SE É NEGRO É SUSPEITO, SE É SUSPEITO É NEGRO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA PRODUÇÃO DE SUSPEITA EM NOTÍCIAS DA
FOLHA DE S. PAULO
Maria Vitória Silva Paiva
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais, Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários
à obtenção do título de mestre.
Orientadora: Profª. Drª. Maria Cristina Giorgi Coorientador: Prof. Dr. Fabio Sampaio de Almeida
Rio de Janeiro Março de 2015
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SE É NEGRO É SUSPEITO, SE É SUSPEITO É NEGRO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA PRODUÇÃO DE SUSPEITA EM NOTÍCIAS DA
FOLHA DE S. PAULO
Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-graduação Mestrado em Relações Étnico-raciais, Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de mestre.
Maria Vitória Silva Paiva
Aprovada por:
_______________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina Giorgi– Orientadora
________________________________________________
Prof. Dr. Fábio Sampaio de Almeida – Coorientador
_______________________________________________
Profª. Drª. Sônia Beatriz dos Santos
_______________________________________________
Prof. Dr. Bruno Rêgo Deusdará Rodrigues - UERJ
Rio de Janeiro Março de 2015
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ
P149 Paiva, Maria Vitória Silva Se é negro é suspeito, se é suspeito é negro: uma análise
discursiva da produção de suspeita em notícias da Folha de S. Paulo / Maria Vitória Silva Paiva.—2015.
106f. + anexos : il. ; enc. Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação
Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2015. Bibliografia : f.104-106 Orientadora : Maria Cristina Giorgi Coorientador : Fabio Sampaio de Almeida 1. Racismo na imprensa – Brasil. 2. Análise do discurso. 3.
Discriminação racial – Brasil. 4. Folha de S. Paulo (Jornal). I. Giorgi, Maria Cristina (Orient.). II. Almeida, Fabio Sampaio de (Coorient.). III. Título.
CDD 305.80981
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Dedico essa dissertação à minha querida mãe, Josefina Santos Paiva (dona Nega)
que partiu durante o processo de construção da mesma, mas que continua
conectada comigo, transmitindo proteção como sempre fez em vida, ao enviar suas
orações. Mãe, agradeço em primeiro lugar pela vida e pelo seu amor, pois sem ele
eu não seria quem sou. Carregarei para sempre a lembrança do seu amor, força e
coragem dentro de mim.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu pai, Hercílio Ferreira Paiva, pela vida, força e amor. Aos meus
irmãos pelo amor, apoio e cuidado, vocês são muito importantes para mim e me
impulsionam para a vida com seu exemplo de luta e coragem. Aos meus sobrinhos queridos
e aos sobrinhos-netos.
Agradeço imensamente à Cristina e ao Fábio, meus orientadores, pela paciência e
dedicação na orientação a distância.
Aos professores e colegas do mestrado, com os quais aprendi muito.
Aos amigos que cuidaram de mim, que foram me visitar no hospital durante os
longos dias que passei hospitalizada. Agradeço à Katie, que cuidou de mim e me apoiou nos
momentos mais difíceis. À minha querida amiga Naiza, que foi intermediária fundamental
pelo fato de eu continuar aqui. Agradeço pelo carinho e amizade, irmãzinha querida. À
minha querida amiga e vizinha Mônica, à Mariana e à dona Maria. À Dora, amiga desde os
tempos da faculdade, com quem sempre soube que poderia contar. Sou grata também à
toda família da Dora, que de certa forma também considero fazendo parte, Jurema, Jussara,
Nena, dona Sebastiana, Juarez, Edna e as crianças pelo carinho e cuidado. Às amigas e
aos amigos, Heidi, Selma, Andreia, Ana Paula, Leila, Cleide, Claudinha, Everaldo, Mario,
Margarida, Oscar, Neusa, Ximena, Alexandra, Kevin e Júlia, que me acolheram no Rio.
Agradeço de coração a todos os amigos que estão no meu Baobá: Ricardo
Amorim, Ana Lúcia, Ricardo Riso, Lene Grandesso, Ilda, Bráu Mendonça, José, Melissa,
Katia, Edina, Nadja, Fernanda Arita, Neusa, Raquel, Tom Viana, Elza, Toninho, Eliad, Ester,
Luciane, Lucymar, Fernanda, Telma, Laia, Lia, Zé Hércules, Thatiana, Deque, Maria dos
Reis, Michelly, Nec, Sérgio, Leda Fleury, Marília. Ao Dr. Christiano Jorge dos Santos, do
Ministério Público do Estado de São Paulo, à Dra. Daniela Skromov de Albuquerque, do
Núcleo de Direitos Humanos e à Dra. Vanessa Alves, do Núcleo de Crimes Raciais, ambas
da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Ao Steve, que muito me apoiou na reta final dessa pesquisa, muito obrigada.
vi
“Quando você for convidado pra subir no adro Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos (E são quase todos pretos)
Como é que pretos, pobres e mulatos E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados”
(Caetano Veloso)
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RESUMO
SE É NEGRO É SUSPEITO, SE É SUSPEITO É NEGRO: UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA PRODUÇÃO DE SUSPEITA EM NOTÍCIAS DA
FOLHA DE S. PAULO
Maria Vitória Silva Paiva
Orientadores:
Profª. Drª. Maria Cristina Giorgi
Prof. Dr. Fabio Sampaio de Almeida
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-Raciais do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-raciais. O presente estudo tem por objetivo refletir acerca da produção discursiva do processo de suspeição e da pessoa negra e sua condução à condição de “fora de lugar”, a partir das representações que o meio social, a polícia, a justiça e a mídia têm feito desta população. Entendemos que esse processo é o resultado da colonização que expropriou o africano de sua humanidade e é reforçado nos discursos com o objetivo de manter os privilégios do grupo hegemônico. O estudo realizado é de natureza qualitativa e sua metodologia foi composta por pesquisa bibliográfica, pesquisa no acervo do jornal Folha de S. Paulo e análise discursiva das notícias. Em um primeiro momento, refletiu-se sobre as representações que se têm feito ao longo dos séculos do povo negro, as histórias contadas como forma de verdade por meio de discursos que terminam por justificar a dominação e perpetuar as diferenças como justificativa para a exclusão. Focou-se no racismo institucional, que não considera a diversidade de culturas e grupos na formação do povo brasileiro, com base no mito da democracia racial, institucionalizando as desigualdades nas relações entre brancos e negros no Brasil. Diante dessa realidade sócio-político-econômico-cultural, apresentaram-se algumas políticas públicas e ações afirmativas criadas com o objetivo de corrigir o problema. Como aporte teórico, no que se refere a racismo recorreu-se a GUIMARÃES (2005), MUNANGA (1999), FREYRE (2002), e relativos à identidade HALL (2002, 2003, 2013), no que tange à linguagem lançamos mão dos conceitos de BAKHTIN (1995, 1997), da analise de discurso enunciativa MAINGUENEAU (2004, 2013) e no que no que diz respeito às relações de poder/saber recorreu-se a FOUCAULT (2002, 2004, 2013, 2013a). O estudo apontou para a omissão do jornal no que diz respeito à violação dos direitos das pessoas negras, a pretexto da pretensa neutralidade da imprensa, observou-se também um descrédito no trabalho da polícia, outra conclusão a que se chegou foi a de que a desumanização da pessoa negra legitima a ação e a omissão da mídia, da polícia, da justiça e da sociedade como um todo.
Palavras-chave: Produção da suspeita; Racismo institucional; Análise discursiva de notícias
Rio de Janeiro Março de 2015
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ABSTRACT
IF HE’S BLACK, HE’S SUSPECT, IF HE’S A SUSPECT, HE’S BLACK: A DISCURSIVE ANALYSIS OF THE PRODUCTION OF SUSPICION IN NEWS
ARTICLES IN THE FOLHA DE S. PAULO
Maria Vitória Silva Paiva
Orientadores:
Profa. Dra. Maria Cristina Giorgi
Prof. Dr. Fabio Sampaio de Almeida
Summary of Master´s Dissertation submitted to the Graduate Program in ethnic-racial relations of the Federal Center of Technological Education Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, as part of the requirements needed to obtain of Master of ethnic-racial relations.
This study aims to reflect on the discursive production of the process of suspicion-building, the black person, and his/her being put in the condition of “out of place”, based on how representation in the social environment, the police, the justice system and media has drawn this population. We understand that this process is the result of the colonization that expropriated the African of his humanity, and it is reinforced in discourses with the objective of maintaining the privileges of the dominant, hegemonic group. The study is qualitative in nature, and its methodology was composed of bibliographic research in the archives of the newspaper the Folha de S. Paulo, and discursive analysis of the news therein. The first step was to reflect on how black people have been portrayed for centuries, and the stories told as a form of truth via discourses that end by justifying domination and perpetuating differences as if they were justifications for exclusion. It focused on institutional racism, which did not consider the diversity of cultures and groups in the formation of the Brazilian people, and was based on the myth of racial democracy, institutionalizing the inequalities in relations between whites and blacks in Brazil. Given this socio-political-economic-cultural reality, some public policies and affirmative actions have been created with the objective of correcting the problem. The following served as references for theoretical contributions with regard to racism: GUIMARÃES (2005), MUNANGA(1999), FREYRE(2002), with regard to identity: HALL(2002, 2003, 2013); regarding language we used the concepts of BAKHTIN (1995,1997), for analysis of the enunciative discourse, MAINGUENEAU(2004,2013), and with respect to relations of power and knowledge, FOUCAULT(2002, 2004, 2013, 2013th).The study pointed out the newspaper's omissions with regard to the violation of the rights of black people on the pretext of alleged neutrality of the press. There was also a disparagement of police work. Another conclusion that was reached was that the dehumanization of black people legitimates the action and omissions of the media, the police, the justice system, and society as a whole. Key Words: Production of suspicion; Institutional racism; Discursive analysis of the news
Rio de Janeiro 2015, March
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SUMÁRIO
Apresentação 1
Introdução 5
I. TODO PONTO DE VISTA É VISTO DE UM PONTO 15
I.1. Definição de raça 15
I.2. Mito da democracia racial 17
I.3. Racismo institucional 19
II. A CEGUEIRA DA JUSTIÇA 27
II.1.Crime e castigo 27
II.2.Racismo e a justiça 30
II.3. Políticas Públicas de Ação Afirmativa 37
II.4. O Estatuto da Igualdade Racial 39
III. IDENTIDADE E AFIRMAÇÃO 42
III.1 Saber é poder 48
III.2 Linguagem e subjetividade 50
III.3 Os gêneros do discurso 51
III.4 Análise do Discurso, segundo Maingueneau 55
III.5 Uma Semântica Global 57
IV. ANÁLISEDAS NOTÍCIAS PÚBLICADAS NA FOLHA DE S. PAULO: OS OLHOS NÃO LEEM, MAS O CORPO PADECE 59 IV.2. Discursos Veiculados Pela Mídia: Quais São As Denominações Do
Racismo 61
Condiderações finais 98
Referências Bibliográficas 104
Anexos 107
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LISTA DE ABREVIATURAS
AD – Análise de Discurso
CEPIR – Coordenadoria Especial de Promoção da Igualdade Racial
CFO – Curso de Formação de Oficiais
CFSD – Curso de Formação de Soldados
CID – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a
Saúde
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas
LAESER – Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais
MNU – Movimento Negro Unificado
PCRI – Programa de Combate ao Racismo Institucional
PLANAPIR – Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial
PM – Polícia Militar
PNAD – Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar
PNDH – Programa Nacional dos Direitos Humanos
PNPIR – Política Nacional da Promoção da Igualdade Racial
PROUNI – Programa Universidade Para Todos
SEPIR – Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial
SSP – Secretaria de Segurança Pública
UNESCO – Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas
UPP – Unidade de Polícia Pacificadora
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APRESENTAÇÃO
Falar sobre a instituição “polícia” nunca me trouxe boas lembranças; essa sensação e
percepção são mais pela experiência indireta do que pela vivência negativa de forma direta.
Recordo-me do ódio que meu irmão sentia da polícia ao lembrar-se de uma situação de
humilhação, vivenciada na ocasião do seu alistamento, fato ocorrido há mais de 40 anos. De
meu sobrinho ligando-me para contar que acabara de ser interrogado por um policial sobre o
que estaria fazendo em frente à escola onde estudava. Ressalto que, além dele, havia dezenas
de outros estudantes e o policial dirigiu-se apenas a ele, como se só ele estivesse “fora do
lugar”. Lembro-me também de um amigo negro ser abordado pela polícia, a qual lhe solicitou
os documentos. Ao questionar o motivo da abordagem, eles responderam que era um
procedimento padrão. Infelizmente, sabemos que esse “padrão” é o racismo cotidianamente
praticado por esses representantes da lei, que consideram o negro suspeito, projetando nele
todo seu ódio.
Eu, com minha a experiência de ser vítima de racismo há mais de 20 anos, tive minha
denúncia registrada em Boletim de Ocorrência como constrangimento ilegal. E o convívio com
a angústia de pessoas que também foram vítimas do mesmo crime e que estão procurando
fazer a diferença, além das vivências dos meus familiares supracitados, motivaram-me a
desenvolver a presente pesquisa.
Entendo que as percepções e sentimentos que tenho diante da minha vivência
justificam minhas motivações, pois como já dizia Freud, somos no mínimo neuróticos, ou seja,
é natural o humano se comover com o sofrimento dos seus pares, seus iguais e ser mais
tolerante com as mazelas, com o sofrimento dos grupos diferentes do seu de pertencimento,
seja ele social, cultural, político-ideológico. Além disso, me senti chamada a fazer parte da
construção de uma sociedade com mais justiça social, menos individualismo e mais tolerante
com as diferenças.
Os paradigmas que orientam minha visão de mundo e a maneira como nele me coloco
estão diretamente relacionados à minha origem, meus valores, minhas inquietações que
determinam minhas prioridades. Desse modo, não poderia deixar de existir uma relação entre
meu objeto de pesquisa e minha vivência de mulher negra e nordestina.
Cresci impregnada pela ideologia do branqueamento como uma possibilidade de
mobilidade social e integração, mas desde muito cedo percebi que essa possibilidade não
estava dentro de mim, ou seja, não internalizei essas ideias ou se as internalizei durante algum
tempo, pude com minha percepção e através do acesso a outros meios de informação,
desconstruí-las. Mais tarde, descobri que não seria possível agir individualmente, era preciso
agir em grupo, então passei a compreender a importância da organização da sociedade em
prol de objetivos comuns.
2
Devido à minha vivência pessoal e formação profissional, fui convidada pela Drª.
Cleide Vitorino, a qual fazia parte do Conselho deliberativo da Coordenação do Negro – CONE
a conhecer o trabalho do Centro de Referência de Direitos Humanos na Prevenção e Combate
ao Racismo na cidade de São Paulo. O serviço que fazia parte do CONE foi integrado à
Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial, criada em abril de 2013.
Aproximadamente duas semanas após nosso encontro, reuni-me com ela e Naiza Santos,
coordenadora do serviço, para pensar uma possível atuação no atendimento às vítimas de
racismo, que após episódios de racismo sofridos, passavam por grande estresse emocional e,
em muitos casos, eram acometidas por doenças psicossomáticas.
Algumas semanas depois do nosso encontro, em julho de 2010, passei a atender
algumas pessoas usuárias do serviço, mas a minha intenção desde o início era fazer um
trabalho em grupo, pois acreditava que o grupo contribui para o fortalecimento de vínculos,
diluição do sofrimento, acolhimento para que a vítima sinta que não está sozinha e é um
espaço de troca de ideias e experiências. Com essa finalidade, em março de 2011, iniciou-se o
grupo terapêutico.
O objetivo do grupo com vítimas de racismo tinha como proposta de intervenção
trabalhar os aspectos psicossociais do racismo, promover alívio do sofrimento provocado pela
discriminação racial, por meio da externalização do sofrimento e da escuta, criar uma rede de
vínculos solidários, visando ao fortalecimento pessoal e grupal como forma de unir forças em
torno de reflexões mais amplas a respeito do racismo, cultura, acesso à informação e à justiça.
Minha intenção foi contribuir com a diminuição do sofrimento e fortalecimento da identidade
pessoal e, enquanto grupo, a questão do pertencimento.
Fazendo um primeiro diálogo com as questões de linguagem que serão mais tarde
desenvolvidas, entendo que as narrativas das vítimas de racismo em grupo terapêutico, além
de espaço de expressão dos sentimentos, contribuem para a reorganização de ideias e ações,
pois conforme afirma FIORIN (2013):
“A linguagem não se presta somente para perceber o mundo, para categorizar a realidade, para realizar interação social, para informar, para influenciar, para exprimir sentimentos e emoções, para criar e manter laços sociais, para falar da própria linguagem, para ser fonte de prazer, mas serve também para estabelecer uma identidade social” (FIORIN, 2013, p. 26).
O processo de construção dessa pesquisa iniciou-se a partir do meu trabalho com o
grupo de pessoas vítimas de racismo, já mencionado, até então sem intenção. Nesse período,
fui informada por Naiza Santos, coordenadora do Centro de Referência, da abertura do edital
para a primeira turma do curso de Relações Etnicorraciais do CEFET-RJ. Como eu estava com
muito trabalho naquele momento de 2010 e devido à escassez do tempo para envio do projeto,
não foi possível minha participação.
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No ano seguinte, quando me inscrevi para concorrer a uma vaga no programa, fui
desenhando meu objeto de estudo, com isso muitas possibilidades foram aparecendo, muitas
delas relacionadas à minha prática profissional e a questões que considero importantes para
pensar a sociedade brasileira.
Com o resultado do grupo terapêutico, apresentei três comunicações em congressos
sobre essa experiência. O primeiro trabalho apresentado foi “Terapia Comunitária e
diversidade étnica”, em formato de pôster, em 2011, no VI Congresso Brasileiro de Terapia
Comunitária Integrativa, na cidade de Santos, São Paulo. O segundo trabalho: “UM ABRAÇO
NEGO – Identidade, União e Empoderamento”, em formato de vídeo, exibido na II Mostra de
Práticas em Psicologia, realizado em setembro de 2012, na cidade de São Paulo. Por último,
em outubro de 2013, também na cidade de São Paulo, apresentei “Narrativa de vítimas de
racismo em grupo terapêutico – uma abordagem discursiva” no 19º – Intercâmbio de
Pesquisa em Linguística Aplicada (19º InPla) e 5º – Seminário Internacional de Linguística (5º
SIL).
Os trabalhos apresentados contribuíram para dar visibilidade ao problema do racismo
como um problema estruturante na sociedade brasileira, que permeia as relações sociais,
sejam elas na segurança pública, nas relações de trabalho, educação, comércio, no bairro,
entre vizinhos, entre tantos outros. Essa estrutura perversa, que coloca o negro na linha de
frente do combate para garantir e perpetuar o lugar daqueles que detém os privilégios, é fruto
da desumanização imputada ao negro. Reverter a sutileza dessa lógica exige reflexão e ação.
Meu objeto inicial de pesquisa era o racismo institucional com foco no mundo do
trabalho, nas esferas públicas e privadas. O tema estava relacionado às questões que vinha
percebendo no grupo terapêutico com vítimas de racismo, no convívio com pessoas negras e
no noticiário da mídia em geral. Com o amadurecimento das ideias, o curso das disciplinas e as
conversas com Cristina, minha orientadora, outras possibilidades foram sendo vislumbradas,
sempre com o mesmo foco, racismo institucional, envolvendo as questões relativas ao
estereótipo que induz a produção da suspeita no corpo do negro, colocando-o numa posição
de assujeitado. Foram idas e vindas no decorrer do processo de construção da investigação,
pode-se dizer que foi um processo dialógico entre as melhores escolhas, pensando sua
relevância e como poderia contribuir com as reflexões num momento em que o racismo toma
formas cada vez mais explicítas, seja no extermínio da população negra das periferias pela
polícia, seja no linchamento público. E não podemos nos esquecer, em outro âmbito, das
manifestações recorrentes no esporte, principalmente o futebol.
Diante dessa realidade, pretendo com essa pesquisa refletir sobre o processo de
destereotipação e construção social, o qual expõe o negro à polícia e aos serviços de
segurança como um todo. A opção por analisar notícia de jornal foi suscitada após a
publicação da notícia sobre o comunicado oficial da polícia militar de Campinas, cidade do
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interior paulista, para que os policiais ficassem atentos em relação aos transeuntes da cor
parda e negra.
A escolha final do meu objeto de estudo, ou seja, Se é negro é suspeito, se é
suspeito é negro: uma análise discursiva da produção de suspeita na Folha de S.
Paulosatisfaz ambas as necessidades que serão apresentadas ao longo do trabalho.
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INTRODUÇÃO
A publicação na mídia, do ofício do comandante da cidade de Campinas, interior de
São Paulo,veio ao encontro do meu objeto de estudo, como já dito, Se é negro é suspeito, se
é suspeito é negro: uma análise discursiva da produção de suspeita na Folha de S.
Paulo, ou seja, a cor da pele como um fator de suspeição. Essa notícia foi o ponto de partida,
como elemento incontestável do racismo institucional, presente na instituição policial, e deu
elementos para embasar este estudo.
Essa é uma evidência do racismo que está arraigado no seio das instituições no Brasil,
impregnado em nossa sociedade e na instituição policial, a qual se manifesta por meio de
atitudes e discursos que reforçam o estereótipo no lugar da pessoa. O branco representa a si
mesmo, ao passo que o negro é visto na sua coletividade, não há individualização (BENTO,
2002).
A ordem do capitão para que os policiais abordassem suspeitos de cor parda e negra
a pé ou dentro de carros num bairro nobre da cidade de Campinas reabriram as discussões
sobre o racismo na polícia. A orientação foi passada oficialmente e assinada pelo capitão
Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, da Polícia Militar, de acordo com notícia publicada no
portal UOL, do grupo Folha.
Adorno (1995) aborda o tema da discriminação racial e justiça criminal em São Paulo,
para ele:
“No senso comum, cidadãos negros são percebidos como potenciais perturbadores da ordem social (FAUSTO, 1984). Talvez por isso constituam também alvo privilegiado das investigações policiais (PAIXÃO, 1982 e 1988). Embora não haja evidências empíricas científicas de maior contribuição dos negros para a criminalidade, como sugerem recentes estudos brasileiros. Não obstante, se o crime não é privilégio da população negra, a punição parece sê-lo” (ADORNO, 1995, p. 47).
1. Esses CGP II deverão conhecer e providenciar para que a viatura do Taquaral (AISP 208-AB) realize o patrulhamento preventivo e ostensivo (saturação), pela Rua Castro Alves, Avenida Júlio Diniz, Rua Baronesa Geraldo de Resende e Rua Oratório – Campinas – SP, na proximidade do Colégio Liceu Salesiano e imediações aos sábados no horário das 11h00min as 14h00min, sem prejuízo no atendimento de ocorrências, no período de 21 DEZ a 21 JAN13, focando em abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência daquela localidade.
2. Os CGP II e as guarnições designadas deverão constar em RSO o horário das rondas, referenciando esta ORDEM DE SERVIÇO (PORTAL DE NOTÍCIAS UOL, 23/01/2013).
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Observamos que a resistência em aceitar as diferenças entre os grupos humanos
prejudica a população negra,uma vez que apenas a imagem pré-concebida dessas pessoas
conceda salvo-conduto e presunção de inocência para a prática da violência policial,
intolerância e genocídio. É a subjetificação do discurso colonial, onde a recusa da diferença
transforma o sujeito em um desassujeitado, conforme advertiu FANON(2008 apud BHABHA,
1998).
Violência Contra a População Negra
O mapa da violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil, de Julio Jacobo Waiselfisz,
aponta o aumento dos homicídios contra a população negra e a extrema desigualdade entre
homicídios de brancos e negros no país.
A divulgação de mapas que acompanham a violência no país desde o ano de 1998
tem mostrado seu aumento, em especial no que concerne à violência letal. Esses relatórios
focalizavam a violência contra as mulheres, crianças e adolescentes, e outros contextos
específicos, no entanto, a temática raça/cor demorou a aparecer, uma vez que a única fonte
que verifica o quesito cor/raça dos homicídios em nível nacional é o Sistema de Informação de
Mortalidade, do Ministério da Saúde que só passou a incorporar o tema a partir de 1996,
devido à orientação da Organização Mundial de Saúde. Só a partir de então o Ministério mudou
sua sistemática, incorporando a Classificação Institucional de Doenças CID 9 para o CID 10.
Somente a partir do ano de 2005, com inserção da informação raça/cor das vítimas
dos homicídios, foi possível construir capítulos sobre o tema nos mapas da violência com mais
confiabilidade, permitindo se perceber a magnitude do problema e seu agravamento com o
passar dos anos. Além do quesito raça/cor, a informação sobre a causa dos homicídios
também passou a ser exigida pela legislação, o que foi relevante para o estudo.
Por exemplo, o número de homicídios no Brasil, no ano de 2010, de acordo com o
censo do IBGE, para a população negra (preta e parda) foi de 34.983 e 14.047 mil para a
população branca. No que se refere à população jovem, 19.840 para a população negra e
6.503 para a branca. O número de vítimas negras tem evoluído consideravelmente, mostrando
a extrema desigualdade na cor quando se refere aos homicídios, segundo WAISELFISZ (2012,
p.62),
Considerando o país como um todo, o número de homicídios brancos caiu de 18.867
em 2002 para 14.047 em 2010, o que representa uma queda de 25% nesses oito anos. Já os
homicídios negros tiveram um forte crescimento: passam de 26.952 para 34.983: aumento de
29%. Destacam-se pelos pesados números de vítimas negras: Pará, Bahia, Paraíba e Rio
Grande do Norte.
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O relatório aponta alguns fatores de peso para o aumento dos homicídios: impunidade,
no Brasil apenas de 5% a 8% dos crimes de homicídio são elucidados. Enquanto que nos
Estados Unidos o índice é de 65%, no Reino Unido, 90% e na França, 80%.
Outro empecilho apontado pelo diretor da Anistia Internacional no Brasil é a tolerância
Institucional, caracterizada por uma espécie de “epidemia de indiferença”, além da
disseminação da cultura da violência.
Conforme o Plano Juventude Viva, quando se considera o gênero das vítimas dos
homicídios no Brasil, esse resultado não é equitativo e nem igualitário, o mesmo acompanha o
desequilíbrio social do país. Por esse motivo, são indicadores privilegiados dos conflitos e
mecanismos de segregação social, que os discursos (públicos e privados) tendem a ocultar
(MAPA DA VIOLÊNCIA, 2013, p. 74).
O mais recente mapa da violência continua assinalando para o aumento do número de
homicídios de jovens negros no Brasil, conforme aponta WAISELFISZ (2014)1.O item “a cor
dos homicídios” revela que entre os brancos, no conjunto da população, o número de vítimas
diminuiu de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012, o que representa uma queda de 24,8%.
Entre os negros, as vítimas aumentaram de 29.656 para 41.127 no mesmo período,
representando um crescimento de 38,7%.
Entretanto, quando se considera o país como um todo, sem levar em conta a questão
da cor, verificou-se que não houve grandes mudanças nas taxas nacionais de homicídios,
tendo em vistaque, em 2002, a taxa nacional foi de 28,9% por 100 mil habitantes e, em 2012,
de 29,0%, taxa quase idêntica. Desse modo, é necessário investigar com mais profundidade a
seletividade social dos que serão assassinados, conforme constata WAISELFISZ (2014).
“No início do período analisado, a taxas de homicídio dos brancos era de 21,7 por 100 mil brancos. A dos negros, de 37,5 por 100 mil negros. Assim, em 2002, o índice de vitimização negra foi de 73: morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice sobe para 146,5. A vitimização negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente: 100,7%, mais que duplicou. Três fatos evidentes: . Tanto número quanto taxas de homicídios brancos caem significativamente. . Tanto número quanto taxas de homicídios negros aumentam nesse período. . Se as quedas das taxas brancas são bem expressivas, os aumentos nas taxas negras são de moderadas para baixas” (WAISELFISZ, 2014, p. 130).
