisseu acusando-o de ser o
mais canalha do exeacutercito como tambeacutem a deusa Vejamos o momento em que ele reconhecendo que caiacutera no
traacutegico percebe a accedilatildeo de Atena
ἀιιά κ᾽ ἁ Δηὸο ἀιθίκα ζεὸο ὀιέζξη᾽ αἰθίδεη
140
(Aacutejax 394-403)
Todavia a filha de Zeus
o poderoso deus
atormenta-me para destruiccedilatildeo
140
―ὣο ἐθάκελ ὁ δέ κ᾽ νὐδὲλ ἀκείβεην βῆ δὲ κεη᾽ ἄιιαο
ςπρὰο εἰο Ἔξεβνο λεθύσλ θαηαηεζλεώησλ141
(Odisseacuteia XI 559-564)
Todavia a culpa eacute de Zeus que terrivelmente odiou o exeacutercito
dos guerreiros Dacircnaos ele te colocou o destino funesto
Poreacutem conduzi-te para aqui heroacutei para que possas ouvir a
minha palavra e a minha histoacuteria domina a ira do teu valoroso coraccedilatildeo
Assim eu falava ele nada respondia e caminhou com as outras
almas que haviam morrido para o Eacuterebo
Como percebemos apesar de todas as tentativas de Odisseu de abrandar o rancor
de Aacutejax tudo eacute em vatildeo e este parte sem nada dizer-lhe desprezando o astuto guerreiro Para
entendermos essa reaccedilatildeo de desprezo de Aacutejax para com Odisseu recorremos a Aristoacuteteles
(2003) em Retoacuterica das Paixotildees Para o filoacutesofo o sentimento de desprezo ―() eacute a
atualizaccedilatildeo de uma opiniatildeo acerca do que natildeo parece digno de consideraccedilatildeo () e diz ainda
que ―trecircs satildeo as espeacutecies de desprezo o desdeacutem a difamaccedilatildeo e o ultraje (ARISTOacuteTELES
2003 p7) Assim Aacutejax mostra desprezar Odisseu negando-lhe inclusive a palavra
mostrando-se indiferente para com toda a tentativa de Odisseu de reaproximaccedilatildeo E se
―desprezamos o que natildeo tem valor algum (Ibidem p9) Aacutejax natildeo apenas culpa Odisseu por
todo seu mal como tambeacutem o desdenha e desmerece todo seu valor Desse modo vemos que
o Telemocircnio desconsidera os combates em que juntos trouxeram a gloacuteria para os gregos
como tambeacutem a accedilatildeo conjunta nas empreitadas a exemplo da que os dois fizeram ao lado de
Fenice para convencer Aquiles a voltar a lutar com os gregos (Iliacuteada IX 167-169)
Culpado pela humilhaccedilatildeo e pelo fim da vida de seu companheiro e aleacutem do mais
desprezado por ele mesmo no Hades em que o seu destino jaacute fora selado Odisseu aproxima-
se da representaccedilatildeo do heroacutei traacutegico sem a gloacuteria e sem a honra consagrada ao heroacutei eacutepico
Como todo heroacutei traacutegico o filho de Laertes carrega a culpa pelo seu mal e pelo mal dos
outros mesmo quando foram os deuses que assim determinaram mesmo quando a
necessidade impelia-o a agir mesmo quando tentava agir bem Traacutegico tambeacutem eacute para
Odisseu observar que nem no Hades Aacutejax pocircde ficar bem livrando-se do mal que cercara
sua morte Ao contraacuterio natildeo bastasse o destino traacutegico que os deuses lhe reservaram ele
levou consigo para o Hades todo o rancor e o oacutedio pelo mal que lhe fizeram natildeo podendo
assim ficar em paz e gozar dos gloriosos feitos que fizera em vida Como vemos no Hades
toda a gloacuteria eacute esquecida as conquistas no campo de batalha as honrarias comuns ao heroacutei
141
Texto disponiacutevel em
httpwwwperseustuftseduhoppertextdoc=Perseus3Atext3A19990101353Abook3D113Acard3
D538 retirado agraves 2214h em 02 de dezembro de 2010
141
eacutepico satildeo apagadas Em vez da honra Odisseu vecirc que para Aacutejax natildeo haacute gloacuteria nem
consagraccedilatildeo eacutepica mas apenas a amargura e o ressentimento do heroacutei traacutegico na escuridatildeo do
Hades
Apoacutes a saiacuteda de Aacutejax Odisseu deseja ver outros mortos Entatildeo vecirc primeiro
Minos o filho de Zeus a distribuir a justiccedila depois vecirc Oriatildeo cercado por feras Tiacutecio tendo
