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marxista

RESENHA

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Na contramão dos “intelectuais emretirada” (J. Petras), que hoje renegam omarxismo para ressuscitar teorias jurídi-co-institucionais, cuja ineficácia para aemancipação do trabalho foi evidencia-da pela obra de Marx – donde a necessi-dade mesma de decretarem a sua supe-ração ou morte –, em novembro de 1999,reunindo professores e pesquisadores dedoze estados do Brasil, o Centro de Es-tudos Marxistas (Cemarx) da Unicamppromoveu o “I Colóquio Marx e Engels”,do qual resulta este livro – A obra teóri-ca de Marx: atualidade, problemas e in-terpretações. O volume, composto porcinco capítulos derivados das mesas-re-dondas do Colóquio, contém, além dis-so, um anexo com os resumos da maio-ria das comunicações apresentadas.

O primeiro capítulo aborda o contro-verso tema da ruptura ou continuidadeentre a obra de juventude e a de maturi-dade de Marx. Ester Vaisman, seguindoas teses de José Chasin, propõe que, sehá ruptura em Marx, ela se dá em mea-dos de 1843, quando Marx se livra, naCrítica da filosofia do direito de Hegel,da filosofia da autoconsciência de suatese doutoral, da antropologia racionaldos artigos da Gazeta Renana e da teo-

ria do ser da filosofia especulativa deHegel, a partir de onde Marx daria iní-cio a uma nova posição ontológica,doravante materialista. João Quartim deMoraes entende que a contraposição en-tre obra da juventude e da maturidade écomum nos grandes autores, e que ne-nhuma ruptura é absoluta a ponto de nãoguardar pressupostos anteriores. Recu-sando o que chama de catálogos expli-cativos dos erros e acertos de Marx eEngels, analisa a eficácia das leituras dateoria marxiana à luz dos desdobramen-tos dos movimentos revolucionários,polemiza com Ruy Fausto sobre a suateoria da “antropologia negativa” emMarx e, por fim, refere-se a três escritosde Louis Althusser, para dizer que asquestões neles colocadas sobre a nature-za da inversão da dialética hegeliana porMarx ainda continuam de pé. RobertoRomano, por sua vez, sem entrar no as-sunto em pauta, pontua topicamente al-guns pensadores modernos para redigirum artigo sobre o tema da “tradução” emMarx.

O segundo capítulo versa sobre a po-lêmica em torno do legado marxista deFriedrich Engels. Ronald Rocha defen-de, com radicalidade, a integridade teó-

* Professor do Departamento de Filosofia e Psicologia da Unijuí, RS

CRÍTICA

Um amplo painelda obra de MarxPaulo Denisar Fraga*Armando Boito Jr., Caio Navarro de Toledo, Jesus Ranieri, Patrícia VieiraTrópia (orgs.). A obra teórica de Marx: atualidade, problemas einterpretações. Campinas/São Paulo, IFCH/Xamã, 2000.

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rica da contribuição marxista de Engels.Para tanto, monta seu texto pelo enfrenta-mento direto às principais críticas for-muladas contra este autor, contestando-as, uma a uma, com passagens, em suagrande maioria, extraídas dos própriostextos de Engels. Ricardo Musse, numapostura intermediária, prefere argumen-tar que se, num primeiro movimento, nãoé possível negar a evidência da unidadedas obras de Marx e Engels, num segun-do, especialmente no chamado “últimoEngels”, igualmente não cabe ignorar asua heterogeneidade, perceptível já nopróprio empenho de Engels em “atuali-zar a teoria” pelas “demandas própriasde seu tempo”, fosse como intérprete-sistematizador, fosse como desbravadorde novos campos temáticos para o mar-xismo, cuja trajetória terminou por cris-talizar uma determinada interpretação/apropriação deste, conhecida como“marxismo da Segunda Internacional”.Já Hector Benoit, no pólo oposto deRonald Rocha, critica o que considera anaturalização e a objetivicação mecâni-ca da dialética por Engels, contrastandocertas teses deste com formulações teó-ricas de Marx e Hegel, que jamais teriamadmitido tais parâmetros. Ato contínuo,lembra que os maiores seguidores dessasconcepções de Engels foram justamenteBernstein, Kautsky e o stalinismo, evi-dências de que, “ao menos de maneiraembrionária”, o cientificismo marxistae o evolucionismo eleitoralista da Segun-da Internacional já estavam, em grandemedida, contidos nas formulações geraisdo último Engels.

O terceiro capítulo se ocupa das con-tribuições de Louis Althusser e GeorgLukács à teoria marxista. Discorrendosobre Althusser, Miriam Limoeiro-Car-

doso aborda, nos textos tardios desseautor – que contêm novos e diferentesdesdobramentos do seu pensamento –, otema da crise do marxismo, que envol-ve, também, as suas teorizações sobre aideologia. Mostra que, para Althusser, talcrise não se resumia a situações conjun-turais extrínsecas, mas dizia respeito aaspectos da própria teoria marxista, taiscomo a “falta de um tratamento claro dadialética em Marx” que, dando margema “interpretações positivistas e evolu-cionistas”, teriam permitido a Stalinenrijecer a dialética ao extremo “semprecisar romper com Marx”. Dessemodo, argumenta que Stalin, ao “violen-tar o que o marxismo era”, conseguira,ao mesmo tempo, instaurar e bloquear aeclosão dessa crise, cuja “brecha” só se-ria aberta pelos movimentos de massa,que teriam, finalmente, conferido aomarxismo uma chance real de superá-la.Wolfgang Leo Maar, num artigo denso,discute o tema da formação social emLukács. Tomando, como ponto de parti-da, a tese lukacsiana de que a categoriacentral da dialética é a totalidade, avaliaas nuanças, limites e rearranjos da rela-ção entre a dialética da reificação e arealização objetiva do trabalho, tramateórico-analítica pela qual procura refle-tir sobre os caminhos de Lukács paraMarx. Em torno de tal intencionalidadeo autor perfila e identifica o lugar concei-tual de diferentes obras do filósofo hún-garo, acompanhando o evolver que vaido predomínio do tema da consciênciade classe ao da crítica ontológica, dese-nhado, como é sabido, nas duas obras-pólo do seu pensamento: História econsciência de classe e Ontologia do sersocial. No texto que fecha o capítulo, Sér-gio Lessa procura justificar os termos e

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a importância da propositura lukacsianade uma ontologia no século XX. Iniciarebatendo o que se pode chamar de falsa“ontologia” burguesa, isto é, de que a es-sência humana se definiria pela vin-culação imanente do ser do homem àpropriedade privada, fazendo-o egoístae concorrencial, cuja natureza onto-lógica eternizaria a sociedade capitalis-ta. Opondo-se a isso, apóia-se na tesede Marx de que a essência humana é oconjunto das relações sociais para de-fender que a ontologia de Lukács nãosó se diferencia das ontologias meta-físicas tradicionais, como se assenta naautoconstrução do ser social na esferafundante do trabalho e das suas relaçõesde reprodução, que, ao transformar anatureza, transformam também os indi-víduos e a sociedade, liquidando comqualquer teleologia fatalista da história.Destarte, aponta que o “móvel decisi-vo” que levou Lukács a propor umaontologia no século XX foi, justamen-te, a necessidade de evidenciar a “pos-sibilidade ontológica da revolução” edesmascarar as ideologias burguesas aela contrárias.