Assim, o índice de vitimização de jovens negros, que em 2002 era de 79,9, sobe para
168,6: para cada jovem branco que morre assassinado, morrem 2,7 jovens negros. No último
ano do período, as taxas negras apresentam um impulso repentino, enquanto as taxas para os
brancos, que vinham caindo, têm um pequeno aumento. Quando se considera os jovens, as
taxas negras tiveram um aumento de 74,1 em 2011, para 80,7, em 2012, apresentando
1http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf. Acesso em 5 de dezembro de 2014.
8
crescimento de 8,9%. As taxas de homicídiosbrancos também crescem, no entanto, num ritmo
menor: 4,7%.
Conforme os dados apresentados, observa-se a seletividade dos homicídios para a
população negra no país. Para WAISELFISZ(2014):
“Dessa forma, se os índices de homicídios do país nesse período estagnaram ou mudaram pouco, foi devido a essa associação inaceitável e crescente entre homicídio e cor da pele das vítimas, na qual, progressivamente, a violência homicida se concentra na população negra e, de forma específica, nos jovens negros” (WAISELFISZ, 2014, p. 144).
O relatório aponta para alguns fatores a serem considerados para esse aumento; um
deles seria a crescente privatização do aparelho de segurança, traduzindo, pode-se afirmar
que os brancos têm o dobro de segurança, diferente das periferias, habitadas
preferencialmente pela população negra, que não tem alternativa, senão se contentar com o
mínimo de segurança oferecido pelo Estado.
Outro fator apontado para essa discrepância nas taxas é o jogo político-eleitoral e da
disputa partidária que privilegia as áreas geográficas que proporcionam maior visibilidade
política, seu impacto na opinião pública, principalmente na mídia que, como é sabido, costuma
reagir de forma diferente, dependendo da posição social ocupada pela vítima.Desse modo, as
áreas mais abastadas, de população predominantemente branca, exibem os benefícios de uma
dupla segurança, a pública e a privada, enquanto as áreas periféricas, compostas por maioria
negra, nenhuma das duas.
Finalmente, o referido autor aponta um forte esquema de naturalização da violência,
sendo aceito inclusive pelas instituições e pessoas com responsabilidade e obrigação de
proteger a sociedade da violência. Desse modo, impera um esquema de culpabilização da
vítima.
O autormenciona a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabeleceu que:
“Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal {...} sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (WAISELFISZ, 2014, p. 168).
Entretanto,ressalta que há no nosso meio uma realidade bem diversa para alcançar
esse direito fundamental, proclamado em 1948.
A Campanha “Eu pareço suspeito2 ”integra as ações de combate ao racismo
institucional e tem como objetivo contribuir com a luta antirracista que mata a juventude pobre
2http://www.juventude.gov.br/juventudeviva/noticias/campanha-sou-suspeito-realiza-acoes-contra-o-racismo-institucional. Acesso
em 09-05-2013
9
negra. A campanha Reaja ou será morto, reaja ou será morta3, foi criada por um coletivo de
movimentos e comunidades de negros e negras da cidade de Salvador e interior do estado da
Bahia, para denunciar a brutalidade policial, o encarceramento em massa e reparação das
famílias de vítimas do Estado, sendo a respectiva campanha acolhida nacionalmente.
Em São Paulo, seminários, grupos de discussão e marchas foram realizados com o
objetivo de denunciar e chamar a atenção dos políticos e da população em geral, a respeito
desse problema que é histórico e a cada dia toma mais força, seja pelo genocídio do povo
negro, seu encarceramento em massa, em muitos casos em decorrência do abuso de drogas,
que causa a perda de direitos, sendo muitas vezes fomentados pelos meios de comunicação.
No próximo item, falaremos especificamente dos meios de comunicação.
Os Meios de Comunicação em Massa
Os espaços da programação que os meios de comunicação atribuem às notícias
sãofacilmente reconhecidos como espaços destinados à elaboração e processamento de
informação. Neles, os meios de comunicação divulgam a ignorância na forma de fatos que
precisam continuamente ser renovados para que ela não seja notada (LUHMANN, 2005, p. 53).
Já nos anos 1970, MARSHALL, falando sobre o modo como os produtos da ciência
moderna são utilizados para justificar o uso que se faz dos mesmos para o bem e para o mal,
proferiu entre outras a seguinte frase:
“as armas de fogo, em si mesmas, não são boas nem más: o seu valor é determinado pelo modo como são empregadas. Vale dizer: se os estilhaços atingem as pessoas certas, as armas são boas; se o tubo de televisão detona a munição certa, atinge o público certo, então ele é bom. Não estou querendo ser maldoso” (MARSHALL, 1979, p. 25).
Conforme GUARESCHI (1987),para a definição althusseriana, os meios de
comunicação fazem parte do aparelho ideológico do Estado.E o Estado, por meiodo rádio,
televisão e imprensa em geral, manipula o povo ideologicamente.
“Todos os aparelhos ideológicos do Estado, sejam quais forem, contribuem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações capitalistas de exploração. Cada um a seu modo... o aparato das comunicações manipulando o cidadão com doses diárias de racionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo etc., através da imprensa, rádio e televisão” (ALTHSSER, 1971:151, apud GUARESCHI, 1987, p. 16).
3 http://reajanasruas.blogspot.com.br/p/quem-somos.html
10
O mesmo processo ocorre com o racismo institucional, em que os discursos da
diversidade ou de democracia racial fortalece o privilégio dominante mantendo o status quo,
dominados de um lado e dominadores do outro, assim se mantém a ordem social.
Existe um movimento no sentido de desconstruir essa ordem estabelecida,por meioda
contracomunicação, que consiste na atividade de produzir e veicular informações contrárias às
fornecidas pelos grandes veículos de comunicação, posicionando-se com interpretações dos
fenômenos políticos e sociais, destinada aos grupos desfavorecidos social, cultural e
politicamente. Segundo SILVA (1982), a contrainformação de modo oficial teve origem com os
partidos comunistas e socialistas europeus, os quais confrontavam as informações passadas
pela burguesia da primeira metade do século XX, esse movimento foi importante em reunir a
classe trabalhadora em torno de propostas políticas e lutas sociais. O autor cita ainda, que
“a função desses aparelhos ideológicos privilegiados por seu alto grau de funcionalidade para o projeto de desenvolvimento dominante, consiste em implementar o programa de sujeição cultural requerido pela estabilidade do sistema social. Isso significa que, por meio destas instituições culturais, o setor dirigente produz, circula e inculca sua ideologia de classe no poder sobre as superestruturas de consciência da formação social. É através deles, em última instância, que o capital exerce sua principal forma de influência-ideológica sobre os diversos campos da consciência dos agentes sociais, o que representa o controle político por via do consenso” (SILVA, 1982, p. 60).
Pensando na veiculação livre da informação na mídia, foi criado o projeto de Lei de
iniciativa popular para a democratização da mídia4, uma iniciativa de centenas de entidades em
todo o país que querem a regulação da mídia como forma de retirar a concentração da
informação do domínio de poucos, o que impede a circulação da informação como expressão
da diversidade de ideias.
Essas organizações defendem o direito à comunicação como um direito humano à
informação e exige mudanças na lei que orientam os serviços de Comunicação, que já
completou cinquenta anos e está obsoleta, não respondendo mais aos anseios da sociedade, a
qual passou por muitas mudanças ao longo desse período, afirmam.
Acredita-se que apenas a regulação da mídia irá acabar com o oligopólio e monopólio
dos meios de comunicação, que está em poder de menos de dez famílias em todo país.A
manutenção desse quadro dificulta a circulação livre da informação, criando o jargão
sociológico denominado colonialismo eletrônico, que significa o poder da mídia de influenciar
as campanhas políticas e as pesquisas de intenção de voto.
Assim, pode-se considerar que a contrainformação é a informação contrária à veiculada
por um sistema, como sendo um novo ato de revolução cultural dos meios de comunicação de
massa.
4http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/index.php/2013-04-30-15-58-11. Acesso em 30 de outubro de 2014.
11
Atualmente, os novos letramentos digitais, exercidos principalmente pelas redes sociais,
são espaços de práticas socioculturais e ativismo político que questionam, denunciam e
mobilizam as pessoas em prol do combate à violência policial, em especial, contra a população
negra e pobre, contra a corrupção na política, saúde, educação, transporte, entre outras
questões.
“Mas como entender os novos letramentos digitais como práticas sociais situadas? Justamente porque tais letramentos envolvem a participação colaborativa de atores sociais localizados sócio-histórico-culturalmente na construção conjunta de significados, mediada por instrumentos multissemióticos (textos, imagens, vídeos, sons etc.), em comunidades de práticas (WENGER, 1998) no mundo digital. A tela do computador deixa de ser somente um local onde se busca informação e passa a ser principalmente um lugar de construção, de disputa, de contestação de significados” (MOITA LOPES, 2010, p. 398).
Essa nova significação para as redes sociais tem sido mais amplamente explorada,
inclusive pelos movimentos sociais que pautam suas reivindicações fazendo circular discursos
contra-hegemônicos.No entanto, os discursos xenofóbicos fazem uso da mesma
estratégiapolítica, fazendo circular suas ideias conservadoras, incitando a intolerância e a
naturalização das desigualdades.
Retomando o objetivo dessa pesquisa que diz respeito àsubjetividade na produção da
suspeita e o discurso da mídia jornalística ou do jornal impresso, faz-se necessário
compreender que o jornal exerce o papel de socialização do conhecimento por meio da
veiculação diária da notícia, levada ao público mais amplo, quando circula informações de
temas variados com maior profundidade, por outro lado, existe a tensão entre opiniar e
informar. O discurso jornalístico apropria-se de diferentes códigos para apresentar os fatos,
esses recursos podem ser tipográficos, gráfícos e iconográficos. Acredita- -se que essa
combinação de códigos cria efeitos de sentido complementares, compondo as habilidades
disponíveis para que o enunciador crie sua enunciação (SANT´ANNA, 2000).
O jornal, na busca de credibilidade para a informação,lança mão de dados concretos
sobre os fatos, como a identificação das pessoas pelo nome e profissão, data e hora dos
acontecimentosocorridos, fotos e documentos comprobatórios, convidando expertspara
pronunciarrem sobre tais situações, detalhes nos discursos relatados, além de fazer uso de
técnicas dramáticas e recursos emocionais na descrição dos fatos, conforme SANT´ANNA
(2000).
Com o uso de técnicas e estratégias, a imprensa escrita pretende caracterizar-se
como neutra, ou seja, quer ser reconhecida como fonte de objetividade na veiculação da
notícia, portanto, capaz de isentar-se de julgamentos. Entretanto, essa imparcialidade de que
as informações veiculadas são fruto apenas de fatos e dados externos ou de fora dos eventos
não é real, pois a imprensa escrita é parte integrante da sociedade onde ocorrem os fatos
12
sociais, assim, não é possível atribuir-lhe objetividade discursiva, ou seja, situá-la fora do
espaço, não havendo, deste modo, neutralidade.
“Aprimorar as relações entre mídia e sociedade envolve o entendimento de que compreender o que se lê articula-se no cotejo entre textos, na capacidade de produzir comentários, e de que os discursos se constróem em cenas institucionais complexas, marcadas pela assimetria - empírica e discursivamente considerada - entre os que detêm o conhecimento / informação e que, portanto, escolhem o que e como passar esse conhecimento a quem não o detém. É bem verdade que a imprensa deseja diminuir ao máximo tal assimetria, pois radicalizá-la significa criar maior dificuldade na venda dos seus "produtos" informativos, que se diferenciam de outros da cadeia de consumo, porque a imprensa escrita tem papel relevante na (re)criação e divulgação de valores sociais e na produção de identidades. Mas, ao mesmo tempo, não somente um jornal é um "produto", como também permite a venda de um público aos anunciantes. Essa forma de constituição abre a imprensa escrita a estudos das transformações sócio-culturais e também aos das relações entre produção discursiva e formas genéricas de expressá-la” (SANT´ANNA, 2000, p. 114).
Os estudiosos da linguagem que trabalham com a análise discursiva apresentam-nos
conceitos básicos para a compreensão da mídia como um discurso que é composto e
atravessado por muitos outros, ou da dimensão dialógica na produção da linguagem, conforme
SANT´ANNA (2000).
No item III apresentaremos alguns conceitos sobre linguagem e análise discursiva
para melhor compreensão do discurso da imprensa jornalística.
O Jornal Folha De S. Paulo
A Folha de S. Paulo teve sua primeira edição publicada em dezembro de 1960. O jornal
é do mesmo grupo da Folha da Noite, fundada em 1921, e depois Folha da Manhã, de 1925,
que deu origem ao mesmo, em 1960.
O jornal foi comprado em 1962, pelo jornalista, editor e empresário carioca Octavio
Frias, em sociedade com Carlos Caldeira Filho. Octavio Frias faleceu em 29 de abril de 2007,
em São Paulo.
A Folha de S. Paulo se transformou num influente veículo de comunicação do
país,passou a ocupara liderança em número de circulação entre os jornais brasileiros em
2012,conforme texto publicado, com o título “Circulação de jornais cresce no país; Folha
assume a liderança”. o jornal fechou dezembro de 2012 commédia de 297.650 exemplares,
alta de 4% sobre 2011 (Folha de S. Paulo, 24/01/2013).
O jornal edita as revistas Serafina e o Guia da Folha. Faz parte do conglomerado de
comunicação o portal UOL, o jornal Agora São Paulo, o instituto Datafolha, a editora
13
Publifolha,a Plural editora gráfica, associado às Organizações Globo, o jornal Valor Econômico,
jornal Alô negócios, que circula em Curitiba – PR, uma livraria virtual (Livraria da Folha), uma
agência de notícias (Folhapress), um dos maiores parques gráficos da América Latina (CTG-F),
a Folha Gráfica, gráfica dedicada a jornais e folhetos para empresas, editoras e agências de
publicidade e a SPDL, empresa de distribuição e logísica estabelecida em associação com o
jornal O Estado de São Paulo (portal UOL)5.
Com o slogan: “um jornal a serviço do Brasil”, o jornal sempre foi um veículo de
comunicação em defesa dos interesses das elites paulista e brasileira, exercendo forte poder
político.
Em 1964, ano que foi dado o Golpe Militar, o jornal noticiou com grande destaque a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreu logo após a destituição do
presidente João Goulart. Obtiveram destaque, em especial, as passeatas ocorridas em Santos,
que segundo noticiou o jornal, reuniram mais de duzentas mil pessoas e no Rio de Janeiro,
evidenciando seu viés católico.
“A possibilidade de uma greve de transportes no dia da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, no Rio, segundo admitem as organizadoras da passeata no dia 2, fez com que mais de 1300 mulheres se inscrevessem numa lista, oferecendo seus automóveis particulares para transporte de pessoas quando da realização da marcha. Também um numeroso grupo de senhoras residentes em Copacabana manifestou o desejo de ir a pé para a concentração a fim de “provar aos comunistas que, embora sendo do sexo fraco, também são capazes de maiores sacrifícios pelo bem da democracia” (Folha de S. Paulo, 27/03/1964, p. 3).
As notícias que circulavam na época viam com preocupação as relações do governo
brasileiro com a União das Repúblicas Soviéticase com a China, além da preocupação da elite
com a possibilidade de perda de privilégios com as medidas tomadas pelo então presidente da
república.
Na época, o presidente da república era João Goulart, conhecido popularmente como
Jango, deposto, em primeiro de abril de 1964, pelos militares apoiados pelos grandes
proprietários rurais, elite industrial paulista, boa parte da igreja católica e da classe média
conservadora do país, instaurando a ditadura militar, que perdurou até a eleição indireta de
Tancredo Neves, em 1985.
As informações supracitadas deram respaldo para estruturar este trabalho da seguinte
forma: no primeiro capítulo, apresenta-se um panorama histórico sobre as teorias racialistas,
mito da democracia racial e racismo institucional. Foram pesquisados autores como
Guimarães, Buarque de Holanda, Freyre, Munanga, entre outros.No segundo
capítulo,abordam-se questões referentes ao sistema de justiça e como os operadores da lei
tratam as desigualdades entre brancos e negros, na abordagem violenta da polícia quando se
5http://www1.folha.uol.com.br/institucional/conheca_o_grupo.shtml. Acesso em 9 de dezembro de 2014.
14
trata da população negra, pobre e periférica, incluem-se também temas como as políticas
públicas de ação afirmativa. No terceiro capítulo, apresentou-se questões relacionadas à
identidade e à cultura, de acordo com HALL (1998, 2000, 2003, 2013), desenvolveu-se a
temática do saber e poder a partir de FOUCAULT (2002, 2004 e 2013). O autor aponta a
história do domínio do saber e da suposta superioridade do sujeito do conhecimento e
relaciona a produção do discurso na manutenção do poder como forma de interdição,
separação e exclusão. E, as questões teóricas sobre linguagem, de acordo com BAKHTIN
(1995, 1997) como uma forma de percepção do mundo e sobre a Análise de Discurso como
fundamento para a análise das notícias, de acordo com MAINGUENEAU(2004,
2013).Finalmente, no quarto capítulo analisa- -se as notícias publicadas na Folha de S. Paulo,
a partir da teoria do discurso, atentando para as vozes que estão presentes quando promovem
a suspeita a partir do estereótipo.
No próximo item faremos uma retrospectiva histórica sobre o racismo, mito da
democracia racial, racismo institucional e como essas questões permeiam as relações sociais
no país.
15
I. TODO PONTO DE VISTA É VISTO DE UM PONTO
Nesse capítulo serão abordadas questões referentes aos conceitos de raça, racismo,
racismo institucional, racismo científico e miscigenação vinculada à ideologia do
embranquecimento como forma de aniquilação do processo de afirmação do negro.
Buscamos também identificar alguns avanços que o país tem feito ao longo de sua
história,chegando ao Estatuto da Igualdade Racial, Lei n°. 12.288 de 2010, política de ação
afirmativa, cuja homologação faz parte de um longo processo de discussão e reivindicação do
movimento negro, organizado no sentido de formalizar um documento com garantias de acesso
à saúde, educação, cultura, trabalho, esporte e lazer, livre manifestação da crença religiosa,
terra e moradia, e representação nos meios de comunicação.
I.1 Definição de Raça
Na década de 1950, o modelo nacional que articulou raça e sociedade, tornou-se tema
de interesse científico em vários países. No clima do pós-guerra, a UNESCO promoveu
diversos estudos sobre as relações raciais no Brasil. Esse tema ganhou interesse nesse
período pelo fato de pesquisadoresdo período de 1930 apontarem para a superficialidade da
igualdade entre as raças no país. Tais investigações colocaram em questão o mito da
“democracia racial”.Conforme mencionam MAIO e VENTURA (1998),
“1. “Raça” é um conceito taxonômico de limitado alcance para classificar os seres humanos, podendo ser substituído com vantagens, pela noção de “população”. Enquanto o primeiro termo refere-se a “grupos humanos que apresentam diferenças físicas bem marcadas e primordialmente hereditárias”, o segundo refere-se a “grupos cujos membros casam-se com outros membros do grupo, mais frequentemente que com pessoas de fora do grupo e, desse modo, apresentam um leque de características genéticas relativamente limitado.” 2. De qualquer modo, chamem-se esses grupos de “raças” ou “populações”, a diversidade genética no interior dos mesmos não difere significativamente, em termos estatísticos, daquela encontrada entre grupos distintos. Desse modo, nenhum padrão sistemático de traços humanos – com exceção do grupo sanguíneo – pode ser atribuído a diferenças biológicas. E esse último traço, por seu turno, não coincide com os grupos usualmente chamados de raças” (MAIO e VENTURA, 1998, p. 23).
BANTON (1994, p. 264, apud GUIMARÃES, 2005)refere-se à raça como sendo um
conceito recente. Para ele, o termo não tinha conotação biológica, apenas servia para
identificar um grupo de pessoas conectadas por uma origem comum. O autor aponta que as
teorias biológicas sobre as raças são ainda mais recentes, tendo surgido no século XIX para
denotar tanto as diferenças físicas, como em termos de capacidade mental.
16
GUIMARÃES (2008) faz uma pesquisa abrangente com o objetivo de construir um
panorama histórico para compreender o que atualmente denomina-se preconceito de cor ou de
raça, ou racismo. Inicialmente procurou explorar a simbologia/dualidadedo significado “branco”
e “preto”, o primeiro simbolizando o claro, virtudes e o bem, já o segundo, o preto, em
oposição, significando o sinistro, o mal e os defeitos. Essa analogia tem por objetivo fazer uma
análise do ponto de vista das ciências sociais, para as quais o preconceito tem significados
históricos, culturais, políticos e sociais.
Para a psicologia social, segundo o mesmo autor, o preconceito racial envolve
atitudes, crenças e comportamentos. Trata-se de um conjunto de julgamentos negativos sem
fundamentos reais a respeito de um grupo social, capaz de gerar um gradiente de intolerância
crescente, cujas causas devem ser buscadas primeiramente no indivíduo e no seu grupo. Ele
apresenta dados sobre estudos antropológicos de meados de 1930, nos quais se tem notícia
dos primeiros relatos sobre preconceito racial no Brasil. De acordo com antropólogos da época,
no Brasil não havia preconceito racial. No entanto, depois de muitos estudos, percebeu-se que
naquele período o referencial de racismo era o conhecido nos Estados Unidos, onde o racismo
é pela descendência, porém, o preconceito racial no Brasil é diferente, aqui o preconceito é de
cor, como assevera MUNANGA(1999), no Brasil, o mulato na segunda geração considera-se
branco.
O autor ainda cita o Movimento Negro Unificado - MNU, movimento social de
amplitude internacional que evidenciou o preconceito racial no Brasil através de seus
militantes, colocando em debate o questionamento sobre as definições das fronteiras raciais no
Brasil.
CARONE (2002) apresenta um breve histórico sobre a Questão Racial Brasileira
através dos estudos antropológicos de Nina Rodrigues e Gilberto Freyre, a partir da década de
1950, na Universidade de São Paulo, patrocinados pela UNESCO – Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Conforme o pensamento desses dois teóricos,
havia uma democracia racial no Brasil, um exemplo de harmonia, uma vez que aqui o racismo
era diferente do modelo norte americano que era referência para os pesquisadores, a autora,
em sua pesquisa, buscou desmistificar essa visão.
A Declaração sobre raça e os preconceitos raciais definidos pela UNESCO aponta
que:
“O racismo engloba as ideologias racistas, as atitudes fundadas nos preconceitos raciais, os comportamentos discriminatórios, as disposições estruturais e as práticas institucionalizadas que provocam a desigualdade racial, assim como a falsa ideia de que as relações discriminatórias entre grupos são moral e cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de disposições legislativas ou regulamentárias e práticas discriminatórias, assim como por meio de crenças e atos antissociais; cria obstáculos ao desenvolvimento de suas vítimas, perverte a quem o põe em prática, divide as nações em seu próprio seio, constitui um obstáculo para a cooperação
17
internacional e cria tensões políticas entre os povos; é contrário aos princípios fundamentais ao direito internacional e, por conseguinte, perturba gravemente a paz e a segurança internacionais
6”.
O discurso limitante com base na discriminação racial impede o convívio harmônico
entre os povos, acarretando falta de oportunidade e defesa, acirra a intolerância, uma vez que
interdita e criminaliza aqueles que são ”diferentes”. Essas diferenças geram expectativas
desiguais, inclusive econômicas, entre brancos e negros no Brasil.
Para SANTOS (2010), a intolerância racial intensificou-se com o desenvolvimento do
capitalismo. Os brancos europeus, donos da estrutura de poder, subjugaram os povos de
outros continentes, com a escravização de negros africanos e indígenas americanos. As
consequências dessas práticas do homem branco europeu foram desastrosas para o
continente africano, levando-o à estagnação econômica e o êxodo para gerar riquezas nas
colônias portuguesas, inglesas e espanholas.”Em decorrência dessas discriminações, emerge
o sentimento de superioridade do branco no centro econômico do planeta” (SANTOS, 2010, p.
29).
Os estudos sobre raça e a formação sócio-político-cultural e econômica do país, foram
fundamentais para as interpretações que se tem atualmente a respeito da estratificação na
formação da sociedade brasileira. Nesse ínterim, surge também o grave problema da
mestiçagem no Brasil.
I.2 Mito da Democracia Racial
Segundo MUNANGA (1999), o problema da mestiçagem no Brasil tem por objetivo
eliminar o elemento indesejado, ou seja, eliminar o negro por meio do processo da infusão de
sangue branco ou da miscigenação, esse era o pensamento da elite que acreditava ser essa a
solução mais definitiva. Para o autor, essa ideologia enfraqueceu a identidade do negro, que
teve sua importância diluída na população branca.
Corroborandoa ideia do branqueamento para o futuro da sociedade brasileira,
MAIO e VENTURA (1998) relatam o pensamento do naturalista alemão Karl Von Martius, que
afirmou a premência em abordar as características das três raças que a compunha, brancos,
índios e negros para escrever a real história do Brasil. Algumas décadas depois, em 1911, o
médico João Batista de Lacerda, então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro,
representou o governo brasileiro no I Congresso Internacional das Raças,com um trabalho no
qual argumentava que o Brasil mestiço de então estava em processo de embranquecimento.
6Aprovada e proclamada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura,
reunida em Paris em sua 20.º reunião, em 27 de novembro de 1978. http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/discrimina/dec78.htm. Acesso em 15 de outubro de 2013.
18
Para ilustrar sua asserção, Lacerda lançou mão de uma pintura de Brocos y Gomes
pararepresentar a esperança de que a população brasileira branquearia em poucas gerações.
BENTO (2002) destaca que a miscigenação ou o branqueamento é uma visão racista,
que pretende levar o país a perder aos poucos as características negras e o negro suas
características raciais. A ideologia da democracia racial criou uma falsa interpretação do Brasil
tanto dentro e como no exterior.A autora aborda temas referentes às ideias do branqueamento
no Brasil, apresentando questões subjetivas e concretas no que se refere à teoria relativa ao
mesmo e de como essas dimensões reforçam-se mutuamente, potencializando a reprodução
do racismo. É frequente no Brasil considerar que o branqueamento é um problema do negro
que está descontente e desconfortável com a sua condição, procurando misturar-se com o
branco, miscigenando-se para diluir suas características raciais.
A autora ainda cita que o estudo do branqueamentono Brasil possibilitou a
identificação de um processo inventado e mantido pela elite branca e apontado pela respectiva
elite como um problema do negro brasileiro. Com essa ideia de ser o objeto da cobiça dos
negros, ou seja, padrão de referência da espécie humana, a elite branca faz uma apropriação
simbólica crucial que vem legitimando o autoconceito de sua supremacia econômica, política e
social frente à raça negra.
FREYRE (2002) descreve como ideia central as relações harmônicas entre brancos e
negros no período colonial, mesmo havendo hierarquia social, econômica e política. Refere-se
à mestiçagem como sendo um processo originário da necessidade do cruzamento do
português com as indígenas e mais tarde com as negras pela escassez de mulheres brancas,
resultando na miscigenação da colonização do Brasil e essa característica diluiu o elemento de
conflito.A formação cultural brasileira é resultado da composição das três raças: indígena,
negra e branca. E ressalta a influência do indígena e do africano na culinária, artes em geral e
religião.
Conforme MUNANGA (1999) os estudos recentes apontam que a miscigenação e a
supervalorização do “mulato” enfraquece a identidade do negro. É fato que o país é composto
pelas três raças, o problema é como esses grupos são representados nos discursos, na
economia, na política e nos meios de comunicação.
HOLANDA (1995)faz uma interpretação do Brasil até aquele momento. Trata da
formação do povo brasileiro como resultante do entrelaçamento das culturas e etnias: indígena,
africana, portuguesa e espanhola, as quais contribuíram para a formação da identidade da
nação. O autor trata do preconceito racial injustificado e as consequências negativas para os
negros. Elucida também que a abolição da escravatura se deu devido à queda do preço do
café brasileiro no mercado europeu por causa da sua produção ter origem da mão de obra
escrava. Aborda ainda a influência do positivismo na formação cultural e política do país, além
da oligarquia determinar a ideologia a ser seguida.
