AS PEGADAS DE UM GIGANTE MEDIEVAL
Liberdade e ética nas concepções políticas de João de Salisbury (c.1120-1180) no
Metalogicon e no Policraticus
CARLILE LANZIERI JÚNIOR*
Caravaggio (1571-1610). São Jerônimo escrevendo (c. 1606, óleo sobre tela, 112 x 157, Galleria
Borghese, Roma)
Com uma caneta na mão direita e um volumoso livro aberto e seguro pela mão
esquerda, a figura esquálida e barbada de São Jerônimo envolvido por um ondulado
manto vermelho contrasta com a escuridão monótona ao fundo da cena. Sutil e delicada,
a fraqueza corporal de Jerônimo é submetida por sua vontade de ler e escrever. Tenaz,
esta o mantém ativo, anima-o, ainda que a morte simbolizada pelo crânio à esquerda o
espreite. Luz que incide sobre a escuridão, sensação de movimento que conduz os olhos
de quem observa o quadro. Incerteza, sofrimento, agonia, traços corporais marcantes e
realistas, características inconfundíveis das tintas de estilo barroco de Michelangelo
Merisi da Caravaggio, ou simplesmente Caravaggio (1571-1610) (MAMMI, 2012:7-
14).
A bela e ao mesmo tempo angustiante tela de Caravaggio é cortada por uma luz
horizontal intensa que atravessa a mesa e toca o alto da cabeça calva e enrugada de
Jerônimo encimada por uma fina e discreta auréola. O que essa projeção sugere? Para
mim, ela serve de metáfora: a liberdade e a perenidade proporcionadas pela atividade
intelectual. Embora limitado fisicamente e em seus prováveis últimos dias de vida,
Jerônimo agarrou-se à própria sanidade, sopro derradeiro de sua existência. Distante do
vigor da juventude, a luz apontada para sua cabeça sugere a certeza de que ele suportou
* Professor Adjunto A Nível I da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e membro do Vivarium
− Laboratório de Estudos da Antiguidade e do Medievo (www.vivariumhist.com). E-mail para contato:
<[email protected]>. Todas as traduções de textos em línguas estrangeiras aqui apresentadas são
de nossa autoria e inteira responsabilidade.
os revezes da idade avançada com sabedoria. Mesmo a lhe rondar, a morte não o
derrotou: o saber estampado nos livros e o que produziu o salvaram da escravidão das
efemeridades corpóreas. Foi-se o corpo, ficou a alma. Livre, seu saber o eternizou.
Com a liberdade e a sabedoria aludidas na obra de Caravaggio, tecerei minhas
argumentações acerca das concepções políticas de João de Salisbury (c.1120-1180),
rebento do humanismo fomentado nas escolas de Paris no século XII. Diferente do que
boa parte da historiografia produzida ao longo do século XX consagrou, concepções que
traziam em si nítidas orientações voltadas para uma existência humana ética e
civilizada.
*
As Artes Liberais eram o alicerce da educação medieval. Linguagem, expressão,
diálogo, cálculos, pesos, dimensões e harmonia. Artes não no sentido estético e
consumista atual, mas expressão suave do belo e do perfeito domínio das regras
necessárias à feitura de algo: um poema, uma pintura, uma escultura, um livro, uma
edificação (cf. COSTA, 2014, especialmente a parte I). Liberais porque libertavam o
espírito humano dos afazeres meramente corporais e o permitiam pensar e viver
livremente (LIBERA, 2004:319). Enfim, inspirados nos clássicos da antiguidade pagã,
eram a liberdade do pensar e o transmitir a essência do sagrado os esteios mais robustos
da educação elaborada pelos mestres da Idade Média. O inverso, era a degradação, a
escravidão do espírito submetido ao corpo. Neste ponto, a face filosófica da relação
liberdade-escravidão se exibe e se torna uma dos tópicos centrais de minha proposta.
Os debates a respeito do fim do trabalho escravo na transição do mundo antigo
para o medieval são antigos. Nos séculos XVIII e XIX, a historiografia consumiu rios
de tinta para definir a influência do cristianismo na derrocada do sistema escravista
romano. Proposta analítica amplamente contestada na atualidade (FINLEY, 1991). Por
sua vez, ao deixar para traz o anacronismo da tese cristã, Marc Bloch (1982) definiu que
a escravidão antiga ruiu sobretudo em função do alto custo imposto por sua
manutenção. Atualmente, as teses mais aceitas ampliaram o debate aberto por Bloch e
apontam para um fim gradativo do trabalho escravo. Uma história longa e sinuosa que
cobriu toda a Alta Idade Média e igualmente permeada por uma série de fatores
complementares que vão da resistência sistemática por parte dos cativos à introdução de
novas técnicas de produção (BONNASSIE, 1991:1-59).
Se a Baixa Idade Média praticamente desconhecia o trabalho escravo em seu
formato antigo, as metáforas sobre a escravidão existentes ainda entre os romanos
imiscuíram-se nos escritos medievais (JOLY, 2005:75-88). Sutilmente, manteve-se a
concepção de que ser escravo também era sinônimo de desrazão, de vida imoral e
descontrolada, enfim, de estar preso aos grilhões dos pecados produzidos pelo corpo.
Desfrutar da liberdade era controlar-se e se elevar espiritualmente, noções igualmente
absorvidas pelo cristianismo (FRANCO JÚNIOR, 2010:159-160). Portanto, um homem
verdadeiramente livre era aquele que vencia as paixões da carne e, livre, tornava-se
plenamente capaz de crescer através dos conhecimentos adquiridos. Conhecimentos
que, segundo João de Salisbury, protagonista deste artigo, conduziam o homem ao que
era belo e bom.
Tão propalada pela pena dos doutos do cristianismo pelo menos desde
Agostinho de Hipona (354-430), a liberdade se expressava na capacidade do homem
cristão em transmitir o bem que tinha em seu interior, materializando-o em seus atos,
livros e sermões. Ao se ter a certeza de que o homem trazia em si o traço da natureza
divina que o criou, era pelos bons exemplos, boa escrita e poder de argumentação que
ele daria vazão a esse saber nato. Assim, falar e escrever melhor e com mais
profundidade era buscar expressar e transmitir o saber divino em toda a sua potência.
Quanto mais desenvolvia a arte da escrita e da oratória, mais o ser humano desvelava
aos olhos de outras pessoas a natureza divina que o moldou.
Língua, liberdade e civilização. Essa tríade tão enraizada na sabedoria de João
de Salisbury encontra-se longe dos atuais locais destinados à transmissão e formação do
conhecimento. A moderna cultura presentista e materialista que adentra as escolas e
universidades mundo afora, em pouco tempo, perdeu a noção, entre outras coisas, de
que a língua deve ser a genuína expressão da razão e da capacidade argumentativa e
artística de seus falantes, não um mero instrumento burocrático de demonstração de
força política e econômica de um país ou grupo socioeconômico. Talvez esteja aí a
necessidade de se parar e olhar para trás, sorver as experiências pretéritas para entender
como o uso da língua foi pensado em sociedades diferentes e distantes da nossa.
Sociedades que a compreenderam (e todas as suas maneiras de existir) como meio do
homem manifestar o que tinha de melhor e mais belo dentro de si (COSTA, 2013).
Como já manifesto, dos mestres medievais que assim pensaram, trago para
primeiro plano a figura de João de Salisbury, douto formado nos bancos das escolas
parisienses e lapidado por diferentes mestres das Artes Liberais em décadas de
existência quase todas entregues aos estudos, destacadamente os que formavam o
Trivium. Para João de Salisbury, homem que entendia a língua e a capacidade de
expressão dos humanos como esteios da vida em sociedade, tais mudanças não fariam o
menor sentido, pois a elevada formação ética e cristã era o ponto de partida e de
chegada de sua pedagogia. Todavia, nem sempre foi assim que as propostas de
Salisbury emergiram do passado para virar História.
Por trás da metáfora política de João de Salisbury
O período que abarca os século XI-XIII é comumente apontado pela
historiografia como uma época de virada de rumos no Ocidente medieval (BASCHET,
2006:197-246; DUBY, 1989 e 2001; LE GOFF, 2005; LOPEZ, 1965). Assinalado por
um nítido crescimento econômico e urbano, o referido período testemunhou o
surgimento de renovadas relações de trabalho, muitas delas ancoradas no uso do
dinheiro (LE GOFF, 2014, especialmente os capítulos 3, 4 e 5). Com efeito, as artes
mecânicas (formas de trabalho manual divididas basicamente entre fabricação de lã,
armamento, navegação, agricultura, caça, medicina e teatro) alcançaram um
significativo patamar de importância. Em seu Didascálicon, livro escrito por volta de
1127, Hugo de São Vítor (1096-1141) foi um dos primeiros a evidenciar essa realidade.
Incisivo, Hugo as tomava como reflexo das conquistas materiais e de proteção que então
se afirmavam (MARCHIONNI, 2001:18). Algo semelhante foi defendido no século
XIII pelo filósofo maiorquino Ramon Llull (1232-1315), que saudava, entre outros, o
trabalho desempenhado por comerciantes e navegadores (COSTA, 2005:23-28).
Antes do próximo passo, um recuo estratégico. Prudência tomista para melhor
observar o ambiente no qual começo adentrar. Ainda que a historiografia mais
tradicional acomode João de Salisbury entre os primeiros arautos humanistas que
anunciaram a modernidade supostamente laica frente à decadência do mundo feudal
rural, religioso e cerrado (BROOKE, 1972:52-72; LITTLE, 1978; VERGER, 2001:57-
62), busco entendê-lo na alteridade, como um homem no seu tempo. Homem que viveu
e escreveu a partir do amalgama de referenciais políticos, sociais e culturais
pertencentes a um contexto específico. Ao escrever, João procurava nas experiências de
autores do passado elementos para determinar um sentido de autoridade para seus
argumentos. Em sua ótica, o futuro seria edificado assentado sobre esses esteios.
Organizar e segmentar em temas estanques a narrativa salisburiana na intenção
de confirmar os constructos analíticos modernistas seria silenciosamente corroborar a
tese de que o século XII foi realmente um tempo de total ruptura. Ruptura que começou
a varrer da face da Cristandade a anarquia feudal e suas facetas anárquicas de violência,
reclusão e religiosidade exacerbada. Nas fendas abertas, brotaram o mundo
supostamente moderno. Este se traduzia em uma Igreja com segmentos secularizados e
progressistas mais tolerantes em relação aos usos do dinheiro e na burguesia e no
comércio urbanos controlados por poderes cada vez mais centralizados. Naturalizado
por narrativas históricas hoje desgastadas, este não era o mundo de João de Salisbury.
Em cada uma das assertivas que ele deixou, existia uma profusão de informações.
Política, filosofia, teologia eram um todo sob sua pena e assim devem ser analisados.
Como amante dos clássicos da cultura greco-romana, seus olhos contemplavam o
passado, não o denegriam. Sendo assim, impressiona a teimosia dos historiadores que se
deixam levar pela autoridade que emana das letras anacrônicas que repousam inertes
sobre o papel.
Discípulo de mestres como os reverenciados Pedro Abelardo (1079-1142) e
Guilherme de Conches (c.1090-c.1154), João de Salisbury é apontado como um dos
primeiros e principais teóricos políticos do tempo em que viveu (TAYLOR, 2006:133).
Envolvido nas disputas por poder nos anos em que esteve em território inglês − algo
facilmente observável em seu epistolário −, João de Salisbury dispôs várias de suas
considerações sobre o bom o mal governo nas páginas do Policraticus: sive de nugis
curialium et vestigiis philosophorum, seu livro mais conhecido e estudado (LACASTA,
1984:346). Nele, João lançou uma das metáforas mais celebradas do pensamento
político medieval. Vamos a ela:
Na comunidade política, o príncipe ocupa o lugar da cabeça, e se encontra
sujeito somente a Deus e a quem, em nome d'Ele, faz seu papel na terra, da
mesma forma que, no corpo humano a mesma cabeça tem vida e é governada
pela alma. O senado ocupa o lugar do coração, já que dele procedem os
começos dos atos bons e maus. Os juízes e os governantes das províncias
reclamam para si a missão dos olhos, dos ouvidos e da língua. Os oficiais e
os soldados correspondem às mãos. Os que assistem ao príncipe de modo
estável são semelhantes ao flanco. Os questores e escrivães − não os que
controlam os cárceres, mas os encarregados do erário privado do príncipe −
podem ser comparados ao ventre e aos intestinos. Se estes são
congestionados por uma desmedida avidez e retêm com excessivo empenho
o que acumularam, provocam inumeráveis e incuráveis doenças, até que essa
dor traga a destruição de todo o corpo. Os agricultores se parecem aos pés,
pois também se encontram continuamente no solo. Para eles é especialmente
necessária a atenção da cabeça, já que tropeçam em muitas dificuldades
enquanto pisam a terra com o trabalho de seu corpo, e merecem ser
protegidos com tanta ou mais justa proteção para se manterem de pé,
sustentarem e moverem todo o corpo. Retire de qualquer corpo essas peças
dos pés que, por mais robusto que ele seja, não poderá caminhar por suas
próprias forças, mas tentará se arrastar torpemente com as mãos, sem
consegui-lo e com grande fadiga, ou só poderá se mover com o auxílio das
bestas (JOÃO DE SALISBURY, Policraticus, Livro V, 2:67).
Pelo menos cinco séculos antes do Leviatã (1651) do filósofo inglês Thomas
Hobbes (1588-1679), e possivelmente inspirado por passagens do Antigo Testamento,
João de Salisbury utilizou o corpo humano como metáfora para desenvolver suas
concepções acerca da boa organização política e social. Harmoniosas e coesas, as partes
deste corpo possuíam funções específicas. Uma dependia do bom funcionamento da
outra. Acima, na cabeça, estava o príncipe cujo papel primordial era conduzir toda a
estrutura logo abaixo. Nem mesmo os simples camponeses foram deixados de fora, pois
o trabalho que exerciam era basilar para a sobrevivências das outras ordens sociais
(COSTA, 2014, especialmente o item I.1; FREEDMAN, 1999:17-20). Desprovido da
potência e do equilíbrio produzidos pelos pés, ou seja, pelos camponeses, este corpo
teria sérias dificuldades para se locomover.
Os séculos XVIII e XIX foram o solo fértil no qual brotaram as certezas de que a
inexistência de um poder estatal forte e centralizado no período pós-carolíngio − último
suspiro do poderio imperial romano − fomentou a desordem e a violência cavaleiresca
que marcaram os tempos de predomínio das fragmentadas relações feudais. Estas se
mostraram alheias a qualquer noção de poder público e justiça (ALMEIDA, 2010a:53-
55 e 63-65). Assim, em linhas gerais, a Baixa Idade Média foi descrita como uma firme
detentora de uma política anticentralista esporadicamente desafiada por raros e
abnegados governantes quase sempre derrotados pelos interesses particulares dos
senhores da guerra. Rebentos da crítica à modernidade, os estudos desenvolvidos nas
últimas décadas do século XX foram mais benevolentes e menos anacrônicos:
literalmente, a Idade Média foi reinventada através do labor diuturno de novos
pesquisadores (ALMEIDA, 2010b:77-78; COELHO, 2014:39-41). O calmo horizonte
teórico que então predominava passou a ser cortado pelas naus da rigorosa revisão
historiográfica. Revisão igualmente sustentada pelo estudo minucioso da documentação
primária disponível.
Além da referida crítica à modernidade com todas as terríveis incertezas
produzidas pelas hecatombes do século XX, outra questão nevrálgica para a constituição
de um novo olhar sobre a história da Europa medieval deu-se na sequência do
questionamento dos fundamentos epistemológicos formadores da própria História,
ciência cujo impulso decisivo se deu no contexto exato de consolidação de um
sentimento de identidade nacionalista e de estruturas estatais burocráticas que
abarcaram velhos e novos Estados europeus (COELHO, 2014:39; GEARY, 2005:27-55;
GUERREAU, 2002:19-21; SILVA, 2009:13-15). Como extensão dessa virada analítica,
ganharam notoriedade os questionamentos imposto ao uso inadequado de conceitos
modernos tais como "propriedade", "Igreja", "trabalho" e "economia" aplicados à época
medieval (GUERREAU, 2002:19-30).
As pegadas do gigante
Do monumental trabalho de Ernst H. Kantorowicz (1998) às minúcias do artigo
de Quentin Taylor e do instigante e sintético livro de Michel Senellart (2006), uma a
uma, as peças foram postas sobre o tabuleiro das análises históricas. Ao observá-las,
identifiquei três aspectos recorrentes nas estratégias historiográficas adotadas: 1) a
insistência em afirmar os pilares hierocráticos e humanistas do pensamento político de
João de Salisbury, 2) o desejo de inseri-lo do panteão dos pensadores políticos
modernos e 3) a inexistência de análises que coloquem no mesmo patamar de
entendimento o Policraticus e o Metalogicon.
Facilmente verificados na historiografia, os primeiros dois aspectos parecem
emergir da recorrente necessidade de medievalistas do século XX em prospectar nas
camadas profundas da história medieval formas de organização política consideradas
minimamente modernas e em condições de dar fim ao velho estigma de "Idade das
Trevas". Contudo, a venda amarrada no terceiro aspecto não se desfaz assim tão
facilmente. Seduzidos pelo reluzente verniz político do Policraticus, os pesquisadores
praticamente ignoraram seus desdobramentos no Metalogicon. E que outros elementos
explicariam esse magnetismo analítico que atraiu a maioria dos olhares para uma única
direção?
Em uma análise preliminar, percebo que, na tentativa de remover antigos rótulos
negativistas grudados na superfície da História Medieval, esses autores foram além e
modernizaram o pensamento político de João de Salisbury. Apenas as feições
supostamente laicas ganharam atenção: centralidade, legalidade, dever público,
contratos sociais. Tacitamente, cercas foram erguidas. Um campo de estudos foi
milimetricamente demarcado. Fora dessas fronteiras, estabeleceu-se um vazio analítico.
Da porteira para dentro, novidades não foram bem-vindas. Com efeito, as relações do
pensamento de João de Salisbury com outras esferas do conhecimento cristão medieval
como a filosofia, a ética e a teologia foram pouco ou nada explorados.
Na esteira do que propôs Alain Guerreau (2006:26-27 e 2002:440), não
considero prudente sorver a complexidade do pensamento medieval a partir de nichos
de significação díspares que não faziam o mesmo sentido em seu nascedouro. As
condições de vida das fontes em questão eram outras, nitidamente diferentes dos tempos
modernos. Assim, a partir da leitura crítica do rol de historiadores aqui disposto, trago a
proscênio plausíveis respostas para mais duas questões complementares: a maneira pela
qual João de Salisbury entendia as relações políticas e sociais de seu tempo partiram de
uma visão coletiva ou ela estava primeiro centrada na evolução do indivíduo? O que as
experiências e concepções políticas de João de Salisbury podem ensinar aos homens do
século XXI, sempre tão envolvidos com as efemeridades do presente e a
imprevisibilidade do futuro?
*
Na segunda metade do século XII, João de Salisbury lançou seu livro-manifesto
de repúdio aos que labutavam contra as artes do Trivium em prol de uma simplificação
nos estudos: o Metalogicon. Ao recordar a própria trajetória e as palavras dos mestres
que o formaram, João combatia a atitude de tais estudantes (a quem denominava
"Discípulos de Cornificius"), pois eram seres estultos incapazes de compreender a
grandeza proporcionada pelas Artes Liberais. A estes, de acordo com o que seus mestres
o ensinaram, sugeria outros ofícios que, embora lucrativos, exigiam menos do intelecto.
Como Agostinho de Hipona, João de Salisbury propunha que todo ser humano
era dotado de uma natureza divina. A partir dela, o homem estava apto a fazer coisas
boas e belas. Todavia, essa natureza precisava ser trabalhada cotidianamente para que se
mostrasse cada vez mais elevada. A preguiça era um veneno mortal para a aquisição da
sabedoria. Não por acaso, João de Salisbury se mostrou muito atento aos exercícios
intelectuais permanentes, para que os jovens dominassem todas as sutilezas da arte da
Eloquência. Tudo isso constituía o que João confiava ser o alicerce intelectual para a
vida em sociedade. Enfim, em suas palavras:
De fato, é a agradável e frutífera copulação da razão com a fala que faz
nascer tantas ilustres cidades, faz tantos reinos amigos e aliados, e une e liga
em laços de amor tantas pessoas. Quem tentar 'trespassar o que Deus juntou'
para o bem comum, certamente será julgado como inimigo público. Quem
elimina o ensino da eloquência dos estudos filosóficos inveja Mercúrio
[Eloquência] e sua possessão sobre a Filologia, e retira das mãos desta o
amado Mercúrio. Embora pareça atacar apenas a eloquência, ele mina e
desenraiza todos os estudos liberais, assalta a estrutura da filosofia, rasga
em farrapos o contrato social da humanidade e destrói os meios de caridade
fraternal e reciprocidade de serviços. Privados do dom da fala, os homens se
degeneram à condição de brutos animais (JOÃO DE SALISBURY,
Metalogicon, Livro, cap. 1:11).
Saber eloquente para edificar a si e os outros. Possivelmente inspirado por Lúcio
Aneu Sêneca (4 a.C-65 d.C) e Aristóteles (384 a.C-322 a.C) associados a passagens
bíblicas, o saber ético anunciado por João de Salisbury iniciava-se no homem para na
sequência transformar o coletivo. Ao citar Marciano Capella (c.450-534), autor do De
nuptiis Philologiae et Mercurii e personagem do século V descrito pela tradição como
responsável pela sistematização das Artes Liberais em Trivium e Quadrivium (COSTA,
2005:35-36), João de Salisbury foi taxativo ao escrever que a eloquência era o
fundamento da existência humana em sociedade. Sem ela, a razão simplesmente não
existiria, pois não ganharia forma.
Ler o Metalogicon é vislumbrar a certeza de que foram apressados (para não
dizer negligentes) os que definiram o Policraticus como o livro que traz o sumo do
pensamento político do mestre chartrense. Pelo que observo, não há dúvida de que os
dois livros devem ser trabalhados em conjunto para que a compreensão do pensamento
político de João de Salisbury venha à luz com toda as suas nuances. Se em Policraticus
João criticou a frivolidade dos que viviam nos prazeres e encantos das cortes, no
Metalogicon ele, como homem atento à formação dos mais jovens, recomendou o
amalgama entre conhecimento e ética cristã como o fator responsável pelo expurgo dos
males advindos destes ambientes. Com a factível presença de Boécio (c.480-c.525) nas
entrelinhas do que deitou no papel, João confiava que a filosofia era a cura para os
males advindos da fortuna. Porém, esta somente era alcançada com moderação, um
passo de cada vez. A eloquência que trazia o dom de civilizar os homens era o primeiro
deles.
Assim, nas páginas do Metalogicon, João de Salisbury colocou à disposição de
seus leitores um importante aspecto de sua teoria política de explícita orientação ética e
filosófica: a capacidade do homem de viver em harmonia com os iguais não se limitava
à constituição de um governo ou de instituições reguladoras, também alcançava o
conhecimento adquirido pelas pessoas. Conhecimento que se traduzia na união entre a
razão e a eloquência. Sem essa união, o homem regrediria à sua condição animalesca e
todas as suas conquistas coletivas ruiriam. Se os medievais não conheceram o Estado
moderno e todas as suas ramificações burocráticas, outras formas de conceber e viver a
política estavam a seu dispor. E assim a vida seguiu.
Como afirmei em momento anterior, embora não se destinasse a todos os
extratos da sociedade medieval, a proposta educacional de João de Salisbury indica
muito mais uma política voltada para o homem do que algo restrito a instituições ou
grupos reguladores. Quanto melhor for o homem, melhor será a sociedade na qual ele se
insere. Os governantes eram necessários, porém, como eram falíveis, precisavam de
todos para governar. E todos, sob os auspícios da sabedoria, eram chamados a entregar
sua parcela de contribuição. Portanto, ao definir a educação como um dos esteios da
vida civilizada e em sociedade, João de Salisbury deixou aos homens o trabalho de
evoluir pessoalmente através do estudos das Artes Liberais. Com cada um melhorando e
promovendo uma revolução intelectual interna, todo o corpo social seria mais saudável.
Antes dos grandes levantes burgueses dos séculos XVII e XVIII, dos incentivos
aos apaixonados enfrentamentos (verbais e físicos), um homem do medievo, ensinou
que a mais longeva das revoluções é aquela que começa dentro das pessoas, baseada
pura e simplesmente na formação intelectual e cristã (ciência e sapiência) de cada um.
Afinal, para o mestre João de Salisbury, um mundo melhor passaria pela existência de
pessoas melhores.
Conclusão
Thomas Cole (1801-1848). O curso do império - Destruição (1836, óleo sobre tela, 39,5 x 63,5,
Collection of The New York Historic Society)
Iniciei este artigo com uma pintura do genial Caravaggio. Com outra de um
artista mais recente, eu o encerrarei. Fruto do trabalho do pintor americano Thomas
Cole (1801-1848), Destruição faz parte de um conjunto de cinco telas denominado O
curso do império. Nelas, a trajetória de ascensão e queda de um império foram descritas
em cores vivas. Destruição, desespero, violência e morte se espalham pela imagem
final, sombria e asfixiante do gênio de Cole. Último ato melancólico do que outrora fora
imponente. Em Civilização: ocidente x oriente (2012:345-350), o historiador britânico
Niall Ferguson (1964- ) utilizou o quadro de Cole como metáfora para descrever o que
ele definiu como o atual estado decadente da civilização ocidental. Oscilante, esta vê
quase inerte o avanço impetuoso do poderio econômico chinês e da força destrutiva
representada pelo fundamentalismo islâmico.
Ainda que algumas das teses de Niall Ferguson possam gerar polêmicas entre os
especialistas em História Moderna e Contemporânea, acredito que ele foi muito feliz ao
apontar a crise intelectual como um dos principais fatores da decadência do mundo
ocidental. Hoje em dia, poucos conhecem as obras clássicas que deveriam sustentar o
mundo em que vivemos. Defensores da praticidade pedagógica, outros tantos relutam
em ensiná-las: para que servem diante das novas tecnologias que fascinam as novas
gerações? Sem referências, vagamos sem rumo.
O pensamento político revolucionário (tantas vezes imprudente) do qual há anos
me distanciei teria muito a ganhar caso buscasse na riqueza intelectual produzida pela
humanidade as respostas profundas que a efemeridade do presente não tem condições de
oferecer. Que a liberdade e a ética expressas na capacidade linguística humana tão
propalada por João de Salisbury no Policraticus e no Metalogicon um dia volte a nos
civilizar. Neste caso, a humanidade estaria no curso da maior e mais profunda de suas
revoluções: a intelectual.
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