O quarto capítulo avalia a contribui-ção de Antonio Gramsci e de EdwardPalmer Thompson ao marxismo. Gio-vanni Semeraro destaca que o valor dopensamento de Gramsci estaria em ul-trapassar as interpretações positivistase economicistas do marxismo, enrique-cendo-o de novas categorias conceituaisà luz do seu presente histórico, dotando-o, com isso, de uma nova vitalidade prá-tica. Para tanto, ressalta que os grandesobjetivos de Gramsci eram enfrentar “asideologias modernas nas suas formasmais sofisticadas” e lutar para que os tra-balhadores ascendessem também à con-

dição de intelectuais, constituindo-secomo classe dirigente capaz de se auto-governar. Visando apresentar os desdo-bramentos teóricos decorrentes dessastarefas, discorre sobre a elaboraçãogramsciana dos conceitos de “filosofiada práxis” e de “hegemonia”, que seriamos “eixos unificadores de todo o seu pen-samento”. Cláudio Batalha, escrevendosobre Thompson, sugere que este autorpode ser mais bem compreendido comoum “acadêmico erudito preocupado emaplicar o marxismo em sua área de sa-ber”, haja vista que ele mesmo “nuncase colocou na condição de teórico domarxismo”. No que diz respeiro à recep-ção da teoria marxista, destaca queThompson teria criticado o marxismo“como doutrina, como método e comoherança/patrimônio” para preferi-lo al-ternativamente como tradição, que in-cluiria as formulações de Marx e Engelse daqueles que procuraram enriquecê-las,reconhecendo o marxismo como um mo-vimento plural coexistindo sob “um vo-cabulário comum de conceitos”. Poste-riormente, observa que Thompson, aoacompanhar as crescentes críticas dostalinismo e do “estruturalismo althus-seriano”, revisa sua concepção unitáriado marxismo, para falar dele como “duastradições” irreconciliáveis desde 1956:“uma tradição fechada, idealista e teo-lógica”, que associa ao stalinismo e aoalthusserianismo e “uma tradição aber-ta, materialista e racional” do comunis-mo libertário, à qual ele se declaravapertencente. Na seqüência, apresenta al-gumas apropriações peculiares de con-ceitos da teoria marxista por Thompson,as quais, por sua vagueza e heterodoxiaexcessivas, foram criticadas como“culturalismo” e “marxismo romântico”.

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O quinto capítulo que, dada a Apre-sentação dos organizadores do livro, de-veria ter sido editado em terceiro – portratar, como os dois primeiros, de assun-to pertinente aos clássicos fundadores,e não, ainda, à obra dos seus “intérpre-tes” –, traz o debate sobre a atualidadeda crítica da economia política, já ante-riormente publicado na Crítica Marxis-ta número 10. Francisco José Soares Tei-xeira, após registrar a chamada dimen-são civilizatória do capital, toma em con-sideração seus limites e contradições, eargumenta que o crescimento da produ-ção de valores de uso e a necessidade devalorização do valor exigem formas so-ciais em que tal contradição possa semover e realizar. Explica como essasformas de resolução se dão no interiorda cooperação simples, da manufatura eda grande indústria. Depois, enfrentandoOffe, Giannotti, Habermas e Franciscode Oliveira – que advogam, em diferen-tes tons, o fim do paradigma do trabalhocomo medida objetiva do valor, con-finando-se no reformismo político –,defende a tese de que o capitalismo con-temporâneo passou a uma forma – maisavançada – de “cooperação complexa”da produção de mercadorias. Pretende,com esta formulação, explicar o proces-so da reestruturação produtiva sem pre-cisar aceitar a idéia de uma ruptura nosistema produtor de mercadorias, o quelhe permite reafirmar a atualidade da lutade classes e elevar a defesa do socialis-mo à condição de “estratégia prioritária”.Jorge Grespan escreve sobre o conceitode crise na crítica à economia política.Inicia afirmando que a importância dacrítica de Marx à economia política ul-trapassa a mera comparação de duas teo-rias distintas. Mais do que isso, observa

que a crítica da economia política é omeio privilegiado de se adentrar à pró-pria teoria de Marx, dado que esta seconstitui como “reelaboração e inversão”das categorias fundamentais daquela.Não há, em Marx, uma “crítica” ao ladode uma “exposição”. A exposição já sedá “simultaneamente” como crítica –como “re-exposição” das categorias daeconomia política –, visto que a “críticaé o que permite à exposição assumir aforma dialética”, num movimento emque tais categorias se desenvolvem (emsua contradição) até o ponto em que exi-gem sua própria transformação”, im-plicando o surgimento de novas catego-rias, remontando todo o sistema que asorganiza. À luz dessa armação dialética,que estrutura metodologicamente o seutexto, passa a expor o conteúdo (e a for-ma) das críticas de Marx a DavidRicardo, alegando que elas expressamuma “síntese do conjunto” da crítica àeconomia política, caminho pelo qualvai apreendendo dialeticamente a crisecomo o “negativo” onipresente em todoo desenvolvimento da exposição,explicitando o “elo profundo” que háentre crise e crítica.

Na seqüência do mesmo capítulo,Leda Maria Paulani prefere situar a con-figuração histórico-teórica da críticamarxiana à economia política. Para tan-to, divide seu texto em três partes: naprimeira, retoma os marcos do rompi-mento de Marx com a filosofia de Hegel,ao afirmar que naquele “a totalidade esta-va já com a economia política”; na segun-da, parte da diferença entre as dialéticasde Hegel e Marx, comenta aspectos dométodo da economia política e eviden-cia limitações da economia clássica emface do aporte teórico de Marx; na ter-

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ceira, sustenta a validade atual da críticamarxiana à economia política – median-te uma discussão sobre o fetichismo da“sociedade do espetáculo” (conformeGuy Debord) –, o papel do dinheiro e acentralidade do trabalho em face da teo-ria marxista do valor. Por último, Mau-ricio Coutinho enfoca a temática a partirde duas indagações: se as teses de Marxainda conseguem explicar o capitalismoatual, e se a crítica da economia políticaé compatível com a teoria econômicacontemporânea. Privilegiando a segun-da questão, caracteriza alguns elemen-tos da economia clássica e, depois, dacontemporânea, enfatizando que esta dis-crepa daquela e da marxista pelo fato deconsiderar que o agente econômico é oindivíduo, e não as classes, e de basear-se na indeterminação e na escolha racio-nal, e não na determinação histórica.

Porém, rediscutindo as noções de “clas-ses sociais”, de “subjetividade” e de “de-terminação”, pelos interstícios que esca-pam ao referido enquadramento geral,procura caminhos para abrir a economiamarxista “à atualização e para as possi-bilidades de fertilização do debate eco-nômico contemporâneo”.

Por fim, cabe aduzir que A obra teó-rica de Marx, pelo amplo mosaicotemático aqui perfilado, contribui parapreencher, na produção editorial brasi-leira, a lacuna de um balanço-síntese dosgrandes debates do marxismo. Isso jábasta para dizer da sua importância paraqualquer um que deseje encontrar, numsó livro, um competente, plural e autên-tico recenseamento crítico dessas ques-tões, aporte teórico salutar a toda boacompreensão – dialética – da teoria mar-xista no tempo presente.

* Jornalista

O marxismo é anti-acadêmico. Pre-tende transformar o mundo e não apenasinterpretá-lo. Empenha-se em interpre-tar o mundo corretamente para conseguirtransformá-lo. A História do marxismo noBrasil atinge, portanto, sua fase decisivacom a publicação do quarto volume, queexpõe as interpretações da sociedade e darevolução brasileiras formuladas por au-tores e organizações marxistas.

Os dois volumes iniciais reconsti-tuíram os impactos das grandes revolu-

ções do século XX no Brasil e a recep-ção entre nós das idéias de Marx e Engelse dos principais teóricos marxistas. O ter-ceiro volume concluiu a investigação dosinfluxos teóricos recebidos pelo marxis-mo brasileiro, examinando a influênciade Althusser e de Gramsci, e iniciou aexposição das visões marxistas acercadas grandes questões nacionais. O quar-to volume, o último publicado, arremataessa exposição, reconstituindo algumasdas mais importantes interpretações mar-

Visões e interpretações dasociedade brasileiraDuarte Pereira*João Quartim de Moraes e Marcos Del Roio (orgs.). História do Marxismo no Brasil. v. IV. Campinas,São Paulo, Editora da Unicamp, 2000.

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xistas da formação histórica e atual dasociedade brasileira e das perspectivasde sua transformação revolucionária. Osdois volumes finais examinarão o com-bate político de organizações e militan-tes orientados por essas interpretações.

A caracterização adequada da origeme do desenvolvimento da sociedade bra-sileira, e de suas tendências de transfor-mação, é o elo que solda a recepção dateoria marxista à sua finalidade práticade orientar a luta dos revolucionários bra-sileiros. Testa a assimilação do métodoe das categorias do marxismo em suasaplicações ao estudo da realidade histó-rica e atual do país e, por sua vez, é tes-tada nos êxitos e nas derrotas dos com-bates inspirados nessas interpretações. Seé possível falar num marxismo brasilei-ro, este é seu campo de prova.