19
O referido autor introduz a terminologia “homem cordial” para designar as relações
familiares e a cordialidade como um traço forte na nossa formação cultural, é comum o
brasileiro relacionar-se com o outro como se este fosse uma extensão da família. O autor
aborda a cordialidade como traço característico da nossa cultura, que se revela no domínio da
linguística na forma de tratamento das pessoas no diminutivo, como se houvesse uma
necessidade de proximidade nas relações sociais.
Transportando a teoria de HOLANDA (2002) para os dias atuais, podemos pensar que
o racismo institucional identificado hoje é uma herança dessa relação onde vidafamiliar e
pública se confundiam. Sobre isso,HOLANDA explica:
“No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera, por excelência dos chamados contratos primários, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criaram na vida doméstica sempre o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas antiparticularistas” (HOLANDA, 1995, p. 146).
Apesar da constituição de diversos grupos étnicos ou raciais na formação da nação
brasileira, existe uma desvantagem para o grupo negro. A ideologia da democracia racial é um
mito que impera nessa sociedade e que fortalece o grupo branco, deixa o negro na
invisibilidade, dificultando o reconhecimento da existência de racismo.
Com essa ideologia de mestiçagem, o elemento negro ficou enfraquecido no país,
diluído na população branca. Para MUNANGA (1999), no Brasil, o mulato quer ser branco,
salvo raras exceções, prevalecendo o pensamento eugênico de purificação da raça.
Dessa forma, percebe-se a manutenção da estrutura de desigualdade no país e sua
desvantagem para a população negra.
No próximo item abordaremos temas que nos ajudarão a compreender como se dá a
manutenção da estrutura de desigualdade no país.
I.3 Racismo Institucional
Com a manutenção da estrutura de raça na formação da sociedade brasileira, a
hegemonia do grupo branco, símbolo de prestígio e honestidade, cria uma barreira, a qual
20
coloca o negro fora do paradigma das expectativas de sucesso (SANTOS, 2013). Naturalizam-
se fenômenos sociais e culturais como se eles fossem verdade e,através dessa prática
discursiva, mantêm a interdição e a dominação.
Para tanto, a suspeita, a abordagem violenta, o assassinato de pessoas negras pela
polícia, infelizmente são fatos corriqueiros, em especial os homens jovens, na faixa etária de 15
a 29 anos (PLANO JUVENTUDE VIVA, 2012). Acompanham-se diariamente notícias de
assassinatos, prisões e envolvimento em situação de suspeitos pelo fato de serem negros,
pobres ou moradores da periferia. Podem-se citar vários casos que se enquadram nessas
condições, como o de Amarildo, 47 anos, assassinado pela polícia do Rio de Janeiro,Vinícius
Romão, 27, ator, preso pela polícia militar do Rio de Janeiro, confundido com um assaltante por
parte da vítima; Claudia Ferreira, 38 anos, levou um tiro da polícia, teve seu corpo arrastado
por 250 metros, pendurado na viatura da polícia.Esses, entre outros casos, foram noticiados
pela imprensa e são analisados nesse trabalho.
O estudo de RAMOS & MUSUMECI(2005) aborda a problemática da percepção do
estereótipo racial na abordagem policial na cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de
conhecer as experiências da população carioca com a polícia e conhecer os mecanismos e
critérios de construção de suspeita pelos policiais. As pesquisadoras ouviram policiais para
validação do trabalho. Segue o relato de um dos policiais ouvido:
“o suspeito é o biótipo que todos nós fazemos a avaliação. Avaliação que a senhora faz, todo mundo faz. É aquele biótipo quando a senhora está entrando na sua rua, a senhora observa. Não adianta, não vamos aqui forçar a barra e não vamos... todos nós somos parte da sociedade. É o biótipo que a senhora está pensando, não adianta...” (Oficial de BPM do Centro, RAMOS & MUSUMECI, 2005, p. 38).
A III Conferência Mundial contra o Racismo, realizada pelas Nações Unidas, em
Durban, África do Sul, em 2001, foi um momento histórico para o Brasil. O PCRI - Programa de
Combate ao Racismo Institucional - nasceu da reflexão da comitiva brasileira que participou da
organização para a Conferência.De acordo com a Identificação e Abordagem do Racismo
Institucional(PCRI, 2006),
“Naquele momento histórico, a significativa participação da sociedade civil e do governo brasileiro na Conferência ampliou o debate público sobre a questão racial e intensificou as discussões sobre como o setor público poderia estabelecer compromissos mais efetivos e continuados de combate ao racismo e às desigualdades sociorraciais” (PCRI, 2006, p. 14).
O relatório elucida que experiências anteriores, além de outros aspectos, indicam que
a inércia nos mecanismos públicos com as desigualdades raciais e a descontinuidade das
ações governamentaisdianteda temática criam obstáculos para superação da cultura racista
21
que integra as instituições. Para tal, o intercâmbio do governo brasileiro com o Reino Unido foi
fundamental para a definição de racismo institucional eficaz e a possibilidade de sua
operacionalização em contextos variados.
Deste modo, o PCRI adota a seguinte definição para Racismo Institucional:
“Fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas devido à sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes da ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos sociais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações” (PCRI,2006,p. 15).
Conforme SANTOS (2013), na década de 1960, com a luta pelos direitos civis nos
Estados Unidos, a luta contra o Apartheid, na África do Sul, e com o fim do colonialismo nos
países da África e da Ásia, ocorreram significativas mudanças nos estudos sobre o racismo no
mundo, bem como um reconhecimento de que as práticas institucionais, administrativas e
políticas poderiam agir de modo prejudicial, discriminatório e excludente com relação aos
diferentes grupos raciais. Para o autor, reconheceu-se que as práticas discriminatórias existem
para além de atitudes individuais, assim “o conceito de racismo foi ampliado para cobrir formas
de racismo institucional e racismo estrutural” (SANTOS, 2013, p. 23).O autor argumenta que no
Brasil ainda há muita resistência em entender a existência do racismo na sociedade. Para ele,
reconhecer que o racismo é resultado de práticas ou omissão de instituições e agências do
sistema de justiça, infelizmente, ainda não é um pensamento corrente.
O racismo institucional se manifesta através de mecanismos e estratégias que fazem
parte das instituições públicas, são normas e regras explícitas ou não, que criam obstáculos
para a presença de negros nesses espaços institucionais e públicos. Dessa forma,
“há racismo institucional quando um órgão, entidade, organização ou estrutura social cria um fato social hierárquico – estigma visível, espaços sociais reservados, mas não reconhece as implicações sociais do processo. O problema não é demonstrar a existência de ideologia e doutrinas que as pessoas utilizam para justificar suas ações. É no funcionamento da sociedade que o racismo se revela como uma propriedade estrutural inscrita nos mecanismos rotineiros, assegurando a dominação e a inferiorização dos negros, sem que haja necessidade de teorizar ou de tentar justificá-las pela ciência” (SANTOS, 2013, p. 28).
O Relatório Anual das Desigualdades no Brasil (2009-2010), elaborado pelo
Laboratório de Análises Econômicas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais (LAERSER)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um estudo que tem por eixo fundamental o tema
das desigualdades raciais e sua mensuração se dá através de indicadores econômicos, sociais
22
e demográficos. Visa sistematizar os avanços e recuos existentes no Brasil em termos da
equidade racial em seus diversos aspectos.
O referido relatório mostra que a nova classe média brasileira é negra. No entanto,
embora essas transformações estejam ocorrendo de forma semelhante em outros níveis e
itens da vida nacional, a diferença que separa negros e brancos no Brasil ainda se traduz em
índices de enorme desigualdade. O documento indica que a população negra brasileira está
em desvantagem no acesso a serviços públicos, como educação, saúde, justiça e previdência
social, recebe renda menor e tem uma expectativa de vida mais baixa do que outros
segmentos. O documento aponta ainda que as raízes desta situação são históricas, uma vez
que o ato simbólico de assinar uma lei libertando os escravos não se concretizou na prática.
Segundo FONSECA (2009), no Brasil, 50,7% da população é negra, não faz sentido
essa massa ser excluída do acesso a justiça, estar fora do acesso aos direitos civis,
econômicos e culturais, estarem nos subempregos mesmo com igual ou maior escolaridade
que os não negros.
O autor citado menciona que, fazendo um paralelo entre o apartheid na África do Sul e
a situação no Brasil, na primeira, 70% da população é negra e até 20 anos atrás era governado
apenas por brancos, ou seja, a minoria dominava a maioria. Ao passo que no Brasil, onde mais
da metade da população é negra e após 125 anos da abolição da escravidão, continua
subjugada aos piores níveis de trabalho, emprego e renda. A população pobre e negra está
excluída dos bens de produção e consumo, do acesso aos direitos, e sujeita à violência policial,
às condições péssimas de moradia, não possuem acesso a terra, pois o monopólio das terras
neste país está na mão da elite branca. A reforma agrária não é concretizada, pois há muitos
interesses de poderosos em jogo. Ainda para o autor:
“O africano e seus descentes estiveram presentes em todo o processo de construção da sociedade brasileira e do Estado, do período de consolidação das possessões territoriais lusas até a República. Leis, decretos e constituições reservaram espaço significativo para esse público, garantindo-lhe sempre artigos, parágrafos e incisos marcantes. O Estado monárquico português e o Império estiveram atentos à elaboração de políticas públicas que explicitassem o lugar do africano e do negro nacional na sociedade brasileira de ontem, configurando o quadro etnicorracial que encontramos hoje” (FONSECA, 2009, p. 49).
Assim, o autor elucida que durante o governo militar, na década de 1970, alegando
questão de segurança nacional, retirou-se do senso o quesito cor/raça, nesse mesmo período,
o quesito foi retirado de pesquisas oficiais. “As lacunas foram significativas, mas não impediram
que aflorassem os índices construídos nessa década de silêncio e medo” (2009, p.98); logo,
apenas na década de 1980, os dados relativos à cor voltaram ao Censo.
23
Além disso, a Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar (PNAD), do IBGE, reuniu
dados relativos à população negra brasileira. Nesse período, os estados também começaram a
realizar levantamentos referentes à população afro-brasileira. Foi nesse período que o Grupo
de Trabalho e Assuntos Afro-Brasileiro, da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo,
apontava que apenas 0,01% dos negros paulistanos haviaconcluído o curso superior.Do
mesmo modo, na década de 1980, o IBGE mostrava que apenas 1,1% dos negros haviam
concluído o Ensino Médio. Os números de brancos que apareciam na categoria dos “sem
instrução ou com menos de um ano de estudo” eram de 20%, enquanto na população negra os
índices chegavam a 80%, sendo 39% para pardos e 41% para pretos. Os brancos
representavam 16% com nove ou mais anos de estudos, para os pardos a percentual era de
6% e para os pretos, 4%. “Assim, mesmo somados, „pardos‟ e ‟pretos‟ não atingiam o índice de
„brancos‟ com condições de estar no ensino superior” (FONSECA, 2009, p.98).
Dados do início do século XXI mostram que apenas 2,2% da população negra
brasileira chegaram ao ensino superior. De uma população composta poraproximadamente 80
milhões de jovens, apenas 16 milhões chegaram a esse nível de ensino. O número de brancos
no ensino superior é três vezes maior, considerando que a maioria dos negros que cursou o
ensino superior o fez em instituições privadas “com baixa credencial acadêmica, que não
desenvolveram o tripé ensino, pesquisa e extensão” (FONSECA, 2009, p.99). Além do que, os
dados não revelam se essa população negra que entrou no ensino superior está cursando
algum tipo de pós-graduação, como mestrado, doutorado ou alguma especialização.
Diante dessa realidade, o autor faz um questionamento sobre a função social e política
das universidades, no sentido de cumprir “no desenvolvimento tecnológico, científico, cultural,
econômico, institucional e político do Estado” (FONSECA, 2009, p.99). Uma vez que estas
estruturam as bases da soberania do país para a criação, renovação e difusão de
conhecimento.
Fonseca comenta que há uma tendência de algumas universidades públicas
considerarem o problema das cotas universitárias apenas um problema do Estado, entretanto,
essas mesmas instituições reivindicam cada vez mais verbas, isto é, recursos da sociedade, e
agem como se não tivessem relacionadas com o problema da exclusão.
Observa-se um crescimento elevado da população negra que concluiu o ensino
superior no país em 2002. Esses números precisam ser cruzados com outros dados, como: o
aumento da renda familiar individual, condições de saúde e moradia, período de vínculo
empregatício formal e informal, aumento da população negra brasileira e grande processo
migratório, especialmente para as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
Ainda, segundo Fonseca, outros fatores devem ser levados em consideração, como“a
retomada do processo democrático, o impacto do movimento negro contemporâneo nas ações
políticas de conscientização e de adesão étnico-racial da população brasileira” (FONSECA,
24
2009, p.101), esses dados foram comprovados pelo IBGE e por outros institutos de pesquisa
oficiais.
Essa desigualdade é o resultado do processo produzido pelas ideias excludentes que
persistem no imaginário coletivo.O médico e antropólogo brasileiro Raimundo Nina Rodrigues,
influenciado pelo pensamento do criminologista e higienista italiano, Cesare Lombroso,defendia
a tese de que era possível identificar um criminoso a partir de suas características físicas,
sendo essas características do biotipo do negro.
Talvez essa estigmatização, ainda nos dias atuais, “justifique” a eliminação da
comunidade negra pela polícia e o rigor no tratamento dispensado pela justiça, com isso
observa-se a influência da teoria de Lombroso na psiquiatriaeno Sistema Judiciário Brasileiro.
BARROS (2006), na sua dissertação: Racismo institucional: a cor da pele como
principal fator de suspeição,que muito dialoga com essa pesquisa, aplicou questionários e
entrevistou aspirantes a policial do CFO (curso de formação de oficiais), alunos do CFSD
(alunos do curso de formação de soldados) e policiais que já estavam na ativa, todos da cidade
de Recife e região metropolitana, a fim de aferir a percepção que os mesmos têm sobre o que
caracteriza um elemento suspeito e quais são as os critérios para se considerar uma pessoa
suspeita. Segundo ele:
“Em a percepção do racismo institucional na comunidade policial, verificou-se que 65,1% dos profissionais percebem que os negros e pardos são priorizados nas abordagens policiais, o que corrobora as percepções dos ânulos do CFO e o CFSD, com 76,9% e 74% respectivamente. Com isso, a comunidade policial percebe a existência da filtragem racial” (BARROS, 2006, p.125).
Ainda de acordo com BARROS (2006), as circunstâncias e as narrativas evidenciam
que os policiais sabem que existe racismo na corporação, que há uma desvantagem para o
grupo negro na ação policial, no entanto, não se fala sobre isso, existe um tabu. “Essa
desvantagem, em situações iguais, é a característica crucial na definição de racismo
institucional” (SAMPAIO, 2003, p. 82,apud BARROS, 2006, p. 113).
Seguem alguns depoimentos de policiais que o referenciado autor colheu em seu
estudo sobre quais são os caracterizados como suspeitos:
“{...} normalmente a tendência do policial militar é abordar aquelas pessoas que ele (policial) tem aquele poder de força sobre elas (as pessoas) e nesse contexto as pessoas de cor são normalmente paradas. Major PM” (BARROS, 2006, p.86).
“Eu tenho quase que certeza que a nossa Polícia Militar está dividida entre a polícia do branco e a polícia do preto. Você chega numa favela, obviamente, só se chega gritando, mão na cabeça, isso e aquilo, só com os negros. Você chega em Boa Viagem, naquela Orla Marítima, você não desce com arma em
25
punho e nem tampouco gritando palavrada, até porque é um bairro nobre... Soldado PM” (BARROS, 2006, p. 90).
Ainda, dentro do mesmo campo semântico, FLAUZINA (2006) foca o projeto genocida
do Sistema Penal com a dissertação: Corpo negro caído no chão: o sistema Penal e o projeto
genocida do Estado brasileiro. A autora trabalha com os conceitos de racismo, criminologia,
Sistema Penal, genocídio e criminologia crítica.
Nesse sentido, FLAUZINA (2006) chama a atenção para a pós-abolição, que não criou
as devidas condições políticas e sociais, empurrando, deste modo, o negro para as periferias e,
com o advento do neoliberalismo rumo à conquista do poder, fomentou ainda mais a exclusão
social e a eliminação física dos grupos que estão à margem da agenda globalizante.
De acordo com a referida autora, o movimento negro sempre denunciou essa exclusão
e recentemente pesquisas e estudos abarcam essa realidade do contingente negro em alguns
âmbitos da vida social.
Corroborando a ideia do projeto genocida do Estado brasileiro como instrumento de
aniquilação física e simbólica que age sem trégua para extinguir o contingente negro,
FLAUZINA (2006) dá voz para Vilma Reis, que analisa essa realidade na cidade de Salvador:
“A maioria dos bairros de Salvador é construída por uma arquitetura que, no futuro, chamaremos de usina do terror neoescravista. Essa triste arte de construir tem quatro elementos pilares: bares, igrejas evangélicas, lojas de cremes de cabelo e casas comerciais varejistas (os mercadinhos) – todos, espaços controlados por brancos e localizados nas ruas centrais dos bairros, as chamadas Rua Direita. Atrás de tudo, estão as moradias das famílias negras. Os bares: repletos de homens negros – velhos, jovens e meninos, que a política da eliminação física lhes tem imposto. Esses bares do esquecimento e do congelar de identidades estão em todas as esquinas dos nossos bairros. Igrejas evangélicas (neopetencostais): cheias de mulheres negras que choram seus filhos que tombam todos os dias com as balas da polícia e dos grupos tolerados pela polícia. E lá onde pastores midiáticos estão tentando quebrar a nossa espinha dorsal, chamada ancestralidade-identidade-resistência. Lojas de creme de cabelo: onde nós, mulheres negras, diariamente sob a pressão da TV, das revistas e da escola, aprendemos desde cedo a nos negar, a nos mutilar, a não gostar de nós mesmas. Aqui morremos pela negação estética. A forma de morar: as moradias das famílias negras estão quase sempre nos becos, vielas, escadarias, ladeiras de barro, onde às vezes não há espaço para passar uma geladeira. Estas casas sem direito a reboco e menos ainda a pintura, formam um triste espetáculo e denunciam a situação de Apartheid vigente. Os mercadinhos: Casas Comerciais varejistas: A arquitetura do terror conta, com uma forma mais perversa que se materializa no ato de tomada das ruas de frente dos bairros pelos brancos pobres que, como sabiamente mostrou Spake Lee, em seu filme Faça a Coisa Certa, em menos de cinco anos se transformaram em uma classe de destaque no bairro. São esses os mesmos comerciantes que controlam os Conselhos Comunitários de Segurança, controlam os grupos de extermínio, geralmente formados por policiais, e assim impõem o silêncio nos bairros negros de Salvador. Esses comerciantes ocupam o lugar que historicamente eram das quitandas de
26
mulheres e homens negros, que se proliferavam em todos os bairros da cidade” (FLAUZINA, 2006, p. 101).
Esse cenárioé produzido no processo de exclusão e criminalização da pobreza pelo
projeto neoliberal do Estado brasileiro, que privilegia o segmento branco, ampliando ainda mais
a distância para a concretização de uma democracia racial, de acordo comFLAUZINA (2006).
Desse modo,observam-se questões referentes à justiça e segurança pública, as quais,
de alguma forma, geram desigualdade e resulta na violência que vitimiza a população negra
brasileira.
No próximo capítulo, iremos abordar questões relativas à justiça e às diferentes
interpretações dos operadores da lei quando se trata de crimes cometidos por brancos e por
negros no Brasil.
27
II. A CEGUEIRA DA JUSTIÇA
Nessa parte do estudo iremos abordar questões relacionadas à lei, à justiça,à punição
e em como são estabelecidos os limites legais entre as práticas punitivas e as questões
sociais, culturais e identitárias, ou seja, até que ponto se está punindo o crime ou a pessoa.
Abordaremos as políticas públicas de ação afirmativa, que são o resultado da constatação da
desigualdade entre brancos e negros na sociedade brasileira ao longo do seu processo
histórico, conforme vimos na primeira parte.
II. 1. Crime e Castigo
De acordo com FOUCAULT (2004), a noção de periculosidade significa que o sujeito
deve ser considerado pela sociedade como suscetível não pelos seus atos e pelas infrações
cometidas contra uma lei efetiva, mas pelas possibilidades de comportamento que este possa
desenvolver.
FOUCAULT (2002) discorre, dentre outras questões, sobre o início do século XIX, o
século da individualização, vigilância e controle social exercido pelo Estado sobre os cidadãos,
na forma de práticas sociais legitimadas por essa mesma sociedade. Se analisarmos a atuação
da polícia, ao restringir e delimitar os espaços em que a pessoa negra pode circular,
percebemos essa mesma prática, pois segundo FOUCAULT (2013) essas são práticas
constituintes do poder que o Estado desenvolve e a polícia é parte do mesmo.
O autor também aborda o rigor das regras para os sentenciados: os detentos dormiam
cedo e acordavam cedo, durante o dia havia horários rigorosos para trabalho e estudo, e o
tempo era rigorosamente cronometrado.
O aludido autor refere-se às mudanças nas penas de suplício para as de controle dos
corpos dos sentenciados, no intervalo de aproximadamente um século:
“Eles não sancionam os mesmos crimes, não punem o mesmo gênero de delinquentes. Mas definiam bem, cada um deles, um certo estilo. Menos de um século medeia entre ambos. É a época em que foi redistribuída, na Europa e nos Estados Unidos, toda a economia do castigo” (FOUCAULT, 2013, p. 13).
Assim, os crimes de castigo físico foram extintos, dando lugar a uma nova forma de
punição mais “humanizada”. Ainda segundo FOUCAULT (2013), foi uma tendência, desde o
século XIX, a adoção do caráter coercitivo das penas e um modelo de punir de acordo com os
indivíduos culpados.
28
Com as mudanças, as punições vão se tornando cada vez mais veladas e provocam
algumas consequências: a condenação passa a ter um caráter cada vez mais abstrato, sua
eficácia é atribuída à fatalidade e não à sua intensidade visível; a certeza de ser punido é que
deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro; “a mecânica exemplar da
punição muda as engrenagens” (FOUCAULT, 2013, p. 14).
Conforme o autor supracitado, em meados de 1830, as práticas punitivas tornam-se
ultrapassadas, aos poucos, os castigos físicos vão dando lugar a outros tipos de pena, como a
reclusão, os trabalhos forçados, a interdição domiciliar, a deportação; embora continuem sendo
penas físicas, a relação de castigo do corpo muda. Assim, essa mudança de punir o crime
através do corpo e do sangue toma novas dimensões, não mais o corpo é castigado, mas sim
a alma. O aparato da justiça punitiva tem que se ater agora a esta nova realidade, realidade
incorpórea. O processo de julgamento que acontece ao longo dos séculos XVIII e XIX faz o
sistema penal e o julgamento dos crimes tomarem dimensões diferentes do que eram, visto
que o poder de julgar foi ampliado para outras áreas, como a antropologia, psiquiatria e a
psicologia. A partir disso, a operação penal inteira se carregou de elementos e personagens
extrajurídicos. Pode-se dizer que não há nisso nada de extraordinário, que é do destino do
direito absorver pouco a pouco elementos que lhe são estranhos.
“Mas uma coisa é singular na justiça criminal moderna: se ela se carrega de tantos elementos extrajurídicos, não é para poder qualificá-los juridicamente e integrá-los pouco a pouco no estrito poder de punir; é, ao contrário, para poder fazê-los funcionar no interior da operação penal como elementos não jurídicos; é para evitar que essa operação seja pura e simplesmente uma punição legal; é para escusar o juiz de ser pura e simplesmente aquele que castiga: Naturalmente, damos um veredicto, mas ainda que reclamado por um crime, vocês bem podem ver que para nós funciona como uma maneira de tratar um criminoso; punimos, mas é um modo de dizer que queremos obter cura” (FOUCAULT, 2013, p. 25).
Em seu trabalho, o autor aborda a temática sobre a utilização do corpo como
estratégia política e de poder. Isso é observado quando a forma de punição perde a
característica de violência física e transforma-se, dando lugar ao controle dos corpos por
meioda vigilância e do controle. Trata-se do corpo político, conjunto dos elementos materiais e
das técnicas que servem de reforço, de vias de comunicação e de pontos de apoio para as
relações de poder e saber, as quais investem nos corpos humanos e os submetem a fazê-los
objetos de saber.
Um dos principais eixos da pesquisa de FOUCAULT (2013) foi mostrar que a história
do domínio do saber, do conhecimento, do homem normal e anormal, dentro ou fora da regra,
em sua relação com as práticas sociais, seria diferente se excluída a superioridade de um
sujeito de conhecimento.
FOUCAULT (2002) cita a visão de Nietzsche sobre o conhecimento para quem este
não é dado, ele não faz parte da natureza humana, mas sim é criado, inventado. É uma forma
29
de poder, de dominação, de força, de violação. Se o conhecimento é uma forma de poder,
pode-se entender o medo do grupo dominante de perder os privilégios que lhes são conferidos
na prática pela simbologia de sua representação.
Segundo FOUCAULT (2013), as formas jurídicas na evolução do direito penal
assumiram na nossa sociedade uma forma de verdade. Podemos pensar, desse modo, que
não se questionam “tais verdades”, mesmo que estas sejam o resultado, de forma velada, e
outras nem tanto, do racismo.
No século XVIII os suplícios já não eram tolerados, o pensameno corrente naquele
momento era sobre a necessidade de encontrar outra forma de punir. Conforme FOUCAULT,
(2013, p. 72) “no pior dos assassinos uma coisa pelo menos deve ser respeitada quando o
punimos: sua humanidade”.
O referido autor disserta sobre as transformações dos métodos de punição, tendo
como referência a tecnologia política do corpo para compreensão de uma história das
relações de poder e saber. O novo sistema penal se encarregou de elementos e personagens
extrajurídicos (psiquiatras, psicólogos), o direito absorveu elementos que lhe são estranhos,
esse aparato é para eximir o juiz da sua ação de punir. Assim, com o discurso de que a pena é
para modificar o comportamento, a justiça criminal se vale dos sistemas não jurídicos para a
requalificação do saber. “Um saber, técnica, discursos científicos se formam e se entrelaçam
com a prática do poder de punir” (FOUCAULT, 2013, p. 26).
Para estudar os processos jurídicos e dos novos mecanismos penais, FOUCAULT
(2013) assevera que as penalidades não são formas de punir os delitos, para ele, o papel
ocupado por elas nas formas sociais, nos sistemas políticos ou crenças, é para perseguir o
indivíduo e trazer reparação.
Com o surgimento da economia de mercado e o desenvolvimento do sistema
industrial, aumenta a exigência de mão de obra livre, resultando, no século XIX, na redução
dos trabalhos obrigatórios, substituídos pela detenção com finalidade punitiva. Mesmo com a
adoção dessa nova modalidade corretiva, para FOUCAULT (2013) o que está em jogo é a
“economia política” do corpo:
“ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão. É certamente legítimo fazer uma história dos castigos com base nas ideias morais ou nas estruturas jurídicas. Mas se pode fazê-la com base numa história dos corpos, uma vez que só se visam à alma secreta dos criminosos?” (FOUCAULT, 2013, p. 28).
O corpo é atravessado por relações de poder e dominação, que está relacionado à
sua utilização econômica, no entanto, para se constituir como força de trabalho, exige um
30
sistema de submissão. Para FOUCAULT (2013), o corpo se torna força útil, ele precisa ser
produtivo e submisso.
Conforme o autor, o poder punitivo é exercido no corpo daqueles que são vigiados,
treinados e castigados, tal qual os loucos, as crianças, os alunos, os colonizados, nós
acrescentamos nessa categoria os negros.
Diferente da alma cristã que nasce faltosa, a alma, a qual se refere FOUCAULT
(2013), nasce antes dos procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação.
”Uma alma que habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no dominó exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia política; a alma, prisão do corpo” (FOUCAULT, 2013, p.32).
Para que o crime seja desestimulado, é preciso se ter presente que o castigo não
compensa, ou seja, sua desvantagem. “Que o castigo o irrite e o estimule mais do que o erro
que o encorajara. Se o orgulho faz cometer um crime, que seja ferido, que se revolte com a
punição” (FOUCAULT, 2013, p. 103). A pena teria a finalidade de colocar o criminoso no lugar
daquele que ele lesou, para aprender a respeitar o direito dos outros, com a perda de usufuir
dos seus bens, sua honra, de sua liberdade, de seu tempo e de seu corpo.