seu fiacutegado devorado por dois abutres Tacircntalo castigado com sede e com fome diante de lago
cheio de aacutegua que seca quando ele vai beber e quando quer comer as frutas satildeo levadas pelo
vento no momento em que ele vai pegaacute-las das aacutervores vecirc Siacutesifo que carrega uma enorme
pedra que cai quando ele alcanccedila o topo do penhasco depois Odisseu vecirc a sombra de
Heacuteracles
O filho de Zeus reconhece-o e fala-lhe entre gemidos dos grandes trabalhos que
enfrentou Chega a associar os seus trabalhos com a nova empreitada de Odisseu (XI 618-
619) pois Heacuteracles teve que natildeo apenas ir ao Hades mas pegar o catildeo e depois devolvecirc-lo
tarefa que fez com ajuda de Atena e Hermes Esse encontro eacute importante pois serve de
imagem alegoacuterica para Odisseu do destino no qual deve espelhar-se O contato que tivera com
seus companheiros em Troacuteia foi suficiente para ele observar que eles natildeo satildeo mais modelos de
vida como eram quando heroacuteis eacutepicos Figurados neste Canto XI como heroacuteis traacutegicos
Odisseu natildeo pode espelhar-se em seus destinos muito menos dos castigados (Tacircntalo Siacutesifo
etc) Deve entatildeo ter Heacuteracles como o protoacutetipo heroacuteico daquele que apesar dos muitos
trabalhos e das vivecircncias traacutegicas veio alcanccedilar no fim da vida a gloacuteria eterna e
recompensado pelos sofrimentos foi morar ao lado dos deuses no Olimpo Depois Heacuteracles
parte
Odisseu permanece ateacute que muitas almas aparecem em tumulto fazendo com que
ele se sinta tomado pelo medo (XI 633) amedrontado de que Perseacutefone enviasse-lhe a cabeccedila
de Goacutergona Impelido pelo fomacrboj no imediato instante Odisseu sobe agrave nau e exorta os
soacutecios a embarcarem para que pudessem logo partir E assim o fazem terminando o Canto
XI
Como pudemos ver ao longo de nossa anaacutelise do Canto XI da Odisseacuteia muitos
satildeo os seus momentos de tragicidade justificando a nossa escolha desse Canto para a anaacutelise
central deste trabalho dissertativo Assim pudemos analisar a configuraccedilatildeo traacutegica do heroacutei
observada a partir de Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax E reforccedilando a forte presenccedila traacutegica
contida nesse Canto viemos ter alguns seacuteculos apoacutes a produccedilatildeo dessa epopeacuteia a peccedila
Agamecircmnon primeiro livro da Oresteacuteia de Eacutesquilo como tambeacutem Aacutejax de Soacutefocles A
142
primeira baseada na traacutegica morte do Atrida e em suas graves consequecircncias e a segunda
sobre o suiciacutedio de Aacutejax Ambos os fatos jaacute prenunciados e tragicamente desenvolvidos no
Canto XI da Odisseacuteia
Isso ocorre porque mesmo o heroacutei eacutepico estaacute facilmente propenso agrave uAacutebrij jaacute que
ele ―estaacute sempre numa situaccedilatildeo limite e a areteacute a excelecircncia leva-o facilmente a transgredir
os limites impostos pelo meacutetron suscitando-lhe o orgulho desmedido e a insolecircncia (hyacutebris)
(BRANDAtildeO 1998 p 67) Ou seja inerentemente agrave estrutura do heroacutei seja eacutepico ou traacutegico
encontramos certa disposiccedilatildeo que lhe permite cometer a desmedida esta que por sua vez iraacute
encaminhaacute-lo definitivamente para aumlmartia ndash tornando-o de protagonista eacutepico em um
heroacutei com relevantes semelhanccedilas de um protagonista traacutegico
A tarefa de ir ao Hades e voltar jaacute era para Odisseu considerada impossiacutevel daiacute
seu desespero no momento em que Circe anuncia seu novo trabalho (X 496-498) Contudo
ele natildeo esperava que para acentuar ainda mais essa empreitada ele iria encontrar-se com a
matildee que ele natildeo sabia que morrera e com seus antigos companheiros em estado traacutegico de
insatisfaccedilatildeo com o destino acionado pelos deuses como eacute o caso de Agamecircmnon ou com o
destino escolhido por ele proacuteprio como eacute exemplificado atraveacutes de Aquiles ou ainda como
ocorre com Aacutejax inconformado e rancoroso com Odissseu sobre quem ele descarrega toda a
culpa do seu mal Aqueles valorosos heroacuteis eacutepicos no Hades natildeo passam de sombras de
eiAtildedwlon a vagarem paacutelidas sem consciecircncia sem nome sem honra E no instante em que
tecircm a razatildeo por causa do ritual feito por Odisseu natildeo recordam nada da gloacuteria e das
conquistas que tiveram quando heroacuteis eacutepicos ao contraacuterio restam-lhes apenas a lembranccedila e a
dor dos heroacuteis traacutegicos que se tornaram no final da vida E nesses como vimos o Laertida
natildeo pode espelhar-se pois como diz-nos Sandra Luna (2005)
Natildeo eacute por acaso que no aproveitamento da literatura grega como instrumento de
educaccedilatildeo humanista o heroacutei traacutegico desenha uma trajetoacuteria a ser evitada enquanto
a do heroacutei das epopeacuteias por seus gloriosos feitos mas sobretudo porque consegue
vencer o traacutegico projeta uma imagem a ser emulada Por tudo isso eacute possiacutevel
enquadrar a trageacutedia grega como uma estrateacutegia poeacutetica de racionalizaccedilatildeo do
traacutegico (LUNA 2005 p 383)
Configurados no Canto XI da Odisseacuteia como heroacuteis traacutegicos Agamecircmnon
Aquiles e Aacutejax natildeo mais podem servir para Odisseu como exemplo ao contraacuterio como todo e
qualquer heroacutei traacutegico seus caminhos devem ser evitados Desse modo em Odisseu como
espectador de todo esse cenaacuterio traacutegico satildeo suscitados os sentimentos de fomacrboj e esup1leoj O
primeiro porque todos eles satildeo seus semelhantes e ele estaacute suscetiacutevel a vivenciar o mesmo
143
tendo que portanto procurar fugir142
desses destinos Consequentemente a inspiraccedilatildeo desses
sentimentos levaraacute Odisseu agrave kaqarsij a fim de que tenha a purificaccedilatildeopurgaccedilatildeo desses
males (Poeacutetica 1449b) E apoacutes toda a vivecircncia traacutegica que o leva agrave kaqarsij Odisseu
pode enfim prosseguir purificado em seu caminho de retorno ao lar e da busca da gloacuteria
domeacutestica Pois como ele bem viu no Hades natildeo haacute lembranccedila das eacutepicas vitoacuterias e gloacuterias
resta aos mortos apenas o lamuacuterio pelo destino ingrato e a recordaccedilatildeo da traacutegica morte
Desse modo considerando-se que a kaqarsij como resultado da accedilatildeo traacutegica
constatamos que no Canto XI da Odisseacuteia a kaqarsij realiza-se no momento em que
Odisseu presencia situaccedilotildees traacutegicas de sua matildee e dos seus companheiros assim como
tambeacutem as escuta Assim essa narrativa permeada por elementos traacutegicos como aatildeth Moiordfra
asup1namacrgkh daimacrmwn aumlmartia uAacutebrij fomacrboj esup1leoj e asup1nagnwiquestrisij propicia a Odisseu
ser um espectador do traacutegico atraveacutes do que vecirc e ouve levando-o a kaqarsij Ao longo
deste trabalho pode-se observar a experiecircncia traacutegica vivida por Odisseu como rito de
passagem instrumento para o heroacutei passar pela kaqarsij e assim estar preparado para
finalizar sua jornada em Iacutetaca Com a realizaccedilatildeo da kaqarsij arriscamos a afirmar que
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Homero lega-nos natildeo apenas os germes traacutegicos
(Lesky 2006) mas a primeira representaccedilatildeo de um espectador traacutegico que eacute levado a
kaqarsij Assim tendo vivido e presenciado experiecircncias traacutegicas e tambeacutem tendo
purificado e purgado os sentimentos que foram suscitados com a kaqarsij Odisseu pocircde
seguir seu caminho de retorno a paacutetria- seu objetivo maior desde que saiacutera de Troacuteia
142
Verificar a explicaccedilatildeo dada no segundo capiacutetulo sobre fomacrboj que etimologicamente indica o medo que faz
fugir
144
Consideraccedilotildees finais
Em nosso trabalho dissertativo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia
Agamecircmnon Aquiles Aacutejax analisamos o teor traacutegico que percorre a eacutepica Odisseacuteia mais
especificamente no Canto XI em que Odisseu encontra-se com sua matildee e com alguns que
foram seus companheiros na Guerra de Troacuteia A partir dos diaacutelogos desenvolvidos entre o
filho de Laertes com os demais personagens pudemos identificar diversos elementos traacutegicos
que inclusive seratildeo responsaacuteveis por desencadear em Odisseu a kaqarsij como resultado
dos sentimentos de fomacrboj e esup1leoj que lhe foram inspirados
A fim de alcanccedilar o objetivo pretendido desenvolvemos em nosso trabalho trecircs
capiacutetulos No primeiro intitulado ―Contextualizaccedilatildeo miacutetica e religiosa da Odisseacuteia fizemos
uma explanaccedilatildeo a respeito das representaccedilotildees miacuteticas e seus significados para o mundo
homeacuterico como tambeacutem realizamos uma apresentaccedilatildeo da Odisseacuteia Ainda discorremos sobre
a estrutura do poema eacutepico a ser estudado e do perfil multifacetado do seu heroacutei Odisseu
Todas essas informaccedilotildees contribuiacuteram para entendermos em qual contexto o traacutegico pocircde
despontar em meio a esse contorno eacutepico
No segundo capiacutetulo ―Traacutegico aspectos teoacutericos e conceituais discorremos
sobre a accedilatildeo traacutegica sua origem formaccedilatildeo seus elementos constitutivos e seus meios de
efetivaccedilatildeo literaacuteria Para tanto expusemos a relaccedilatildeo do traacutegico com a trageacutedia gecircnero atraveacutes
do qual foi consagrado aleacutem de discutirmos tambeacutem a configuraccedilatildeo do traacutegico na Poeacutetica
atraveacutes de Aristoacuteteles como tambeacutem por meio de outros autores que se dedicaram ao estudo
da accedilatildeo traacutegica Jean Pierre Vernant Pierre Grimal Jacqueline de Romilly Anatol Rosenfeld
Junito Brandatildeo e Sandra Luna
No terceiro capiacutetulo ―Tragicidade no Canto XI da Odisseacuteia Anticleacuteia Aquiles
Agamecircmnon e Aacutejax fizemos uma anaacutelise da realizaccedilatildeo do traacutegico dentro do contexto eacutepico
especificamente no Canto XI da Odisseacuteia Contudo para entendermos que essa tragicidade
natildeo era um fato isolado dentro da obra primeiro realizamos a identificaccedilatildeo e anaacutelise da
tragicidade presente ao longo da Odisseacuteia no primeiro toacutepico nomeado ―Odisseacuteia momentos
de tragicidade No segundo toacutepico depois de compreender que o traacutegico permeia toda a
Odisseacuteia analisamos o Canto XI a partir dos encontros de Odisseu no Hades com sua matildee
que ele natildeo sabia que morrera e com os antigos companheiros Agamecircmnon Aquiles e Aacutejax
todos sofrendo pelo destino traacutegico que a vida lhes reservou Como espectador das cenas
145
traacutegicas no Hades Odisseu ao mesmo tempo em que se apieda tambeacutem fica amedrontado de
vir a ter o mesmo destino traacutegico de seus companheiros em Troacuteia E todos esses encontros
proporcionam ao heroacutei de Iacutetaca vivenciar fatos traacutegicos e atraveacutes deles ser inspirado pelo
fomacrboj e pela esup1leoj levando-o agrave kaqarsij
146
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