Marx e Engels, ao investigar a ori-gem e o desenvolvimento das socieda-des capitalistas, delinearam simultanea-mente, por força de seu método crítico edialético, as tendências de transforma-ção dessas sociedades em formações so-ciais estruturalmente novas, socialistas.Mas, para a efetivação dessas tendênciastransformadoras, sublinharam o prota-gonismo insubstituível do proletariado,especialmente de seu núcleo operário, edestacaram a necessidade da teoria crí-tica e da contribuição da intelectualidadeprogressista para a tomada de consciên-cia do proletariado e para o desenvolvi-mento de sua organização e de sua luta.Advertiram, no entanto, desde o Mani-festo Comunista, que o capitalismo sedesenvolvia nos vários países em ritmosdesiguais e com traços peculiares. Ocombate proletário e socialista teria dese desenvolver também de forma desi-gual e com peculiaridades nacionais. Não

seria suficiente, portanto, traçar o qua-dro histórico geral do mundo e os obje-tivos finais e comuns do proletariado.Seria indispensável combinar essa visãocom a caracterização correta das diferen-tes fases de desenvolvimento e das espe-cificidades de cada país e, por conseguin-te, com os objetivos particulares do com-bate proletário e socialista em cada paíse em cada momento.

Esse desafio teórico, posto aos mar-xistas de qualquer país, é especialmenteárduo em nações como a nossa. Surgi-mos numa época em que os países maisavançados da Europa já iniciavam a tran-sição do feudalismo para o capitalismo.Nessa Europa em transmutação, Portu-gal, a potência marítima que nos coloni-zou, ostentava, com sua revolução bur-guesa abortada, traços muito originais deevolução. Em nosso território, com oesmagamento das sociedades comunitá-rias indígenas e a gradativa construçãode uma nova formação econômico-so-cial, sofremos a influência cruzada de vá-rios processos históricos: a integração nomercado mundial em constituição; a su-perestrutura monárquica, feudal e cató-lica da metrópole que nos dominava; acombinação da grande propriedadeterritorial com a introdução do trabalhoescravo. Mais tarde, quando o modo deprodução capitalista despontou entre nósno final do século XIX, seu desenvolvi-mento não poderia deixar de refletir ascondições particulares da sociedade emque emergia. Acentuando as diferenças,nossa revolução burguesa não transcor-reu por uma “via democrático-revolucio-nária”, mas “burocrático-reacionária”,para usar expressões de Lênin; e conci-liou com a dependência externa e com apreservação do monopólio da proprieda-

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de territorial. O capitalismo penetrou ese desenvolveu na agricultura, não pela“via camponesa”, mediante uma refor-ma democratizadora da propriedade daterra, a que se seguiriam a diferenciaçãodos camponeses e a inevitável concen-tração da propriedade; mas pela “via la-tifundiária”, através dos processos con-jugados de capitalização e modernizaçãodo latifúndio e de territorialização docapital. Nossa sociedade se revelaria,portanto, um quebra-cabeça histórico-estrutural, difícil de resolver para estu-diosos marxistas e não-marxistas.

Logicamente, o primeiro passo seriadesvendar os nexos entre a origem docapitalismo no continente europeu, otransbordamento colonizador de Portu-gal e a formação da sociedade colonialno Brasil. O ensaio de Lígia Osório Sil-va, que abre o quarto volume da Histó-ria do marxismo no Brasil, refaz, comrigor teórico e abundância de informa-ções, o debate sobre essas interconexões.Evidencia que as categorias básicas e oscritérios analíticos do marxismo aindarepresentam os instrumentos mais fecun-dos para deslindá-las. Conclui que os Es-tados colonizadores que recorreram à for-ça de trabalho escrava, como Portugal,“não eram Estados escravistas, mas Esta-dos feudais modificados (absolutistas),muito mais complexos” (p. 55); e que “ofato de sublinhar o caráter não capitalistado regime de propriedade da terra e suaassociação com o escravismo como for-ma predominante do trabalho não impli-ca diminuir o papel do capital mercantilna organização da economia colonial”(p.56) – do capital mercantil, não do ca-pitalismo, é conveniente frisar.

O passo lógico seguinte seria deter-minar as características de nossa forma-

ção histórica e de nossa estrutura recen-te, para fixar a perspectiva, o estágio eas tarefas da ação revolucionária. Os tex-tos de Angelo José da Silva, JoãoQuartim de Moraes e Marcos Del Roio,que formam o segundo bloco do volu-me, reconstituem a gênese e o desenvol-vimento de interpretações contrapostassobre a sociedade e a revolução brasilei-ras, que se constituíram gradativamenteentre autores e organizações políticas docampo marxista. Há diferenças de ênfa-se, de conceituação e de períodos abran-gidos nos estudos, mas, em conjunto, elespermitem acompanhar a evolução dapolêmica teórica e política entre os mar-xistas, desde os trabalhos pioneiros deOctavio Brandão e Astrogildo Pereira,por um lado, e de Mário Pedrosa e LívioXavier, por outro; passando pelas con-trovérsias entre Nelson Werneck Sodré,Alberto Passos Guimarães, Caio PradoJúnior e Florestan Fernandes; e chegan-do a trabalhos recentes, como os de JacobGorender e Carlos Nelson Coutinho. Éum largo painel que, ao lado dos equí-vocos e das contradições, mostra tam-bém a vitalidade do pensamento marxistano Brasil.

O terceiro e último bloco do volumereúne os estudos de Leonilde de Medei-ros, sobre a luta pela terra nos anos 50 e60; de Carlos Dória, sobre o surgimentodo Nordeste como “problema nacional”;e de Raimundo Santos, sobre algunsaspectos menos conhecidos da obra deCaio Prado Júnior. Abordando temasparticulares, trazem contribuições queampliam e aprofundam o conhecimentocrítico do debate reconstituído nos capí-tulos anteriores.

Se adicionarmos os estudos já publi-cados na segunda parte do terceiro volu-

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me, principalmente o de Carlos Dória,“O dual, o feudal e o etapismo na teoriada revolução brasileira”, e o de CaioNavarro de Toledo, “Intelectuais do Iseb,esquerda e marxismo”, verificaremos quea História do marxismo no Brasil ofere-ce pela primeira vez uma visão abran-gente, compactada e multilateral do de-bate teórico e político que inflamou, aolongo do século passado, as correntespolíticas e intelectuais brasileiras inspi-radas no marxismo. É grande o mérito,portanto, dos organizadores e autoresdessa obra coletiva.

Como esse debate não está encerra-do, vale a pena registrar alguns possíveisdefeitos da visão exposta. Ela é cons-truída principalmente a partir da obrapessoal de autores renomados. Essas con-tribuições não poderiam ser ignoradas,ainda mais num país em que os dirigen-tes práticos do movimento operário esocialista não têm se mostrado, em re-gra, teóricos de primeiro plano. Mas de-veriam ser referidas às posições coleti-vas de partidos e organizações marxis-tas, tanto as contidas em documentosoficiais, quanto as expressas na impren-sa dessas organizações, ou em debatespreparatórios de congressos, como o queantecedeu o V Congresso do PCB, aindaunificado. A visão ficaria mais rica e maisprecisa, pois não se pode perder de vistao caráter militante do marxismo e a ne-cessidade de que sua influência passepela ação organizada para que possa tra-duzir-se em ação. Pelos objetivos de pes-quisa preconizados, não se trata dereconstituir somente a polêmica entrepersonalidades intelectuais, mas tambémentre correntes políticas, pois o propósi-to é delinear a influência do marxismono conhecimento e na transformação da

sociedade brasileira. O estudo de Leo-nilde de Medeiros, que recorreu a fontesprimárias e partidárias, demonstra as vir-tudes desse método.

É indiscutível também a posição cen-tral ocupada pelo PCB na recepção, di-vulgação e aplicação do marxismo noBrasil. O estudo teria de privilegiar, por-tanto, a tradição marxista vinculada aesse partido e aos intelectuais que sofre-ram sua influência. Mas não se justificadiluir as cisões repetidas que esse parti-do sofreu a partir dos anos 60. Não écorreto, por exemplo, subestimar as di-vergências programáticas que afastaramo PCdoB do PCB e o PCBR de ambos.As referências às posições trotsquistassão também restritas e referentes apenasàs décadas iniciais dessa corrente políti-ca e intelectual. As contribuições da Polope de intelectuais filiados a sua tradiçãomereceriam igualmente receber um trata-mento sistemático, assim como o debateteórico que se desenvolveu nas fileiras daAção Popular, sobretudo em sua fase fi-nal. Não é suficiente que essas organiza-ções sejam estudadas em sua atuação po-lítica. Seria importante levar em conta suascontribuições às visões marxistas da soci-edade e da revolução brasileiras. O mar-xismo se tornou plural no Brasil e a His-tória precisaria refletir melhor essa diver-sidade – política e teórica.