II.2. Racismo e a Justiça
A definição de suspeito, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é:
“que suscita inquietação ou cuidado; de cuja existência, exatidão ou legitimidade não se tem certeza; que inspira desconfiança ou suspeita; que se supõe ser falsificado ou ilegal; duvidoso; diz-se de ou indivíduo sobre quem recaem suspeitas de ser o autor, o culpado de algo; perigoso, pouco seguro” (HOUAISS & SALLES, 2009).
A existência de racismo no Brasil contra as pessoas negras é sempre negada pelas
pessoas brancas, embora admitam sua existência. Como não é possível legislar sobre o
abstrato e o imaterial, a Constituição Federal do Brasilcriou normas infraconstitucionais sobre o
assunto, de acordo com SANTOS (2010).
ADORNO (1995), no estudo A criminalidade negra no banco dos réus: discriminação e
desigualdade no acesso à justiçateve como objetivo identificar, caracterizar e explicar as
causas do acesso desigual de brancos e negros à justiça criminal, no município de São Paulo,
a partir da análise da distribuição das sentenças judiciais para crimes de mesma natureza,
julgados no ano de 1990. Ainda de acordo com o autor, os principais resultados indicaram que:
31
“brancos e negros cometem crimes violentos em idêntica proporção, mas os réus negros tendem a ser mais perseguidos pela violência policial, enfrentam maiores obstáculos no acesso à justiça criminal e revelam maiores dificuldades de usufruir do direito de ampla defesa assegurado pelas normas constitucionais. Em decorrência, tendem a receber um tratamento penal mais rigoroso, representado pela maior rigorosidade em serem punidos comparativamente aos réus brancos. Tudo indica, por conseguinte, que a cor é um poderoso instrumento de discriminação na distribuição da justiça” (ADORNO, 1995, 1995, p. 45).
RAMOS e MUSUMECI (2005) apresentam relatos de policiais sobre quem pode ser
considerado suspeito:
“depende do local onde está sendo realizada a abordagem. Por exemplo, se eu estou fazendo uma abordagem dentro de uma comunidade carente, eu já posso com tranquilidade começar a partir dos oito anos. Porque, a partir dos oito anos, eles estão sendo utilizados... O jornal está trazendo hoje: menor com 13 anos foi abordado no centro da cidade por um policial militar, estava com um revólver calibre 38 - Oficial de BPM de subúrbio” (RAMOS e MUSUMECI, 2005, p. 40).
SANTOS (2010) efetuou uma análise sob o ponto de vista do direito penal, da Lei
7.716/89, que trata da discriminação e do preconceito de raça, cor, etnia, religião e
procedência nacional. Para tal, afirma ter sido necessário investigar diferentes áreas do
conhecimento humano, como a antropologia, a biologia, a sociologia, a psicologia e o
estudo da história, no conjunto das leis, os campos dos direitos constitucionais,
administrativo, civil, comercial, trabalhista, processual e internacional, dada a complexidade
e amplitude do assunto.
O autor incluiu também questões análogas a essa lei especial, como as normas de
imprescritibilidade e inafiançabilidade previstas no artigo 5º, XLII, da Constituição Federal,
visando apurar os motivos do quase descaso a que foram relegadas. “Artigo 5º: a prática
de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos
termos da lei” (SANTOS, 2010, p. 48).
Após 124 anos da promulgação da Lei Áurea, que formalmente libertou os
escravos no Brasil, não há motivos para comemoração.
“O marco, que pode indicar motivo de comemoração para alguns, infelizmente nos obriga a fazer uma reflexão profunda sobre a condição do negro no Brasil e a respeito do que representou efetivamente a “conquista da liberdade” pelos escravos” (SANTOS, 2010, p.23).
O autor supracitado menciona, além dos negros, os indígenas, os judeus, os
migrantes, as mulheres, os homossexuais, deficientes, idosos e todas as “minorias”, sendo
32
as vítimas que comumente se tornam alvo da intolerância, sofrendo racismo ou
discriminação e preconceito.
“Em nosso país continental, marcado por tantas diferenças sociais, religiosas, culturais e regionais, persiste a justa luta para extirpar (ou ao menos diminuir) a existência do preconceito e da discriminação, ou seja, para que se possibilite a concretização de real direito à igualdade. Contudo, as questões atinentes a tão relevantes temas estão sendo relegadas a um segundo plano, principalmente na seara do direito, e ainda mais, no campo do direito penal” (SANTOS, 2010, p.24).
Ainda segundo o autor, não há “penalistas” que se debrucem sobre a temática da
discriminação racial. Inclusive muitos negam a existência de racismo no país. Talvez o fato do
número de casos de preconceito e discriminação na justiça ser irrelevante, acabe por reforçar
esse pensamento. Muitos comparam o Brasil com os Estados Unidos e a África do Sul para
afirmar que aqui se vive num paraíso de convivência social e religiosa.
O objetivo do estudo de Santos foi trazer à tona a existência do preconceito e da
discriminação na nossa sociedade e traçar um rápido paralelo por meio da análise sucinta a
respeito da visão, sob o ponto de vista penal, de brasileiros e estrangeiros sujeitos ànossa
jurisdição.
Conforme SANTOS (2010), foi realizado um trabalho de campo junto aos órgãos
responsáveis pela segurança pública no país, visando obter um parâmetro, ao menos parcial,
da quantidade de ocorrências formalizadas perante a polícia, o Ministério Público e o Poder
Judiciário, para verificar o número de casos registrados e quais interpretações foram dadas
para os respectivos casos e se a lei foi aplicada.
O autor comentaque foi realizado um estudo do direito comparado para a sua
validade, para a análise e aperfeiçoamento da lei e para conhecer como esse problema está
sendo abordado no exterior e se existe uniformidade de pensamento ou tendência para tal.
O autor elucida ainda que o estudo do arcabouço jurídico penal evidenciou a
existência de preconceito e de discriminação, bem como a falta de consideração pela matéria e
o reduzido número de casos formalizados, os quais desafortunadamente resultaram em baixos
índices de apreciação por parte do Ministério Público e do Poder Judiciário, propagando a
impunidade na sociedade.
Contudo, o mito da cordialidade ou da democracia racial é uma crença de muitos
brasileiros. Essas pessoas têm a tendência de negar a existência das discriminações e dos
preconceitos ou minimizam suas conseqüências, responsabilizando pequenos grupos ou
acreditando que o racismo se manifeste como casos isolados. Outra vertente considera que
não é possível separar o preconceito de classe e os de raça ou cor. Desse modo, argumenta-
se que os negros, pardos ou indígenas sofreriam apenas os efeitos do seu pertencimento
33
social, ou seja, o foco é a classe e não o pertencimento e as características raciais (SANTOS,
2010).
“Veja bem, isso é muito conceitual. Em primeiro lugar, a nossa população é basicamente mestiça. Por exemplo, eu me definiria como negro, pardo ou como moreno? Vai muito do que as pessoas conceituam como negro ou branco. Por um lado a gente observa o seguinte, isso já é um dado estatístico, as nossas penitenciárias são predominantemente constituídas de negros. Se isso tem alguma coisa de cultural, não sei. Mas, com certeza, 90% da massa carcerária é constituída de negro - Oficial de BPM de subúrbio” (RAMOS E MUSUMACI, 2005, p. 48).
SANTOS (2007) aborda a essencialidade na formação inicial e permanente de todos
os operadores do direito: funcionários, membros do ministério público, juízes e advogados.
Defende ainda, a necessidade de uma evolução na formação permanente para a melhor
aplicação de uma nova lei que entrar em vigor. “O pressuposto é que se houver uma formação
específica, a lei obviamente não será bem aplicada” (SANTOS, 2007, p. 66). O autor
supracitado enfatiza a importância de formar os magistrados para a complexidade do assunto,
os novos desafios e os novos riscos. Os magistrados, sobretudo as novas gerações, vão viver
numa sociedade que combina uma aspiração democrática muito forte em consequência de
uma dupla aspiração de igualdade e de respeito à diferença.
O relatório do projeto “Sistema Judicial e Racismo” do Cento de Estudos de Justiça
das Américas refere que as instituições do movimento negro brasileiro apontam uma carência
de formação sobre racismo entre os operadores do sistema judicial. Para a grande maioria
prevalece o senso comum da democracia racial de Gilberto Freyre. Não há racismo, por outras
palavras. E, portanto, assumem nas sentenças o preconceito racial de se julgarem sem
preconceito racial. Impõe-se outra formação que mostre que a sociedade brasileira, como
qualquer outra sociedade envolvida historicamente no colonialismo (como colônia ou como
colonizadora), é uma sociedade racista e que o racismo tem de ser reconhecido para poder ser
abolido. É de saudar que, 184 anos depois da independência, a sociedade brasileira chegue à
conclusão de que a independência não foi o fim do colonialismo e que, pelo contrário, ele
continuou sob várias formas de colonialismo interno. O Prouni, as ações afirmativas, a política
de quotas são os marcos da passagem histórica da pós-independência para o pós-colonialismo
(SANTOS, 2007, p.67).
Ainda para o referido autor, a formação é uma das reformas centrais dos sistemas
judiciais. Menciona a característica da magistratura em Portugal, que acredita ser semelhante à
do Brasil, a qual passou por um momento denominado “retrato-robot”, traça um perfil desejado
para a mesma e como deveria ser a formação para se chegar ao perfil desejável. A grande
característica desse retrato é o domínio de uma cultura normativista, técnico-burocrática e a
ausência de três grandes ideias:
34
“a autonomia do direito, a ideia de que direito é um fenômeno totalmente diferente de todo o resto que ocorre na sociedade e é autônomo em relação a essa sociedade; uma concepção restritiva do que é esse direito ou do que são os autos aos quais o direito se aplica; e uma concepção burocrática ou administrativa dos processos” (SANTOS, 2007, p.68).
De acordo com o mesmo, primeiro se tem a prioridade do direito civil e do direito
penal. Na tradição da dogmática jurídica, a autonomia do direito construiu-se,
fundamentalmente, em relação ao direito civil e ao direito penal, os dois grandes ramos do
direito nas faculdades de direito.
“São ainda hoje as formas de direito que garantem, quase como num espelho, a imagem de autonomia do direito. Noutros ramos do direito (direito da família, do trabalho, ambiental etc.) não vemos essa autonomia. A ideia de autonomia determina o modo de interpretar e aplicar o direito” (SANTOS, 2007, p. 68).
A segunda manifestação é propriedade da formação generalista, caracterizada
basicamente pela ideia de que só o magistrado, por ser magistrado, tem competência para
resolver litígios e de que, pela mesma razão, tem competência para resolver todos os litígios. A
lei passa a ser o único fator na resolução dos litígios, sendo o magistrado seu intérprete
fidedigno, e sendo a lei geral e universal, a sua competência tem de ser também geral e
universal. A ideia de que há uma competência genérica para resolver os litígios atualmente
ainda está muito enraizada. A terceira manifestação é a ideia que a autonomia do direito é igual
à autonomia dos seus aplicadores, o que suscita certa desresponsabilização perante os maus
resultados do desempenho do sistema judiciário. Essa ideia manifesta-se através de três
sintomas fundamentais: o primeiro, é que sempre que há um problema no sistema, o
problemaé sempre da outra instância. Transfere-se a culpa para fora do sistema ou para fora
do subsistema de que se faz parte. O segundo é que com a mesma estrutura burocrática, no
mesmo tribunal, verificam-se em seções diferentes desempenhos muito distintos. Terceiro
sintoma é um baixíssimo nível de ação disciplinar efetiva, de acordo com SANTOS (2007).A
quarta manifestação da cultura judiciária é o privilégio do poder, apesar desta ser técnico-
burocrática, não se consegue perceber os agentes do Estado como cidadãos de iguais direitos
e deveres. Trata-se de uma cultura autoritária que faz o poder político ter alguns privilégios
junto da justiça. Isso significa medo de julgar os poderosos como cidadãos comuns. Trata-se
de uma cultura dos agentes judiciais e que se manifesta de diversas formas. Já a quinta
manifestação desta cultura é o refúgio burocrático, o qual se manifesta pela preferência por
tudo o que é institucional, burocraticamente formatado. Os sintomas mais nítidos dessas
manifestações é a gestão burocrática dos processos, ou seja, a preferência por decisões
processuais, em detrimento de decisões substantivas, como, por exemplo, a repulsa a medidas
alternativas à prisão, porque não estão formatadas burocraticamente.A sexta manifestação
desta cultura normativista técnico-burocrática é a sociedade longe, quer dizer, é ser, em geral,
competente para interpretar o direito e incompetente para interpretar a realidade. Ou seja,
35
conhece bem o direito e sua relação com os autos, mas não conhece a relação dos autos com
a realidade. Devido à precária interpretação da realidade, o magistrado é influenciado pelas
ideias dominantes. Desse modo, reproduz a dominação quando segue essa mesma cultura
aplicando a lei “como deve ser”.
As ideias dominantes tendem a ser conceitos de formadores de opinião, dada a
grande concentração dos meios de comunicação social. Nesse sentindo, cria-se um senso
comum para se analisar a realidade, afirma Santos (2007).Por fim, a última característica da
cultura judicial dominante é confundir independência com individualismo autossuficiente.
Significa, basicamente, uma inflexibilidade ao trabalho em equipe, uma oposição militante à
colaboração interdisciplinar o que não se permite aprender com outros saberes.
Assim, faz-se necessário uma evolução no ensino do Direito nas faculdades, visto que
o paradigma jurídico-dogmático presente nas faculdades tem impossibilitado a percepção
sistêmica da sociedade, ou seja, a circulação de várias formas de saber. Enquanto locais de
circulação dos postulados da dogmática jurídica estiverem distantes das preocupações sociais,
corre-se o risco de formar profissionais pouco comprometidos com os problemas sociais.
Concordando com SANTOS (2007) sobre a necessidade de entendimento do campo
do sistema de justiça quando se trata que questões sociais, tais como racismo institucional,
compreendemos que a mesma urgência se faz na instituição militar visto que a mesma em sua
ação cotidiana é racista.
Para BARROS (2006), os negros são prioritariamente abordados pela polícia, a
fundada suspeita está no campo da subjetividade:
“Na percepção dos policiais, o suspeito é predominantemente jovem, masculino e negro. Há indícios de que a abordagem policial também reflete uma relação de poder, em que os menos esclarecidos são sistematicamente selecionados. Em conclusão, os dados levantados na presente dissertação permitem inferir que a cor da pele é o principal fator de suspeição entre os policiais militares” (BARROS, 2006, p. 10).
Em sua pesquisa, BARROS (2006) apresenta dados significativos que evidenciam que
a polícia, tendo de escolher uma cor para categorizar o suspeito, a cor negra tem prioridade
entre os policiais militares.
“Esse é o meu maior drama, nesses 10 anos de polícia [...] o policial se encontra numa situação difícil, porque ele não sabe que suspeição é essa, absolutamente subjetivo (...) não é uma coisa que se aprende na escola (na formação) porque na escola a gente ainda não tem uma doutrina[...]é uma coisa que o cara aprende lá com o pai e a mãe. Tenente PM” (BARROS, 2006, p. 80).
36
Conforme nos aponta (FLAUZINA, 2006), o emprego da criminologia ainda está
atrelado às análises demasiado comprometidas com a sustentação da democracia racial, para
a autora:
“A fim de suprir essa debilidade, criminólogos e criminólogas críticos devem assumir o racismo como variável substantiva da constituição do sistema penal brasileiro. A partir desse tipo de perspectiva, acreditamos, é possível visualizar o braço armado do Estado como um instrumento a serviço do controle e extermínio da população negra no país, o que, necessariamente, aponta para a existência de uma plataforma genocida de Estado, quebrando, em definitivo, a espinha dorsal do mito da harmonia entre as raças no país” (FLAUZINA, 2006, p.3).
Seguindo a mesma linha de raciocínio, a autora defende que o papel das agências de
controle social formal, tais como Polícia, Ministério Público e Justiça, abandone a visão a elas
conferida, de combate à criminalidade, e adote uma postura reflexiva para compreendê-las
como produtoras dessas desigualdades:
“no que tange ao aspecto quantitativo, as investigações apontam para a indisposição de propósitos e a impossibilidade material do sistema de gerir as práticas delituosas como um todo. Os estudiosos chegaram a essa conclusão graças à análise dos fenômenos da criminalidade de colarinho branco e da cifra oculta da criminalidade. Em relação à primeira variável, verificou-se que os delitos cometidos pelos indivíduos dos grupos hegemônicos tem uma tendência a serem humanizados, em oposição aos praticados pelos segmentos vulneráveis, que são facilmente atingidos pelo sistema penal. Em decorrência disso, as estatísticas criminais ensejam interpretações distorcidas, indicando que a criminalidade é predominantemente entre os segmentos marginalizados, em razão de fatores sociais, tais como a pobreza, por exemplo. As pesquisas de autodenúncia e vitimização, entretanto, revelam que “a criminalidade não é o comportamento de uma restrita minoria, como quer uma difundida concepção (...), mas ao contrário, o comportamento de estratos ou mesmo da maioria dos membros de nossa sociedade” (FLAUZINA, 2006, p. 23).
Ainda de acordo com FLAUZINA (2006), pode-se verificar que o sistema penal foi
concebido para alcançar apenas uma parcela dos delitos e delinquentes, do contrário, ele
mesmo não sobreviveria. Constata-se uma tendência do mesmo em atingir apenas os crimes
praticados pela parcela mais vulnerável da sociedade. São os discursos legitimados em nome
do poder de verdade, conforme postulou FOUCAULT (2004) em sua teoria.
Conforme aponta FLAUZINA (2006), o movimento negro sempre denunciou essa
exclusão, mas só agora pesquisas e estudos vêm abarcando essa realidade do contingente
negro em alguns âmbitos da vida social.
A sociedade e o Estado brasileiro têm ciência da necessidade de concretização das
políticas públicas de ação afirmativa como forma de reparar as desigualdades históricas
presentes na sociedade brasileira. A Constituição Federal (1989), a Declaração de Durban
(2001), a criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial – (SEPPIR)7 (2003)
7http://www.seppir.gov.br/sobre/oque_vejaveja1link. Acessorealizado em 30 de dezembro de 2014.
37
e o Estatuto da Igualdade Racial (2010)8 vêm atuando no sentido de criar uma agenda positiva
para a população negra e diminuiros efeitos do período escravista.
II.3. Políticas Públicas e Ação Afirmativa
De acordo com RIBEIRO (2014), a SEPPIR foi criada em 2003 com status de
ministério e em 2010 passou a ser um ministério com a complexa função de ser formulador de
políticas para ser executada pelo conjunto do governo, focalizando a ação transversal na
operacionalização da política de igualdade racial no país. Ainda conforme GOMES (2009, p.
125 apud RIBEIRO, p. 243): “por meio da SEPPIR é institucionalizada a necessidade de
enfrentar a desigualdade racial em todas as esferas da vida social”. Entretanto, o mesmo autor
reforça a necessidade de articulação política entre todos os Ministérios, para ele, todos devem
trabalhar com a mesma visão de desigualdade racial nas suas políticas, pois do contrário nada
mudará, uma vez que a Secretaria não tem estrutura nem pretensão de atuar em todos os
níveis.
Conforme RIBEIRO (2014), os três princípios básicos que regem a Política Nacional
de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) são: “a transversalidade, a descentralização e a
gestão democrática” (p. 244). A autora explica ainda que a PNPIR é a base para o Plano
Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR)9.
O Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-3), criado pelo Decreto n° 7037
de dezembro de 2009, fortalece do ponto de vista da transversalidade com foco no combate a
desigualdade. Para RIBEIRO (2014):
“O PNDH-3 tem como objetivo estratégico: igualdade e proteção dos direitos das populações negras, historicamente afetadas pela discriminação entre outras formas de intolerância e, com isso, constitui-se como referência para o desenvolvimento de políticas de igualdade racial em vários níveis” (RIBEIRO, 2014, p. 246).
As propostas do PNDH-3 têm o objetivo de apoiar junto ao legislativo a aprovação do
Estatuto da Igualdade Racial, promover ações articuladas entre políticas de educação, cultura,
saúde e geração de emprego e renda, visando transformar a qualidade de vida da população
negra e combater a violência racial, elaborar programas de combate ao racismo institucional e
estrutural, implementando normas administrativas e legislação nacional e internacional, entre
outras.
8http://www.seppir.gov.br/destaques/presidente-lula-sanciona-estatuto-da-igualdade-racial-na-terca-20.
9http://www.seppir.gov.br/planapir. Acesso em 10 de setembro de 2014.
38
Outra razão para a existência da PNPIR é a descentralização para garantir uma
efetiva relação entre o governo federal e os municípios, através da inserção da igualdade racial
no sistema federativo.
Por último, a PNPIR tem como princípio a gestão democrática, resultado da
formulação conjunta entre governo e sociedade civil, do monitoramento da execução e do
controle das políticas.
Para RIBEIRO (2014), as ações afirmativas devem ser vistas como um conjunto de
mecanismos que favorece o acesso econômico e político de grupos que historicamente foram
discriminados. “Nesse sentido, faz-se importante compreender a fundamentação desse intenso
debate sobre as ações afirmativas, que delineia os posicionamentos favoráveis e contrários à
sua importância e pertinência” (RIBEIRO, 2014, p. 254).
Dando prosseguimento a essas reflexões, FONSECA (2009) considera que a
população negra, que foi escravizada no passado, sobrevive ainda hoje em condições de
marginalidade e vulnerabilidade social, conforme demonstra todos os dados estatísticos e
indicadores sociais. “Trata-se da população com os mais altos índices de mortalidade,
morbidade, analfabetismo, evasão escolar, desemprego e condenações penais” (FONSECA,
2009, p. 97).
Embora as pesquisas e publicações denunciem a situação de vulnerabilidade social
em que se encontra a população negra no país, como consequência da ausência do próprio
Estado, esses dados não têm conseguido traduzir essa realidade em políticas públicas e ações
coletivas concretas. “O Legislativo, o Executivo e o Judiciário brasileiro estão muito aquém de
tomar medidas práticas que resolvam as demandas no âmbito da educação, da saúde e do
emprego” (FONSECA, 2009, p. 101). Mesmo com as publicações de livros, artigos e outras
fontes comprovando que o Estado e a sociedade brasileira são racistas, essas informações em
si não têm garantido políticas efetivas com vistas a mudar essa realidade. Ou seja, a criação de
órgãos governamentais não corresponde à criação de condições de igualdade para a
população brasileira. Esses órgãos, de modo geral, garantem o emprego de alguns que por
motivos diversos conseguiram estar próximos do governo, mas não diminuiu a vulnerabilidade
dos negros que é histórica. Portanto, “a criação de tais órgãos tem a nobre função de dizer –
como já fazem as publicações governamentais e tantas outras produzidas por editoras
comerciais e universitárias – que no Brasil há racismo e que ele é ruim para a sociedade”
(FONSECA, 2009, p. 103).
Por fim, o autor aborda a falta de verbas para as secretarias, coordenadorias,
fundações e conselhos que tem a finalidade de atuar no combate ao racismo e às
desigualdades entre brancos e negros. Desse modo, aponta que a criação desses órgãos são
meramente políticos, com o objetivo de dar visibilidade social para o governo e governantes.
“São mais ações de marketing do que um ato concreto” (FONSECA, 2009, p.104).
39
São justamente essas desigualdades apontadas pela história e que persistem nos dias
atuais que nos impulsionaram a compreender a elaboração desse estudo.
II.4. O Estatuto da Igualdade Racial
O Estatuto da Igualdade Racial, Lei no 12.288/2010, que alterou as Leis no 7.716, de 5
de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de Abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de
24 de novembro de 2003, foi sancionada pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da
Silva, e buscou atender às reivindicações do movimento social negro organizado, o qual há
décadas assinalava as desvantagens dos negros brasileiros em todas os esferas da vida
social, econômica, política e cultural no país (OLIVEIRA, 2013).
No livro, O Estatuto da Igualdade Racial, o autor supracitado faz uma análise crítica do
projeto de lei idealizado pelo deputado federal Paulo Paim, atualmente senador da República,
sancionado em julho de 2010.
“Para alguns militantes e ativistas, bem como para parte dos operadores do direito, as chamadas ações afirmativas são consideradas um remédio amargo, mas essencial para a correção de históricas distorções e injustiças que se perpetuam no país” (OLIVEIRA, 2013, p.45).
O autor ainda faz referência ao conteúdo do projeto de lei apresentado em 2003 e a lei
sancionada em 2010, sete anos depois, cujas alterações na sua essência foram substanciais,
tanto no que diz respeito ao seu ideal como ao seu propósito.
No texto final da lei, termos como “reparação” e “compensação” foram excluídos,
“ficando consignado apenas o termo “inclusão” – que, por si só, não causa tanta aversão nos
opositores das ações reparatórias e compensatórias, pelo menos do ponto de vista semântico”
(OLIVEIRA, 2013, p. 48).
O texto do projeto de lei indicava a valorização da diversidade racial, mas a lei
contemplou a frase valorização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional
brasileira. ”Mas, quando propõe o fortalecimento da identidade nacional brasileira, corrobora a
existência da tão falaciosa democracia racial” (OLIVEIRA, 2013, p.49).
Outras modificações significativas, os termos “afro-brasileiros”, entendidos como mais
abrangentes, foram substituídos por “população negra” na lei. Também houve substituição do
termo “desigualdades raciais” por “desigualdades étnicas”, outro termo eliminado foi “terras
quilombolas”, ficando o termo “acesso a terra”. Como se vê nessa comparação, há notória
confusão e falta de entendimento semântico entre os termos “raça” e “etnia”, dando a
impressão de que houve o nítido propósito de “desracializar” o texto final (OLIVEIRA, 2013, p.
50).
40
Segundo o referido autor, observa-se também a exclusão da palavra “raça” do texto
final sendo substituída por “desigualdades sociais” no lugar de “desigualdades raciais”. Deste
modo, pode-se constatar que o grupo responsável pela versão final da lei não obedeceu ao
texto original. Percebe-se ainda como fato significativo, a extinção do Capítulo IV do projeto.
Este capítulo refere-se “à criação de um “Fundo de promoção da Igualdade Racial” que além
da sua criação, dispunha sobre a proveniência dos recursos para ele e sua destinação”
(OLIVEIRA, 2013, p. 52). O tema é de extrema relevância, uma vez que não é possível colocar
em prática as políticas de promoção da igualdade sem recursos financeiros para tal fim.
“Ainda que o projeto de lei do Estatuto da igualdade Racial tenha sido completamente mutilado em seus pontos mais relevantes, que tratavam das cotas, da inclusão de negros no mercado de trabalho, das terras quilombolas etc., o senador Paim, quando da aprovação do projeto em plenário, veio a público apontar que era o que se podia aprovar naquele momento diante das circunstâncias” (OLIVEIRA, 2013, p. 62).
Nesse sentindo, a Lei nº12.288 , 2010 elucida no Artigo 1ºe seus incisos,
“Título I Disposições preliminares: Art. 1º Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial
10, destinado a garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Parágrafo único.Para efeito deste Estatuto, considera-se:
I - discriminação racial ou étnico-racial: toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objetivo anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdade fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada; II – desigualdade racial: toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica; III – desigualdade de gênero e raça: assimetria existente no âmbito da sociedade que acentua a distância social entre mulheres negras e os demais segmentos sociais; IV – população negra: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotem autodefinição analógica; V – políticas públicas: as ações, iniciativas e programas adotados pelo Estado no cumprimento de suas atribuições institucionais; VI – ações afirmativas: os programas e medidas especiais adotados pelo Estado e pela iniciativa privada para a correção das desigualdades raciais e para a promoção da igualdade de oportunidades”(Estatuto da igualdade Racial, 2010, p. 7).
10
Estatuto da Igualdade Racial Lei no. 12.288, de 20 de julho de 2010. Presidência da República. Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR/PR
41
O documento assinala que a população negra brasileira está em desvantagem no
acesso a serviços públicos, como educação, saúde, justiça e previdência social, além de
receber menor renda e ter menor expectativa de vida do que outros segmentos. Entende-se
que as raízes dessa situação são históricas, uma vez que o ato simbólico de assinar uma lei
libertando os escravos não se concretizou na prática.
No próximo capítulo abordaremos questões referentes à cultura e à identidade cultural,
bem como conceitos da teoria de FOUCAULT (2002, 2004, 2013, 2013a)úteis para reflexão,
teoria da linguagem como manifestação da subjetividade através do discurso e da Análise de
discurso.
42
III.IDENTIDADE E AFIRMAÇÃO
Nesse item abordaremos temas diretamente relacionados às questões a serem
observadas na análise das notícias, para isso, além da teoria do discurso, de acordo com
MAINGUENEAU (2004 e 2008), abordaremos a temática da linguagem, segundo BAKHTIN
(1995 e 1997), e identidade e cultura conforme HALL (1995, 2000, 2003 e 2013).
Para Hall, o termo identidade é compreendido como:
“o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos “interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares como sujeitos sociais de discurso particulares e, por outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constróem para nós” (HALL, 1995 apud SILVA, 2000, p. 112).
Para o referido autor, o processo de construção da identidade social é um ato de
poder, do mesmo modo que a mulher se constitui a partir da identidade masculina, o negro se
constitui a partir do referencial de humanidade do branco. Essa estrutura de desigualdade e
subordinação funciona nos mesmos moldes do sexismo, o homem como figura de autoridade e
o branco como figura de prestígio. Contudo, cabe acrescentar que, de acordo com o autor, “as
identidades são construídas a partir da diferença e não fora dela” (HALL, 1995 apud SILVA,
2000, p. 110).
Segundo HALL (1998), a imagem da identidade está sempre ameaçada pela falta
como na fase do espelho11 em que a imagem refletida ajuda a criança na aquisição de uma
unidade corporal que ela ainda não possui.
As costuras das nossas ideias a respeito de nós mesmos e das ideias do outro,
mudam em função das percepções dos outros, esse processo é constituído no mundo social e
psíquico, então para o autor ele é contínuo. Esse processo de subjetivação através do
discurso, para ser um indivíduo completo, não no sentido de perfeição, mas pensando “sob
rasura”, terminologia criada por HALL (2000), significa que é necessário repensar os velhos
conceitos.
“O sinal de “rasura” (X) indica que eles não servem mais – não são mais “bons para pensar” – em sua forma original, não-reconstruída. Mas uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a pensar com eles – embora agora em suas formas
11
Segundo Lacan, fase da constituição do ser humano que situa entre os seis e os dezoito primeiros meses; a criança, ainda num estado de impotência e de incoordenação motora, antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio de sua unidade corporal.
Esta unificação imaginária opera-se por identificação com a imagem do semelhante como forma total; ilustra-se e atualiza-se pela experiência concreta em que a criança percebe a sua própria imagem num espelho. A fase do espelho constituiria o esboço do que será o ego.
43
destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados” (HALL, 2000, p. 104).
Desse modo, a formação da identidade implica à necessidade de construir novas
epistemologias como forma de reivindicação da negritude, baseado na alteridade de todas as
culturas. HALL prefere o uso do conceito de raça, como categoria discursiva, justificando-se
pelo fracasso de se tentar explicar o conceito no terreno das ciências biológicas. É necessário
substituir a definição biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural, pois raça refere-semais
à uma linguagem do que à nossa forma de constituição biológica (HALL, 2013).
Ainda segundo HALL (2013), oconceito de identidade tem sua constituição na
ambivalência, resultado de fantasia e idealização, seu objeto tanto pode ser amado ou odiado.
As identidades não são unificadas, são fragmentadas, construídas por posturas similares e
antagônicas, pelo discurso ao longo do processo histórico.
A identidade na pós-colonialidade é o resultado da história da linguagem, da cultura e
da projeção do colonizador, o que dificulta a identificação de quem realmente se é. “Essa
representação afeta a forma de como se pode representar a si mesmo” (HALL, 2000, apud
SILVA, 2000, p. 109). Os discursos produzidos ao longo da história e institucionalizados se
utilizam de estratégias e iniciativas específicas e eficazes. HALL sugere ampliar o foco de
observação, pensar a identidade como uma construção, utilizar uma abordagem discursiva, ou
seja, um processo de compreensão, de intelecção do mundo através da capacidade simbólica
de interação com o outro, mediado pela palavra enquanto signo pleno de sentido histórico e
social.
Ao pensar no processo diaspórico ou no povo africano que sobreviveu fora da África,
não se pode desconsiderar a formação identitária deles inseridos em outras culturas. Nesse
sentido, HALL (2003) aborda questões referentes à diáspora africana e como a identidade
africana sobreviveu fora da África.
O autor refere-se ao movimento artístico caribenho, que está diretamente relacionado
com a releitura das tradições africanas. Assim como a revolução cultural dos anos de 1960, na
Jamaica, onde as manifestações culturais africanas estão presentes na religião, folclore,
narrativas orais, cerimônias e ritos de passagem, música, tradições políticas e rastafarianismo,
herança da Etiópia.
HALL (2013) utiliza a terminologia “significante flutuante”, para caracterizar o sistema
de classificação da diferença física e cultural nas sociedades humanas como categoria
discursiva. Esse conceito traduz melhor as diferenças reais entre grupos humanos do que o
biológico ou genético, que até então vinham sendo considerado. É preciso substituir a definição
biológica de raça pela sócio-histórica ou cultural. Assim, mesmo com o entendimento do
significante de raça como discurso, o pensamento biológico sobrevive, embora a ciência já
tenha comprovado que geneticamente não é possível separar ou catalogar grupos humanos.
44
“As pessoas são meio esquisitas, algumas marrons, outras bastante pretas, algumas até, com esta luz, repugnantemente rosadas. Mas não há nada de errado com suas aparências. Mesmo assim, quero defender que raça funciona como uma linguagem. E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classificação de uma cultura, às suas práticas de produção e sentido. E essas coisas ganham sentido não por causa do que contêm em suas essências, mas por causa das relações mutáveis de diferença que estabelecem com outros conceitos e ideias num campo de significação” (HALL, 2013, p. 3).
O autor mencionado preconiza que é preciso desconstruir o determinismo biológico e
afirma que são os fenômenos sociais, políticos e culturais que possibilitam a expressão da
identidade racial do autor ou criador. Ainda que as diferenças entre os grupos humanos sejam
culturais e políticas, as definições genéticas, biológicas e fisiológicas racistas persistem no
senso comum. Ele defende a ideia do funcionamento de raça como linguagem ou como signo.
De acordo com HALL (2013), raça pode ser entendida como um significado flutuante,
isso quer dizer que tal noção trata-se de uma construção discursiva e tem relação com os
sistemas de classificação de uma cultura e de suas práticas de produção de sentido.
Para HALL:
“Raça é a categoria discursiva organizadora em torno da qual sistemas bastante reais foram organizados. Entretanto, como prática discursiva, o racismo tem sua lógica própria. Afirma que as diferenças sociais e culturais estão fundamentadas na diferença biológica e genética. Este efeito naturalizador parece tornar a diferença racial um fato fixo e científico. O problema para o racismo, se posso dizer isso, é que o nível genético não é imediatamente visível, e por isso não pode operar como vocabulário social geral de distinção. Sua estrutura oculta tem, portanto, que ser materializada, de forma a poder ser facilmente reconhecida, em significantes visíveis no corpo, como cor da pele, características físicas de cabelo, traços, tipo de corpo etc. Esses significantes funcionam como mecanismos discursivos de clausura, na vida cotidiana. A este processo Frantz Fanon deu o nome de epidermelização – a escrita das diferenças raciais no corpo, a inscrição no corpo. Os discursos de raça funcionam, então, estabelecendo uma articulação, ou o que Ernesto Laclau denominou um sistema de equivalências entre os registros biológicos e os sócio-culturais, permitindo que um corresponda ao outro. Apesar dos efeitos de „clausura‟ dos seus mecanismos, as hierarquias raciais e os discursos do racismo que os produzem [deploythem], estão, na realidade, em constante deslocamento histórico: suas „equivalências‟ são reorganizadas discursivamente, na medida em que são amarradas a diferentes configurações de poder”(HALL, 2000, p. 11).
Do mesmo modo que HALL, FANON (2008) já pensava em raça como linguagem. Em
1952, ele fez um excelente diagnóstico da situação das colônias, da realidade de opressão em
que vivia o negro nas Antilhas. Embora já se passassem mais de sessenta anos, trata-se de
uma obra atual, pois ainda hoje, século XXI, a realidade dos negros nos países colonizados é
um desafio para o entendimento.
A luta de FANON era pela libertação das correntes, reivindicando uma nova atitude
frente aos desafios para a alteridade do negro. Para ele, a ideologia do branco era perversa,
45
levando o colonizado a assumir uma postura de dependência gerada pelo complexo de
inferioridade, construído no processo de hegemonia da cultura de origem eurocêntrica.
O desejo de igualdade passou por um processo de transformação da realidade como
uma utopia perseguida. Em sua obra, o autor procurou compreender o comportamento do
colonizado a partir da teoria psicanalítica. Abordou a formação da identidade através da
linguagem, da relação do negro com o branco, das relações amorosas entre mulheres negras e
homens negros, entre homem negro e mulher branca e entre a mulher branca e homem negro.
Abordou a psicopatologia do negro e a formação das neuroses, bem como o complexo de
inferioridade a partir das relações desiguais estabelecidas entre colonizador e colonizado.
Existe um movimento contínuo para racializar o negro, imputando-lhe características
negativas, as quais todos os humanos possuem, mas como tentativa de desumanizá-lo, tendo
como referencial de humanidade o branco.
Desse modo, é muito difícil para o negro ser um indivíduo completo, pois parece que
ele sempre vai precisar do referencial do branco. Seus costumes e instâncias de referência
foram abolidos, porque estavam em contradição a uma civilização que eles não conheciam e
foi-lhes imposta. O olhar do branco oprime. “O mundo verdadeiro invadia nosso pedaço. No
mundo branco, o homem de cor enfrenta dificuldades na elaboração do seu esquema corporal.”
(FANON, 2008, p. 104). O negro é um ser para o outro e esse outro é o branco. Do ponto de
vista de Fanon, é urgente reivindicar a igualdade dos seres humanos no mundo.
Para FANON (2008), a epidermelização ou a marca corpórea da negritude, no mundo
racializado, é vista de modo negativo pelo branco. O processo de subjetivação na história da
humanidade tem sido um processo de exclusão do “outro”, de subjugação em nome da
civilização de origem eurocêntrica.
A construção da subjetividade na história da humanidade tem sido um processo de
exclusão do outro, de subjugação, em nome da supremacia da civilização de origem
eurocêntrica. Embora a ciência e a igreja tenham condenado o racismo e o estereótipo, eles
resistem fortes, pois na prática eles continuam sendo reproduzidos por essas instituições
(FANON, 2008).
FANON (2008, p. 113) comenta: “eu tinha racionalizado o mundo e o mundo tinha me
rejeitado em nome do preconceito de cor. Desde que, no plano da razão, o acordo não era
possível, lancei-me na irracionalidade. Culpa do branco por ser mais irracional do que eu”. O
estereótipo, mesmo sem razão, tem razão, com isso a desigualdade permanece.
Conforme o autor, o racismo e a intolerância funcionam como uma tentativa que um
grupo de seres humanos adotou para diferenciar-se dos demais humanos. O outro é o
depositário dos males. O mesmo ocorre com o branco pobre e o negro, não há solidariedade.
O branco sente-se superior, ou seja, mesmo sendo pobre, ele está numa situação privilegiada.
46
O racismo é produto de um grupo poderoso, de uma elite, os pobres brancos desejando fazer
parte dela, reproduzem seu comportamento aversivo ao negro.
Assim, todas as explorações são idênticas, sejam elas econômicas ou coloniais, todas
têm o mesmo objeto: o humano. Ao considerar a estrutura de uma ou outra exploração no
plano da abstração, mascara-se o problema fundamental, que é repor o ser humano no seu
lugar (FANON, 2008).
Para o autor citado, não é possível falar sobre a identidade de uma nação colonizada
sem pensar no processo de colonização, tendo em vista que o seu processo de construção
está relacionado às questões exteriores, as quais são absorvidas e assimiladas pelos
indivíduos, e, através do processo de socialização, dão origem a uma identidade nacional ou
um modo de subjetivação.
O processo de colonização é apresentado como uma força criadora, tendo como
referência a falta do outro, do colonizado, nunca o contrário, ou seja, a necessidade da
metrópole. Os povos em seus territórios estavam bem, sem necessidade de algo que os
completasse, essa necessidade era do colonizador, que chegou impondo seu desejo pela força
e pela violência, criando a necessidade, a falta, pois ele é a referência, conforme FANON
(2008).
O importante é perceber o estereótipo enquanto significação e, nesse sentido, a
ressignificação passa por um processo de desconstrução das ideias totalizantes e das
identidades fixas. Assim, é possível construir novos paradigmas, considerando que não haverá
espaço social privilegiado para qualquer grupo identitário, de acordo com HALL (2000).
Enquanto persiste a estereotipação, reproduzida na discursividade a forma de
suspeita, evidenciando a violência letal da polícia, o Programa do Governo Federal Juventude
Viva12, foi criado no sentido de prevenir a violência que a cada dia tem tomado proporções
catastróficas, especialmente nas comunidades pobres nos centros urbanos do país.
A alteridade e o respeito às diferentes culturas ficam prejudicadas num sistema social
e político, que tem como referencial o branco, onde o poder é branco. Nesse sentido, é
fundamental desconstruir essas ideias a partir do protagonismo dos negros, isso pode
acontecer através da produção cinematográfica, exigência por espaço na televisão e na mídia
de modo geral, produção científica, criação de espaços de reflexão sobre branquitude ou o que
é ser branco no Brasil.
Assim, é possível que o racismo institucional, o qual alimenta as desigualdades
sociais, criminaliza o negro quando projeta nele os “males” da sociedade, impede-os da
convivência em situação de igualdade nas esferas jurídicas, do trabalho e do emprego, bem
12
O Plano Juventude Viva, criado pelo governo federal, incorpora a dimensão preventiva à violência, articulando políticas sociais nos campos da educação, do trabalho, da cultura, do esporte, da saúde, do acesso à justiça e à segurança pública, para ampliação dos direitos da juventude, combate às desigualdades raciais e garantia dos direitos humanos. É voltado prioritariamente a 123
municípios que, juntos, reúnem mais de 70% dos homicídios contra jovens no Brasil. Busca-se com este esforço intersetorial contribuir para resolver o alto índice de violência e de homicídios que atingem especialmente a juventude negra nestes municípios.
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como nos espaços públicos, no comércio e nas instituições educacionais, entre outros, aos
poucos perca a força. Existe a necessidade constante de denunciar a permanência de negros
em situação de inferioridade, essa situação muitas vezes é difícil de ser identificada pela
utilização de mecanismos sutis de exclusão social, de acordo com GUIMARÃES (2008).
Em relação à identidade dos afro-brasileiros, ORTIZ (1994) menciona a problemática
da formação da cultura brasileira e identidade nacional a partir do mito das três raças. Temas
como teorias raciais, a idealização do indígena, exclusão do negro e a supervalorização da
mestiçagem, como um elemento resultante da mistura de raças numa tentativa de contrapor o
pensamento conservador presente no país, até meados de 1960, fazem parte da sua obra. Por
sua vez, a valorização do mestiço deixa de lado o negro que ainda é identificado com a força
de trabalho e excluído da cidadania, na verdade, a valorização da mestiçagem parece estar
mais no nível da linguagem do que da realidade dos acontecimentos. “Em jargão antropológico,
o mito das três raças não conseguiu ainda se ritualizar, pois as condições materiais para a sua
existência são puramente simbólicas. Ele é linguagem e não celebração” (ORTIZ, 1994, p. 39).
Nesse sentido, o autor cita ainda o romance O cortiço de 1880, de Aloísio de Azevedo,
para tratar da simbologia dos atributos conferidos à raça branca, tais como força, persistência,
previdência, as quais permanecem no discurso, conferindo privilégio para este grupo, ao passo
que os atributos negativos, como preguiça e indolência, continuam presentes na identidade da
raça negra. É a linguagem materializada reproduzindo a desigualdade a partir da diferença que
ainda hoje persiste na sociedade brasileira.
Diante disso, o autor assinala temas relativos à formação da identidade brasileira, a
partir de 1930, considerando os autores como CAIO PRADO JR. (1933), Casa Grande e
Senzala, de FREYRE (1933), e Raízes do Brasil, HOLANDA (1936). Esses pesquisadores
estão dentro da universidade e buscam uma nova compreensão da realidade nacional.
“O mito das três raças torna-se então plausível e pode-se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que estava aprisionada nas ambiguidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pode difundir-se socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrando nas relações do cotidiano ou nos grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional” (ORTIZ, 1994, p. 41).
Na medida em que a cultura negra se dilui na identidade mestiça, criam-se mais
obstáculos para o entendimento do que é negro e para o fortalecimento da identidade negra
brasileira, favorecendo a diluição da cultura negra.
“A construção da identidade negra mestiça deixa ainda mais difícil o discernimento entre as fronteiras da cor. Ao se promover o samba ao título de nacional, o que efetivamente ele é hoje, esvazia-se sua especificidade de origem, que era ser uma música negra. Quando os movimentos negros recuperam o soul para afirmar a sua negritude, o que se está fazendo é uma importação de matéria simbólica que é ressignificada no contexto brasileiro. É
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bem verdade que o soul não supera as contradições de classe ou entre países centrais e periféricos, mas eu diria que de uma certa forma ele “serve” melhor para exprimir a angústia e a opressão racial do que o samba, que se tornou nacional. O problema com que os movimentos negros se deparam é de como retomar as diversas manifestações culturais de cor, que já vêm muitas vezes marcadas como o signo de brasilidade. Uma vez que os próprios negros também se definem como brasileiros, tem-se que o processo de ressignificação cultural fica problemático. O mito das três raças é, neste sentido, exemplar: ele não somente encobre os conflitos raciais como possibilita a todos de se reconhecerem como nacionais” (ORTIZ, 1994, p. 44).
Segundo ORTIZ (1994), é fundamental atentar para a presença e a valorização do
negro na cultura brasileira, seja na arte, no esporte, na religião, na ciência, na política, entre
outros, como o resultado positivo para a identidade nacional no discurso e na prática, ao
contrário, permanece o discurso da formação do Brasil a partir da integração das três raças.
Para constituir uma identidade brasileira é preciso acolher as diferentes culturas e adotar uma
visão mais particular e menos eurocêntrica.
O processo de hemogeneização cultural é uma tendência em ascensão que ameaça
enterrar as diferentes culturas, entretanto, o mundo é formado por diferenças e precisa resistir
para não se prender a modelos unitários e homogêneos de pertencimento cultural e basear-se
na semelhança e na diferença, de acordo comHALL, para ele a “cultura não é uma questão de
antologia, de ser, mas de tornar-se” (HALL, 2002, p. 12).
Essa necessidade de reafirmação da negritude é constante e isso se deve ao fato de
os discursos estarem continuamente insistindo na afirmação da inferioridade do negro, de
colocá-lo na condição de desonestidade ou de suspeita, reafirmando, desse modo, o privilégio
simbólico do branco conforme adverte SOVIK (2008).
É imprescindível transformar os lugares imaginários específicos ocupados por
brancos, mestiços e negros no Brasil, visto que a herança cultural eurocêntrica gera nos
brancos brasileiros uma expectativa adequada de acesso ao poder e a postos de comando. O
que para os negros ainda é uma exceção, não havendo estranhamento dessa desvantagem
para o grupo negro (SOVIK, 2008).
III.1 Saber,é Poder
Para FOUCAULT (2013a), o poder não possui uma natureza que o define, uma
essência com características universais capaz de ser facilmente definido. Não há algo unitário
e global chamado poder, mas formas desiguais, heterogêneas, que se transformam
constantemente. Ele faz uso da terminologia microfísica para significar “tanto um deslocamento
do espaço da análise quanto do nível que esta se efetua” (FOUCAULT, 2013a, p. 14). Para ele,
esses dois aspectos estão intimamente ligados.
49
Conforme FOUCAULT (2013a), o poder não é global nem central, ele se espalha na
vida social de modo homogêneo, de modo independente de formas específicas no nível
maisreduzido. Desde modo, não é possível tomar como ponto de partida apenas o Estado
como foco absoluto e originário de todo tipo de poder social, ele não responde sozinho pela
explicação e a formação dos saberes nas sociedades capitalistas. “Daí a importante e polêmica
ideia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se
possui ou não” (FOUCAULT, 2013, p.17).
Para o autor, o que existe são práticas de poder, assim sendo, ele é exercido,
realizado de modo efetivo por todos. O poder funciona de modo estruturado na sociedade, não
existe monopólio nem um lugar privilegiado ou exclusivo, ele dissemina por toda a estrutura
social. Portanto, não existe nada fora do poder, visto que ele está na relação, mesmo as lutas
contra o poder não podem ser travadas de fora dele, uma vez que, para FOUCAULT (2013a),
nada é isento de poder.
Nesse sentido, onde há poder existe resistência e essa relação não é imutável,
unilateral, está distribuída no meio social. Poder é luta, desafio, resistência, disputa, e nela se
ganha ou se perde. FOUCAULT (2013) queria mostrar que a dominação capitalista não estava
baseada apenas na repressão, além do mais, que existe um lado positivo, produtivo e
transformador. “O poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma
positividade. E é esse aspecto que explica o fato de que ele tem como alvo o corpo humano,
não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo” (FOUCAULT, 2013, p. 20).
Assim, o exercício do poder tem como objetivo gerir a vida dos seres humanos aproveitando ao
máximo suas potencialidades em termos econômicos. Nessa relação, o exercício do poder é
utilizado para produzir saber.
De acordo com o aludido autor, todo saber é político e tem sua origem nas relações de
poder, independentemente de ter origem ou ser apropriado pelo Estado. Para ele, sua
estratégia fundamental é tornar o homem útil e dócil.
“O fundamental da análise é que saber e poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um lugar de formação de saber” (FOUCAULT, 2013a, p. 28).
Nesse sentido, o processo de construção de saber a partir do entendimento do
processo de funcionamento da dominação exercida no processo linguístico e extralinguístico
do grupo hegemônico na sociedade brasileira confere poder ao grupo composto pelos
“diferentes”.
Para FOUCAULT (2002), é possível formar domínios de saber a partir das práticas
sociais e trabalho coletivo. Ele considera que o ser humano possui esse conhecimento e que é
50
possível aprimorá-lo de acordo com as condições econômicas, políticas e sociais. Portanto, as
práticas sociais, além de produzir domínios de saber a partir do surgimento de novos objetos,
conceitos e técnicas, também promove o surgimento de novos sujeitos do conhecimento.
Para FOUCAULT (2002), o conhecimento não tem origem, não é natural, ele foi
inventado a partir das pequenas coisas, assim sendo, a história não deve temer as pequenas
coisas, pois é a partir delas que as grandes coisas se formam.
Conforme FOUCAULT (2004)pode-se considerar na estrutura do saber uma
ostentação do discurso científico. O autor cita o papel do médico, que ao invés de exercer uma
escuta livre, serve como manutenção da repreensão, ou seja, do “biopoder”.
Percebe-se o discurso como uma instituição de poder, segundo FOUCAULT (2004).
Ele atua através da subjetividade presente nos meios de comunicação social no Brasil, utiliza-
se de uma linguagem que faz o destinatário defender o ponto de vista do seu opressor, isto é, o
discurso como forma de manipulação e exclusão.
Recentemente, em decorrência da campanha eleitoral para a Presidência da
República, esteve presente na campanha de alguns candidatos o discurso em favor da redução
da maioridadepenal, como forma de punir com mais rigor os menores de 18 anos de idade que
cometerem crimes. Esse tipo de discurso vem carregado de ideologia, quando não atinge seus
defensores ou o grupo ao qual pertencem da punição estabelecida, na possibilidade da
promulgação da referida lei. Esse mesmo grupo quer convencer que a redução da maioridade
penal será cumprida para todos os delitos cometidos por qualquer indivíduo e que isso será
bom para todos.
Conforme apresentado anteriormente, os negros são as vítimas preferenciais da
polícia e os mais condenados pela justiça, embora estatisticamente eles cometam crimes na
mesma proporção que os brancos. Nesse sentido, a redução da maioridade penal pode servir
como forma de controlar os pobres, e, em especial, os negros, nos moldes de crime e castigo,
vigilância e controle. Daí a importância de transformar os discursos para não perpetuar as
relações de poder.
No próximo item abordaremos temas que servirão de referência para a análise das
notícias.
III.2 Linguageme Subjetividade
A linguagem é uma forma de expressão da nossa percepção do mundo “é a
capacidade específica da espécie humana de se comunicar por meio de signos” (FIORIN,
2013, p. 13). De acordo com o autor, a linguagem ocupa posição central entre as ferramentas
culturais do ser humano, pois o mesmo está preparado desde o nascimento para falar, para
51
aprender línguas, mas não existe essa mesma predisposição para aprender matemática ou
física, por exemplo.
A necessidade de comunicar do ser humano é natural e é exercida por meio da
linguagem, no entanto, ela é aprendida, ao contrário da necessidade de respirar, alimentar-se,
dormir etc. Embora a aptidão para aprender a linguagem seja um traço genético, sua
realização passa por um aprendizadobaseado na cultura onde a criança está inserida.
“Os sentidos podem manifestar-se de diversas maneiras: por meio de sons, como no caso da linguagem verbal, por meio de imagens, como na pintura, por meio de gestos, como nas línguas de sinais utilizadas pelos surdos. Temos linguagens não mistas, cujos significados se manifestam apenas de uma maneira: a escrita, a pintura, a escultura, a língua de sinais; temos linguagens mistas, cujos significados se manifestam de diferentes maneiras, como o cinema, em que os sentidos são veiculados pelos sons da linguagem verbal e da música, pelas imagens da linguagem visual, etc.” (FIORIN, 2013, p. 14).
Deste modo, é possível dizer que a linguagem é uma capacidade humana de produzir
sentido, comunicar-se é uma das linguagens que expressam essas diferentes capacidades.
Por meio da linguagem armazenam-se conhecimentos na memória, conhece-se outras
experiências, graças a ela, o ser humano é capaz de aperfeiçoar seus conhecimentos e
transmiti-los. De acordo com (FIORIN, 2013, p. 20), “além de prestar a função informativa, a
linguagem serve para influenciar e ser influenciado”.
Assim, vamos compreender como ocorre o processo de construção dialógica para
BAKHTIN (apud FIORIN, 2013). Pode-se entender o conceito de dialogismo a partir do
seguinte exemplo: se o indivíduo é favorável a uma política de ação afirmativa como forma de
reparação dos afro-descendentes brasileiros, está opondo-se a outros discursos que afirmam
que é inconstitucional, concede privilégios a uma parcela da população e isso implica em
conflitos. Um discurso está opondo-se a outros discursos, ou seja, um constitui-se a partir do
outro. A afirmação “negros e brancos tem a mesma capacidade intelectual” só faz sentido pelo
fato de existirem teorias racistas que apregoam a superioridade do branco, caso contrário, esta
afirmação não faria sentido, seria desnecessária. Ao enfatizar que não há neutralidade no
discurso, o sujeito influencia e é influenciado pelo meio, há uma fluidez constante. Alguns
fatores que influenciam o discurso de cada indivíduo é a sua origem, sua história de vida, o
meio em que vive, seus valores e inquietações pessoais (FIORIN, 2006).
III.3 Os Gêneros do Discurso
Segundo BAKHTIN (1997), a utilização da língua permeia todas as atividades
humanas, por mais variadas que elas sejam. Embora o caráter e os modos de utilização sejam
52
diversos, da mesma forma que as esferas da atividade humana, ela não se opõe à unidade
nacional de uma língua.
“O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 1997, p. 280).
O autor refere-se à riqueza e à variedade dos gêneros do discurso como sendo
inesgotáveis, do mesmo modo que as atividades humanas, seu repertório diferencia-se e
amplia-se à medida que a própria atividade humana desenvolve-se, tornando-se mais
complexa. Outro aspecto importante é a heterogeneidade dos gêneros do discurso, tanto orais
como escritos, incluindo:
“a curta réplica do diálogo cotidiano (com a diversidade que este pode apresentar conforme os temas, as situações e a composição de seus protagonistas), o relato familiar, a carta (com suas variadas formas), a ordem militar padronizada, em sua forma lacônica e em sua forma de ordem circunstanciada, o repertório bastante diversificado dos documentos oficiais (em sua padronização), o universo das declarações públicas (num sentido amplo, sociais e políticas). E é também com os gêneros do discurso que relacionamos as variadas formas de exposição científica e todos os modos literários (desde o ditado até o romance volumoso). Ficaríamos tentados a pensar que a diversidade dos gêneros do discurso é tamanha que não há e não poderia haver um terreno comum para seu estudo: com efeito, como colocar no mesmo terreno de estudo fenômenos tão díspares como a réplica cotidiana (que pode reduzir-se a uma única palavra) e o romance (em vários tomos), a ordem padronizada que é imperativa já por sua entonação e a obra lírica profundamente individual, etc.? A diversidade funcional parece tornar os traços comuns a todos os gêneros do discurso abstratos e inoperantes. Provavelmente seja esta a explicação para que o problema geral dos gêneros do discurso nunca tenha sido colocado. Estudaram-se, mais do que tudo, os gêneros literários. Mas estes, tanto na Antiguidade como na época contemporânea, sempre foram estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, das distinções diferenciais intergenéricas (nos limites da literatura), e não enquanto tipos particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais contudo têm em comum a natureza verbal (linguística)” (BAKHTIN, 1997, p. 280).
Ainda para o autor, existe ampla heterogeneidade dos gêneros do discurso, nesse
aspecto, é importante considerar a diferença essencial que há entre gênero do discurso
primário (simples) e secundário (complexo). Dentre os gêneros do discurso secundários pode-
se citar o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico, esses aparecem numa
comunicação cultural mais complexa. No seu processo de formação, os gêneros do discurso
secundários transmitem os gêneros primários, de todas as espécies, que se formaram a partir
53
da comunicação verbal espontânea. Ao se tornarem componentes dos gêneros secundários,
os gêneros primários, convertem-se dentro destes para adquirir uma característica própria:
“perdem sua relação imediata com a realidade existente e com a realidade dos enunciados alheios – por exemplo, inseridas no romance, a réplica do diálogo cotidiano ou a carta, conservando sua forma e seu significado cotidiano apenas no plano do conteúdo do todo, ou seja, do romance concebido como fenômeno da vida literária-artística e não da vida cotidiana” (BAKHTIN, 1997, p. 281).
O autor explica que, do mesmo modo que o romance em seu todo é um enunciado, a
réplica do diálogo cotidiano, assim como a carta pessoal, também é o que os diferencia. O
romance é um enunciado secundário ou complexo. Há uma importância teórica em distinguir
gêneros primários e gêneros secundários, devido à influência da natureza do enunciado ser
compreendida e orientada por uma análise de ambos os gêneros.
“A inter-relação entre os gêneros primários e secundários de um lado e o processo histórico de formação dos gêneros secundários do outro, eis o que esclarece a natureza do enunciado (e, acima de tudo, o difícil problema da correlação entre língua, ideologias e visões de mundo)” (BAKHTIN, 1997, p. 282).
Ao situar o tema dentro deste trabalho, pode-se dizer que os romances, as expressões
artísticas e a mídia, enquanto gêneros secundários do discurso estão carregados de ideologia
que se expressa através da língua. A pluralidade na produção artística, literária e midiática é
importante para dar visibilidade às variadas visões de mundo. Quanto mais espaço houver para
a comunidade negra expressar-se através dos variados meios de comunicação, suas
concepções de sujeito do discurso passarão a ser conhecidas por todos e desmistificará as
ideias pré-concebidas e reproduzidas na linguagem, as quais colocam o negro na posição de
suspeito e de ameaça.
Os discursos dominantes que têm maior alcance, seja na mídia ou na produção
artística e literária, são os maiores reprodutores das desigualdades através da sua ideologia.
Assim, considera-se essencial a veiculação de pontos de vista opostos, seja através de
programas televisivos, debates, notícias sobre identidade, segurança pública, economia, entre
outros, como forma de democratização, possibilitando a identificação de uma parcela da
população que está excluída. Existe uma interdependência entre a vida e a língua, pois essa
penetra na língua através dos enunciados concretos que realiza. O enunciado situa-se no
cruzamento excepcionalmente importante de uma problemática (BAKHTIN, 1997).
Para o autor existe uma ligação intrínseca entre estilo e enunciado, do mesmo modo
que as formas típicas de enunciados, ou seja, de gêneros do discurso. O enunciado pode ser
verbal, escrito, primário ou secundário e em qualquer esfera da comunicação verbal, e, é
individual. Para tanto, reflete a individualidade daquele que fala ou escreve, possuindo o
54
enunciado um estilo individual. Nem todos os gêneros refletem a individualidade da língua em
seu estilo, sendo o mais propício, os literários. Ao contrário do gênero literário, os que
apresentam maior dificuldade em refletir a individualidade da língua são os que exigem uma
padronização, do documento oficial, da ordem militar, da nota de serviços, entre outros.
“Na maioria dos gêneros do discurso (com exceção dos gêneros artísticos- -literários), o estilo individual não entra na intenção do enunciado, não serve exclusivamente às suas finalidades, sendo, por assim dizer, seu epifenômeno, seu produto complementar. A variedade dos gêneros do discurso pode revelar a variedade dos extratos e dos aspectos da personalidade individual, e o estilo individual pode relacionar-se de diferentes maneiras com a língua comum” (BAKHTIN, 1997, p. 284).
O autor elucida que o enunciado é caracterizado pelo uso comum da língua na forma
individual. Não é possível separar um estilo de um gênero, pois há entre ambos um vínculo
indissolúvel. O estilo linguístico ou funcional é somente o estilo de um gênero peculiar de uma
determinada atividade da esfera da comunicação humana e para cada esfera utiliza-se um
gênero apropriado à sua especificidade.
“Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico” (BAKHTIN, 1997, p. 284).
Segundo o autor mencionado, o estilo é um elemento componente na unidade de
gênero do enunciado, no entanto, ele pode ser objeto de estudo específico e especializado. Os
estilos linguísticos reconhecidos pela gramática enumeram as seguintes variedades estilísticas:
linguagem livresca, popular, científico-abstrata, científico-oficial, falada, familiar, vulgar, entre
outras. Mas, são classificações pobres.
“Ao lado dessa nomenclatura dos estilos linguísticos, como variantes estilísticas, encontram-se: palavras dialetais, palavras antiquadas, locuções profissionais. Tal classificação dos estilos é totalmente fortuita e fundamenta-se em princípios (ou bases) díspares no inventário dos estilos (sem contar que é uma classificação pobre e não diferencial)! Tal estado de coisas resulta de uma incompreensão da natureza dos gêneros dos estilos da língua e de uma ausência de classificação entre os gêneros primários e os secundários” (BAKHTIN, 1997, 285).
O autor ainda comenta que os estilos da língua são indissociáveis do gênero, a
tentativa de separá-los criou uma série de prejuízos na elaboração dos problemas históricos.
Os enunciados e o tipo a que pertencem os gêneros do discurso são as correias de
transmissão que levam da história da sociedade à história da língua. Esta, no decorrer do
processo histórico, sofreu transformação a partir da incorporação dos gêneros do discurso
primário, seja ele literário, ideológico, familiar, entre outros, com isso, há uma ampliação e
55
incorporação nos gêneros do discurso pela reestruturação da língua que ocorre de tempos em
tempos.
“Quando a literatura, conforme suas necessidades, recorre às camadas correspondentes (não literárias) da literatura popular, recorre obrigatoriamente aos gêneros do discurso através dos quais essas camadas se atualizam. Trata--se, em sua maioria, de tipos pertencentes ao gênero falado-dialogado. Daí a dialogização mais ou menos marcada dos gêneros secundários, o enfraquecimento do princípio monológico de sua composição, a nova sensibilidade ao ouvinte, as novas formas de conclusão do todo, etc. Quando há estilo, há gênero. Quando passamos o estilo de um gênero para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância desse estilo graças à sua inserção num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero” (BAKHTIN, 1997, p. 286).
De acordo com o autor, pressupõe-se que há uma variedade de propósito daquele que
escreve, havendo variedade nos gêneros do discurso para criar um discurso capaz de ser
entendido, sendo apenas um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. Cada
enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados. Compreende-se como
ocorrem as formas estáveis de gênero e enunciado. A forma que o autor escolhe para
comunicar-se é feita através de um gênero do discurso. Tal escolha considera a especificação
de uma dada esfera temática, ou seja, a que se destina ao conjunto formado dos parceiros
após a intenção discursiva do enunciador. Após, sem rejeitar a sua visão de mundo, adapta-se
e ajusta-se ao gênero eleito, compõe e desenvolve-se conforme o gênero determinado.
III.4 Análise do Discurso, Segundo Maingueneau
O discurso, segundo MAINGUENEAU (2004), no uso comum da língua, pode significar
o discurso do presidente, falas inconsequentes, discurso islâmico, político, dos jovens e assim
por diante.
“Nesse emprego, discurso é constantemente ambíguo, pois pode designar tanto o sistema que permite produzir um conjunto de textos, quanto o próprio conjunto de textos produzidos: o discurso comunista é tanto o conjunto de textos produzidos por comunistas, quanto o sistema que permite produzir esses textos e outros ainda, igualmente qualificados com textos comunistas” (MAINGUENEAU, 2004, p.50).
O autor menciona ainda que a noção de discurso é utilizada como um sinal para
compreender a modificação no modo como se concebe a linguagem. Essa modificação é o
resultado da influência da reunião de várias correntes das ciências humanas amparadas pela
pragmática. Mais que uma doutrina, a pragmática constitui, com efeito, certa maneira de
apreender a comunicação verbal. O discurso é uma organização situada para além da frase, é
um modo de apreensão da realidade por meio da língua falada ou escrita e essa forma de
56
comunicar, além da intenção de comunicar, revela regras de organização vigentes em um
grupo social determinado.
Para tanto, esse trabalho tem a intenção de apresentar a produção das notícias de
jornal como uma forma de apreensão da realidade e seu conteúdo, como esse discurso atinge
os destinatários e de que modo ele modifica o meio social. Assim, conforme MAINGUENEAU,
“os discursos ou atos de linguagem constituem um ato que interfere na realidade, ocasionando mudanças em nível superior, esses atos visam produzir uma modificação nos destinatários. De maneira mais ampla ainda, a própria atividade verbal encontra-se relacionada com atividades não verbais”
(MAINGUENEAU, 2004, p. 53).
Como falar da interatividade no caso do gênero notícia sem a presença do
destinatário?
“Toda enunciação, mesmo produzida sem a presença de um destinatário, é, de fato, marcada por uma interatividade constitutiva (fala-se também de dialogismo), é na troca, explícita ou implícita com outros enunciadores, virtuais ou reais, e se supõe sempre a presença de outra instância de enunciação à qual se dirige o enunciador e com relação à qual constrói seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 2004, p. 54).
O autor afirma ainda que mesmo no gênero do discurso onde o interlocutor não está
presente há interatividade, uma vez que ele é suposto.
O discurso é sempre contextualizado, não é possível atribuir um sentido a um
enunciado fora do contexto. Dois enunciados em lugares distintos correspondem a dois
discursos distintos, como demonstra a análise das notícias. Nesse sentido, tem-se a ideia de
interdiscurso apresentada por MAINGUENEAU,
“o discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar qualquer enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros enunciados que são comentados, parodiados, citados, etc.” (MAINGUENEAU, 2004, p. 55).
Como cada gênero do discurso trata a multiplicidade das relações interdiscursivas, “o
simples fato de classificar um discurso dentro de um gênero (a conferência, o relacional, entre
outros) implica relacioná-lo ao conjunto ilimitado dos demais discursos do mesmo gênero”
(MAINGUENEAU, 2004, p. 56). Nesse trabalho usa-se a enunciação jornalística.
O texto também é uma modalidade de enunciado. “Texto emprega-se igualmente com
valor mais preciso, quando se trata de apreender o enunciado como um todo, como
constituindo uma totalidade coerente”(MAINGUENEAU, 2004, p. 57). Um filme, uma fotografia,
imagens em geral também constituem um texto.
O autor elucida que existe uma variedade nos gêneros do discurso, entre eles têm-se
a conversa, o jornal, soneto, seminário, romance, poema, entre outros, essas categorias
57
dependem do uso que se faz. Os gêneros do discurso ou dispositivos de comunicação só
podem aparecer quando certas condições sócio-históricas estão presentes. Se há produção, é
porque as condições sociais anseiam por consumir o produto. O mesmo pode ser entendido
com o discurso, pois ele está carregado de passado e presente, ou seja, um discurso nunca é
totalmente autônomo conforme preconiza Bakhtin na concepção de dialogismo. Pode-se
caracterizar uma sociedade pelos gêneros de discurso que ela torna possível.
III.5 Uma Semântica Global
A linguagem é dinâmica, inacabada e viva. “Um discurso, seja qual for, não é
totalmente novo: é transformado, atualizado por diferentes indivíduos em diferentes situações,
retomando o já dito”(MAINGUENEAU, 2005, apud GIORGI, 2012, p. 120).
Desse modo, a partir de uma perspectiva discursiva, busca-se compreender o discurso
da mídia em casos de violação dos direitos do ser humano no contexto dos enunciados.
Procura-se melhor operacionalizar as análises que assumem o olhar que não apreende o
discurso a partir de um de seus planos, mas sim da integração desses planos, quer da ordem
do enunciado, quer da enunciação.
Para MAINGUENEAU (2005, apud GIORGI, 2012):
“a noção de semântica global, que nos permite entender em um texto, forma e conteúdo não estão dissociados e se relacionam em todos os planos discursivos – vocabulário, modos de enunciar, dêixis, temas – construindo significados que se materializam no texto. E cabe ao analista buscar indícios nesse texto que o retomam a determinada prática discursiva” (MAINGUENEAU, apud GIORGI, 2012, p.120).
Pretende-se identificar a serviço de quem e a que interesses essas práticas
discursivas servem. É importante que todos tenham voz, enunciadores e comunicadores,
dessa forma haverá uma democratização na produção do discurso a partir do momento que as
vozes contrárias forem ouvidas.
De acordo com MAINGUENEAU (2008), não existe um vocabulário próprio para
determinado discurso, é mais habitual explorações semânticas contraditórias das mesmas
unidades lexicais pelos diversos discursos.
Para o autor supracitado, o enunciador ao produzir seu discurso tem em mente o
destinatário, para isso ele utiliza-se da sua competência discursiva para legitimar sua fala. O
discurso, por mais escrito que seja, tem uma voz própria, mesmo quando a nega.
Nesse caso, é de fundamental importância observar as narrativas, qual seu propósito
e a quem elas servem, além de pensar na comunicação como um direito. Assim, o discurso
deve ser marcado pela pluralidade de vozes.
58
No próximo capítulo, faremos a análise das notícias publicadas no jornal Folha de S.
Paulo, onde esteve presente a suspeita produzida a partir da diferença, o racismo institucional
e o desrespeito aos direitos do ser humano, bem como as vozes presentes nesses discursos.
59
IV. ANÁLISE DAS NOTÍCIAS PÚBLICADAS NA FOLHA DE S. PAULO: OS OLHOS
NÃO LEEM, MAS O CORPO PADECE
Neste item, apresentamos as análises das notícias com base na AD, buscando
identificar a presença do racismo institucional ou racismo envolvendo civis.
Como já dito, o jornal selecionado para compor o corpus foi a Folha de S. Paulo e
nossa escolha se deu pela influência que esse veículo de comunicação exerce no meio social,
econômico, político e cultural do país, e também por se tratar de uma mídia que bem
caracteriza os meios de comunicação social no Brasil, onde as classes dominantes legitimam
seu lugar de privilégio. Outro fator foi a facilidade de acesso ao acervo digital, o que viabilizou a
pesquisa.
A seção Cotidiano foi o caderno onde todas as notícias selecionadas para análise
foram publicadas. Neste caderno são publicadas notícias sobre política, transporte público,
ações policiais, violência urbana, saneamento básico, notas de falecimento, pesquisas e
estudos, manifestações, tais como as que aconteceramem 2013 nas cidades de São Paulo e
Rio de Janeiro, inicialmente contra o aumento das passagens dos transportes públicos, depois
se estendendo para outras áreas, como os gastos com a construção de estádios para sediar a
Copa do Mundo de Futebol, posteriormente, os protestos de estenderam para todo o país,
principalmente contra a corrupção na política. Ou seja, são publicados os fatos que estão
acontecendo no dia a dia, que o jornal considera relevante publicar.
A pesquisa foi realizada no acervo digital do jornal por meio de palavras-chave
relacionadas ao estudo e foram usados os seguintes descritores: negro, racismo, polícia,
violência policial, discriminação racial, crimes de preconceiro racial.
Encontramos 38 notícias a partir dos referidos descritores, sendo que em pelo menos
quatro casos havia mais de um texto. O primeiro critério para a seleção das notícias teve como
foco a identificação prévia do que se poderia caracterizar uma primeira leitura, como casos de
racismo institucional. Um segundo critério foi a identificação de ações adotadas pela polícia,
tais como interdição, violência e execução de “suspeitos” com a identidade racial negra. As
ações foram protagonizadas na sua maioria pela polícia militar, no entanto, existem situações
que envolveram agentes de segurança e civis em espaços públicos e privados.
As notícias foram organizadasem ordem cronológica de sua publicação, a partir
daquela que orientou o foco deste estudo, ou seja, a notícia que veicula o ofício da Polícia
Militar de Campinas, conforme apresentado anteriormente, documento que evidencia prática
racista no seio da instituição militar. O período de coleta dos dados foi entre 23 de janeiro de
2013 e 24 de abril de 2014. O fechamento do mesmo foi determinado pelo fato de julgarmos
que já havia material representativo para a análise.
60
A análise das notícias selecionadas visou identificar a ação da polícia e do serviço de
segurança privada, tendo como base a suspeita. Para confirmar essas suposições, recorremos
aos seguintes procedimentos:
Colocar em discussão o discurso da mídia em casos de violação dos direitos
envolvendo pessoas negras no contexto dos enunciados;
Analisar as notícias com foco na construção discursiva midiática da população negra,
considerando os efeitos interpretativos que esse processo produz.
Foram analisadas, então, nove notícias veiculadas pelo jornal Folha de S. Paulo nas
quais se enunciam casos em que entendemos haver sido configurada a prática de racismo
institucional e a violação de direitos das pessoas negras.
Embora o jornal escolhido esteja situado no estado de São Paulo, as notícias
publicadas envolvendo suspeita do indivíduo negro relatam fatos que ocorreram nos estados
do Rio de Janeiro e São Paulo, com predominância no primeiro.
As notícias serão apresentadas em quadros, na íntegra, numeradas a partir da data da
publicação, em ordem crescente e para melhor visualização de nossas análises serão
destacados fragmentos, também dentro de quadros.
A primeira notícia analisada foi publicada no portal UOL, pertencente à Folha de S.
Paulo, no dia 23 de janeiro de 2013, com o seguinte título: Ordem da PM determina revista em
pessoas “da cor parda e preta” em bairro nobre de Campinas (SP). A mesma faz referência à
Ordem de Serviço emitida pela polícia da cidade de Campinas, interior do Estado de São
Paulo, que, como já dissemos, serviu como ponto de partida para nossa pesquisa,
direcionando nosso olhar para o racismo institucional na polícia e nos agentes de segurança
pública em casos em que o negro é colocado na condição de suspeito.
O referido documento e as demais notícias foram analisados discursivamente, de
acordo com MAINGUENEAU (2008), que nos ensina que estudar o discurso é apreender
modos de se construir a realidade por meio da língua. Também consideramos a teoria dialógica
da linguagem, conforme BAKHTIN (1995), e as relações de saber-poder de acordo com
FOUCAULT (2002, 2004, 2013). Analisamos os textos jornalísticos, previamente selecionados,
publicados na Folha de S. Paulo, com foco na construção discursiva do racismo institucional,
visando identificar a suspeita ou a condução do negro à posição de “fora do lugar”, e
consideramos a forma como o enunciador-jornalista se posiciona frente à notícia.
Para melhor compreensão das análises da enunciação jornalística aqui propostas,
fazemos uso dos conceitos de polifonia, segundo BAKHTIN (2006), e discurso relatado,
conforme MAINGUENEAU (2008).
Para BAKHTIN (2006), a polifonia faz parte de toda comunicação, isto é, trata-se de
uma característica de todo discurso que é intersubjetivo, ou seja, perpassado por inúmeras
61
vozes que fazem parte da coletividade social. A linguagem é dialógica, caracterizada por vozes
que polemizam, se contrapõem, se reforçam etc.
O conceito de polifonia de Bakhtin é utilizado na linguística para analisar os
enunciadores nos quais várias vozes são percebidas simultaneamente. De modo geral, o
sujeito que fala se manifesta como “eu”, também é o responsável pelo enunciado.
A essa noção de “responsabilidade” associam-se dois tipos de operação:
“situar-se como fonte de referência enunciativas, ancorar o enunciado na situação de enunciação; posicionar-se como responsável pelo ato da fala realizado (asserção, pedido, ordem, pergunta, etc). Enunciar uma asserção, por exemplo, é apresentar seu enunciado como verdadeiro e garantir a sua veracidade. Na frase: “Eu vi você ontem com o presidente”. O enunciador é aquele em relação ao qual se definem os parâmetros da situação de enunciação: a presença do “eu” indica que o sujeito da frase coincide com o enunciador; o “você” refere-se ao co-enunciador selecionado pelo enunciador e “o presidente” refere-se alguém excluído da dupla de co-enunciador; o passado dos verbos indica que a asserção se refere a um momento anterior à enunciação. A isso se acrescenta a dimensão modal, pelo qual o enunciador se responsabiliza por esse ato de asserção” (MAINGUENEAU, 2004, p. 137).
Compreende-se como sendo discurso relatado a enunciação sobre outra enunciação,
sendo a enunciação citada objeto da enunciação citante. Outro modo mais simples do
enunciador referir que está se apoiando em outro enunciado é quando indica que está se
apoiando em outro discurso, é a chamada modalização em discurso segundo.
Através dos modalizadores, o enunciador pode comentar sua própria fala. Seguem
alguns modalizadores utilizados no discurso segundo:
“Segundo x, a França prepara uma represália. A França parece preparar uma represália. O Tribunal de contas acaba de concluir um inquérito sobre o conselho geral das Minas que, segundo dizem, tenderia a ser crítico” (MAINGUENEAU, 2008, p. 139).
No próximo item, apresentaremos a análise das notícias.
IV.2 Os Discursos Veiculados Pela Mídia: Quais São as Denominações do Racismo
O ofício emitido pela polícia revela a prática discursiva dominante a respeito do
indivíduo negro, identificando-o de modo generalizado como suspeito. O texto não foi publicado
no jornal impresso; apenas o portal UOL veiculou a notícia e as visões diferentes a respeito do
fato. Segue o texto do ofício reproduzido na matéria e a notícia que o acompanha:
62
N
NOTÍCIA 1:
Ordem da PM determina revista em pessoas “da cor parda e preta” em bairro nobre de Campinas (SP) A PM (Polícia Militar) de Campinas (93 km de São Paulo) determinou, em uma OS (Ordem de Serviço), de 21 de dezembro, que seus integrantes abordassem jovens negros e pardos, com idade entre 18 e 25 anos, na região do bairro Taquaral, uma das áreas mais nobres da cidade. Segundo a determinação, dirigida ao Comando Geral de Patrulhamento da região, pessoas que se enquadrem nessa categoria são consideradas suspeitas de praticar assaltos a casas na região e devem ser abordadas prioritariamente. A orientação foi passada de forma oficial, em papel timbrado da PM, assinada pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, e pede que os policiais foquem "abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra, com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência daquela localidade". A instituição nega cunho racista e disse que se baseou em uma carta de moradores para ter a descrição dos suspeitos e determinar as abordagens. O documento, no entanto, não foi enviado à reportagem. Segundo o ofício, uma patrulha deverá ser feita nas proximidades do Colégio Liceu Salesiano, todos os sábados, entre 11h e 14h, e a abordagem deverá ser feita nos indivíduos descritos acima caso estejam em atitude suspeita. A assessoria de imprensa da PM informou que existe a carta dos moradores, que chegou para o capitão. O órgão informou ainda que a carta pedia providências, pois vários roubos e furtos estavam sendo realizados. Essa carta descrevia o perfil dos criminosos e as ações, informou a assessoria de imprensa da instituição, acrescentando que "não existiu cunho racista". A PM informou ainda que o capitão Beneducci é, ele mesmo, pardo, e que ele "ficou triste" com a repercussão do caso. Ele foi procurado para comentar no 8º Batalhão, mas não foi encontrado.
Racismo Para o coordenador do Cepir (Coordenaria Especial de Promoção da Igualdade Racial), Benedito José Paulino, a indicação de procura de negros e pardos é claramente racista. Ele afirmou não acreditar que recomendação semelhante fosse dada caso os suspeitos fossem brancos. "Isso é racismo. Se ele está atrás de qualquer negro, sem apontar um emespecífico, isso é racismo. Se fosse um negro identificado, não teriaproblema. O jovem negro é que o mais sofre nas mãos da polícia", afirmou. A SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) informou que somente a PM pode comentar o caso, e por isso, não iria se pronunciar.
13
Essa é uma transcrição do ofício emitido pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, publicado no portal UOL em 23 de janeiro de 2013.
1. Esses CGP II deverão conhecer e providenciar para que a viatura do Taquaral (AISP 208-AB) realize o patrulhamento preventivo e ostensivo (saturação), pela Rua Castro Alves, Avenida Júlio Diniz, Rua Baronesa Geraldo de Resende e Rua Oratório – Campinas – SP, na proximidade do Colégio Liceu Salesiano e imediações aos sábados no horário das 11h00min as 14h00min, sem prejuízo no atendimento de ocorrências, no período de 21 DEZ a 21 JAN13, focando em abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência daquela localidade. 2. Os CGP II e as guarnições designadas deverão constar em OS o horário das rondas, referenciando esta ORDEM DE SERVIÇO
13(Portal UOL, 23 de janeiro de 2013).
63
Análise O advogado Dijalma
14 Lacerda, especialista em direito criminalista e ex-presidente da OAB
(Ordem dos Advogados do Brasil), em Campinas, afirmou que não vê racismo na atitude do capitão, e que ela precisa ser analisada com cuidado. "Quando a causa é nobre, é maior, o capitão acaba assumindo o risco. Eu não conheço o capitão, e nem o caso por um todo, mas, em tese, se o mote for encontrar as pessoas que estão assaltando a residência naquele bairro, não há racismo", afirmou o advogado. Para o jurista, o racismo depende de um contexto. "Digamos que o suspeito não tivesse uma perna, o foco seria em pessoas sem uma perna. Se ele estivesse atrás de pessoas nipônicas, uma pessoa da Ásia acharia que é preconceito. O que precisa ser verificado é se quem deu a ordem teve a intenção discriminatória", disse. Djalma chegou a ser condenado a uma pena de dois anos e um mês de reclusão pelos crimes de injúria e calúnia motivados por ato de racismo, por supostamente ter chamado o delegado da Polícia Federal de Foz do Iguaçu Adriano Santana de "negrão", em 1999, mas a condenação foi revertida, em instância definitiva, no ano de 2007. Ele afirmou, na ocasião, que o caso foi um grande mal entendido
15.
(Portal UOL, 23 de janeiro de 2013).
A seguir, iniciamos nossas análises.
Notícia
1
Fra
gm
en
to 1
Ordem da PM determina revista em pessoas “da cor parda e preta” em bairro nobrede Campinas (SP) A PM (Polícia Militar) de Campinas (93 km de São Paulo) determinou, em uma OS (Ordem de Serviço), de 21 de dezembro, que seus integrantes abordassem jovens negros e pardos, com idade entre 18 e 25 anos, na região do bairro Taquaral, uma das áreas mais nobres da cidade. Segundo a determinação, dirigida ao Comando Geral de Patrulhamento da região, pessoas que se enquadrem nessa categoria são consideradas suspeitas de praticar assaltos a casas na região e devem ser abordadas prioritariamente.
Observamos no enunciado jornalístico que o bairro em questão é ocupado por
pessoas de classe alta, “uma das áreas mais nobres da cidade” e, desse modo, a abordagem
direcionada a jovens pardos e pretos se justificaria pelo discurso que constrói tais lugares como
não sendo áreas destinadas a homens com essa identidade racial, uma vez que, de acordo
com o documento, conforme a própria notícia relata, pessoas que se enquadrem nessa
categoria - jovens negros e pardos, com idade entre 18 e 25 anos, na região do bairro Taquaral
- são consideradas suspeitas de praticar assaltos em casas na região e devem ser abordadas
prioritariamente.
Entendemos que a abordagem prioritária quando se faz necessária deve se embasar
em critérios objetivos, tal como retrato falado dos suspeitos. É imprescindível que a
legitimidade das ações da polícia estejam comprometidas com a elucidação de crimes, porém
pautados em normativas que não marginalizem um grupo racial.
Enquanto persistir a interpretação da identidade racial da pessoa negra,
representando suspeita, viola a universalização do ser humano. Veremos na enunciação a
seguir o destaque para esse prática reforçada em documento oficial pela Polícia Militar de
Campinas.
14
O sobrenome do advogado, na notícia está grafado de duas formas diferentes: Dijalma e Djalma. 15
Notícia publicada no portal UOL dia 23 de janeiro de 2013.
64
Notícia
1
Fra
gm
en
to 2
A orientação foi passada de forma oficial, em papel timbrado da PM, assinada pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci, e pede que os policiais foquem "abordagens a transeuntes e em veículos em atitude suspeita, especialmente indivíduos de cor parda e negra, com idade aparentemente de 18 a 25 anos, os quais sempre estão em grupo de 3 a 5 indivíduos na prática de roubo a residência daquela localidade".
Uma vez que entendemos que em um discurso vários outros discursos estão
presentes, é importante destacar que no fragmento anterior épossível perceber que o
enunciador destaca que a polícia assume oficialmente o discurso que circula a respeito do
negro: “A orientação foi passada de forma oficial em papel timbrado da PM, assinada pelo
capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci”.
Pensando também que a notícia se constrói na tensão informar/formar, quando o
enunciador-jornalista destaca que “A orientação foi passada de forma oficial, em papel
timbrado da PM, assinada pelo capitão Ubiratan de Carvalho Góes Beneducci”, parece delinear
uma possível posição de denúncia ao racismo institucional na corporação.
Notícia
1
Fra
gm
en
to 3
A instituição nega cunho racista e disse que se baseou em uma carta de moradores para ter a descrição dos suspeitos e determinar as abordagens. O documento, no entanto, não foi enviado à reportagem.
O enunciador-jornalista traz na voz da PM um discurso atribuído aos moradores (via
carta) para negar o cunho racista do documento.
A enunciação questiona a ausência da carta que a polícia afirma ter recebido dos
moradores. Com isso, pode-se entender que o argumento da polícia não passa credibilidade.
Notícia
1
Fra
gm
en
to
4
Segundo o ofício, uma patrulha deverá ser feita nas proximidades do Colégio Liceu Salesiano, todos os sábados, entre 11h e 14h, e a abordagem deverá ser feita nos indivíduos descritos acima caso estejam em atitude suspeita.
No trecho acima, observa-se que a enunciação explicita o teor do ofício. No entanto o
mesmo foi produzido pela ação do oficial da corporação e executado por seus pares.
Entendemos que a ação do policial reproduz o discurso que coloca todas as pessoas negras
na condição de “suspeita”, uma vez que não especifica o que caracteriza tal condição. Nosso
questionamento é no sentido dessa atitude estar incorporada nas práticas cotidianas da
instituição, que sequer hesita em publicá-la. Essa prática caracteriza racismo, porque considera
que todas as pessoas negras são criminosas em potencial.
65
Notícia
1
Fra
gm
en
to 5
A assessoria de imprensa da PM informou que existe a carta dos moradores, que chegou para o capitão. O órgão informou ainda que a carta pedia providências, pois vários roubos e furtos estavam sendo realizados. Essa carta descrevia o perfil dos criminosos e as ações, informou a assessoria de imprensa da instituição, acrescentando que "não existiu cunho racista".
A voz da assessoria de imprensa da PM, no enunciado, indica que houve
questionamentos a respeito da ação da polícia. A mesma associou a existência do documento
àuma carta dos moradores que descrevia o perfil dos criminosos. Consideramos que se carta
descrevia o perfil dos criminosos, a polícia deveria tê-los apresentado de maneira detalhada e
não conduzido todos os jovens negros e pardos à condição de suspeitos. No entanto, a carta
não foi apresentada.
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A PM informou ainda que o capitão Beneducci é, ele mesmo, pardo, e que ele "ficou triste" com a repercussão do caso. Ele foi procurado para comentar no 8º Batalhão, mas não foi encontrado.
Entendemos que quando se afirma que o capitão é pardonão é possível saber se essa
informação é um relato ou é dada pelo jornalista, ainda que provavelmente seja um relato, visto
que o jornalista pode não conhecer o capitão -procura-se isentá-lo da reprodução de um
discurso dominante construído ao longo da história da polícia e de práticas sociais
reproduzidas por meio da linguagem. Mas entendemos que o oficial reproduz a hegemonia
discursiva de que os negros não são confiáveis e isso justificaria a vigilância e o controle
através da atenção redobrada a este grupo.
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Racismo
Para o coordenador do Cepir (Coordenaria Especial de Promoção da Igualdade Racial), Benedito José Paulino, a indicação de procura de negros e pardos é claramente racista. Ele afirmou não acreditar que recomendação semelhante fosse dada caso os suspeitos fossem brancos. "Isso é racismo. Se ele está atrás de qualquer negro, sem apontar um em específico, isso é racismo. Se fosse um negro identificado, não teria problema. O jovem negro é o que mais sofre nas mãos da polícia", afirmou.
É interessante notar que na primeira parte da notícia o enunciador-jornalista traz a voz
da polícia e da assessoria de imprensa, e apenas na segunda parte apresenta a voz do
coordenador de um órgão legalmente constituído (Cepir) para combater a visão discursiva que
coloca o negro na condição de suspeito para confirmar a posição racista do ofício.
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A SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) informou que somente a PM pode comentar o caso, e por isso, não iria se pronunciar.
É possível constatar que a Secretaria de Segurança Pública se omitiu diante dos fatos,
o que nos faz refletir sobre as implicações desse posicionamento que legitima a prática racista
na instituição. Conforme visto anteriormente, essa atitude tem implicações concretas para a
população negra.
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Análise O advogado Dijalma Lacerda, especialista em direito criminalista e ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em Campinas, afirmou que não vê racismo na atitude do capitão, e que ela precisa ser analisada com cuidado. "Quando a causa é nobre, é maior, o capitão acaba assumindo o risco. Eu não conheço o capitão, e nem o caso por um todo, mas, em tese, se o mote for encontrar as pessoas que estão assaltando a residência naquele bairro, não há racismo”, afirmou o advogado. Para o jurista, o racismo depende de um contexto. "Digamos que o suspeito não tivesse uma perna, o foco seria em pessoas sem uma perna. Se ele estivesse atrás de pessoas nipônicas, uma pessoa da Ásia acharia que é preconceito. O que precisa ser verificado é se quem deu a ordem teve a intenção discriminatória", disse. Djalma chegou a ser condenado a uma pena de dois anos e um mês de reclusão pelos crimes de injúria e calúnia motivados por ato de racismo, por supostamente ter chamado o delegado da Polícia Federal de Foz do Iguaçu Adriano Santana de "negrão", em 1999, mas a condenação foi revertida, em instância definitiva, no ano de 2007. Ele afirmou, na ocasião, que o caso foi um grande mal entendido.
O ponto de vista do advogado Djalma Lacerda foi apresentado pelo enuciador-
-jornalista como alguém legitimado pelo judiciário. Aqui além de ser convidado a falar, o
discurso jurídico é colocado acima dos demais.
Interessante ainda notar que, ao mesmo tempo em que o enunciador informa que o
advogado foi acusado por racismo, afasta-o dessa culpa por meio do uso do termo
“supostamente”, quando se refere à acusação, quando diz que a condenação foi revertida e
quando retoma a fala do advogado dizendo que a situação foi um “grande mal-entendido”,
argumento comumente usado por pessoas denunciadas por práticas de cunho racista.
NOTÍCIA 2
A próxima notícia a ser analisasa, tem como título Casal diz que filho foi vítima de
racismo em loja da BMW, foi publicada no dia 24 de janeiro de 2013 pela Folha. A mesma
está dividida em seis blocos e a vítma é uma criança negra de 7 anos de idade.
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Casal diz que filho foi vítima de racismo em loja da BMW Estabelecimento pediu desculpas via e-mail. Uma visita à concessionária BMW Autocraft na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio, há 12 dias, terminou em campanha contra o racismo. O consultor Ronald Munk, 55, e sua mulher, Priscilla Celeste, 53, afirmam que seu filho mais novo, de sete anos, foi vítima de racismo no local. O menino, filho adotivo do casal, é negro. Representantes da concessionária, em e-mail enviado à família, se desculparam e classificaram o eposódio como um “mal-entedido”. Priscilla relata que ela e o marido conversavam com o gerente de vendas da concessionária sobre a compra de um novo carro, quando o filho, que estava distante dos pais, se aproximou. Segundo ela, o gerente mandou o menino sair da loja, voltando-se para o casal, justificou a atitude dizendo que “eles pedem dinheiro, incomodam os clientes”. Munk disse então ao gerente que o menino era seu filho e a família deixou a loja. O casal encaminhou uma queixa ao grupo BMW, que notificou a concessionária. Eles decidiram também criar uma página no Facebook. “Preconceito racial não é mal-entendido. É crime”, para contar a história. Até ontem à noite, a página tinha mais de 29 mil seguidores. Priscilla disse que o caso não foi registrado na polícia para preservar o filho, mas que a família ainda estuda a medida. Contatada, a concessionária não havia se pronunciado até a conclusão desta edição (Folha de S. Paulo, cotidiano, 24 de janeiro de 2013).
Segue a análise da notícia dois.
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Casal diz que filho foi vítima de racismo em loja da BMW Estabelecimento pediu desculpas via e-mail. Uma visita a concessionária BMW Autocraft na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio, há 12 dias, terminou em campanha contra o racismo. O consultor Ronald Munk, 55, e sua mulher, Priscilla Celeste, 53, afirmam que seu filho mais novo, de sete anos, foi vítima de racismo no local. O menino, filho adotivo do casal, é negro.
O enunciador-jornalista começa o texto, já no título, dando voz aos pais do menino:
“casal diz que filho foi vítima de racismo”. Desse modo, ao usar a forma verbal “diz”, a mesma
passa a ser atribuída ao casal, ou seja, quem afirma que o ocorrido é racismo, e portanto
crime, é o casal, isentando o jornalista de atribuir ao evento uma prática racista.
Pode-se entender que, já na segunda linha, o texto do jornalista enfatiza o fato de o
estabelecimento ter pedido desculpas pelo ocorrido, isso funciona como uma forma de atenuar
o ato. Seguindo com a notícia, vemos o relato do ocorrido e as desculpas dos representantes
da concessionária.
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Representantes da concessionária, em e-mail enviado à família, se desculparam e classificaram o episódio como um “mal entedido”.
O enunciador-jornalista traz a voz dos representantes da concessionária em seu
pedido de desculpas feito por e-mail e a explicação de que o evento foi um “mal-entendido”.
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Observamos que é prática recorrente da hegemonia discursiva a justificativa de atos de cunho
racista como algo insignificante, um lapso, “mal-entendido”.
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Priscilla relata que ela e o marido conversavam com o gerente de vendas da concessionária sobre a compra de um novo carro quando o filho, que estava distante dos pais, se aproximou. Segundo ela, o gerente mandou o menino sair da loja, voltando-se para o casal justificou a atitude dizendo que “eles pedem dinheiro, incomodam os clientes”. Munk disse então ao gerente que o menino era seu filho e a família deixou a loja.
Outra reflexão que fazemos é que o “mal-entendido” foi com aquela criança, que do
ponto de vista do gerente deveria ser uma “criança de rua”. Isto é, se a criança de fato fosse de
rua, colocá-la para fora da loja seria um ato justificado. No entanto, vale salientar a relevância
da cor da pele na construção do racismo, já que a criança certamente não estaria suja ou “mal
vestida” a ponto de ser “confundida com uma pedinte”.
Dialogando com o que já expusemos ao longo deste trabalho, lembramos que o
processo de desconstrução do racismo existe há décadas, mas, infelizmente, ele ainda
persiste. Como parte das medidas que visam combatê-lo foi criada a Lei 7.716-1989 que o
define como crime imprescritível e inafiançável, em seu Artigo 5º com a seguinte redação:
“Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou
receber cliente ou comprador”. A ação da empresa, por meio do seu funcionário, demonstra
exatamente o que está contido no artigo mencionado.
Assim, dialogando com nossas análises, podemos refletir acerca do lugar ocupado
pelas crianças negras no meio social, reproduzido e reforçado por meio deuma ideologia
dominante, confirmada pelo discurso hegemônico; imagina-se que elas não têm família, que
são pobres e vivem pelas ruas.
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O casal encaminhou uma queixa ao grupo BMW, que notificou a concessionária. Eles decidiram também criar uma página no Facebook. “Preconceito racial não é mal entendido. É crime”, para contar a história. Até ontem à noite, a página tinha mais de 29 mil seguidores. Priscilla disse que o caso não foi registrado na polícia para preservar o filho, mas que
a família ainda estuda a medida.
Aqui o enunciador novamente dá voz ao casal que, relata o repúdio à ação do gerente
notificando a concessionária e publicando o crime de racismo nas redes sociais (Facebook).
Ainda que nada tenha sido dito acerca de ações por meio de dispositivos legais, como registro
da denúncia, é reproduzida a asseveração dos pais. “Preconceito racial não é mal-entendido. É
crime”. Essas ações são importantes, pois quando vítimas de racismo ou seus representantes
legais não fazem uso das prerrogtivas legais quando se trata de crime de racismo, continuam
favorecendo os discuros que colocam o negro como um fora de lugar, promovendo o
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apartheidsocial que vive a sociedade brasileira, onde há espaços destinados aos brancos ricos
e aos negros e pobres, e o racismo continua sendo encarado como algo sem importância.
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Contatada, a concessionária não havia se pronunciado até a conclusão desta edição.
O enunciador-jornalista dá voz aos representantes da concessioária, que se calam
diante dos fatos. Podemos pensar o que leva os representantes da empresa a se omitirem
quando poderiam se defender. Pelo que entendemos do enunciador-jornalista, o gerente não
foi demitido, não sofreu nenhuma sanção, indicando, talvez, uma possível proteção por parte
de seus superiores, que talvez partilhem do seu discurso.
Entendemos que o enunciador-jornalista não assume o caso como uma prática efetiva
de racismo. Na notícia, a pretensa objetividade e imparcialidade jornalística reforça a lógica do
“mal-entendido”, na medida que não há qualquer objeção ao argumento exposto pelo sujeito da
prática racista.
NOTÍCIA 3
O próximo episódio ocorreu no dia 14 de julho de 2013, no Rio de Janeiro, e foi
publicado pelo jornal no dia 24, sob o título: Polícia do Rio apura se sangue em carro é de
desaparecido da Rocinha. O texto está dividido em nove blocos.
O localonde os fatos ocorreramm é uma comunidade pobre e os interlocutores são a
polícia civil e a Delegacia de homicídios. O homem era morador da localidade e desapareceu,
depois de ter sido levado à UPP – Unidade de Polícia Pacificadora, localizada naquela região.
Polícia do Rio apura se sangue em carro é de desaparecido da Rocinha Amarildo Dias, 47, sumiu após ser levado para sede da UPP na favela. Marco Antonio Martins A polícia civil investiga se são do pedreiro Amarildo Dias, 47, as marcas de sangue encontradas no carro que o levou até a sede da UPP da Rocinha, no Rio. Eleestá desaparecido desde o dia 14. As marcas foram descobertas por peritos do instituto de criminalística Carlos Éboli, da Polícia Civil, que estiveram na favela na semana passada. Eles analisam agora se o sangue é humano. Se for, o próximo passo é descobrir se pertence ao pedreiro. Para chegar a esse resultado será preciso pedir a coleta para exame de DNA de algum parente direto do predreiro. O caso passou para Delegacia de Homicídios ontem. Segundo o delegado Orlando Zaccone, a medida é comum após 15 dias de desaparecimento de uma pessoa. No dia 14, Amarildo foi detido por quatro policiais de um Grupo de Intervenção Tática, da UPP/Rocinha. Eles suspeitaram que o pedreiro fosse ligado ao tráfico de drogas. Amarildo foi levado para a unidade da UPP. Segundo o major Edson Santos, coordenador da unidade, nada se comprovou contra ele. Desde então, o pedreiro está desaparecido.
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As câmeras da saída do prédio não mostraram o homem saindo de lá. Segundo os PMs, elas estavam queimadas. Os quatro policiais que conduziram o pedreiro até a UPP estão afastados. Um deles já havia sido afastado após denúncia de agressão a moradores. Voltou à Rocinha após passar 40 dias em outra UPP. Ontem, houve um tiroteio próximo ao local onde mora a família do pedreiro. Policiais dizem que foi um confronto entre traficantes. Uma manifestação pelo esclarecimento do caso está prevista para quinta- -feira
16(Folha de S. Paulo, cotidiano, 30 de julho de 2013).
Seguemas análises.
O enunciador-jornalista, ao dar voz à polícia, concede espaço para que ela sejustifique
e forneça informações para a elucidação do evento. O discurso da polícia é que ela está
investigando o que houve com Amarildo, mas não se revela, por exemplo, há quanto tempo, e
se está havendo pressão de alguém ou de algum órgão para que o desaparecimento seja
investigado.
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O caso passou para Delegacia de Homicídios ontem. Segundo o delegado Orlando Zaccone, a medida é comum após 15 dias de desaparecimento de uma pessoa.
Aqui o delegado fala pela polícia, informando os procedimentos legais adotados, no
entanto, enfatiza que não há comprovação de crime apenas se trata de uma medida padrão
adotada pela corporação e que estão trabalhando para sua elucidação.
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O caso Amarildo transformou-se em símbolo de desaparecimentos não elucidados, originando a campanha “onde está o Amarildo?”, divuldada nas redes sociais, com apoio de diversos movimentos sociais e artistas reconhecidos, chegando a ser veiculada na imprensa internacional.
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Polícia do Rio apura se sangue em carro é de desaparecido da Rocinha
Amarildo Dias, 47, sumiu após ser levado para sede da UPP na favela. Marco Antonio Martins A polícia civil investiga se são do pedreiro Amarildo Dias, 47, as marcas de sangue encontradas no carro que o levou até a sede da UPP da Rocinha, no Rio. Ele está desaparecido desde o dia 14. As marcas foram descobertas por peritos do instituto de criminalística Carlos Éboli, da Polícia Civil, que estiveram na favela na semana passada. Eles analisam agora se o sangue é humano. Se for, o próximo passo é descobrir se pertence ao pedreiro. Para chegar a esse resultado será preciso pedir a coleta para exame de DNA de algum parente direto do predreiro.
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No dia 14, Amarildo foi detido por quatro policiais de um Grupo de Intervenção Tática, da UPP/Rocinha. Eles suspeitaram que o pedreiro fosse ligado ao tráfico de drogas. Amarildo foi levado para a unidade da UPP. Segundo o major Edson Santos, coordenador da unidade, nada se comprovou contra ele. Desde então, o pedreiro está desaparecido.
O enunciador-jornalista mais uma vez dá voz à polícia que apresenta a sua versão
para a captura do Amarildo, justificando a abordagem baseada na suspeita. Suspeita, sempre a
suspeita; ela pura e simplesmente justifica o controle e a interdição. Amarildo foi encaminhado
à UPP e, de acordo com o próprio coordenador da unidade, “nada se comprovou contra ele”.
Relevante o uso da forma impessoal, como se não se soubesse quem deveria
comprovar ou como se essa comprovação não fosse o cerne da questão, quando seria, se algo
houvesse sido comprovado. Ou seja, pode-se prender alguém por uma suspeita, mas
comprovar ou não não é fundamental.
Depois dessa detenção, Amarildo desapareceu da comunidade onde morava, sem
deixar pistas, fato que causou comoção nacional, extrapolando os limites dessa comunidade.
Fazendo uso da palavra, o coordenador da unidade, o major Santos, justifica a sua
isenção no desparecimento do pedreiro, inclusive, ele afirma tê-lo visto sair da UPP.
Qual é a confiabilidade na veracidade apresentada pela versão polícial, especialmente
quando se trata de crimes envolvendo pretos e pobres? Os “suspeitos” representam o lado
mais frágil da sociedade e fica difícil combater o abuso de poder cometido e legitimado pelo
próprio Estado.
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As câmeras da saída do prédio não mostraram o homem saindo de lá. Segundo os PMs, elas estavam queimadas. Os quatro policiais que conduziram o pedreiro até a UPP estão afastados. Um deles já havia sido afastado após denúncia de agressão a moradores. Voltou à Rocinha após passar 40 dias em outra UPP.
Os policiais responsabilizam as câmeras queimadas pela impossibilidade da
comprovação da sua versão. Quando a suspeita recai na polícia, ela não sofre sanção
imediata. No mínímo, poderíamos pensar que, se as câmeras estavam queimadas, ela (polícia)
não presta um serviço de qualidade à população, visto que é um equipamento que auxilia a
prestar o trabalho policial na comunidade.
Conforme o enunciador-jornalista, um dos policiais envolvidos no assassinato do
Amarildo já havia sido denunciado por agressão a moradores da comunidade. Podemos
perceber que a certeza da impunidade por parte dos agentes policiais não coibe a manutenção
da prática violenta. Isso fica comprovado no retorno do policial, depois de um afastamento para
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outra UPP. A sensação que se tem diante do fato se assemelha mais à proteção do que a
punição do agente de segurança pública que é denunciado.
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Ontem, houve um tiroteio próximo ao local onde mora a família do pedreiro. Policiais dizem que foi um confronto entre traficantes.
O enunciador-jornalista, ao dar voz para a polícia, traz como fato que o tiroteio que
houve nas proximidades ao local onde a família do Amarildo mora foi entre traficantes. Com
essa afirmação, ela responsabiliza os traficantes pelos tiroteios e mortes na favela. Uma
primeira versão ventilada pela polícia para o desaparecimento do Amarildo teria sido a morte
do mesmo nesses confrontos entre traficantes. A pretexto de troca de tiros entre traficantes,
mata-se muita gente na favela. O que a polícia tem feito para evitar essas mortes provocadas
pelos traficantes nas comunidades?
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Uma manifestação pelo esclarecimento do caso está prevista para quinta-feira.
Entendemos que os protestos e as manifestações públicas ocorridos após o
desaparecimento de Amarildo reproduzem discursos de resistência e se opõem ao discurso
dominante. Esses protestos foram divulgados pelos meios alternativos de comunicação, como
por exemplo as redes sociais, como vozes dissonantes, uma vez que a a grande mídia tende a
reproduzir um discurso hegemônico que representa apenas uma voz.
O posicionamento do enunciador-jornalista apresenta a neutralidade e imparcialidade
característica na grande mídia. Ele apresenta os fatos relatados e em nenhum momento faz
questionamentos a respeito da postura da polícia, nem mesmo questiona a ausência de
provas, tal como da filmagem do homem saíndo da UPP, nem denuncia o estranhamento da
afirmação de que todas as câmeras estavam queimadas.
NOTÍCIA 4
A próxima notícia apresenta a história de um homem negro, em um espaço luxuoso de
consumo na capital paulista, abordado com violência pelo grupo de seguranças do local que
queriam saber o que ele fazia ali. O episódio ocorreu no mês de agosto de 2010, mas a notícia
é de dezembro de 2013, ocasião em que houve a audiência na justiça para julgar o processo.
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A notícia ocupa mais da metade da folha do jornal, está dividida em 19 blocos,
contendo a versão do músico, vítima da interdição, da juíza que analisou os autos e da
assessoria do shopping.
Shopping terá que indenizar músico negro constrangido por segurança Percussionista foi abordado quando andava no Cidade Jardim à procura do local onde faria show. Justiça diz que houve “constrangimento indevido”, mas que não é possível confirmar crime de racismo. Jairo Marques De São Paulo O shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, foi condenado a pagar R$ 6.780 ao músico cubano Pedro Bandera, 39, como indenização por danos morais em razão de uma abordagem de seguranças do estabelecimento em agosto de 2010. Bandera, que é negro, afirma ter sido vítima de preconceito racial quando ele andava pelo shopping à procura do local onde faria um show. O músico é percussionista da cantora Marina de la Riva. A Justiça considerou que houve “constrangimento indevido”, mas que não é possível confirmar crime de racismo. Cabe recurso à decisão. O shopping nega ter havido discriminação. O músico afirma que foi abordado de forma hostil por um grupo de seguranças que queria saber o que ele procurava e o que ele fazia. “Semanas antes, o shopping havia sido assaltado e me pareceu que os seguranças estavam com muita raiva, com sede de vingança”, afirma Bandera, que mora no Brasil há nove anos. Ele conta que foi imobilizado e levado até o estacionamento do Cidade Jardim, onde um táxi o aguardava. Só quando eles viram meus instrumentos no carro e outros músicos chegaram é que me soltaram. Sou bem resolvido com a minha cor e não tenho complexo de olhares sobre mim. Não criei uma situação, não criei um fantasma. Realmente, senti na pele a discriminação. Em sua decisão, a juíza Claudia Thome Toni, da 1ª. Vara do Juizado Especial Cível de São Paulo, afirmou que o Shopping não conseguiu provar que o procedimento adotado pelos seguranças era para cumprir norma do regulamento interno. “A testemunha foi clara quando ressaltou que nenhum outro integrante do grupo teve problemas para adentrar ao local, o que reforça a ideia de que o autor sofreu constrangimento indevido”. A juíza explicou que o crime de racismo não pode ser reconhecido, pois nenhuma testemunha afirmou expressamente que houve comportamento que demonstrasse preconceito racial. “A indenização por danos morais é cabível em razão de todos os aborrecimentos causados ao autor naquele dia”, escreveu a juíza. O valor fixado por ela foi para “sancionar” a conduta do shopping e para que se evite “casos análogos”. Para o advogado de Bandera, Daniel Bento Teixeira, “o principal ganho com a medida é o reconhecimento público de que uma pessoa negra sofreu um constrangimento indevido e que isso gerou condenação. Outro lado Funcionários não foram hostis, diz centro de compras. O shopping Cidade Jardim negou ontem, por meio de sua assessoria de imprensa, que seus seguranças tenham agido de forma hostil com Pedro Bandeira
17.
Afirmou ainda que seu departamento jurídico prepara recurso na Justiça, pois “há vários argumentos jurídicos” para que a decisão de primeira instância que favorece o músico seja revista. O Centro de compras disse que seus funcionários recebem treinamento com frequência para que o tratamento voltado ao público seja sempre “o melhor e mais atento possível”.
17
O sobrenome do músico está grafado de duas formas diferentes na notícia, Bandera e Bandeira.
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Os seguranças, conforme o Cidade Jardim, são preparados para lidar com todas as “diversidades” e a reclamação de discriminação levantada por Pedro Bandeira foi descartada pela justiça, que arquivou ação criminal sobre esse tema. Equipamentos De acordo com nota emitida pela assessoria do Shopping Center, houve um erro de procedimento do músico no momento em que ele desembarcava os seus equipamentos para o show e a intenção dos seguranças foi apenas de orientá-lo. “O procedimento adotado pelos seguranças não se configurou, em nenhum momento, como prática preconceituosa ou maus-tratos. Foi uma abordagem destinada apenas a organizar a circulação no interior do Shopping e é a mesma direcionada a todos os frequentadores”, diz a nota da assessoria(Folha de S. Paulo, Cotidiano,14 de dezembro de 2013).
Na sequência, analisamos a notícia.
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Shopping terá que indenizar músico negro constrangido por segurança Percussionista foi abordado quando andava no Cidade Jardim à procura do local onde faria show. Justiça diz que houve “constrangimento indevido”, mas que não é possível confirmar crime de racismo. Jairo Marques De São Paulo O shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, foi condenado a pagar R$ 6.780 ao músico cubano Pedro Bandera, 39, como indenização por danos morais em razão de uma abordagem de seguranças do estabelecimento em agosto de 2010.
Logo no início, a enunciação nos apresenta um motivo para o músico negro estar no
shopping, um dos mais luxuosos de São Paulo: ele estava trabalhando. Tal pista pode,
portanto, indicar que é preciso que um cidadão negro tenha uma justificativa laboral para
frequentar esse espaço, no qual não poderia estar passeando, por exemplo.
Interessante também que a responsabilidade da ação é imputada ao shopping e não a
alguém que tenha um nome próprio, sendo protegida a identidade do grupo ou família que é
proprietária.
O enunciador dá voz à vítima, que apresenta sua versão dos fatos, afirmando que se
sentiu interditado em local público, devido ao seu pertencimento identitário. Quais outros
motivos teriam os seguranças para abordar Bandera naquele espaço? Será que se o mesmo
fosse branco também seria abordado?
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A Justiça considerou que houve “constrangimento indevido”, mas que não é possível confirmar crime de racismo. Cabe recurso à decisão. O shopping nega ter havido discriminação.
A enunciação apresenta o poder do tribunal como expressão da verdade, quando
afirma que o que o cidadão não sofreu racismo e sim constrangimento ilegal. Diante dessa
asserção, podemos indagar sobre quais pessoas são mais afetadas pelo “constrangimento
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indevido”. Será que o mesmo atinge indiscriminadamente todos os grupos identitários ou é
mais uma categoria criada para legitimar as práticas de exclusão?
Quando o discurso jurídico cria eufemismos para o crime de racismo não desencoraja
essa prática e contribui para a sua perpetuação no meio social da sociedade.
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O músico afirma que foi abordado de forma hostil por um grupo de seguranças que queria saber o que ele procurava e o que ele fazia.
De acordo com o Art. 8º da Lei 7.716-2003: “Impedir o acesso ou recusar atendimento
em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público”. Pena: reclusão
de um a três anos”.
Entretanto, o enunciador-jornalista nos informa que o shopping é um dos mais
luxuosos da cidade, portanto, com muito prestígio e poder, e o judiciário, com raríssimas
exceções, tem no seu quadro discursos contra-hegemônicos.
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“Semanas antes, o shopping havia sido assaltado e me pareceu que os seguranças estavam com muita raiva, com sede de vingança”, afirma Bandera, que mora no Brasil há nove anos. Ele conta que foi imobilizado e levado até o estacionamento do Cidade Jardim, onde um táxi o aguardava. Só quando eles viram meus instrumentos no carro e outros músicos chegaram é que me soltaram. Sou bem resolvido com a minha cor e não tenho complexo de olhares sobre mim. Não criei uma situação, não criei um fantasma. Realmente, senti na pele a discriminação.
O enunciador-jornalista dá voz à vítima, que condena a ação dos seguranças ao
afirmar que não lhe pareceu ter sido um procedimento rotineiro, conforme quer nos mostrar a
assessoria de imprensa. É possível apreender, na fala do músico, que o mesmo refere-se ao
assalto ocorrido semanas antes no shopping para justificar a ação, uma vez que, na visão
hegemônica dos seguranças, ele poderia ser um dos ladrões. Mais uma vez nos deparamos
com a condução do negro à posição de suspeito, no entanto, a hegemonia discursiva encontra
outras denominações para fatos. Entretanto, se ele (o músico) não tinha a informação sobre a
identidade racial dos assaltantes, ele assumiu que eram negros, confirmando assim que o
mesmo também reproduz a hegemonia discursiva, mesmo fazendo parte do grupo dos
“diferentes”.
Será que se o músico estivesse num shopping popular ou em algum outro espaço
menos luxuoso como o tal shopping, ele também seria interditado ou ali sua circulação seria
permitida?
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Em sua decisão, a juíza Claudia Thome Toni, da 1ª. Vara do Juizado Especial Cível de São Paulo, afirmou que o Shopping não conseguiu provar que o procedimento adotado pelos seguranças era para cumprir norma do regulamento interno. “A testemunha foi clara quando ressaltou que nenhum outro integrante do grupo teve problemas para adentrar ao local, o que reforça a ideia de que o autor sofreu constrangimento indevido”.
Aqui, mais uma vez o enunciador-jornalista dá voz ao judiciário que dá seu veredicto
ao afirmar que o procedimento não foi para cumprir norma de segurança interna.Se não há
justificativa plausível para a ação, a justiça com a sua verdade inventa uma, uma vez que
prefere não enquadrar o shopping no crime de racismo previsto na lei.
Pelo que nos apresenta o enunciador, o músico foi abordado pelos seguranças tendo
como referência seu fenótipo, uma vez que de acordo com a ideologia dos mesmos, ele estava
no lugar errado, ou seja, a produção da subjetividade a partir de ideias construídas e
reforçadas pelo meio social fez com que a abordagem fosse pré-determinada.
A fala da testemunha reforça o fato de que músico foi interditado e agredido pelos
seguranças do shopping, provavelmente devido ao seu pertencimento identitário, uma vez que
os demais integrantes do grupo afirmam que eles não tiveram problemas em acessar e
permanecer no local. Assim, fica evidente, a partir do discurso apresentado, que apenas o
músico negro estava “fora de lugar”.
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A juíza explicou que o crime de racismo não pode ser reconhecido, pois nenhuma testemunha afirmou expressamente que houve comportamento que demonstrasse preconceito racial. “A indenização por danos morais é cabível em razão de todos os aborrecimentos causados ao autor naquele dia”, escreveu a juíza. O valor fixado por ela foi para “sancionar” a conduta do shopping e para que se evite “casos análogos”.
Se não foi racismo, o que então justifica a atitude violenta dos seguranças, uma vez
que em nenhum momento o enunciador-jornalista diz que o músico estava armado, que
agrediu alguém, afinal, qual real ameaça ele representava? Aqui, mais uma vez, observamos a
produção da suspeita e da interdição, uma vez que não há justificativa para a abordagem e
muito menos ainda para a violência.
Outra constatação diante da enunciação é a dificuldade da justiça em reconhecer as
práticas racistas existentes no meio social, quando as nega acaba por reforçá-las.
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Para o advogado de Bandera, Daniel Bento Teixeira, “o principal ganho com a medida é o reconhecimento público de que uma pessoa negra sofreu um constrangimento indevido e que isso gerou condenação.
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O enunciador dá voz ao advogado da vítima, que por sua vez considera uma vitória a
decisão da juíza ao reconhecer que o ocorrido com o músico teve como principal motivação o
fato de o mesmo ser negro. Isso fica evidente em “uma pessoa negra sofreu um
constrangimento indevido”, mesmo que Justiça não reconheça o essencial.
Uma reflexão que se pode fazer é sobre o valor irrisório da indenização para um
luxuoso centro de compras, esse valor não é exatamente uma condenação, visto que não
causará nenhum prejuízo financeiro ao seu patrimônio a ponto de repensar seriamente suas
práticas e transformá-las.
Notícia
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Funcionários não foram hostis, diz centro de compras. Outro lado O shopping Cidade Jardim negou ontem, por meio de sua assessoria de imprensa, que seus seguranças tenham agido de forma hostil com Pedro Bandeira. Afirmou ainda que seu departamento jurídico prepara recurso na Justiça, pois “há vários argumentos jurídicos” para que a decisão de primeira instância que favorece o músico seja revista. O Centro de compras disse que seus funcionários recebem treinamento com frequência para que o tratamento voltado ao público seja sempre “o melhor e mais atento possível”.
Ao dar voz ao luxuoso centro de compras por meio da assessoria de imprensa o
espaço é usado para negar a prática racista, como faria qualquer pessoa, empresa ou
instituição acusada. A enunciação apresenta a defesa do shopping usando como foco o
treinamento dado aos seus seguranças, justamente onde a vítima acusa ter havido falhas.
Cabe uma reflexão à “diversidade” a qual se refere a assessoria de imprensa, será
que os “suspeitos”, conforme a hegemonia discursiva, estão incluídos?
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Equipamentos De acordo com nota emitida pela assessoria do Shopping Center, houve um erro de procedimento do músico no momento em que ele desembarcava os seus equipamentos para o show e a intenção dos seguranças foi apenas de orientá-lo. “O procedimento adotado pelos seguranças não se configurou, em nenhum momento, como prática preconceituosa ou maus-tratos. Foi uma abordagem destinada apenas a organizar a circulação no interior do Shopping e é a mesma direcionada a todos os frequentadores”, diz a nota da assessoria.
Um homem caminha por um centro comercial luxuoso na capital paulista e é abordado
por um grupo de seguranças, que questionam sua presença. Localizamos no enunciado
jornalístico discursos que se sobrepõem a outros discursos, o homem em questão é negro,
será que se o mesmo fosse branco seria abordado?
“De acordo com nota emitida pela assessoria do Shopping Center, houve um erro de
procedimento do músico no momento em que ele desembarcava os seus equipamentos para o
show e a intenção dos seguranças foi apenas de orientá-lo”.Esse discurso da assessoria de
imprensa não faz sentido, uma vez que não tinha como os seguranças de antemão
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conhecerem que o músico estava desembarcando seus instrumentos, além de não justificar a
violência empregada na ação.
O enunciador-jornalista deixa como última voz a da assessoria de imprensa do
shopping para justificar o que aconteceu, reforçando que não houve racismo, opinião
partilhada pela Justiça, e pelo jornal, apresentada sob o ponto de vista do jornalista.“A
indenização por danos morais é cabível em razão de todos os aborrecimentos causados ao
autor naquele dia”, escreveu a juíza. É o uso da linguagem como instrumento de poder.
NOTÍCIA 5
A notícia a seguir narra um episódioenvolvendo um adolescente, ocorrido em fevereiro
de 2013, no Rio de Janeiro. A história nos remete às cenas descritas por FOUCAULT (2013),
no século XVIII, onde os condenados eram executados em praça pública.
O cenário é um bairro de classe média, ocupado, na sua maioria, por pessoas
pertencentes ao grupo hegemônico, e a vítima é um adolescente negro e pobre.
Polícia busca grupo que prendeu ladrão em poste Rapaz foi preso nu com cadeado de bicicleta no Rio; socorrido, ele sumiu do hospital. Do Rio Colaboração para a Folha, do Rio A polícia procura os responsáveis por espancar um jovem de 15 anos deixando nu e preso a um poste no Flamengo, zona sul do Rio. Sangrando muito, desorientado e sem documentos, ele foi encontrado na sexta-feira por Yvonne Bezerra de Mello, 67, moradora da região. “Parece que alguém quis fazer justiça com as próprias mãos, mas o que fizeram foi uma barbárie”. Se é marginal, prende, disse Yvonne. Os bombeiros tiveram que usar um maçarico para soltar o jovem. Segundo ela, moradores teriam visto o rapaz ser agredido a pauladas por três homens. O jovem fugiu do hospital onde estava internado. Ele foi apreendido três vezes por furto, roubo e lesão corporal, segundo a polícia(Diana Brito e Bruno Calixto, Folha de S. Paulo, 05 de fevereiro de 2014).
Acompanhe a análise da notícia.
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Polícia busca grupo que prendeu ladrão em poste Rapaz foi preso nu com cadeado de bicicleta no Rio; socorrido, ele sumiu do hospital. Do Rio Colaboração para a Folha, do Rio
O enunciado-jornalista aponta para um caso de uma pessoa que foi conduzida à
condição de animal, amarrado ao poste como um cachorro, um cavalo ou outro bicho qualquer.
Essa prática nos remete às práticas do tempo da escravidão, adotadas por pessoas brancas
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que se colocavam na posição de superioridade para castigar pessoas negras, os diferentes,
como forma de punição.
Já no título, o enunciador-jornalista apresenta o indivíduo amarrado ao poste como
ladrão e os indivíduos que praticaram o ato abominável são apresentados apenas como grupo.
Essa prática nos remete aos discursos hegemônicos que condenam os condenados e atenuam
a ação dos opressores, legitimando dessa forma suas práticas.
É possível observar certa dificuldade do enunciador-jornalista em identificar o indivíduo
como adolescente que de fato ele é. Primeiro, ele é denominado por ladrão e depois, por
rapaz.
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A Polícia procura os responsáveis por espancar um jovem de 15 anos deixando nu e preso a um poste no Flamengo, zona sul do Rio. Sangrando muito, desorientado e sem documentos, ele foi encontrado na sexta-feira por Yvonne Bezerra de Mello, 67, moradora da região.
Observamos que na sequência da enunciação o ladrão vai sendo humanizado, passa
para rapaz e em seguida para adolescente de 15 anos. É interessante observar essa mudança
produzida no texto, primeiro reforça a posição discursiva dominante, para depois atenuar.
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“Parece que alguém quis fazer justiça com as próprias mãos, mas o que fizeram foi uma barbárie”. Se é marginal, prende, disse Yvonne.
Em seguida o enunciador-jornalista dá voz para a senhora que ajudou o adolescente
que descreveu a ação como “barbárie”. Conforme vamos conhecendo as diferentes visões, o
grupo que antes era anônimo passa a ser nominado de bárbaros.
Importante o apagamento no que se refere a toda trajetória de Yvone Bezerra de
Mello, como se essa fosse apenas uma moradora da área e não uma ativista, que teve papel
fundamental na Chacina da Candelária em defesa de crianças e adolescentes em situação de
rua e que idealizou o Projeto Uerê, uma Organização Não Governamental carioca no fim da
década de 1990, como escola alternativa para as crianças e adolescentes com dificuldade de
aprendizagem devido aos traumas provocados pela convivência diária com a violência na
comunidade, na família e nas ruas. Entendemos que o referido apagamento diminui a
autoridade que tem a ativista na defesa da garantia de direitos.
A ideologia dominante caracterizada na ação do grupo de justiceiros reproduz o
domínio do grupo que prendeu o adolescente ao poste, na produção discursiva categorizada
pelo privilégio do sujeito da verdade.
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Os bombeiros tiveram que usar um maçarico para soltar o jovem. Segundo ela, moradores teriam visto o rapaz ser agredido a pauladas por três homens. O jovem fugiu do hospital onde estava internado. Ele foi apreendido três vezes por furto, roubo e lesão corporal, segundo a polícia.
A “moradora” que ajudou o adolescente traz a voz de moradores da região que
afirmaram ter visto três homens agredindo o adolescente, mas essas pessoas não aparecem.
Esse tipo de prática coercitiva remete ao racismo científico, pois não se pensa em
controle ou vigilância dos bem nascidos, uma vez que estes não representam perigo social.
Nesse sentido, Foucault entende como sendo o poder da verdade que é exercido pela classe
alta.
Mais uma vez, o enunciador-jornalista finaliza com a voz da polícia, dizendo que o
adolescente já tinha três passagens pela polícia. Ou seja, “ele não é nenhum santo”, como
prega o discurso dominante, essa condição por si só justifica o castigo, talvez assim ele
aprenda, como dizem.
Notícia 6
A próxima notícia relata o drama vivido por mais um jovem negro na cidade do Rio de
Janeiro, “confundido” com um ladrão. Foi encaminhando à delegacia de polícia e em seguida
para a Casa de Detenção, permanecendo preso injustamente por 16 dias.
O enunciador-jornalista dá voz à vítima, que apresenta sua versão dos fatos. Nem a
Polícia, nem a Justiça são chamadas para apresentar suas versões, sequer um pedido de
desculpas pela violação de direitos cometida é formalizado. Segue a notícia:
“Eu a perdoo”, afirma ator reconhecido por engano por vítima. Após 16 dias de cadeia, jovem afirma que erro de identificação “pode acontecer com qualquer pessoa”. Condições de higiene da prisão no Rio “são desumanas”, diz rapaz, que dormiu sobre pedaço de papelão. Depois de 16 dias dormindo sobre um pedaço de papelão no chão, em uma cela com outros 15 detentos e apenas três beliches, o ator Vinícius Romão de Souza, 27, foi solto ontem à tarde. Ele foi preso no dia 10 de fevereiro, após ter sido reconhecido pela copeira Dalva Moreira da Costa como o homem que roubara sua bolsa. Na terça-feira, em novo depoimento à polícia, ela disse que se enganou ao reconhecê-lo como o ladrão. “Eu a perdôo. Quero que Deus a ilumine, que tudo dê certo na vida dela. Ela cometeu um erro que pode acontecer com qualquer pessoa”, disse Souza. À noite, ele recebeu a Folha para uma entrevista em sua casa, no Méier, zona norte. Vestia a camisa do Flamengo. De lá, seguiu para aproveitar sua primeira noite de liberdade no Maracanã, assistindo o jogo de seu time contra o equatoriano Emelec.
Leia abaixo trecho da entrevista.
Folha – Como foi na noite em que você foi preso?
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Vinícius Romão – Estava voltando do trabalho e dona Dalva (Moreira da Costa, a copeira que o acusou de ter roubado sua bolsa) estava com dois homens, um deles policial. Quando passei, percebi que ela e o policial me encararam e ela disse “Ah, foi ele, foi ele”. Daí o policial apontou a arma para a minha cabeça, mandou eu abaixar e colocar a mão na cabeça. Eu falei “pô, braço (gíria para homem forte), você está pegando o cara errado”. Ele pegou minha carteira de identidade, chamou o 190 (telefone da polícia), foi colocado em um carro da polícia e levando para a delegacia.
O queaconteceu então? Lá me colocaram na cela e só de manhã, no outro dia, fiz o depoimento e liguei para o meu pai, que foi lá. Dormi sozinho. Era um quadrado, com um banquinho, um ferro para algemar, um lugar para fazer as necessidades, tipo um vaso no chão, uma porta com uma janelinha. No dia seguinte fui para a casa de Detenção (em São Gonçalo, região metropolitana do Rio). Lá, todas as refeições eram feitas na cela, assim como o banho. O vaso sanitário também era o chão, no mesmo lugar. Quando cheguei ao presídio, rasparam a minha cabeça e perguntaram a qual facção eu pertencia, e eu respondi que era neutro.
Com quem você dividiu cela? São pessoas que perderam a fé, mas ao mesmo tempo falam muito sobre Deus, sobre não saber o que acontece aqui fora. Eles pareciam ter remorso do que faziam. Eram pessoas detidas por tráfico de drogas, por agressões domésticas. Há muitos outros Vinícius lá dentro.
Como você foi recebido?
Entrei na cela com outros dois. Um rapaz que era o mais antigo por lá, um tipo líder de lá, nos falou quais eram as regras.
E quais eram? Evitar confusão, evitar conversas com presos de outras celas, porque uma vez parece que houve uma briga, para evitar disse me disse.
Você acha que foi preso por ser negro? Não, acredito que ela se confundiu. Eu a perdôo. Quero que Deus a ilumine, que tudo dê certo na vida dela. Ela cometeu um erro que pode acontecer com qualquer pessoa.
É difícil ser negro no Brasil? É difícil, mas temos que nos unir. Sozinhos, não vamos conseguir. Eu tive apoio dos meus amigos, que lutaram aqui fora enquanto eu lutava lá dentro. A questão do racismo existe de fato, não acabou. E o que aconteceu comigo, o fato de não terem me dado chance de responder, de sentar e conversar com o inspetor: a forma como fui abordado. São tantas coisas que ainda não consegui pensar. Você já sofreu preconceito por ser negro? Nasci na cidade do Rio Grande (RS) em 1986 e vim para o Rio com 4 anos, porque meu pai, militar, foi transferido. Estudei desde o maternal até o terceiro ano no mesmo colégio particular. Um dia, estava na primeira série, um garoto passou numa van e começou a me insultar, falar da minha cor. Minha mãe, que tinha ido me buscar, tapou meus ouvidos(Folha de São Paulo, Cotidiano, 27 de fevereiro de 2014).
Vamos para a análise.
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“Eu a perdoo”, afirma ator reconhecido por engano por vítima. Após 16 dias de cadeia, jovem afirma que erro de identificação “pode acontecer com qualquer pessoa”.
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Observamos que, logo no início da notícia, o enunciador-jornalista optou por colocar o
foco no erro da copeira e não no erro da polícia. Entendemos que essa prática privilegia uma
visão que afasta a responsabilidade de uma instituição e ressalta um equívoco de uma pessoa,
corroborada na escolha do título. Além disso, o fato de o rapaz perdoar a “vítima” desloca o
jogo de poder para o âmbito “maior”, que transcende as instituições, diminuindo a
responsabilidade da polícia.
O enunciador-jornalista, ao apresentar a notícia, dá pouca importância ao desrespeito
aos direitos do rapaz enquanto pessoa humana, sendo mantido preso e na arbitrariedade da
ação da polícia e da justiça.
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Condições de higiene da prisão no Rio “são desumanas”, diz rapaz, que dormiu sobre pedaço de papelão. Depois de 16 dias dormindo sobre um pedaço de papelão no chão, em uma cela com outros 15 detentos e apenas três beliches, o ator Vinícius Romão de Souza, 27, foi solto ontem à tarde.
O enunciador dá voz à vítima, que denuncia a degradação no sistema prisional,
revelando suas mazelas, de acordo com a situação dos presidiários no Rio de Janeiro,
entretanto, entendemos que essa realidade cabe perfeitamente a qualquer estado da
federação.Nessa instituiçãojudiciária criada e mantida pelo poder publico para “reeducar” os
condenados, que tem como principal forma de castigo a cessação da liberdade, segundo
Souza, encontram-se ausentes as mínimas condições de higiene e dignidade. Podemos
identificar nessa prática punitiva não apenas a perda da liberdade, mas também os castigos
físicos.
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Ele foi preso no dia 10 de fevereiro, após ter sido reconhecido pela copeira Dalva Moreira da Costa como o homem que roubara sua bolsa. Na terça-feira, em novo depoimento à polícia, ela disse que se enganou ao reconhecê-lo como o ladrão.
O enunciador-jornalista reforça a responsabilidade pela prisão do jovem no erro da
copeira e em seguida a mesma é apresentada como a responsável pela sua liberdade. Essa
situação nos leva a refletir sobre o que teria ocorrido caso a mulher não tivesse mudado seu
depoimento, seráque ele seria processado, julgado e condenado sem direito a defesa?
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“Eu a perdôo. Quero que Deus a ilumine, que tudo dê certo na vida dela. Ela cometeu um erro que pode acontecer com qualquer pessoa”, disse Souza.
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Ao dar voz para a vítima, o enunciador nos mostra que, apesar do sofrimento, o jovem
Souza não perdeu a compaixão e opta por minimizar a ação de sua delatora. Reafirmamos
aimportância de responsabilizar as instituições policiais e judiciárias pelo erro no procedimento
adotado nesse caso.
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À noite, ele recebeu a Folha para uma entrevista em sua casa, no Méier, zona norte. Vestia a camisa do Flamengo. De lá, seguiu para aproveitar sua primeira noite de liberdade no Maracanã, assistindo o jogo de seu time contra o equatoriano Emelec. Leia abaixo trecho da entrevista.
Aqui o enunciador-jornalista enfatiza que, apesar da situação traumática que viveu
Souza, ele segue sua vida fazendo coisas que gostava de fazer antes da fatídica situação.
Entendemos que, de forma geral, o jornal em questão se furta a exercer o seu papel
político de denunciar a ação da polícia, em diversos momentos, no que tange à falta de
profissionalismo na condução do seu trabalho, fato que pode acarretar desfechos traumáticos
para os indivíduos envolvidos, como ocorreu em diversos casos por nós apresentados.
Percebe-se a desumanização quando se trata de indivíduos negros, afinal, propaga-se através
do discurso hegemônico que o negro é forte e pode suportar qualquer coisa.
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Folha – Como foi na noite em que você foi preso? Vinícius Romão –Estava voltando do trabalho e dona Dalva (Moreira da Costa, a copeira que o acusou de ter roubado sua bolsa) estava com dois homens, um deles policial. Quando passei, percebi que ela e o policial me encararam e ela disse “Ah, foi ele, foi ele”. Daí o policial apontou a arma para a minha cabeça, mandou eu abaixar e colocar a mão na cabeça. Eu falei “pô, braço (gíria para homem forte), você está pegando o cara errado”. Ele pegou minha carteira de identidade, chamou o 190 (telefone da polícia), foi me colocado em um carro da polícia e levando para a delegacia.
O enunciado elege aspectos concretos da ação como questões importantes. É
detalhado o ato da prisão, como a arma apontada para a cabeça no jovem e a situação de
vulnerabilidade que ele vivenciou. O mesmo ainda tentou argumentar com o homem sobre o
erro da sua intervenção, mas pelo desfecho da história não obteve sucesso.
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O que aconteceu então? Lá me colocaram na cela e só de manhã, no outro dia, fiz o depoimento e liguei para o meu pai, que foi lá. Dormi sozinho. Era um quadrado, com um banquinho, um ferro para algemar, um lugar para fazer as necessidades, tipo um vaso no chão, uma porta com uma janelinha. No dia seguinte fui para a casa de Detenção (em São Gonçalo, região metropolitana do Rio). Lá, todas as refeições eram feitas na cela, assim como o banho. O vaso sanitário também era o chão, no mesmo lugar. Quando cheguei ao presídio, rasparam a minha cabeça e perguntaram a qual facção eu pertencia, e eu respondi que era neutro.
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Ao fazer uso de sua voz, Souza denuncia a falta de humanização do sistema
penitenciário, quando lhe é negado o direito de ser ouvido no ato da detenção ou fazer contato
com seus familiares, o que só foi possível no dia seguinte, além da condição de insalubridade
na cela onde passou a noite. Ao longo de seu texto, identificamos marcas por meio das quais
podemos perceber que a situação da casa de Detenção, espaço destinado aos criminosos ou
suspeitos que aguardam julgamento, ou seja, onde irão permanecer por meses, até anos, não
é diferente da cela na delegacia, também insalubre.
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Com quem você dividiu cela? São pessoas que perderam a fé, mas ao mesmo tempo falam muito sobre Deus, sobre não saber o que acontece aqui fora. Eles pareciam ter remorso do que faziam. Eram pessoas detidas por tráfico de drogas, por agressões domésticas. Há muitos outros Vinícius lá dentro.
A vítima faz uso da sua voz para dar voz aos presos com os quais conviveu, os quais
e que não têm voz, que se calam dentro da prisão e os que ninguém quer ouvir.
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Como você foi recebido? Entrei na cela com outros dois. Um rapaz que era o mais antigo por lá, um tipo líder de lá, nos falou quais eram as regras.
Aqui a vítima nos apresenta um pouco mais sobre o funcionamento do sistema
prisional, suas regras e procedimentos, pelo que entendemos, é prática os próprios presos se
responsabilizarem por algumas tarefas lá dentro, principalmente parece haver uma hierarquia
ou liderança.
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E quais eram? Evitar confusão, evitar conversas com presos de outras celas porque uma vez parece que houve uma briga, para evitar disse me disse.
A voz da vítima nos revela que, na cela, quem define as regras são os presos, ou seja,
uma vez lá dentro, além de seguir as regras do sistema, seguem-se também as regras das
“lideranças”.
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1 Você acha que foi preso por ser negro?
Não, acredito que ela se confundiu. Eu a perdôo. Quero que Deus a ilumine, que tudo dê certo na vida dela. Ela cometeu um erro que pode acontecer com qualquer pessoa.
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Com a pergunta:“Vocêacha que foi preso por ser negro?”,observamos que há um
reconhecimento do enunciador da existência do racismo institucional presente na Polícia Militar
e na sociedade brasileira. