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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
RODRIGO ROCHA SILVEIRA
NATUREZA, CINCIA E RELIGIO: UMA AVALIAO DO
NATURALISMO
Braslia2014
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UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA
RODRIGO ROCHA SILVEIRA
NATUREZA, CINCIA E RELIGIO: UMA AVALIAO DONATURALISMODissertao apresentada como requisito deconcluso do curso de Mestrado emFilosofia da Universidade de Braslia
Orientador: Agnaldo Cuoco Portugal
Linha de Pesquisa: Filosofia da Religio
Braslia2014
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Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade deBraslia. Acervo 1016505.
Si l vei ra, Rodr i go Rocha.S587n Natureza, c i nc ia e rel ig io : uma aval i ao do Natura l i smo
/ Rodr igo Rocha S i l ve i ra . - - 2014.
127 f . ; 30 cm.
Disser tao (mest rado) - Uni versi dade de Bras l ia ,
I nst i t ut o de Ci nc i as Humanas, Progr ama de Ps-Graduao
em F i losof ia , 2014.
I nc l u i b i b l i og ra f i a .
Or i ent ao: Agna ldo Cuoco Por tuga l .
1. Rea, Mi chael C. - (Mi chael Cannon) , 1968- . 2. Nagel ,
Thomas. 3 . Natura l i smo. 4 . Re l ig io e c i nc i a . 5 .
Razo. I .Por tuga l , Agna l do Cuoco. I I . T tu l o .
CDU 19
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RODRIGO ROCHA SILVEIRA
NATUREZA, CINCIA E RELIGIO: UMA AVALIAO DONATURALISMO
Dissertao apresentada como requisito deconcluso do curso de Mestrado em
Filosofia da Universidade de Braslia
Dissertao aprovada em 28 de abril de 2014
Banca Examinadora:
_______________________________________Prof. Dr. Agnaldo Cuoco PortugalPresidente (PPGFIL/UnB)
_______________________________________Prof. Dr. Marciano Adlio SpicaMembro Externo (UNICENTRO)
_______________________________________Prof. Dr. Srgio Ricardo Neves de MirandaMembro Externo (UFOP)
_______________________________________Prof. Dr. Mrcio Gimenez de PaulaSuplente (PPGFIL/UnB)
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A Paula Machado Ribeiro, Cassiano CarvalhoSilveira e Maria das Graas Rocha da Silva Silveira
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AGRADECIMENTOS
Vrias pessoas e instituies contriburam para a realizao dessa
dissertao. Voltando-me primeiramente s instituies, agradeo Universidade de Braslia
por me conceder a possibilidade de realizar essa pesquisa e por me fornecer vrios
instrumentos valiosos na consecuo de seus resultados, como o acesso a bases de dados que
incluem peridicos nacionais e internacionais, e o acesso ao acervo da Biblioteca Central.
Agradeo Agncia Nacional de Transportes Aquavirios por, generosamente, permitir-me
realizar uma jornada de trabalho flexvel que garantiu que fosse possvel dedicar-me aos
estudos. Agradeo, tambm, Fundao de Apoio Pesquisa do Distrito Federal pelofinanciamento para a apresentao da primeira parte desta dissertao no V Congresso
Brasileiro de Filosofia da Religio, realizado em Vitria, Esprito Santo, em 2013.
Sou muitssimo grato a todos os professores e colegas estudantes do
Programa de Ps-graduao em Filosofia da Universidade de Braslia com quem travei
discusses que ajudaram a moldar as ideias aqui apresentadas. De modo muito especial,
agradeo ao Prof. Dr. Agnaldo Cuoco Portugal, meu orientador, por ter ministrado a disciplina
Religio e Cincia no segundo semestre de 2012 em que vrias das questes centrais a essa
pesquisa foram discutidas; por ter me supervisionado em estgio docente ministrado aos
estudantes de graduao em Filosofia; e por ter lido cuidadosamente cada uma das pginas
desta dissertao e feito sugestes indispensveis sua qualidade. Se algum digno do ttulo
de orientador, o Prof. Agnaldo certamente .
Por fim e certamente no menos importantes, foram as contribuies de
Maria das Graas Rocha da Silva Silveira, Cassiano Carvalho Silveira, Rafael Rocha Silveira,
Priscila Rocha Silveira e Paula Machado Ribeiro, que participaram intensamente na minha
formao e que partilharam tanto do meu entusiasmo quanto das minhas angstias. Agradeo
tambm Angela Beatriz Machado Ribeiro, que presenteou-me com um notebook novo
quando o meu foi furtado em meio elaborao desta dissertao.
Soli Deo gloria!
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A CONFESSION
I am so coarse, the things the poets seeAre obstinately invisible to me.For twenty years Ive stared my level bestTo see if evening - any evening - would suggestA patient etherized upon a table;In vain, I simply wasnt able.To me each evening looked far moreLike the departure from a silent, yet a crowded, shoreOf a ship whose freight was everything, leaving behindGracefully, finally, without farewells, marooned mankind.
Red dawn behind a hedgerow in the eastNever, for me, resembled in the leastA chilblain on a cocktail-shaker`s nose;Waterfalls dont remind me of torn underclothes,
Nor glaciers of tin-cans. Ive never knownThe moon look like a hump-back crone-Rather, a prodigy, even now
Not naturalized, a riddle glaring from the Cyclops browOf the cold world, reminding me on what placeI crawl and cling, a planet with no bulwarks, out in space.
Never the white sun of the wintriest dayStruck me as un crachat destaminet.Im like that odd man Wordsworth knew, to whomA primrose was a yellow primrose, one whose doomKeeps him forever in the list of dunces,Compelled to live on stock responses,Making the poor best that I can
Of dull thingspeacocks, honey, the Great Wall, Aldebaran,Silves weirs, new-cut grass, wave on the beach, hard gem,The shapes of horse and woman, Athens, Troy, Jerusalem.(LEWIS, 1964, p.1)
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RESUMO
O tema desta dissertao o Naturalismo filosfico na tradio da filosofiaanaltica e seus objetivos so caracteriz-lo e apresentar e avaliar alguns argumentos quedesafiam seu status como uma espcie de ortodoxia. Em relao ao primeiro objetivo,
procura-se mostrar que o Naturalismo pode ser caracterizado, por um lado, por opor filosofiae religio e, por outro, por tentar aproximar filosofia e cincia. Argumenta-se, tambm, queesses dois aspectos do Naturalismo se conectam pela tese, geralmente defendida por seusadeptos, de que cincia e religio so empreendimentos conflitantes. Defende-se, por fim, queo Naturalismo pode ser considerado uma viso de mundo, uma vez que ele possuiconsequncias em todos os campos do conhecimento e da ao. Em relao ao segundo
objetivo, apresentam-se quatro argumentos antinaturalistas: o argumento da razo, formuladopor C. S. Lewis; o argumento evolucionrio contra o Naturalismo, proposto por AlvinPlantinga; o argumento de Thomas Nagel em Mind and Cosmos; e o argumento dadissonncia formulado por Michael Rea em World without Design. Em seguida, apresentam-se as principais objees propostas a cada um dos argumentos. Ao final de cada seo, osargumentos so avaliados luz das objees apresentadas contra eles. Enfim, conclui-se queos argumentos so slidos e que nenhuma das objees resulta da refutao daqueles,observando, contudo, que o segundo e o quarto argumentos possuem somente eficciaprima
facie. Assim sendo, ostatusdo Naturalismo como ortodoxia em filosofia analtica deveria serrepensado.
Palavras-chave: Naturalismo. Relacionamento entre cincia e religio.Argumentos antinaturalistas. Argumento da razo. Argumento evolucionrio contra o
Naturalismo. Argumento da dissonncia de Michael Rea. Argumento antinaturalista deThomas Nagel.
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ABSTRACT
The subject of this dissertation is Philosophical Naturalism in the analyticphilosophical tradition and its objectives are to caracterize it and to present and evaluate somearguments that defy thestatusof Naturalism as some kind of orthodoxy. In what concerns thefirst objective, we seek to show that Naturalism can be characterized, on one hand, byopposing philosophy and religion and, on the other hand, by trying to bring together
philosophy and science. We argue, also, that those two aspects of Naturalism are connected bythe thesis, generally held by its adepts, that science and religion are conflicting activities. Wedefend, at last, that Naturalism can be considered a worldview, since it bears consequences inall fields of knowledge and action. In what concerns the second objective, four anti-naturalistarguments are presented: the argument from reason, proposed by C. S. Lewis; the
evolutionary argument against Naturalism, formulated by Alvin Plantinga; the argument byThomas Nagel in Mind and Cosmos; and, the arguments from dissonance elaborated byMichael Rea in World without Design. Next, the main objections proposed against eachargument are presented. At the end of each section, the arguments are evaluated in the light ofthe objections. We conclude that the arguments are sound and none of the objections results inrefutation, keeping in mind, however, that the second and the fourth arguments have only
prima facie efficacy. Therefore, the status of Naturalism as the orthodoxy in analyticphilosophy should be reconsidered.
Keywords: Naturalism. Relationship between religion and science . Anti-naturalist arguments. Argument from reason. Evolutionary argument against Naturalism.
Michael Reas argument from dissonance. Thomas Nagels anti-naturalist arguments.
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LISTA DE ABREVIATURAS
AECN Argumento evolucionrio contra o Naturalismo
C Tese da confiabilidade das faculdades cognitivas
E Teoria da evoluo biolgica
MH Males horrendos
MNR Materialismo no redutivo
MR Materialismo redutivo
N Naturalismo
NMA Naturalismo metodolgico segundo o tema antirreligioso
NMC Naturalismo metodolgico segundo o tema cientfico
NOA Naturalismo ontolgico segundo o tema antirreligioso
NOC Naturalismo ontolgico segundo o tema cientfico
PM Propriedade modal no trivial
TCCR Tese do conflito entre cincia e religio
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SUMRIO
INTRODUO 11________________________________________________________
Parte I - Caracterizao do Naturalismo
1. O ENCANTODONATURALISMO 16________________________________________1.1. Naturalismo como viso de mundo cientfica 18---------------------------------------------
1.2. Naturalismo como viso de mundo antirreligiosa 27---------------------------------------
1.3. O relacionamento entre cincia e religio 29-------------------------------------------------
1.4. Concluso do captulo 32-------------------------------------------------------------------------2. A NATUREZADONATURALISMO 34_______________________________________
2.1. NMC e NOC: problemas com relao ao enunciado 34------------------------------------
2.2. O Naturalismo como programa de pesquisa 37----------------------------------------------
2.3. Naturalismo, fisicalismo, materialismo, cientificismo: algumas distines 44---------
2.4. Concluso do captulo 45-------------------------------------------------------------------------
Parte II Crticas ao Naturalismo
3. ARGUMENTOSDAAUTO-ANULAO: C. S. LEWISEALVINPLANTINGA 48______3.1. O argumento da razo 49------------------------------------------------------------------------
3.1.1. Apresentao do argumento 50........................................................................................
3.1.2. Crticas ao argumento: Peter van Inwagen e G. E. M. Anscombe 53.............................
3.1.2.1. G. E. M. Anscombe 53...........................................................................................................3.1.2.2. Peter van Inwagen 56.............................................................................................................
3.1.3. Respostas s crticas 58...................................................................................................
3.1.3.1. Resposta a G. E. M. Anscombe 58.........................................................................................3.1.3.2. Resposta a Peter van Inwagen 60...........................................................................................
3.1.4. Avaliao do argumento 62..............................................................................................
3.2. O Argumento evolucionrio contra o Naturalismo 64--------------------------------------3.2.1. Apresentao do argumento 65........................................................................................
3.2.2.Objees ao argumento e respostas s objees 75..........................................................
3.2.2.1. Objees contra P(C/N&E) baixa 76...............................................................................3.2.2.2. Objees contra a segunda premissa 82.................................................................................3.2.2.3. Objees contra a terceira premissa 84..................................................................................3.2.2.4. O Problema da Condicionalizao 86....................................................................................
3.2.3. Avaliao do argumento 88..............................................................................................
4. MENTEECOSMOS: OSARGUMENTOSDETHOMASNAGELCONTRAONATURALISMO 90_______________________________________________________
4.1. Apresentao dos argumentos 90---------------------------------------------------------------
4.2. Objees aos argumentos e respostas s objees 97---------------------------------------4.3. Avaliao dos argumentos 101-------------------------------------------------------------------
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5. ARGUMENTODADISSONNCIA: MICHAELREAEASCONSEQUNCIASINDESEJADASDONATURALISMO 103_______________________________________
5.1. Apresentao do argumento 103----------------------------------------------------------------
5.2. Objees ao argumento 110----------------------------------------------------------------------5.3. Avaliao do argumento 112---------------------------------------------------------------------
CONCLUSO 114________________________________________________________
REFERNCIASBIBLIOGRFICAS 119________________________________________
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INTRODUO
O tpico desta dissertao o Naturalismo na filosofia analticacontempornea. Seus objetivos sero caracteriz-lo e examinar alguns dos mais notveis
argumentos antinaturalistas surgidos nos ltimos anos, que tm marcado o princpio de uma
apreciao mais crtica dessa posio, que constitui uma ortodoxia do pensamento filosfico
ocidental.
Naturalismo um termo rico em significados. Como a maioria dos -
ismos, ele possui aplicaes diversificadas e assume sentidos diferentes em diferentes reas
do conhecimento. Em literatura, o termo ligado a um estilo de poca do fim do sculo XIX,
exemplificado pelas obras de escritores como mile Zola, Alusio de Azevedo, Adolfo
Caminha, Ingls de Souza entre outros. Em artes plsticas, ele denota a tendncia de
representar as formas naturais, incluindo os corpos humanos, de forma mais realista possvel,
assim como elas se apresentam aos sentidos. Em filosofia, o termo serviu para caracterizar
uma diversidade de posies ao longo de sculos de histria do pensamento.
Os primeiros filsofos costumeiramente caracterizados como naturalistascoincidem com os primeiros filsofos que surgiram, pelo menos se levarmos em considerao
a tradicional, embora controversa, tese de que a filosofia nasceu na Grcia por volta do sculo
VI a. C. Alguns veem nisso a indicao de que a filosofia , em algum sentido, essencialmente
naturalista. O epteto de naturalista dado aos filsofos pr-socrticos, em especial os da
Escola Jnica, tem, sobretudo, relao com a identificao feita por eles do arch, o princpio
da realidade, com algum elemento da physis, ou seja, da natureza. Depois dos pr-socrticos,
muitos outros pensadores foram enquadrados sob essa mesma rubrica e por critrios muito
dspares.
A Histria da Filosofia, na tentativa de organizar a complexidade e a
diversidade das contribuies filosficas, tende a rotular os filsofos de acordo com certas
semelhanas e, muitas vezes, os prprios filsofos enquanto produzem seus trabalhos desejam
se identificar com movimentos filosficos. Isso resulta, inevitavelmente, em uma certa
vagueza dessas expresses classificatrias, especialmente se levarmos em considerao quevrios historiadores propem classificaes utilizando os mesmos nomes com critrios
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diferentes. Naturalismo uma dessas expresses classificatrias em que o problema da
vagueza se manifesta de forma mais aguda.
Para os objetivos desta dissertao, limitaremos nossa discusso aoNaturalismo conforme entendido na tradio filosfica comumente caracterizada como
analtica. Aqui uma observao se faz necessria. A filosofia analtica, como se sabe, surgiu a
partir de uma concepo de filosofia que privilegiava a anlise da linguagem como forma de
soluo de problemas ou ainda de dissoluo de falsos problemas; a preciso e a clareza; e o
uso dos instrumentos formais da lgica. A ideia de que a funo principal da filosofia fazer
anlise da linguagem no das mais populares nos dias de hoje. Por isso, muitos acreditam
que j no h mais sentido em se falar de filosofia analtica. Contudo, sustentamos que o
uso da expresso ainda se justifica. Em primeiro lugar, porque serve como identificador de
um estilo particular de se fazer filosofia. Mesmo que no se reconhea uma diferena
substancial entre a filosofia dita analtica e a dita continental, certamente h uma diferena
considervel de estilo. Em segundo lugar, porque marca um grupo de filsofos que se nutriu e
se nutre intelectualmente at hoje da filosofia marcada pela anlise lingustica. Em terceiro e
quarto lugares, por motivos pragmticos: a referncia filosofia analtica continua muito
comum apesar da virada para alm da anlise lingustica; e as tentativas alternativas para
nomear esse grupo de pensadores herdeiros da filosofia da anlise da linguagem so, de um
modo geral, muito canhestras, como filosofia anglo-americana.
Trataremos, portanto, do Naturalismo filosfico na tradio analtica. Daqui
por diante, por simplicidade, referir-nos-emos ao Naturalismo sem adicionar as demais
qualificaes, levando em conta o recorte exposto. Nosso objetivo , em primeiro lugar,
caracteriz-lo como posio filosfica. O Naturalismo considerado quase universalmentecomo a ortodoxia filosfica na tradio analtica. Muitos trabalhos foram feitos ao longo de
pelo menos um sculo sob a bandeira do Naturalismo e boa parte dos filsofos mais influentes
do sculo XX at o nosso sculo se dedicaram ao projeto de naturalizao da filosofia, ou
seja, ao esforo de enxergar todo o empreendimento filosfico atravs das lentes naturalistas.
Contudo, nem sempre h consenso sobre o que ser um naturalista. Para uma tradio
filosfica cujo maior orgulho a clareza e a preciso no uso dos conceitos, esse um fato que
causa grande perplexidade.
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No primeiro captulo, tentaremos analisar o conceito de Naturalismo
conforme defendido pelos seus maiores expoentes. Nessa caracterizao, identificaremos dois
temas ou eixos em torno dos quais o Naturalismo entendido. O primeiro desses temas o
cientfico e o segundo o antirreligioso. Segundo o tema cientfico, o Naturalismo pode ser
visto como posio que tem em altssima conta os mtodos e resultados da cincia e que
procura pautar a filosofia pela cincia. Segundo o tema antirreligioso, ele pode ser visto como
rejeio do sobrenatural como componente da ontologia e da explicao da realidade. Ambos
os temas geram teses tanto metafsicas quanto metodolgicas que orientam a filosofia de
modo geral e que repercutem sobre a viso do naturalista sobre todos os aspectos da realidade.
Nesse sentido, defendemos que o Naturalismo seja visto como uma viso de mundo. Por fim,propomos que os dois temas naturalistas so harmonizados pela tese do conflito entre cincia
e religio.
No segundo captulo, exporemos algumas dificuldades definicionais
enfrentadas pelo Naturalismo, bem como algumas tentativas de resolver essas dificuldades.
Entre estas, a proposta de Michael Rea de que o Naturalismo seja considerado um programa
de pesquisa, em vez de um conjunto de teses filosficas substantivas. Ademais, defenderemos
que o naturalista ontolgico segundo o tema cientfico est comprometido com a tese
adicional do realismo cientfico.
No terceiro captulo, comearemos a expor e avaliar uma srie de
argumentos contra o Naturalismo. Nesse captulo, estaro presentes o Argumento da Razo
elaborado por C. S. Lewis e o Argumento Evolucionrio contra o Naturalismo de Alvin
Plantinga. Cada argumento ser devidamente exposto, em seguida confrontado com algumas
objees presentes da bibliografia especializada e, por fim, avaliado.
No quarto captulo, trataremos dos argumentos antinaturalistas de Thomas
Nagel conforme expostos emMind and Cosmos, onde procedermos de maneira semelhante ao
terceiro captulo.
No quinto captulo, analisaremos os argumentos da dissonncia de Michael
Rea, pelos quais se defende que o naturalista no pode adotar as teses do realismo em relao
a objetos materiais, do materialismo e do realismo em relao a outras mentes. Aqui,
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novamente, sero analisadas algumas respostas naturalistas ao argumento e, ao final, ele ser
avaliado.
Todas as citaes de textos em lngua estrangeira presentes no corpo dotexto foram traduzidos livremente pelo autor, exceto quando explicitamente referenciada uma
traduo em portugus disponvel.
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Parte I - Caracterizao do Naturalismo
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1. O ENCANTODONATURALISMO
We are all naturalists now1
(Roy Wood Sellars, 1922)
O Naturalismo a posio mais prestigiada em filosofia na tradio
analtica e tem sido assim por quase um sculo. Conforme afirma David Papineau (2011) no
verbete correspondente na Stanford Encyclopedia of Philosophy: Para bem ou para mal,
'naturalismo' amplamente visto como um termo positivo nos crculos filosficos poucos
filsofos ativos hoje em dia esto contentes em anunciar-se como no-naturalistas" ou,
como afirmou em outra obra: quase todos hoje em dia desejam ser um naturalista (Idem,2
1993, p.1).
Mario De Caro e David Macarthur (2004; p. 2), no prefcio de uma das
mais importantes coletneas publicadas sobre o assunto, tambm testemunham sobre ostatus
do Naturalismo na filosofia analtica contempornea:
A grande maioria dos filsofos anglo-americanos alegam ser naturalistas ou estarpropondo uma teoria naturalista de um conceito filosfico chave (digamos,conhecimento) ou domnio (por exemplo, discurso tico). Naturalismo se tornou oslogan em nome do qual a vasta maioria dos trabalhos em filosofia analtica feito...
Em resumo, o Naturalismo adquiriu a posio de ortodoxia entre os
filsofos analticos.
Contudo, como acontece frequentemente com os grandes ideais que so
advogados por um grande nmero de pessoas, nem sempre h muita clareza a respeito do que
significa e o que implica o Naturalismo. Barry Stroud (2004; p. 22) prope a seguinte
imagem, que vale a pena reproduzir integralmente:
Naturalismo parece a mim ser, nesse e em outros aspectos, como Paz Mundial.Quase todos juram fidelidade a ele e esto dispostos a marchar sob sua bandeira.Mas disputas ainda podem itromper a respeito do que apropriado ou aceitvel fazer
Traduo:Somos todos naturalistas agora.1
Em recente pesquisa realizada pela internet CHALMERS e BOURGET (2013) relatam que 49,8% dos2filsofos entrevistados se declararam naturalistas, enquanto somente 25,9% se declararam no-naturalistas (oresto dos entrevistados no se declarou nem pelo Naturalismo e nem contra ele). O nmero sugere que o
predomnio naturalista j no to grande quanto o imaginado. Considerando, todavia, a fragmentao dafilosofia atual e grande divergncia em relao s diversas posies filosficas trata-se, ainda, de uma maioriaconsidervel.
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em nome daquele slogan. E, como a paz mundial, uma vez que voc comea aespecificar concretamente exatamente o que ele envolve e como consegui-lo, torna-se cada vez mais difcil alcanar e sustentar um consistente e exclusivonaturalismo.
A utilizao do termo Naturalismo em histria da filosofia tem sidobastante ampla e plurvoca. Como observa P. F. Strawson (2008, p. 11): O termo naturalismo
tem um uso elstico. O fato de ter sido aplicado obra de filsofos com to pouco em comum
quanto Hume e Spinoza suficiente para sugerir a necessidade de se distinguir entre
variedades do naturalismo. Alm de Spinoza e Hume, referidos por Strawson, j foram
agregados sob o nome do Naturalismo filsofos como: Tales, Anaximandro, Anaxmenes,
Herclito, Lucrcio, Epicuro, Empdocles, Leucipo, Descartes, Locke, Kant, Leibniz,
Bentham, Mill, Stuart Mill, Dewey, Quine, e a lista segue. Fica o desafio para o leitor de3
identificar o que esses autores possuem em comum que os permita ser chamados de
naturalistas.
O objetivo desta dissertao, entretanto, tentar caracterizar no o
Naturalismo ao longo de toda a histria da filosofia, mas o Naturalismo na filosofia analtica
contempornea, cujas razes mais imediatas se encontram na filosofia do final do sculo XIX
e no incio do sculo XX . Porm, mesmo aplicando esse recorte, verifica-se que a tarefa4
continua espinhosa. Curiosamente, essa dificuldade pode ser atribuda ao prprio predomnio
do Naturalismo. Conforme aponta Quentin Smith (2001), foi somente o ressurgimento de um
antigo adversrio que impulsionou a reflexo a respeito do que ele denomina de Metafilosofia
do Naturalismo. Segundo Smith, a partir do princpio dos anos 1960, os departamentos de
filosofia passaram a discutir novamente verses realistas do tesmo capitaneados por filsofos
como Alvin Plantinga. Deus no est morto na academia, ele retornou vida e est vivo e
bem em sua ltima fortaleza acadmica, os departamentos de filosofia. afirma Smith (2011).O que aconteceu foi que os filsofos testas passaram a apontar as fragilidades metafilosficas
da posio dominante, fomentando o debate sobre o que o Naturalismo e o que justifica ser
um naturalista.
Cf. REA (2002, p. 22-48) e KITCHER (1992; p. 54)3
A relao entre a filosofia analtica e o Naturalismo ainda mais significativa do que entre este e as demais4tradies filosficas. Video sugestivo ttulo de um livro recentemente editado sobre o tema: Analytic Philosophywithout Naturalism, CORRADINI, GALVAN e LOWE (2006)
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Como foi possvel antecipar, o Naturalismo guarda uma relao de oposio
ao Tesmo. Isso porque, conforme argumentaremos neste captulo, aquele pode ser
caracterizado por dois temas: o primeiro a exaltao da cincia como nica forma de
conhecimento confivel; e o segundo a rejeio da existncia de seres sobrenaturais,
consequentemente, a rejeio das vises de mundo religiosas. Analisemos, portanto, cada um
desses temas em sequncia.
1.1. Naturalismo como viso de mundo cientfica
A cincia - em especial as cincias naturais a forma de conhecimento
mais prestigiada nos dias de hoje. No sem razo. Em alguns sculos, a pesquisa cientfica
nos levou ao conhecimento de um grande nmero de coisas que antes nos pareciam
completamente inacessveis. A cincia permitiu o conhecimento sobre o muito grande: os
astros, as galxias, o universo; e sobre o muito pequeno: as molculas, os tomos, as
partculas subatmicas. Graas cincia, temos um controle sobre a natureza que nuncativemos antes e que nossos antepassados mal podiam imaginar. A cincia promoveu um alto
grau de conforto para a humanidade. Como afirmou Eric Hobsbawn (1995, p. 253), hoje um
cidado de classe mdia de um pas desenvolvido tem mais conforto e opes de
entretenimento do que um imperador dos sculos XIX e anteriores. Alm disso, a cincia
tornou possvel a cura de doenas que antigamente dizimavam populaes inteiras. E as
perspectivas atualmente continuam melhorando e o impossvel se torna, continuamente,
possvel.
Isso no significa que a prpria cincia no gerou problemas. O aumento
das potencialidades do ser humano por ela provocada levou ao desenvolvimento de armas
mais potentes do que nunca. O sculo XX viu a cincia desenvolver a capacidade de nos
autodestruirmos e viveu sob a sombra dessa perspectiva. A pesquisa em medicina algumas
vezes provocou mais dano do que benefcio. Para lembrar um exemplo, a talidomida,
substncia desenvolvida como sedativo e comercializada a partir da segunda metade dos anos
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1950 com a vantagem de causar poucos efeitos adversos, revelou tardiamente uma
propriedade teratolgica que marcou uma gerao inteira de bebs com defeitos genticos.
Contudo, no foi por isso que deixamos de fazer cincia. O evento com atalidomida, de um modo trgico, ensinou a pesquisa mdica a apurar os testes de segurana
dos medicamentos em desenvolvimento e a possibilidade da autodestruio aumentou
consideravelmente a conscincia coletiva a respeito das consequncias ticas do
empreendimento cientfico, com a elaborao de solues cientficas para evitar desastres. A
perspectiva a de que, se a cincia provoca alguns problemas, ela mesma tem o condo de
resolv-los.
Por outro lado, a antiga disciplina acadmica chamada Filosofia no teve a
mesma sorte. No sculo XVII, Rene Descartes (2004 [1637], p. 40-41) fez o seguinte
diagnstico em O Discurso do Mtodo:
Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos maiselevados espritos que viveram desde muitos sculos e que, apesar disso, nela aindano se encontra uma nica coisa a respeito da qual no haja discusso, econseqentemente que no seja duvidosa, eu no alimentava esperana alguma deacertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opinies distintas,defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto, sem
que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso tudoquanto era apenas provvel.
Desde ento, a impresso de que pouca coisa mudou, apesar do esforo
dos filsofos modernos. Com o desenvolvimento da cincia moderna, especialmente da fsica
newtoniana, tendo em mente que na poca a cincia e a filosofia no eram ainda tratadas
como disciplinas diferentes , muitos enxergaram uma nova perspectiva para a filosofia. Kant5
(2005 [1781], p. 38-39) percebeu que a filosofia deveria aprender com a cincia moderna, que
havia encontrado um caminho seguro para o conhecimento:
Eu deveria achar que os exemplos da Matemtica e da Cincia da Natureza que setornaram o que agora so por uma revoluo levada a efeito de uma s vez, seriamsuficientemente notveis para fazer meditar acerca do elemento essencial datransformao da maneira de pensar que lhes foi to vantajosa e, na medida em queo permite a sua analogia com a metafsica como conhecimentos da razo, para imit-las nisso ao menos como tentativa.
Com o impulso fornecido por Kant e anteriormente por Hume, a filosofia
passou a ceder espao para a cincia. Em primeiro lugar, a metafsica foi deixada de lado para
Para verificar isso basta notar que o ttulo do magnum opus de Newton Os Princpios Matemticos de5
Filosofia Natural
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dar lugar fsica moderna. A especulao a priorisobre a estrutura ontolgica do mundo em
que consistia a metafsica levou a diversos becos sem sada e se mostrou infrutfera. S havia
um modo de conhecer o modus operandi do mundo: atravs da experincia, e a cincia
construiu-se sobre as melhores prticas experimentais.
Entretanto, a filosofia manteve para si alguns espaos privilegiados.
Primeiramente, a epistemologia se tornou a rainha das disciplinas filosficas: o papel do
filsofo era refletir sobre os limites do conhecimento, o que se pode e o que no se pode
conhecer, o que diferencia conhecimento de mera crena verdadeira. Em seguida, veio a
filosofia da linguagem: todo pensamento humano est permeado de linguagem, desde a
cincia at a religio, e o funcionamento da linguagem condiciona at mesmo as prticas
experimentais da cincia. Porm, novamente a cincia mostrou seus mritos e o
desenvolvimento da Psicologia Cognitiva e da Lingustica perigosamente ameaam invadir o
campo que os filsofos esperavam reservar para si. Por fim, at mesmo a tica, territrio
acadmico tipicamente filosfico ainda nos dias de hoje, tem sido objeto de interesse cada vez
maior para a explicao cientfica.
Ao contrrio do que se possa esperar, muitos filsofos dizem amm a
isso: esses filsofos so os naturalistas. Segundo Willard van Orman Quine, o mais
emblemtico representante do Naturalismo , a filosofia deve rejeitar a tarefa de ser uma6
reflexo de ordem superior cincia, o que ele chama filosofia primeira: aquela deve ser
contnua com esta. A filosofia no pode servir como fonte de justificao superior cincia.
Nessa viso, a razo pela qual a cincia no pode ser justificada por uma autoridade superior
que no existe autoridade superior cincia, afirma REA (2002, p. 44), ao descrever a
posio de Quine.
A rejeio de Quine filosofia primeira est ligada tese do holismo
confirmacional. A ideia a de que nenhuma hiptese cientfica isolada pode gerar previses
testveis cientificamente. Para gerar previses, as hipteses precisam ser combinadas com
outras chamadas auxiliares. Essas hipteses auxiliares podem ser a respeito tanto da
confiabilidade dos instrumentos de medio utilizados no teste emprico, quanto das leis
Quine a figura mais associada com o Naturalismo na contemporaneidade. Ele, contudo, teve antecessores6ilustres que anteciparam muitas de suas concluses, entre eles, Roy Wood Sellars (1944), Ernest Nagel(1954-1955) e O. K. Bouwsma (1948). Para uma apreciao histrica do Naturalismo pr-Quine, conferir Kim(2003).
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fsicas mais gerais e at da prpria matemtica e lgica utilizadas no raciocnio. Por exemplo,
se algum quisesse testar empiricamente uma hiptese cientfica a respeito da posio de
Vnus em relao Terra, no poderia test-la em isolamento, uma vez que seria necessrio
pressupor que o aparelho utilizado para observao confivel; que as Leis de Newton so
verdadeiras; que a matemtica envolvida nos clculos que determinam o posicionamento so
vlidos, e; que a lgica utilizada no raciocnio adequada para modelar a situao.
Por outro lado, assim como no possvel testar uma hiptese cientfica
isoladamente, a reviso de uma teoria cientfica diante de um erro de previso emprica pode
ocorrer no nvel da hiptese imediatamente envolvida ou no nvel das hipteses auxiliares.
Um caso notvel de reviso cientfica no nvel das hipteses auxiliares diante de uma previso
cientfica no concretizada a descoberta de Netuno. Em meados do sculo XIX, os
astrnomos verificaram que a rbita do planeta Urano em torno do Sol no ocorria conforme
previa a teoria newtoniana da gravitao universal. Ao invs de considerarem que a teoria de
Newton estava errada, os astrnomos John Couch Adams e Urbain Le Verrier
independentemente postularam a existncia de um novo planeta cuja atrao gravitacional
seria responsvel por desviar a rbita de Urano, mesmo no sendo possvel observ-lo.
Segundo Quine, esse exemplo mostra que o cientista quando defrontado
com uma previso no concretizada tem vrias possibilidades de reviso terica. Ele pode
revisar a hiptese diretamente envolvida ou hipteses auxiliares de vrios nveis. Os
astrnomos no caso do descobrimento de Netuno poderiam revisar a hiptese de que os
telescpios utilizados para observar a rbita de Urano eram confiveis, ou podiam propor uma
exceo ad hoc lei de gravitao universal ou, ainda, podiam adicionar uma hiptese muito
mais exdrla, mas que resolveria o problema especfico do mesmo jeito, como a de que Urano um planeta com esprito rebelde que gosta de quebrar as regras de vez em quando. A teoria
subdeterminada pela experincia.
Em contrapartida, isso tambm significa, segundo Quine, que as hipteses
mais gerais e abstratas, como as da filosofia, tambm so testveis empiricamente no mesmo
sentido em que as leis cientficas mais gerais so testveis em combinao com hipteses
cientficas mais especficas para gerar previses. As hipteses inobservveis, utilizando o
linguajar quineano, completam os interstcios das teorias e em conjunto com as hipteses
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observveis geram outras hipteses observveis (QUINE, 1995). Nem mesmo as proposies
consideradas analticas fogem a essa regra. Como bastante conhecido, Quine, em Dois
dogmas do empirismo, rejeita a tese de que as proposies analticas so verdadeiras por
conveno ou em virtude somente do seu significado. Segundo ele, a dicotomia analtico-
sinttico no bem fundada. A nica diferena entre as, assim chamadas, proposies
analticas e sintticas seria que estas esto na periferia do sistema e aquelas no centro:
Se essa viso correta, equivocado falar do contedo emprico de um enunciado em particular quando se trata de um enunciado inteiramente distante da periferiaexperimental do campo. Alm disso, tolice procurar uma fronteira entreenunciados sintticos, que se baseiam de maneira contingente na natureza, eenunciados analticos, que so vlidos acontea o que acontecer. Qualquerenunciado pode ser considerado verdadeiro, acontea o que acontecer, se fizermos
ajustes drsticos o suficiente em outra parte do sistema. Mesmo um enunciado muitoprximo da periferia pode ser considerado verdadeiro diante de uma experinciarecalcitrante, alegando-se alucinao ou modificando-se certos enunciados quechamamos de leis lgicas. Inversamente, pela mesma razo, nenhum enunciado estimune reviso. At mesmo a reviso da lei lgica do terceiro excludo foi propostacomo meio para simplificar a Mecnica Quntica; e que diferena h, em princpio,entre essa alterao e a alterao pela qual Kepler substituiu Ptolomeu, Einsteinsubstituiu Newton, ou Darwin substituiu Aristteles. (QUINE, 2011[1953], p. 67-68)
A metfora proposta por Quine a de que enxerguemos a cincia como um
conjunto de crculos concntricos em que a lgica e a matemtica se encontram no centro e
esto, portanto, mais distantes da experincia, e as hipteses observacionais se encontram na
borda, mais perto da experincia, com algum(ns) outro(s) crculo(s) entre os dois extremos,
contendo talvez as leis fsicas mais gerais e etc. Todas as camadas so testveis
experimentalmente pelo mtodo das cincias e so, logo, revisveis. Em suma, o mtodo de
justificao da filosofia no deve ser outro seno o cientfico.
Um problema que decorre da tese holista combinada com a
subdeterminao da teoria pela experincia a de como devemos escolher as diversas teoriasrivais que pretendem emergir da reviso terica. Como visto, diante da no concretizao de
uma previso decorrente de uma teoria cientfica, o cientista tem vrias opes do que revisar.
Quais regras devem guiar o cientista no momento de revisar as hipteses envolvidas? Ou
devemos nos conformar com o arbtrio?
Aparentemente, est aberto o caminho para reintroduo da filosofia
primeira que Quine tanto quis evitar. Seria o papel da filosofia estabelecer as regras que
informam a reviso terica? Como de se esperar, a resposta de Quine no. Segundo o
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influente filsofo naturalista, a deciso a respeito de que hipteses devem ser revisadas deve
basear-se em critrios meramente pragmticos.
Quine dedicou-se, ento, tarefa de naturalizar a filosofia e a primeiradisciplina filosfica que se props a naturalizar foi a epistemologia. Num texto clssico da
filosofia contempornea, intitulado Epistemology Naturalized, o filsofo americano defende
que as tentativas da epistemologia tradicional de refutar o ceticismo, fundamentar a cincia e
resolver o problema da induo, todas falharam. Diante desse fracasso, Quine prope que, em
vez de se fixar nas questes tradicionais, a epistemologia se concentre em explicar como
ocorrem as experincias sensoriais e qual a relao causal entre o limitado inputsensorial
que nos serve de evidncia para o mundo e o vasto output terico que formamos sobre o
mundo. Em outras palavras, ele argumenta em favor de uma aproximao entre epistemologia
e psicologia, seno da substituio da primeira pela segunda.
Nesse esprito, Quine prope que a epistemologia parta de teses cientficas
aceitas para fundamentar suas teses. O filsofo naturalista defende, por exemplo, que
tentemos entender a induo a partir de bases evolucionistas, levando em considerao que a
capacidade de fazer boas indues adaptativamente vantajosa. A virtude dessa abordagem
a capacidade que ela tem de resolver alguns dos problemas da tradicional teoria do hbito de
Hume: 1) de que fazemos indues com um nmero muito pequeno de ocorrncias passadas
em que dois eventos se seguiram temporalmente, e; 2) do fato de que at crianas muito
pequenas so aparentemente capazes de fazer raciocnios indutivos com sucesso.
O projeto de naturalizao da filosofia tem sido, desde ento, uma
empreitada muito popular em filosofia e no incomum encontrar livros publicados por
grandes editoras acadmicas que mimetizam o ttulo do clssico texto de Quine . O7
Naturalismo propagado por Quine (1995; p. 251) tem um forte elemento metodolgico que se
expressa nesta eloquente passagem:
Em Theories and thingseu escrevi que o naturalismo o reconhecimento de que dentro da prpria cincia, e no em alguma filosofia primeira, que a realidade deve
Exemplos desse fenmeno so:Every thing must go: Metaphysics Naturalizedde Ladyman et al (2007).; The7
bodhisattvas brain: Buddhism Naturalized de Flanagan (2011); Intending and Acting: Toward a NaturalizedAction Theoryde Brand (1984); Aesthetics and Material Beauty: Aesthetics Naturalizedde McMahon (2007);Naturalized Bioethics: Toward Responsible Knowing and Practicede Lindemann et atii (2008).; NaturalizingJurisprudence: Essays on American Legal Realism and Naturalism in Legal Philosophy de Leiter (2007);Naturalizing the Mind de Dretske (1997); Naturalizing Epistemology de Kornblith (1994); NaturalizingPhilosophy of Educationde Popp (1998), somente para citar alguns.
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ser identificada e descrita, novamente que o abandono da meta de uma filosofiaprimeira anterior cincia natural
Naturalismo , portanto, uma espcie de monismo metodolgico que
reconhece que o nico caminho para o conhecimento atravs do mtodo cientfico: ou a
filosofia encontra o seu caminho dentro das cincias - sendo ela mesma um ramo da cincia -
ou ela est fadada a permanecer no estado de estagnao, confuso e discrdia em que ele a
percebe nos moldes no-naturalistas. O grande argumento em favor do naturalismo
metodolgico , conforme visto, a constatao do progresso da cincia em comparao com a
relativa falta de progresso na filosofia.
No mesmo sentido de Quine, o tambm naturalista Michael Devitt (1998;
45) afirma que existe somente um modo de saber: o modo emprico que a base da cincia
(qualquer que seja esse modo). Por fim, tambm nessa linha, Papineau (2011) : Naturalistas
metodolgicos veem filosofia e cincia engajadas no mesmo empreendimento, perseguindo
fins similares e usando mtodos similares .8
No entanto, alm de uma tese metodolgica, o naturalismo como viso de
mundo cientfica tambm engloba uma tese ontolgica ou metafsica, ou seja, uma tese arespeito do que composta a realidade. Segundo Stroud (2004), o Naturalismo ontolgico
mais antigo do que o metodolgico e est longe que de ser uma novidade no meio acadmico.
Frequentemente, o Naturalismo ontolgico identificado com a tese de que
a natureza tudo o que existe. Tudo estaria bem se o prprio conceito de natureza no
trouxesse tantas ou mais dificuldades do que o conceito a ser analisado. Muitas vezes os
naturalistas evocam a oposio entre natural e sobrenatural para delimitar o que se quer dizer
com natureza, da se tem uma ideia negativa do conceito: tudo que no sobrenatural
natureza. Outros filsofos procuram oferecer uma descrio positiva de o que natureza.
Uma dessas tentativas ficou to fortemente ligada ao Naturalismo que muitas vezes
identificada a ele: o materialismo ou, seu herdeiro contemporneo, o fisicalismo. O
fisicalismo insiste que tudo que existe fsico.
Antes de Quine, Sidney Hook (apud BOUWSMA, 1948, p. 12): O que une todos eles a inteira aceitao do8mtodo cientfico como a nica maneira confivel de alcanar a verdade sobre mundo, natureza, sociedade ehomem. O mnimo denominador comum de todos os naturalismos histricos, portanto, no tanto um conjuntode doutrinas especfico quanto o mtodo do empirismo cientfico ou racional.
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A fsica, pelo menos desde o incio do sculo XX, adquiriu uma posio de
proeminncia dentre as demais cincias. A esperana de muitos cientistas era a de que, com o
avano das pesquisas, seria possvel unificar todas as cincias, e a principal candidata para
exercer o papel de cincia unificadora era a fsica. No era sem razo. O progresso da fsica
tornou possvel a reduo de vrios conceitos de outras cincias a conceitos fsicos e a
perspectiva de que toda a realidade podia ser descrita por meio do comportamento das suas
partculas mais bsicas alimentava ainda mais essa esperana. Com base nisso, muitos
naturalistas passaram a adotar, no esprito de sua admirao pelas cincias naturais, a tese de
que toda a realidade consiste nas entidades admitidas pela fsica.
O fisicalismo cumpriu um papel especialmente importante em filosofia da
mente na crtica da antiga tradio do dualismo mente-corpo. Para ser coerente com os
resultados da cincia, seria preciso admitir, na viso fisicalista, que mente e corpo so
idnticos e aquelas propriedades que parecem distintamente mentais meramente sobrevm
sobre o fsico. A mente enquanto substncia qualitativamente diferente do fsico, no teria
espao numa viso de mundo cientfica.
O prprio Quine (1995; p. 257) admitia que a nica posio ontolgica
coerente a um naturalista, dado o estado da arte da cincia em seus dias, era o fisicalismo,
contudo se recusa a admitir a identidade:
Naturalismo naturalmente associado com fisicalismo, ou materialismo. Eu noidentifico um com o outro...Eu abrao o fisicalismo como posio cientfica, mas
poderia ser dissuadido dele em bases cientficas futuras sem ser dissuadido donaturalismo. A Mecnica Quntica hoje, com efeito, em sua interpretaoneoclssica ou de Copenhagen, tem um tom distintamente mentalstico.
Para Quine, assim como para muitos outros filsofos, embora o fisicalismoseja a posio mais coerente com a cincia, nada garante que a cincia no possa mudar para
admitir novamente algum tipo de dualismo em filosofia da mente. Como o naturalista est
vinculado cincia, ele no pode se aferrar ao fisicalismo como a ltima palavra em
ontologia, mas deve ficar aberto a possveis mudanas nos rumos da cincia.
Ademais, a preeminncia da fsica sobre as demais cincias est longe de ser
uma unanimidade nos dias de hoje. Richard Dawkins (1986), em The Blind Watchmaker,
defende que, ao explicar seres biolgicos, o cientista lana mo de tipos de explicao
diversos dos da fsica. O bilogo britnico argumenta que diferentes graus de hierarquia de
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complexidade so explicados de formas diferentes, sendo um engano acreditar que a
explicao do comportamento dos nveis mais simples d conta, em isolamento, dos nveis
superiores, o que ele chama de big-step reductionism ou o que Daniel Dennett (1995), no
mesmo tom, chama de greddy reductionism. Dennett vai ainda mais longe ao advogar que o
darwinismo uma espcie de cido universal, que corri todas as coisas. Segundo o filsofo
americano, o darwinismo, uma teoria biolgica, conforma a realidade de forma to ou mais
bsica do que as teorias fsicas.
Cumpre concluir, ento, que o Naturalismo ontolgico, no obstante
historicamente afeto ao materialismo e ao fisicalismo, no se identifica com ele.
Possivelmente, a melhor definio do Naturalismo ontolgico foi cunhada por Wilfrid Sellars
(1963; p. 173) em Empiricism and philosophy of mind: Cincia a medida de todas as
coisas, daquilo que , que , e daquilo que no , que no . Em outras palavras, o naturalista
deve admitir como existente aquilo que a cincia admite e como inexistente aquilo que a
cincia no admite. O filsofo deve receber sua ontologia da cincia e com ela trabalhar. Se a
cincia fisicalista, como reconhecia Quine, ento preciso ser fisicalista. Se a cincia
mentalista, preciso ser mentalista. Se a cincia materialista, preciso ser materialista. Se a
cincia idealista, necessrio ser idealista. Schmitt (1995; p. 343) resume essa ideia da
seguinte maneira: Uma vez que o naturalismo ontolgico apoiado pelo sucesso da cincia
natural, e sucesso sucesso em reconhecer o que real, seria melhor definir natural como
aquilo que reconhecido pela cincia natural. S a natureza existe e a natureza o
conjunto daquilo que reconhecido pela cincia.
O Naturalismo segundo seu tema cientfico, portanto, compreende ao menos
duas teses principais: a primeira, metodolgica, que reconhece a cincia como o nicocaminho para o conhecimento e que pretende que a filosofia se reconhea como
empreendimento contnuo a ela; a segunda, metafsica, que afirma o conjunto das coisas que
existem coincide com o conjunto dos entes reconhecidos pela cincia, ressaltando que esse
conjunto mutvel e se altera conforme o progresso da investigao cientfica.
Chamamos o Naturalismo, no ttulo dessa seo, de viso de mundo.
Entendemos viso de mundo como uma forma de enxergar a totalidade da realidade, que
podem se expressar conjunto de teses que orientam a forma como um indivduo entende e
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interage com o mundo em todas as reas de sua vida . O Naturalismo, como tese geral sobre9
como podemos conhecer e sobre o que existe, pode ser chamado de viso de mundo nesses
termos, uma vez que o Naturalismo influencia a forma como entendemos o mundo, ns
mesmos e os outros em todos os domnios do conhecimento e da ao . Uma das10
caractersticas marcantes dessa viso de mundo a profunda estima pela cincia e pelos seus
sucessos. Da poder-se caracterizar o Naturalismo como viso de mundo cientfica.
1.2. Naturalismo como viso de mundo antirreligiosa
Alm de uma elevada estima pelas capacidades da cincia de conhecer e
definir a realidade, o Naturalismo tambm conhecido pela sua oposio ao sobrenatural.
Conforme, mencionado anteriormente, ao invs de fornecer uma definio positiva do que
significa natureza, muitos filsofos se conformam em oferecer uma definio negativa:
natureza tudo que no sobrenatureza. O espectro do sobrenatural, contudo, nunca bem
delimitado. Alguns casos paradigmticos de sobrenatural sempre vm mente, como Deus,
deuses, fantasmas, anjos, demnios, almas, duendes, fadas etc. Como se pode perceber, a listaparece sempre fazer referncia a entes extrados das religies mundiais.
De fato, a ligao entre Naturalismo e antirreligiosidade to antiga quanto
sua ligao com a cincia. Segundo Michael Rea (2002), a rejeio da existncia de seres
sobrenaturais a tese mais amplamente aceita pelos naturalistas. Segundo Stroud (2004; p.
22), A maioria dos filsofos h pelo menos cem anos tem sido naturalistas no sentido de no-
sobrenaturalistas. A fora da tese antirreligiosa do Naturalismo pode ser ilustrada pelas
concluses de um recente congresso a respeito do Naturalismo intitulado Moving Naturalism
Forward. Segundo Sean Carroll (2012), embora tenha sido reconhecido que houvesse uma
pluralidade de conceitos possveis de Naturalismo em que pudesse haver discrdia, os
participantes admitiram que possvel saber quem naturalista e quem no baseado no
Conforme observou o Prof. Dr. Marciano Spica em comunio pessoal com o autor, as vises de mundo nem9
sempre se expressam por meio teses, podendo ser exclusivamente pr-tericas. Quando elas se expressam por
meio teses, justamente no af de se tornarem racionalmente coerentes e defensveis.
ErnestNagel (1954-1955; p. 7): Na minha concepo, de qualquer maneira, o naturalismo abraa um relato10geral do esquema csmico e do lugar do homem nele, bem como da lgica da pesquisa.
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critrio do reconhecimento da existncia ou no de um componente sobrenatural na
realidade. Consoante a isso, Alvin Plantinga (2011b, p. ix) define o Naturalismo como:
...o pensamento de que no existe nenhuma pessoa como Deus, ou qualquer coisasemelhante a Deus. Naturalismo mais forte que o atesmo: voc pode ser um ateusem subir s maiores alturas (descer aos mais fundos abismos?) do naturalismo; masvoc no pode ser um naturalista sem ser um ateu.
O naturalista Paul Draper (2005; p. 279) argumenta que o Naturalismo pode
ser definido em oposio ao sobrenatural de acordo com uma tese metodolgica e uma tese
ontolgica:
Naturalismo metodolgico =df. cientistas no devem apelar a entidadessobrenaturais ao explicar fenmenos naturais.
Note-se que algum pode ser um naturalista metodolgico conforme esta definio,mesmo se ele acredita que permissvel para explicaes cientficas se referir aentidades no-naturais. Uma vantagem disso que algumas das entidades abstratas(e.g., nmeros) paras as quais a cincia rotineiramente apela podem muito bem serno-naturais.
Naturalismo metafsico definido como se segue:
Naturalismo metafsico =df. Entidades sobrenaturais no existem.
Note-se que, nessa definio, possvel ser um naturalista metafsico sem objetar realidade de entidades no-naturais.
Embora faa referncia aos cientistas, a definio de Draper do Naturalismo
metodolgico tambm pode ser estendida aos filsofos, bastando acrescentar a clusula e
filsofos ao texto definitrio logo aps cientistas.
Daniel Dennett (2011; p. 48-49) defende uma noo de Naturalismo
metodolgico semelhante de Draper, conforme se pode verificar no trecho transcrito abaixo:
Plantinga diz que minha afirmao de que o naturalismo tacitamente assumido nostribunais e em toda a investigao cientfica obviamente falsa. Em fsica, por
exemplo, no assumido que no existe pessoa tal como Deus (p .42). Realmente?Nem tacitamente? Quando um fsico prova que uma pedra solta de uma alturacair com acelerao de 9.8 metros/segundo, ele no assume tacitamente quenenhuma pessoa (p.ex., Deus) intervir para ajustar a taxa? Fsicos no adicionamrotineiramente uma clusula de escape, ao menos que Deus intervenha, porque tacitamente assumido que nenhuma possibilidade assim tomada seriamente. Aquiest o que o bilogo J. B. S. Haldane disse diretamente sobre esse assunto em 1934:
Minha prtica como cientista atia. Isto , quando eu monto umexperimento, eu assumo que nenhum deus, anjo, ou demnio vai interferircom seu curso; e essa presuno foi justificada pela sucesso que experimenteiem minha carreira profissional. Eu seria, portanto, desonesto intelectualmentese tambm no fosse atesta nos assuntos mundanos.
Dennett defende que as explicaes baseadas na interveno de seres
sobrenaturais como Deus so simplesmente ridculas demais para serem tomadas seriamente.
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Por isso, o cientista, assim como juiz, faz bem em simplesmente ignorar a hiptese a priori.
Como fica demasiado claro do trecho citado, Dennett conecta o Naturalismo como viso de
mundo antirreligiosa com a ideia de Naturalismo como viso de mundo cientfica.
Retornaremos a esse assunto muito em breve. guisa de concluso, porm, podemos afirmar
que o Naturalismo como viso de mundo antirreligiosa consiste em duas teses: uma
metodolgica e outra metafsica, conforme definidas por Paul Draper. Como possvel
perceber, o Naturalismo visto pelo prisma antissobrenaturalista, reveste-se de um carter
negativo: ele nos diz o que no compe o conjunto daquilo que existe e o que no deve ser
feito pelo filsofo ou pelo cientista ao explicar o mundo.
1.3. O relacionamento entre cincia e religio
Ao caracterizar o Naturalismo como viso de mundo cientfica e
antirreligiosa, pode-se ter a impresso de que os dois temas no se conectam claramente, de
modo que se possa perceber porque os naturalistas de um modo geral aceitam
simultaneamente uma e outra vises como uma s. Aparentemente, haveria duas acepes
completamente diversas do Naturalismo, sendo necessrio qualificar, para tornar clara a
discusso, se se trata da tese cientificista ou antirreligiosa. No entanto, h, na verdade, uma
tese que unifica esses dois temas clssicos: o conflito entre religio e cincia.
Ian Barbour (1997) afirma que existem quatro maneiras de enxergar o
relacionamento entre cincia e religio na histria: conflito, independncia, dilogo e
integrao. A tese do conflito afirma que cincia e religio so esforos em direes opostas eque esto destinadas a colidir de uma forma ou de outra, logo o triunfo de uma significa,
imediatamente, a derrota da outra. A tese da independncia , de certo modo, o oposto do
conflito. A ideia dos defensores dessa posio a de que cincia e religio no se sobrepem,
elas possuem mtodos e objetos completamente diferentes e, por isso, o conflito entre elas no
s no acontece como impossvel. O mais conhecido proponente dessa tese o paleontlogo
Stephen Jay Gould. J a tese do dilogo afirma que religio e cincia podem fecundar-se
mutuamente, a cincia pode abrir novos caminhos metodolgicos para a religio e iluminar
itens da f por outras perspectivas, motivando inclusive sua modificao; a religio por sua
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vez tambm pode alterar o pensamento cientfico por meio de sua viso de mundo. Hooykaas
(1988), por exemplo, argumenta que o prprio surgimento da cincia moderna se deu sob os
auspcios do cristianismo, que forneceu-lhe a base para o desenvolvimento cujos elementos
no estavam presentes na cultura clssica. Por fim, a tese da integrao consiste em que
religio e cincia colaboram de forma direta. Barbour cita como exemplo clssico de
integrao a teologia natural, ou seja, a tentativa de provar a existncia de Deus somente com
base na razo e nas evidncias desveladas pela cincia.
Os partidrios do conflito entre cincia e religio usualmente marcam a data
de publicao de A origem das espcies (1859) de Charles Darwin como o marco da vitria
final da cincia sobre a religio. A campanha de conquista, contudo, havia comeado muito
antes. Dois exemplares notveis de relatos da histria da conquista da religio pela cincia so
o livro de John William Draper denominado Histria do conflito entre religio e cincia de
1874 eHistria da guerra entre cincia e teologia na cristandadede Andrew Dickson White,
publicado originalmente em 1896. Esses relatos, no raramente, apresentam ao leitor um
panorama heroico a respeito de como a razo progressivamente venceu as trevas do
pensamento religioso tradicional. O julgamento de Galileu, por exemplo, narrado por
Draper com cores fortes e uma oposio clara entre o lado que representava a luz da razo e o
que representava as trevas da superstio. Outra ocasio que ganha destaque, especialmente
no livro de White, o debate entre Thomas Henry Huxley e Samuel Wilberforce, bispo de
Oxford, a respeito da teoria da evoluo. Bertrand Russell (1997; p. 244) tambm contribuiu
com uma histria do conflito entre religio e cincia, cuja concluso ele resumiu da seguinte
forma:
Nas pginas anteriores, ns traamos, em breve perfil, alguns dos mais notveisconflitos entre telogos e homens de cincia durante os ltimos quatro sculos, e nstentamos estimar a relao entre a cincia atual e a teologia atual. Ns vimos que, no
perodo desde Coprnico, sempre que cincia e teologia discordavam, a cincia seprovou vitoriosa. Vimos tambm que, onde questes prticas estiveram envolvidas,como em bruxaria e medicina, a cincia se posicionou a favor da diminuio dosofrimento enquanto a teologia encorajou a selvageria natural do homem. Aexpanso da perspectiva cientfica, em oposio teolgica, at agora contribuiuindisputavelmente para a felicidade.
O advento da teoria da evoluo de Darwin teve um papel especial no
desenvolvimento da tese do conflito entre cincia e religio porque permitiu a explicao da
origem das espcies, em sua complexa diversidade, sem o apelo interveno divina. Antes
de Darwin, William Paley se notabilizou por elaborar uma minuciosa defesa da existncia de
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Deus baseada na impressionante complexidade e funcionalidade do designdos seres vivos.
Paley, utilizando-se de conhecimentos biolgicos impressionantemente vastos para a poca,
argumentou que os seres vivos se assemelhavam s mquinas produzidas pelo intelecto
humano como, por exemplo, os relgios, s que com um grau de complexidade muito maior
do que qualquer artefato manufaturado por homens; por isso, deveramos inferir que h um
grande intelecto por detrs da vida na Terra. Darwin, por sua vez, teria mostrado que
possvel explicar toda a complexidade presente nas espcies biolgicas sem recurso a uma
divindade. Laplace conhecido por ter dito que Deus uma hiptese desnecessria , mas11
somente Darwin teria tornado Deus efetivamente desnecessrio em cincia.
Dennett (1995) argumentou que Darwin permitiu uma inverso da pirmide
csmica. At o desenvolvimento da teoria da evoluo, a viso dominante levava em
considerao a primazia da mente sobre a matria. Em primeiro lugar existiu a mente divina
que tornou possvel a existncia da matria, do designdos seres vivos e de outras mentes por
meio do nada ou do caos. O darwinismo inverte essa pirmide afirmando a primazia da
matria sobre as mentes. Foi a matria que deu origem s mentes atravs do design, que
emerge a partir do laborioso trabalho da seleo natural agindo sobre mutaes aleatrias por
um longo tempo.
Para Dennett, Darwin mostrou que no s possvel explicar o mundo sem
Deus, como tambm que Deus no explicao nenhuma. O filsofo americano prope a
seguinte imagem para comparar as explicaes cientficas e as explicaes sobrenaturais. As
explicaes sobrenaturais seriam como ganchos do cu (skyhooks), que Dennett explica serem
entidades folclricas com origem na aeronutica que consistem em ganchos que descem do
alto para sustentar ou levantar materiais. Os ganchos do cu no so presos a nada,simplesmente pendem do cu sem apoio. J as explicaes cientficas so guindastes (cranes),
estruturas que esto apoiadas no solo e que servem para a construo de prdios ou at mesmo
de outros guindastes maiores. Ao contrrio dos ganchos do cu, os guindastes derivam a
explicao de sua existncia de outros guindastes menores que so, por sua vez, eles mesmos
derivados dos movimentos bsicos, cegos e destitudos de propsito que constituem o
universo. Tanto guindastes quanto ganchos do cu so aparentemente capazes de construir
Cf. BARBOUR (1997; p. 35)11
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prdios, ou seja, ambos so aparentemente capazes de explicar o design no universo e,
especialmente, no mundo biolgico. Contudo, os ganchos do cu so inexplicveis e explicam
o designde maneira insatisfatria, por mero fiat. Segundo Dennett (1995; p. 74), os ganchos
do cu tm pelo menos uma vantagem muito clara, eles tendem a dar respostas fceis:
ganchos do cu seriam coisas maravilhosas de se ter, excelentes para levantar objetos difceis
de carregar em circunstncias difceis e para agilizar todos os tipos de construo. Contudo,
ressalta Dennett, eles so imaginrios e ganchos imaginrios no fazem construo alguma:
milagres no explicam nada e no precisamos mais deles.
Grande parte dos filsofos naturalistas, como o prprio Dennett, adota a tese
do conflito entre cincia em religio. Essa tese importante porque conecta os temas
cientfico e antirreligioso do Naturalismo. Se o naturalista do ponto de vista cientfico se
compromete com os mtodos e a ontologia das cincias e esta est em conflito com a religio,
seus mtodos e ontologia sero tambm antirreligiosos. Por outro lado, o naturalista segundo
o ponto de vista antirreligioso que adota a tese do conflito, enxergar no sucesso da cincia a
confirmao de suas posies ontolgica e metodolgica.
1.4. Concluso do captulo
Argumentamos neste captulo que o Naturalismo, embora seja considerado
uma espcie de ortodoxia filosfica na tradio analtica, no possui uma definio
consensual entre seus adeptos, que muitas vezes divergem sobre quais so as teses principais
que diferenciam o Naturalismo das demais posies filosficas. Em seguida, argumentamosque, a despeito das divergncias, o Naturalismo pode ser caracterizado por dois temas: a sua
simpatia pela cincia e a sua averso ao sobrenatural e ao religioso. Em ambos os temas,
emergem duas teses principais, uma de carter metodolgico e outra de carter metafsico ou
ontolgico. No primeiro tema, as teses metodolgica e metafsica podem ser enunciadas da
seguinte maneira respectivamente:
NMC (Naturalismo metodolgico segundo o tema cientfico):A cincia o
nico caminho para o conhecimento e a filosofia deve se reconhecer como
empreendimento contnuo a ela, compartilhando seus mtodos.
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NOC (Naturalismo ontolgico segundo o tema cientfico): Oconjunto dos
entes que existem coincide com o conjunto dos entes reconhecidos pela
cincia.
No segundo tema, as teses metodolgica e metafsica podem ser enunciadas,
respectivamente, do seguinte modo:
NMA (Naturalismo metodolgico segundo o tema antirreligioso):Filsofos,
assim como cientistas, no devem apelar a entidades sobrenaturais ao
explicar fenmenos naturais.
NOA (Naturalismo ontolgico segundo o tema antirreligioso):No existem
entes sobrenaturais.
Ademais, os naturalistas geralmente admitem a tese do conflito entre cincia
e religio:
TCCR (Tese do conflito entre cincia e religio: Cincia e Religio so
conflitantes
Seria um exagero afirmar que para ser um naturalista preciso aceitar aconjuno de NMC, NOC, NMA, NOA e TCCR. Diante da grande discordncia a respeito do
que significa ser um naturalista, prudente admitir uma definio disjuntiva: naturalista
qualquer um que aceite: (NMC !NOC !NMA !NOA). No entanto, um naturalista completo
aceita a conjuno das quatro teses com a harmonizao necessria que providenciada pela
TCCR.
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2. A NATUREZADONATURALISMO
Every naturalist is one who maintains an attitudesimilar to the attitude here described. He is excitedabout something. The excitement may vary inintensity, but in some degree naturalists all shareit .12
(O. K. Bouwsma, 1948)
No captulo anterior, foi proposta a existncia de quatro teses principais,
organizadas em pares conforme seus temas, que constituem a viso naturalista. Neste
captulo, vai-se tratar de algumas dificuldades inseridas nessas teses e de algumas implicaes
que elas carregam, bem como ser exposta e criticada uma maneira alternativa de entender o
Naturalismo proposta por Michael Rea em World without Design(2002).
2.1. NMC e NOC: problemas com relao ao enunciado
O primeiro problema que surge, assim que lemos o enunciado de NMC, a
sua patente autorrefutao. Essa tese afirma que a cincia o nico caminho para o
conhecimento. Acontece, portanto, que, para que NMC seja conhecimento, ela deve ter sido
comprovada pelos mtodos da cincia. Contudo, no h uma s teoria cientfica que acarrete
essa concluso. NMC, por isso, no passa nos critrios que ela mesma estabelece, uma vez
que no se chegou a ela pelos mtodos da cincia.
O segundo problema que atinge tanto NMC quanto NOC o da
ambiguidade. Elas podem ter at trs sentidos diferentes. O primeiro deles o seguinte:
Traduo: Todo naturalista algum que possui uma atitude similar atitude aqui descrita. Ele est12
empolgado em relao a algo. A empolgao pode variar em intensidade, mas em algum grau todos osnaturalistas a compartilham.
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NMC1: A cincia de 2014 o nico caminho para o conhecimento e a
filosofia deve se reconhecer como empreendimento contnuo a ela,
compartilhando seus mtodos.
NOC1: Oconjunto dos entes que existem coincide com o conjunto dos entes
reconhecidos pela cincia em 2014.
Uma das marcas do empreendimento cientfico, como costumam ressaltar os
filsofos da cincia e os prprios cientistas, o falibilismo, em outras palavras, o
reconhecimento de que as teorias cientficas podem ser falseadas pela experincia posterior e
de que os mtodos de pesquisa cientficos se alteram na histria, incorporando novosinstrumentos, aperfeioando os existentes e at mesmo descartando alguns deles. Assim, a
cincia do incio do sculo XX consideravelmente diversa da cincia do sculo XXI. Por
isso, falar de forma esttica sobre as entidades e os mtodos da cincia no parece ser
adequado. Por isso, no parece fazer justia ao naturalista enunciar suas teses conforme
NMC1e NOC1. No h nada de distintivo na cincia do ano de 2014 que permita acreditar
que os entes e mtodos por ela consagrados sero incorporados em definitivo no corpusdo
conhecimento humano. Pelo contrrio, a cincia continua modificando suas teorias, assim
como sempre o fez.
Um segundo sentido que NMC e NOC podem adquirir o seguinte:
NMC2: A cincia completa o nico caminho para o conhecimento e a
filosofia deve se reconhecer como empreendimento contnuo a ela,
compartilhando seus mtodos.
NOC2: Oconjunto dos entes que existem coincide com o conjunto dos entes
reconhecidos pela cincia completa.
Muitos cientistas vislumbram a possibilidade de que no futuro a cincia
consiga explicar todos os fenmenos de forma definitiva, tornando-se completa. Se for de fato
possvel que a cincia algum dia se torne completa (essa uma questo altamente
controversa), ento certamente o naturalista concordaria que os mtodos e a ontologia dessa
cincia futura seriam os mtodos e ontologia definitivos. Todavia, essa formulao tambm
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no pode fazer justia ao naturalista, uma vez que a expresso cincia completa ainda no
tem um referente. Por isso, NMC2 e NOC2 no tem nenhum utilidade prtica porque no
expressam nenhuma metodologia ou ontologia.
Um terceiro sentido seria o seguinte:
NMC3:A cincia atual o nico caminho para o conhecimento e a filosofia
deve se reconhecer como empreendimento contnuo a ela, compartilhando
seus mtodos.
NOC3: Oconjunto dos entes que existem coincide com o conjunto dos entes
reconhecidos pela cincia atual.
Nesse sentido, o termo atual funciona como partcula ditica modificadora
de cincia. Como se sabe, os diticos alteram a referncia do termo a que eles se referem
conforme o contexto do pronunciamento. Assim, se adotar o sentido de NMC 3 e NOC3, o
naturalista est comprometido a aceitar em 2014 os mtodos e ontologia da cincia em 2014,
em 2020, os mtodos e ontologia de 2020 e assim por diante. No contexto atual, considerando
que estamos no ano de 2014, portanto, NMC3 e NOC3 equivalem a NMC1 e NOC1,
compartilhando com eles os mesmos defeitos. Uma forma de defender NMC3e NOC3 seria
afirmar que, a cada momento em que so pronunciados, eles expressam uma proposio
verdadeira. Mas, isso seria equivalente a dizer que o conjunto de entidades varia conforme o
cientista as vai descobrindo, o que consiste basicamente em afirmar que uma entidade no
existe at que o cientista a descubra. Isso, porm, algo que nenhum naturalista est disposto
a afirmar.
O terceiro problema menos grave do que os dois primeiros, acomete
somente NOC e consiste no seguinte: o naturalista ontolgico est comprometido com a tese
do realismo cientfico. Como j visto, o Naturalismo ontolgico no tema cientfico afirma que
a cincia oferece ao filsofo um rol dos seres que existem, uma descrio completa do
mobilirio do mundo . Alguns filsofos da cincia, contudo, no concordam com a ideia de13
No mesmo sentido, LINSKY e ZALTA (1995; p. 525): Naturalismo a ontologia realistaque reconhece13somente aqueles objetos requeridos pelas explicaes das cincias naturais. (grifo nosso)
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que a cincia fornece tal rol. Pierre Duhem considerado o maior expoente dessa objeo.
Segundo ele, a cincia metafisicamente neutra. Portanto, se a imagem cientfica proposta
por Duhem for correta, NOC uma sentena vazia.
Bas van Fraassen (2007; p. 27), herdeiro da posio duhemiana em filosofia
da cincia, define o realismo cientfico da seguinte forma: [Segundo o realismo cientfico] A
cincia visa dar-nos, em suas teorias, um relato literalmente verdadeiro de como o mundo , e
a aceitao de uma teoria cientfica envolve a crena de que ela verdadeira. O antirrealismo
cientfico, que abrange vrias posies - incluindo o instrumentalismo, o convencionalismo, o
positivismo lgico e o empirismo construtivo -, contesta exatamente a ideia de que a cincia
carrega consigo as implicaes metafsicas de NOC. O positivismo lgico, por exemplo,
afirma que os seres materiais presentes nas teorias cientficas so construes lgicas
formadas com base nos dados dos sentidos . O empirismo construtivo, por sua vez, afirma14
que a cincia fornece somente teorias empiricamente adequadas . O instrumentalismo15
defende que as teorias cientficas so somente bons instrumentos de previso e sistematizao
dos relatos observacionais . Por fim, o convencionalismo argumenta que teorias cientficas16
so convenes construdas pela comunidade .17
O compromisso do naturalista que aceita NOC com o realismo cientfico
um problema para ele, na medida em que torna sua posio mais forte, mais complexa e, por
isso, menos provvel a priori. Um argumento bem-sucedido contra o realismo cientfico seria
tambm um argumento bem-sucedido contra NOC .18
Cf. SOAMES (2003; p. 256-299)14
Cf. VAN FRAASSEN (2007; p. 32-36)15
Cf. DUHEM (1954)16
Cf. YEMIMA (2006)17
Robert Koons (2000), por exemplo, argumenta que naturalismo e realismo cientfico so incompatveis.18Contudo, Koons, estranhamente, define naturalismo como a crena no fechamento causal do mundo fsico.
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2.2. O Naturalismo como programa de pesquisa
Diante das dificuldades definicionais que assombram o Naturalismo,Michael Rea (2002) props que fossem deixadas de lado as tentativas de entend-lo como
uma tese ou um conjunto de teses substantivas. Segundo ele, o Naturalismo mais bem
caracterizado como um programa de pesquisa compartilhado.
Rea afirma que pesquisa o processo pelo qual procuramos revisar nossas
crenas sobre os mais variados tpicos, desde questes filosficas at questes inteiramente
mundanas, com base naquilo que aceitamos como evidncia . A reviso de crenas pode19
acontecer por adio de novas crenas, rejeio de crenas anteriores e modificao no
contedo de crenas j tidas. Para comear uma pesquisa, no entanto, o pesquisador j precisa
ter um conjunto de disposies em relao quilo que ele vai aceitar como evidncia: quais
fontes de indcios ele tomar como bsicas. Assim, por exemplo, um apostador em corridas de
cavalos, no processo de formar crenas sobre qual cavalo tem mais chances de ganhar uma
corrida, pode aceitar como fonte de evidncia somente as probabilidades de vitria de cada
um dos cavalos baseadas em seu desempenho anterior. Outro apostador, no entanto, pode
tomar como fonte de indcio para a formao de sua crena a respeito de qual cavalo ganhar
a corrida com base num sonho revelador que ele teve na noite anterior, ou, ainda, com base no
testemunho de um colega que trabalha dos bastidores do preo de que certo cavalo, embora
usualmente lento, est especialmente bem disposto para aquela corrida. Isso tambm vale para
qualquer pessoa em sua vida cotidiana e tambm para o cientista em seu laboratrio: todos
escolhemos, reflexivamente ou no, quais fontes de indcios aceitaremos em nossa pesquisa.
A essas disposies a respeito de que fontes de indcios so aceitas basicamente, Rea d onome de disposies metodolgicas.
Segundo o autor de World without Design, um programa de pesquisa o
conjunto consistente mximo de disposies metodolgicas aceitas por um pesquisador. Um
programa de pesquisa compartilhado, por sua vez, seria o subconjunto de disposies
metodolgicas aceitas concomitantemente por um grupo de pessoas. Os programas de
pesquisa seriam pr-tericos no sentido de que se trata de algo que o pesquisador j traz
Traduzo evidencepor evidncia ou indcio19
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consigo antes de formular uma teoria e de que se trata de algo sem o qual no se podem fazer
teorias.
Alm disso, argumenta Rea, programas de pesquisa no podem ser adotadosintencionalmente com base em pesquisa, portanto no podem ser aceitos com base em
evidncia. Mas o que dizer, por exemplo, dos casos em que comprovamos que certas fontes
de indcios no so confiveis, como no caso da viso de objetos que esto parcialmente
imersos em gua e parecem estar tortos? Rea admite que possamos rejeitar programas de
pesquisa com base em evidncia, isso porque j possumos a disposio de aceitar outras
fontes de evidncia que atestam a falta de confiabilidade daquela que deve ser recusada.
Contudo, no possvel adotar um programa de pesquisa com base em evidncia porque
dentro dos programas de pesquisa que a fora das evidncias avaliada.
Mesmo quando um programa de pesquisa deve ser recusado pela falta de
confiabilidade de uma das fontes de evidncia aceitas como bsica, no so as evidncias que
determinam qual reviso nas disposies metodolgicas deve ser feita. Rea (2002; p. 5)
considera o seguinte exemplo. Suponha que voc adote um programa de pesquisa que inclui a
disposio de deixar de confiar em todas as fontes de informao que voc tome por no-
confiveis e a disposio de tratar todos os testemunhos como evidncia. Mas suponha que,
com o tempo, voc descubra que o testemunho do seu escorregadio tio Bill terrivelmente
no-confivel. Nesse caso, voc tem trs opes: (a) voc pode deixar de confiar no tio Bill,
assim perdendo a disposio de tratar todos os testemunhos como evidncia; (b) voc pode
desconsiderar a evidncia que aponta para a no-confiabilidade do tio Bill e com isso perder a
disposio de aceitar esse tipo de evidncia; ou (c) pr de lado a disposio de deixar de
confiar em fontes de informao que se mostrem no-confiveis. Todas as trs alternativasresolvem o problema, mas a evidncia no diz qual delas deve ser adotada .20
Por isso, pode-se dizer que a adoo de um programa de pesquisa no pode
ser feita em bases racionais, mas, meramente, em bases pragmticas. Um programa de
pesquisa pode ser adotado em razo de suas consequncias serem mais atrativas do que as de
outro ou, ainda, em razo de irritar mais os seus inimigos. Portanto, segundo Rea, argumentar
O problema apontado por Rea muito semelhante ao problema da reviso das teorias cientficas diante da20
subdeterminao da teoria pela evidncia discutido acima.
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contra um programa de pesquisa mostrar razes pragmticas contra ele e mostrar que outros
programas no compartilham do mesmo defeito.
Para Rea, o Naturalismo o programa de pesquisa que trata os mtodos dacincia como as nicas fontes bsicas de evidncia. O filsofo americano reconhece que
difcil dizer exaustivamente quais so os mtodos da cincia, mas prope que eles incluem os
mtodos tradicionalmente aceitos pelos departamentos de biologia, fsica e qumica ao redor
do mundo, incluindo os cnones da boa argumentao, a confiana na memria e no
testemunho e confiana nos juzos sobre aparentes verdades lgicas e matemticas. Esses
mtodos seriam fortes o suficiente para excluir aquilo que os naturalistas normalmente
rejeitam, como astrologia, iridologia, frenologia, entre outros, e fracos o suficiente para
incluir a vasta gama de mtodos adotados em cincia contemporaneamente e tambm
possveis mudanas futuras.
Essa forma de tratar o Naturalismo j estava prefigurada em um artigo de
Bas van Fraassen (1998; 169-170), em que ele traa o seguinte diagnstico:
Se a parte fisicalista ou naturalista dessa posio filosfica no meramente odesejoou o compromissode ter a metafsica guiada pela fsica isto , algo que no
pode ser capturado por qualquer tese ou crena fatual ento o que ela ? ()Portanto, eu proponho o seguinte diagnstico do materialismo [naturalismo]: ele no identificvel com uma teoria sobre o que existe, mas somente com uma atitude ouum agregado de atitudes. Essas atitudes incluem forte deferncia pela cincia emmatria de opino sobre o que h e a inclinao de aceitar afirmaes(aproximativas) de completude para a cincia como ela de fato constituda em umdeterminado momento. Dado esse diagnstico, o aparente conhecimento sobre o que e o que no material dentre entidades rcem-hipotetizadas mera aparncia. Ahabilidade de ajustar o contedo da tese de que tudo matria repetidamente entoexplicada por um saber como se reagrupar que deriva de atitudes invariantes. Issono reflete mal sobre o materialismo; pelo contrrio, isso fazer justia a ele.
Bas van Fraassen, que, muitas vezes durante esse texto usa as expresses
fisicalismo, materialismo e naturalismo como sinnimos, nota que o Naturalismo
possui uma plasticidade incomum maioria das posies filosficas, que se constitui na sua
capacidade de alterar seu contedo medida que a cincia progride em direo ao
reconhecimento de novas metodologias e entidades. Enquanto o contedo das teses
metodolgicas e ontolgicas do Naturalismo parece variar com o tempo, ele identifica uma
atitude invariante que informa todas essas mudanas, que a adeso cincia onde quer que
ela leve. Desse modo, ele conclui que o Naturalismo mais bem caracterizado como essa
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atitude ou esse conjunto de atitudes invariantes do que pelo mutante contedo das teses
sustentadas pelos naturalistas ao longo do tempo.
Antes mesmo de Van Fraasen, O. K. Bouwsma (1948; p. 12-13), citado naepgrafe ao presente captulo, pareceu chegar a uma concluso semelhante que Rea chegaria
mais de meio sculo depois:
Agora estas trs teses concordam em identificar naturalismo como uma certa atitudeem relao ao mtodo cientfico, variadamente descrita como confiana em,integral aceitao de e respeito por. Todo naturalista algum que possui umaatitude similar atitude aqui descrita. Ele est empolgado em relao a algo. Aempolgao pode variar em intensidade, mas em algum grau todos os naturalistas acompartilham.
Bouwsma identifica o Naturalismo como uma atitude em relao ao mtodo
cien