Se assim procedesse, demarcaria commais nitidez as teses básicas sobre a socie-dade brasileira, formuladas por autores eorganizações marxistas. Não houve ape-nas a contraposição entre a teoria da “so-ciedade semicolonial e semifeudal”, queacabou se firmando na tradição originadano PCB, e a teoria da “sociedade capita-lista” desde a época colonial e quase semmesclas, que veio a prevalecer em setores

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guesia nacional no Estado e na culturado país.

Essas divergências acarretam impli-cações sérias na interpretação da revolu-ção brasileira. Aqui também a Histórianão demarca satisfatoriamente as trêsteses que se têm colidido, historicamente,nos autores e organizações marxistas: atese da “revolução socialista” imediata,conduzida apenas por forças proletáriase semiproletárias; a tese da “revoluçãodemocrático-burguesa”, ou “nacional-democrática”, liderada pela burguesia eapoiada pelo proletariado e por outrasforças sociais, para implementar um ca-pitalismo nacional e reformado; e a teseda “revolução nacional, democrática epopular”, liderada pelo proletariado,apoiada na aliança operário-camponesae realizada para implantar um regime detransição ao socialismo. Evocando alu-sões históricas, poderíamos caracterizá-las, respectivamente, como as teses deraiz trotsquista, menchevique e bolche-vique. No caso do Brasil, decorrem deavaliações divergentes acerca da forma-ção histórica e das características atuaisda sociedade brasileira, mas resultamtambém das imprecisões teóricas que têmmarcado o acidentado debate sobre asetapas do combate proletário e socialis-ta desde as formulações iniciais de Marxsobre a “revolução permanente”. A His-tória poderia ter incluído um estudocriterioso sobre a evolução desse debateinternacional, à semelhança do esclare-cedor ensaio de Lígia Sílvia sobre a tran-sição do feudalismo ao capitalismo naEuropa e seus nexos com a colonizaçãodo continente americano. A polêmicabrasileira se tornaria mais inteligível.

O deslindamento apurado dessas in-terpretações da revolução brasileira é ain-da mais necessário em nossos dias por-

intelectuais e políticos influenciados porCaio Prado Júnior e pelas correntestrotsquistas. Gradativamente, outros se-tores marxistas convergiram para a com-preensão de que a sociedade brasileirajá se tornara capitalista desde meados dosanos 50 do século XX, combinando-se omodo de produção capitalista predomi-nante com outras formas subordinadasde produção e de exploração do traba-lho. Reconhecido o caráter capitalista dasociedade brasileira como seu traço maisrelevante, a dependência externa e omonopólio da propriedade territorial pas-saram a ser vistos como traços subordi-nados, importantes apenas para caracte-rizar o tipo e o estágio do desenvolvi-mento capitalista em curso no país.

As investigações de Jacob Gorenderacrescentaram à identificação dessa fasecapitalista-dependente a compreensão dafase escravista-colonial, que a antecedeue da qual o capitalismo se originou atra-vés de um período de transição e de for-mas mistas, semi-escravistas, de explo-ração do trabalho. Com nuanças, essainterpretação ganhou amplos setoresmarxistas e contrapôs-se às duas inter-pretações anteriores. Reconhece a com-plexidade da formação social brasileira,mas também seu caráter dominante. AHistória não dedica a essa interpretaçãoa atenção merecida.

Quanto à teoria da “sociedade semi-colonial e semifeudal”, ressalte-se quenão se equivocava apenas na identifi-cação de um feudalismo em nosso passa-do colonial, mas também em sustentara vigência de uma sociedade “semifeu-dal” ainda nos anos 70, quando o capita-lismo já predominava havia duas décadasna base econômica da sociedade brasi-leira e as transformações superestruturaisconsolidavam o domínio da grande bur-

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* Professora da Unesp – campus de Franca – e pesquisadora do NEE-Unicamp

que, consumada a revolução burguesa doBrasil, mesmo que por um caminho au-toritário e conciliador, não tem mais sen-tido falar sequer numa “revolução nacio-nal e democrática” necessária para abrircaminho ao socialismo. A única revolu-ção que persiste no horizonte históricodo país é a socialista, à qual caberá resol-ver, inclusive, as tarefas nacionais e de-mocráticas que a revolução burguesa nãocumpriu integralmente. Na época histó-rica do imperialismo e das revoluçõessocialistas, o desenvolvimento capitalistaautônomo deixou de ser viável. É umequívoco sustentar, portanto, a “perma-nência” de um programa nacional-demo-crático desvinculado da hegemonia pro-letária e da transição ao socialismo.

Isso não implica negar a possibilida-de e a conveniência de que o proletaria-do conte, na luta por um regime democrá-tico avançado e por um programa detransformações socialistas, com o apoiodos camponeses pobres e médios, dosdemais trabalhadores assalariados e au-tônomos, dos intelectuais e estudantesprogressistas e até mesmo de setores pe-queno-burgueses e burgueses, pressiona-dos cada vez mais pelo grande capitalestrangeiro e nacional. Nas atuais e des-favoráveis condições do mundo, como aexperiência histórica está mostrando, a

construção do socialismo passa por umregime de transição, em que a hegemoniaoperário-popular pode combinar-se coma participação de outras forças sociais navida política, a propriedade social comformas de propriedade privada, e umplano parcial com o mercado na coorde-nação da economia. As idéias e valoressocialistas concorrerão também comidéias e valores atrasados e conservado-res na cultura por muito mais tempo doque se esperava anteriormente. Esse re-gime de transição constitui a base obje-tiva para uma aliança revolucionáriaampla e duradoura. Não representa ummero estratagema político. Mas tambémnão configura uma renúncia ao projetosocialista, e sim uma forma de abordá-lo nas novas condições históricas.

Um re-exame mais esmerado do de-bate sobre a sociedade e a revolução bra-sileiras e sobre as perspectivas do sistemacapitalista-imperialista, travado no passa-do pelos marxistas, pode ajudar a enfren-tar a nova polêmica programática e estra-tégica que se impõe. Apesar de suas insufi-ciências e eventuais defeitos, a vasta epersistente obra de reconstituição e avalia-ção empreendida pelos organizadores eautores da História do marxismo no Brasilrepresenta uma coletânea de informaçõese análises indispensáveis a esse esforço.

Segundo a maior parte da media nãoexiste alternativa ao capitalismo, ao glo-balismo no qual tudo se subordina ao

consumo, ao virtual, ao capital financei-ro, ao discurso único e unidimensional.Apesar disso, aqui e ali surgem vozes

A guerra revolucionária acabou?* Suzeley Kalil MathiasHéctor Luis Saint-Pierre. A política armada. Fundamentos da guerra revolucionária. São Paulo,ed. da Unesp, 2000.

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dissonantes, a nos lembrar que sem uto-pia, sem luta e dor, não é possível en-contrar o que Marx chamou de gênerohumano. É nesta linha de posicionamentoque Saint-Pierre retoma um tema anti-go, mas negligenciado por intelectuais epolíticos quando deveria ser parte dequalquer debate sério sobre o futuro darevolução: a guerra revolucionária.

Para elucidar o fenômeno, Saint-Pierre divide o livro em duas partes, de-dicando a primeira à teoria da guerrarevolucionária e a segunda, às formas queesta assumiu e em que se desenvolveuao longo da história das lutas populares.Para não dar a idéia de que o objeto deanálise é o conjunto das lutas de classe,na introdução discute-se como a violên-cia marca diferentes fenômenos hoje,como de resto sempre marcou – chocan-do-se, assim, com a promessa da grandeáguia sobre o fim dos conflitos mundiais,dado o desaparecimento do único inimi-go simbolizado na queda do Muro deBerlim (1989) –, reabilitando a guerrainterna, entre nacionais e, portanto, apon-tando para a possibilidade cada vez maiorda revolução. É assim que o autor anali-sa a guerra revolucionária a partir daintersecção entre teoria da luta de clas-ses em sua herança marxista e a teoriada guerra de filiação clausewitziana.

Partindo das questões mais geraispara chegar à apresentação do fenôme-no na história contemporânea, no primei-ro capítulo Saint-Pierre se dedica à dis-cussão do papel da violência na políticaou, mais precisamente, da guerra comofenômeno político. A guerra é resgatadana história da filosofia desde Aristóteles,passando por Políbio até as visões deLênin e Bobbio. É aqui que se apresen-tam para o leitor a relação entre econo-

mia e guerra, entre fenômenos bélicos ex-ternos e internos, discute-se a revoluçãono interior da teoria da guerra e, o maisimportante, enfatiza-se a violência comoum meio da política e a subordinação daguerra à decisão política. Aliás, esta é atese elucidada ao longo de todo o texto.

Coerente com esta visão, no segundocapítulo o tema é a guerra revolucionária,assim descrita: “O que caracteriza a guer-ra não são os meios, mas a política a cujosobjetivos aquela serve. Portanto, uma guer-ra será revolucionária se estiver a serviçode uma causa revolucionária, se for a ma-nifestação bélica de uma política revolu-cionária” (p. 69). Mas seria esta a especifi-cidade da guerra revolucionária; o fato deestar subordinada a uma política revolu-cionária? Não. Buscando apoio na litera-tura estratégica, Saint-Pierre afirma que,diferentemente da guerra convencional,que representa belicamente a política con-servadora (e, diríamos, burguesa) e quebusca o restabelecimento de alguma for-ma de paz, a guerra revolucionária, res-pondendo a uma política desestabilizadoradas relações de classe, apenas tem comofinalidade estratégica o aniquilamento doinimigo, ou seja, o fim das classes sociais.Poder-se-ia dizer, então, que a guerra re-volucionária, quando vitoriosa, é a últimadas guerras e, talvez por isso mesmo, aque-la que condensa toda a potencialidade daviolência como meio da política.

Justamente por entender a violênciacomo meio inerente à política, no ter-ceiro capítulo o autor apresenta as dife-renças entre poder e força e, a partir dis-so, discute-se a guerra revolucionáriainternamente, isto é, faz-se uma espéciede anatomia desse fenômeno, mostran-do como a opção revolucionária não éalgo que se possa apenas realizar, pois

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implica opção também moral, e na acei-tação moral da violência. Ao discutir amoral e o moral do revolucionário, oautor deixa ver sua paixão, a necessida-de de corresponder a uma causa, aquelaque responde com violência à violenta-ção de todas as qualidades de ser huma-no. Assim, a violência sem limites dapolítica hodierna sugere que vivemos ummomento excepcional, no qual a utiliza-ção de qualquer meio é não apenas com-preensível, mas legítima na construçãode uma nova ordem.

Já na segunda parte, dedicada às for-mas, discute-se a insurreição (quarto ca-pítulo) e a guerra popular, em particulara Guerra Popular Prolongada (quintocapítulo), fenômenos apresentados comouma estratégia que se desdobra em váriastáticas; e o autor se esforça por mostrarcomo os diferentes níveis (o político, oestratégico, o tático) se inter-relacionamna ação insurrecional. A correta avalia-ção desses níveis é fundamental não ape-nas para o estudo da política armada,mas para compreender o momento daluta e como se comportar diante dele. Sóassim podemos nos aproximar de líde-res como Lênin ou Mao Tsé-Tung.

O sexto capítulo avalia a guerrilha,que é a forma de guerra revolucionária(muitas vezes também da política oficial)mais conhecida por nós, latino-america-nos. A despeito do fracasso de Guevara naBolívia, ou do aniquilamento de quasetoda uma geração pelos autoritarismos nãotão remotos aqui existentes, Saint-Pierretem uma visão positiva da guerrilha, nãoapenas como fato histórico, mas princi-palmente como mito, que funciona comocimento de vontades revolucionárias.

O caso de Chiapas e o terrorismo sãoos dois temas tratados no último capítu-

lo. Aproveitando o próprio fenômeno, oautor retoma a comunicação e a infor-mação como meios importantes da lutarevolucionária. Porém, tais meios sãoagora determinados por uma novatecnologia, que muda a natureza da guer-ra e da guerra revolucionária. A formacomo os zapatistas chiapanecos fazemuso da Internet é, então, tomada comoexemplo de mecanismo de se colocardiante do mundo e ganhar uma das gran-des batalhas da guerra revolucionáriahoje: a opinião pública. Por outro lado,não apenas por esse meio mas tambémpelos objetivos que persegue, Chiapasnão é encarado por Saint-Pierre comouma guerra revolucionária em sentidoestrito.

Talvez por ter uma certa simpatia pelaguerrilha zapatista, ou pela guerrilha emgeral, Saint-Pierre resiste a definir o mo-vimento de Chiapas como reformista.Mesmo levantando, como ele faz, os di-ferentes critérios que determinamquando uma guerrilha responde a umapolítica revolucionária, mesmo mostran-do que o objetivo dos índios de Chiapasé sua inclusão na política oficial e não asuperação desta, em nenhuma linha deA política armada diz-se sem pestanejarque a guerrilha zapatista é apenas e tãosomente um movimento reformista, ape-sar de fazer uso da força das armas. Ora,da mesma forma que na Colômbia nãohá alternativa para as classes dominadasa não ser pegar em armas para fazer va-ler direitos, ainda que burgueses, noMéxico e em outros países (inclusive onosso), não apenas agora mas desde ostempos de colonização, parece que a vio-lência é o meio de participar da polis.Essa forma de se fazer política pode tor-nar ainda mais difícil ultrapassar a linha

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da exclusão a que estão submetidas asclasses dominadas, não permitindo queelas adotem a revolução como única for-ma de libertação. Isto implica aceitar, nãosem angústia, que a reforma pode repre-sentar o limite da consciência de todosnós. Se esta parece ser uma justificativarazoável para o comportamento do au-tor, isto é, não levar às últimas conse-qüências seus próprios argumentos, nãoparece, entretanto, ser a melhor explica-ção. Para ser coerente com a postura ado-tada desde as primeiras páginas de seulivro, enfrentar o problema tornaria mui-to mais coesa e firme sua análise.

Por último, analisa-se o terrorismo,como um fenômeno localizado no limiarda política, isto é, como uma ação deviolência potencialmente fora dos limi-tes da política e, que, por isso, pode ounão se assumir como meio tático da guer-ra revolucionária. É, porém, pelas suascaracterísticas internas, o meio mais difí-cil de ser utilizado na guerra revolucio-nária. A esse respeito afirma Saint-Pierre:“Esta é a difícil tarefa da peculiar fun-ção do terrorismo para a revolução: for-necer segurança, coesão e ódio às forçaspopulares e terror às fileiras do aparelhorepressivo...” (p. 224). Daí porque estaprática não pode, por todos aqueles quequerem compreender a luta armada, sernegligenciada ou esquecida.

Essa peculiaridade do terrorismo levaSaint-Pierre a procurar analisá-lo emtodos os seus aspectos, fornecendo ao lei-tor uma quase arqueologia do terrorismo,formulando e discutindo um modelo quebusca tomá-lo não apenas pelas vítimasou objetivos, mas até pelas armas queutiliza. Apesar disso, a avaliação fica in-completa, pois o terror de Estado, aque-le que mata sem alarde e com altas do-

ses de aceitação popular, não é analisa-do, apenas lembrado. É verdade que ointeresse do autor é a teoria da guerrarevolucionária e, portanto, apenas lançaralgumas luzes sobre o terrorismo comotática de luta. Todavia, a filosofia políti-ca não pode e não deve ser alheia à açãopolítica e, sendo assim, avaliar a ação deEstados terroristas (como são a maioriados Estados burgueses atuais) é tambémfornecer as armas para o combate popu-lar contra as forças repressivas.

Resultado da revisão de uma tese dedoutoramento, A política armada é umlivro que busca combinar agilidade ana-lítica com rigor acadêmico. Em conse-qüência, o texto é vastamente documen-tado, oferecendo ao leitor um leque bi-bliográfico que vai muito além do mar-xismo. Talvez por isso, embora seme-lhante a um manual (principalmente aprimeira parte), muitas vezes o texto seapresente ao leitor como herético, postoque aplica modelos de análise diversospara a compreensão do problema, nãopermitindo classificar a análise em ape-nas uma corrente teórica. Se, por umlado, com isto o autor assume o papel deintelectual que não pode e sobretudo nãodeve ter preconceitos, por outro podeimplicar uma análise que não chega àsúltimas conseqüências do problema, fi-cando a meio caminho. Não é outra aavaliação de João Quartim de Moraes naapresentação do livro. Os problemasapontados, entretanto, não retiram, tam-bém para repetir a apresentação, a cora-gem de Saint-Pierre em enfrentar o pro-blema, e muito menos a necessidade des-se tipo de pesquisa. Assim, para todoaquele que tenha compromisso com aluta por um mundo mais igualitário, esteé uma livro valioso e indispensável.

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Nas últimas três décadas do século XXhouve uma tomada de consciência, a ní-vel mundial, sobre a gravidade dos dese-quilíbrios ambientais. Mas isso não signi-ficou um único enfoque, pelo contrário,surgiu um leque de posições às vezes muitodivergentes. Ecologistas radicais, ecologis-tas moderados, neomalthusianos, ambien-talistas etc. refletiam uma forma diferentede ver a relação entre a sociedade e a natu-reza. Porém, a maioria deles concordavaque o marxismo tinha uma abordagemprodutivista, semelhante à dos cornuco-pianos (defensores de uma abundância eprogresso ilimitado) alheia às necessida-des de uma relação mais harmônica coma natureza. Inclusive, dentro das fileirasmarxistas surgiu um eco-marxismo, com-partilhando a dita perspectiva e promoven-do um enverdecimento teórico do materia-lismo histórico: caso de Benton (1996) quecompartilha com os ecologistas das críti-cas ao marxismo, e também de O´Connor(1998) que defende o marxismo frente aosecologistas, mas um marxismo em que aparte verde não é de Marx, mas do pró-prio O´Connor que disse complementar emelhorar.

Os poucos escritos em defesa do mar-xismo haviam sido extemporâneos, comoo livro de Schmidt O conceito de natu-reza em Marx, publicado em 1961, emuma linguagem dialética e com umaorientação filosófica, mas sem relaçãocom a consciência sobre a crise am-biental que se desencadeou no final da

década; ou, então, haviam sido recom-pilações de citações, como o livro deParsons, Marx and Engels on Ecology(1977), publicado precisamente no meiodas controvérsias, mas no qual a partedo autor constitui uma apresentação dasposteriores citações e não uma análiseaprofundada da lógica interna do pensa-mento marxista. Mais recentemente, em1991 apareceu o livro de Grundmann,Marxism and Ecology, seguindo atradição da escola de Frankfurt e do ante-rior livro de Schmidt. O trabalho deGrundmann constitui-se em uma leiturahumanista dos textos de Marx, e dá gran-de ênfase à tecnologia, uma das questõescentrais na discussão ambiental. Porém,não foi suficientemente discutido nosmeios ecologistas e ambientalistas.

No final do século, em 1999, forampublicados nos EUA dois livros comple-mentares sobre a Natureza e Marx (umde Foster – a versão encadernada destelivro saiu em 1999 – e outro de Burkett),ambos escritos por destacados marxis-tas e, embora de diferentes perspectivas,constituem-se em análises aprofundadasda lógica interna do pensamento marxistaem relação ao meio ambiente. Ambosconcluem numa visão radicalmente di-ferente do que os ecologistas e ambien-talistas vinham dizendo sobre o Marxverde. Em lugar de um Marx produtivistae cego ao desenvolvimento das forçasprodutivas, surge um Marx atento às con-seqüências negativas para o ambiente e

Os marxistas e o meio ambiente* Guillermo FoladoriJohn Bellamy Foster. 2000. Marx’s Ecology. Materialism and Nature. Nova York, Monthly ReviewPress, 2000.

* Professor visitante da Universidade Federal do Paraná

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à sociedade em sua totalidade. Em lugarde um Marx preocupado exclusivamen-te com a dinâmica social, surge um Marxque parte da co-evolução entre a socie-dade e a natureza. Em lugar de um Marxque não teria nada a dizer sobre a criseambiental contemporânea, surge umMarx que poderia oferecer, com o méto-do do materialismo histórico, uma alter-nativa à análise da crise ambiental.

Os livros de Burkett e de Foster secomplementam. O de Foster parte deuma perspectiva histórico-filosófica dopensamento marxista em relação ao am-biente. O de Burkett parte da estruturaeconômica de funcionamento do capita-lismo, exposta basicamente em O Capi-tal. Ambos são obras eruditas, que de-mandam um estudo detido para que de-las se tire o máximo proveito.

Foster localiza o pensamento de Marxdentro da tradição materialista e dialéticaque pode ser rastreada até Epicuro. En-quanto hoje em dia os ambientalistas eecologistas estão buscando um métodopara relacionar as ciências físico-natu-rais e as ciências sociais, Marx tinhaconsciência da necessidade de seu ma-terialismo pertencer ao “processo da his-tória natural” e, segundo o filósofoBhaskar, “a tese de que há uma unidademetodológica essencial entre as ciênciassociais e as naturais”. A base dessa uni-dade está naquilo que Marx chama demetabolismo social, o processo social detransformação da natureza através doqual a própria sociedade humana setransforma.

Enquanto uma das principais críticasdos ecologistas a Marx é a da sua faltade interesse pelas questões ecológicas,Foster mostra, com dados biográficos, opermanente interesse de Marx pelos

avanços da ciência: assistindo a confe-rências e lendo o que podia a respeito.Mas, longe de ficar no relato histórico-biográfico, Foster mostra que os conhe-cimentos de química e agronomia foramdecisivos para o desenvolvimento de suateoria da renda do solo, em oposição àde David Ricardo, assim como as leitu-ras de Darwin e dos antropólogos foramtambém fundamentais na sua teoria daevolução das sociedades e das possibili-dades de superação do capitalismo. Ain-da mais fundamentel é a própria análisedo trabalho – este, ponto de partida dodistanciamento físico-natural do homemfrente aos outros animais –, e de suas for-mas como essencial para a explicação dadinâmica social. Assim, o processo de me-tabolismo social é, a um tempo, um pro-cesso de co-evolução entre o mundo físi-co-natural e as relações sociais humanas.

Longe de uma visão prometeica eprodutivista, da qual também é acusadohoje em dia, Marx elabora toda a sua teo-ria do materialismo histórico a partir daforma como a sociedade humana se dis-tancia da natureza externa que constituisua base de existência. Nas palavras deMarx:

Lo que necesita explicación, no és resul-tado de un proceso histórico, no és launidad del hombre viviente y actuante,con las condiciones inorgânicas, natu-rales, de su metabolismo con la natura-leza, y por tanto, su apropriación de lanaturaleza, sino la separación entre estascondiciones inorgánicas de la existenciahumana y esta existencia activa, unaseparación que por primera vez és puestaplenamente en relación entre trabajoasalariado y capital (Marx, 1971. p. 67).Marx não atribui valor à natureza,

dizem os críticos de hoje. Mas, segundo

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Foster, Marx sempre reiterou que são aspróprias relações capitalistas aquelas queprivam a natureza do valor específico, ea convertem em mercadoria com preço;por exemplo, quando escreve:

Money...has therefore deprived the entire

* Professor do Departamento de Filosofia da Unicamp

world — both the world of man and ofnature — of its specific value.Com os livros de Burkett e de Foster,

o pensamento marxista sobre o meioambiente começará o século XXI comuma força difícil de se contrapor.

“O sonho dos dirigentes totalitáriostornou-se realidade. A partir de agora, etendo por agentes aqueles que dominamo mundo com uma tecnologia altamentesofisticada, é possível (sem qualquer ris-co e custo humano) atacar, destruir e, fi-nalmente, derrotar um determinado paíssimplesmente por ataque aéreos. [...]Sem qualquer força que possa se opor àComunidade Internacional, que com-preende e lidera 15% da população mun-dial, acabou por transformar-se numvampiro capaz de matar dia e noite sema mínima possibilidade de ser contido.Quase todo dia surgem novos resultadosmortais desta política nos “países não-racionais”: Ruanda, Bósnia, Turquia(contra os curdos), Sudão, Chechenia,Timor-Leste, Salvador, Guatemala,Iraque, Iugoslávia (incluído Kosovo).Nesse contexto, as Nações Unidas sãoum corpo morto [...]. Após milhares deanos de desenvolvimento de umaracionalidade que aparentemente objeti-vava um mundo unificado baseado nosdireitos humanos fundamentais, a mo-dernidade tornou-se tema de alguns pou-

cos que exercem a dominação mundialsem escrúpulos e com uma força brutal.A Idade da Pedra reaparece em sua ver-são mais sofisticada”.

Assim se abre, na tradução deNewton Ramos de Oliveira, uma versãosintética de The new totalitarian society,livro publicado em 1999 por Emil Vlajki,croata por parte de pai e judeu por partede mãe, mas sobretudo um internacio-nalista no melhor sentido do termo: nãoum cosmopolita “globalizado”, mas umamigo da humanidade em sua concre-tude, principalmente dos povos oprimi-dos, destroçados pelo novo tipo deholocausto cuja eficiência foi experimen-talmente comprovada no Iraque e naSérvia. A análise que então ofereceu põeem evidência o indecentemente hipócri-ta e covarde massacre balístico promo-vido, em nome dos “direitos humanos”,pelos valentões do Pentágono e seus cãesde guarda da OTAN. “Não há registro nahistória mundial deste tipo de cinismoque, em nossa época, ocorre na Iugoslá-via.” Depois dos sérvios na Croácia e dosmuçulmanos da Bósnia, as vítimas ago-

A destruição da Iugoslávia* João Quartim de MoraesEmil Vlajki,The new totalitarian society and the destruction of Yugoslavia, Ottawa, Legas, 1999.Demonization of Serbs, Ottawa, Revolt, 2001.

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ra são cerca de um milhão de albanesese oito milhões de sérvios que estão sobos ‘humanitários’ ataques aéreos daOTAN.”

Vlajki sustenta que embora “a metaestratégica principal” dos imperialistasfosse “destruir [...] uma aliada (a Sérvia)da (futura e forte) Rússia”, eles tambémqueriam “impedir que os muçulmanosentrem na Europa através da Bósnia e/ou da ‘Grande Albânia’”. Assim, para aComunidade Internacional, a ameaça àestabilidade da região tem sido os mu-çulmanos da Bósnia e Kosovo e ossérvios da Croácia, Bósnia e Monte-negro. [...]. Durante a primeira onda deguerras, a Comunidade Internacionalajudou a Croácia a livrar-se de 400 milsérvios que estavam instalados na regiãode Lica, Zagreb e Eslavônia (foi a piorlimpeza étnica que ocorreu nesta guerrasuja, 1992-1995). Ao mesmo tempo, [...]permitiu que croatas e sérvios eliminas-sem um grande número de muçulmanosna Bósnia e que os muçulmanos eliminas-sem cerca de 150 mil sérvios de Saravejo.Por fim, pelo acordo de Dayton, os sérviosda Bósnia foram obrigados a cortar todosos vínculos com a Sérvia e os muçulma-nos foram neutralizados pela Confedera-ção Muçulmanos-Croatas”.

Manipulando todos os povos da região,lançando uns contra os outros, ocupandoa Albânia [...], estabelecendo bases naMacedônia e, enfim, diante da recusa daIugoslávia em consentir na presença detropas estrangeiras no Kosovo, parte inte-grante de seu território, encorajando osalbaneses que lá viviam a exigir indepen-dência, os “humanistas” da OTAN cria-ram um cenário catastrófico que lhes ser-viu de pretexto para massacrar a Sérvia etransformar toda a região em protetorado.

No livro mais recente, Demonizationof Serbs, Vlajki desenvolve, como anun-ciado no subtítulo (“western imperialismand media war criminals”), enérgico eextremamente bem documentado libelocontra os celerados que intoxicaram aopinião pública ocidental para apresen-tar a destruição da Iugoslávia como umaexigência do que chamam de Comu-nidade Internacional, mas que não passada cosa nostra do Império do dólar. Umacronologia, cujo marco zero é o ano de1986 e o marco final, a derrubada deMilosevich em outubro de 2000,relembra os principais episódios do lento,gradual e implacável esquartejamento doque foi a república socialista confedera-da dos eslavos do sul (p.22-30).

Copiosa documentação desmascara,conforme a concisa expressão de RaquelMoraes reproduzida na contra-capa, o“falso humanismo” estadunidense. Vlajkivincula-o à “nova sociedade totalitária”,em que a indústria da mentira globa-lizada fabrica, até nos pormenores, as“notícias” que domesticam a opiniãopública. A eficácia da intoxicaçãomediática, entretanto, não é absoluta. Aanestesia moral dos cidadãos do chama-do “Ocidente” não resistiria, como nãoresistiu nos Estados Unidos durante aguerra suja no Vietnã, ao acúmulo debaixas do lado da OTAN. Graças, entre-tanto, ao método de guerra próprio aimpérios moralmente obesos, mas deten-tores das mais terríveis armas de des-truição maciça, os desfibrados eunucosque combatem apertando botões e po-sando para as câmeras da televisão con-seguiram minar a coragem do povosérvio com um dilúvio de mísseis, alémde armas condenadas pelas convençõesinternacionais, como as bombas de frag-

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mentação e de urânio “empobrecido”.“Como os Estados Unidos ousam com-parar outros povos com os nazistas?”,pergunta Vlajki, lembrando, entre mui-tos outros, os fatos de que “os primeiroscampos de concentração da era moder-na foram as reservas dos US para os ín-dios; [...] a esterilização de gente soci-almente ‘indesejável’ foi corrente nosUS muito antes de Hitler”, como tam-bém o foram “os maciços experimentosde horror biológico” (p. 178).

No que concerne aos índios, vale tam-bém lembrar que as duas principais ar-mas utilizadas na destruição da Iugoslá-via sob pretexto de impedir a “limpezaétnica” dos albaneses foram os mísseisTomahawk e os helicópteros Apache,nomes de duas tribos “pele-vermelha”exterminadas pelos estadunidenses noséculo XIX. Insuperável descaramentodo Império do dólar!

As raras perdas humanas do belige-rante vencedor foram devidas a aciden-tes provocados por sua própria torpeza.Assim, a cruel ironia que vitimou solda-dos das tropas inglesas de ocupação, atin-gidos quando efetuavam vistoria numaescola de Kosovo, por criminosas bom-bas de fragmentação lançadas por seuspróprios colegas. Teve razão Fidel Cas-tro ao classificar a destruição da Iugos-lávia como “a guerra mais covarde detodos os tempos”.

Comprovando a completa instrumen-talização da máquina imperialista de“notícias”, Demonization of Serbs mos-tra que quanto mais criminosos e letais

se revelavam as conseqüências do mas-sacre balístico de 1999, maior era o em-penho dos mandantes do genocídio e deseus prepostos “mediáticos”, treinadospara morder quem o dono manda, emjogar sobre os ombros de Milosevich edos patriotas sérvios a responsabilidadepela atroz tragédia. A demonização dossérvios veio justificar a destruição daSérvia.

Dessa robótica unanimidade neoli-beral participaram também os “comuni-cadores” da periferia. Não somente,entre nós, os da imprensa assumida-mente de direita, como O Estado de S.Paulo, mas também aqueles habituadosa cortejar a sensibilidade cultural espon-tânea do intelectual médio, como a Fo-lha de S. Paulo, que só trata Milosevichde “ditador”, mas bajulou vergonhosa-mente, anos a fio, a ditadura militar bra-sileira, com especial carinho pelo presi-dente Médici.

Seqüestrado e vendido por centenasde milhões de dólares aos esbirros daOTAN pelo atual primeiro-ministro daSérvia, Zoran Djindjic, do Partido De-mocrático (sic), Milosevich, com a dig-nidade e a coragem de que carecem seusdesafetos, declarou firmemente que nãoiria recorrer a advogado de defesa, por-que o Tribunal Penal Internacional deHaya, para onde o levaram, é ilegal. Foicriado pelo Conselho de Segurança daONU, dominado pelo Império do dólare seus satélites e não pela AssembléiaGeral da ONU. Só julga os adversáriosdo Departamento de Estado imperial.

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Marx: intérprete e vítimada modernidade?João Feres*Marshall Berman. Adventures in Marxism. Verso, Nova York, 1999.

* Mestre em Filosofia pela Unicamp

Adventures in Marxism chega às livra-rias americanas quase duas décadas apóso lançamento de All that is Solid Meltsinto Air (Tudo que é sólido desmancha noar). O livro é uma coletânea de ensaios,uma retrospectiva da produção acadêmi-ca de Berman durante o longo hiato quesepara a publicação desses dois livros. Aintrodução e o capítulo final são textos ori-ginais compostos especialmente para o li-vro, os outros doze capítulos já aparece-ram em outras publicações na forma deartigos e resenhas. Um dos capítulos,Marx, Modernism and Modernization foiextraído do próprio Tudo que é sólido.

O texto como um todo é consistentee resiste bem às forças centrípetas queameaçam fragmentar qualquer coletânea.Mais uma vez Berman mostra que es-creve como poucos no meio acadêmico.O autor é mestre em envolver o leitornas tramas do texto, através de uma mis-tura bem dosada de inspiração argumen-tativa, inovação interpretativa e emotivi-dade narrativa. Com a nítida intenção deapagar a fronteira que separa o texto aca-dêmico do literário, Berman faz uso daidéia de Bildung, emprestada do roman-tismo alemão, para analisar autores comoGeorg Lukács, Isaac Babel, MeyerShapiro, Walter Benjamin e Studs Terkel.Esse método permite traçar paralelos erelações entre as histórias de vida dosautores e as contradições e ambigüida-

des expressas (ou reprimidas) em suasobras. A tragédia da vida pessoal gerasofrimento mas também conhecimento,desenvolvimento individual.

Onde estaria Marx no meio dissotudo? Existe um contexto comum à vidados personagens trágicos visitados porBerman: a modernidade. Para o autor,Karl Marx é o seu melhor intérprete.Porém, o Marx apresentado por Bermannão é só um perspicaz analista de seutempo. Ele é também vítima, sujeito àspenúrias de uma vida pobre de exilado,atormentado pelas incertezas do projetorevolucionário e ambíguo em relação asua ascendência judaica. De fato, todosos autores apresentados no livro, in-cluindo o próprio Berman, são engol-fados pelo torvelinho da modernidade:tudo que é sólido desmancha no ar. ParaBerman essa é muito mais que uma pas-sagem do Manifesto ou um título de li-vro, é de fato o leitmotiv da própriamodernidade.

Adventures é marcado por uma certacircularidade narrativa e temática.Berman começa o livro contando suaprópria aventura com o marxismo, quetambém é uma aventura com a moder-nidade. Em seguida ele narra as aventu-ras marxistas/modernas de outros auto-res, que por seu turno elaboraram outrasnarrativas sobre Marx e a condição mo-derna. Autores e objetos se confundem.

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Os círculos podem ser “lidos” em para-lelo — Marx, Berman, os marxistas, etalvez o leitor enfrentando cada um suasaventuras modernas – ou de forma con-cêntrica; o leitor lê a aventura de Bermanque se inspira nos marxistas que, por seuturno, se inspiraram em Marx.

Mas afinal de contas, em que consis-te essa tal modernidade? Quem leu Tudoque é sólido... já sabe a resposta, ela estálá em quase todas as páginas do livro. Amodernidade é o estado de coisas criadopelo advento do capitalismo, ou seja, umproduto da revolução burguesa. Bermanusa Marx para celebrar os dotes revolu-cionários da burguesia, a classe que ani-quilou velhas tradições e instituiçõessociais, criou uma capacidade produtivasem igual e abriu possibilidades infini-tas para o desenvolvimento humano. Pa-radoxalmente, a revolução contínua damodernidade capitalista produz misériae opressão para muitos, o que acaba porreduzir suas possibilidades de desenvol-vimento individual. Esta ambigüidadecaracterística do capitalismo é, paraBerman, o espírito da modernidade.

Berman é um arauto da modernidadee, como tal, não quer destruir sua ambi-güidade fundamental. Por essa razão usoo termo ambigüidade e não contradição,palavra que no vocabulário marxistacorresponde a uma tensão dialética queaponta para uma resolução. Pelo contrá-rio, para Berman parece não haver reso-lução. O autor dá mostras de ser críticosevero das teorias e experiências revolu-cionárias anticapitalistas. Sem o capita-lismo a modernidade perderia o motorda “revolução perpétua”, quer dizer, dei-xaria de ser modernidade. Chegamosaqui ao lado menos claro e mais proble-mático do pensamento de Berman. Parte

desses problemas o autor herdou do pró-prio Marx, que também exagera na des-crição do caráter revolucionário da clas-se burguesa e minimiza o uso que essamesma classe faz de formas de discrimi-nação e opressão tradicionais. A miopiade Marx, porém, deve ser em parte des-contada pelo fato de ele ter vivido na au-rora do capitalismo industrial. O mesmonão pode ser dito da de Berman, que tra-ta os capitalismos do início do séculoXIX e do final do século XX de maneiraquase indistinta, como se o que foi ditopara um valesse para o outro. Ora, umséculo e meio passados da redação dosManuscritos econômicos e filosóficos, nãopodemos nos permitir ser tão ingênuos. Aimutabilidade com a qual o capitalismo étratado pelo pensamento bermaniano re-cende à escatologia, não à marxista mas ànoção de “fim da história” criada pelo li-beral Francis Fukuyama. Berman, no en-tanto, substitui a celebração por um tommais trágico.

À deficiência histórica da análise deBerman está associada um problema geo-gráfico. Apesar de imortal, o capitalis-mo, para ele, ainda não completou o seutrabalho aqui na Terra. Somente os EUAe a Europa ocidental são de fato capita-listas e, portanto, plenamente modernos.O resto do mundo, ou seja, o TerceiroMundo, está ainda à espera da redenção.O autor parece ignorar que muitos luga-res do tal Terceiro Mundo já estão emcontato com o “capitalismo moder-nizante” há séculos, e que esse contatomuitas vezes é responsável pela repro-dução da pobreza e da miséria naqueleslugares. Uma passagem no capítulo so-bre Marx e o marxismo revela o quãoproblemática é essa concepção. Apósfestejar o realismo fantástico latino-ame-

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ricano como gênero literário eminente-mente moderno, o autor diz que essemesmo modernismo é a razão pela qualesses autores são perseguidos pelos go-vernos de seus países e obrigados a seexilar na Europa e nos EUA. SegundoBerman, os governos autoritários (leia-se, pré-modernos) tentam banir o moder-nismo a qualquer custo. Porém, diz oautor, o progresso do capitalismo em es-cala mundial vai forçar esses governantesa aceitar a modernidade. Ora, o fato deos governos autoritários da América La-tina terem sido pró-capitalismo e teremcontado com o apoio do governo e doscapitalistas americanos para reprimir asmanifestações culturais “modernas” pa-rece escapar ao autor. Tristemente, seolharmos de perto, a concepção deBerman não dista muito daquela dos teó-ricos americanos da modernização dosanos 50 e 60. Para eles, o problema do“Terceiro mundo” é falta de capitalismo.Essa é uma doutrina de fazer o jovemFernando Henrique remexer no túmulo.

Tudo que é sólido... está agora em sua19a edição. É com certeza um dos livrosacadêmicos de maior sucesso na histó-ria do mercado editorial brasileiro. Setraduzido e publicado, Adventures in

Marxism talvez consiga aproveitar umpouco do sucesso do livro anterior. Omomento histórico de hoje, porém, é bemdiferente daquele do início dos anos 80.Se naquela época a leitura original queBerman faz de Marx servia de inspira-ção para a esquerda descontente com oconservadorismo e o autoritarismo dosstalinistas, hoje os mesmos argumentos,repetidos em Adventures, soam comoloas ao capitalismo imperialista do con-senso de Washington. Ao fim do livroBerman festeja a globalização, dizendoque ela produziu meios para as pessoasse comunicarem em escala mundial,criando uma cultura global através do ci-nema, do vídeo e da música. Esqueceu-se de dizer que o indivíduo precisa saberinglês para desfrutar de toda essa “rique-za” cultural, composta na sua maioria defilmes roliudianos, videoclipes da MTVe Sitcoms americanos. O contraste entreo enriquecimento sem limites dos EUAe o empobrecimento dos países do Ter-ceiro Mundo, outro produto da globa-lização, é sequer citado por Berman. Tal-vez porque esse fenômeno seja apenasmais uma operação necessária da máqui-na da modernidade, que a tudo desman-cha no ar.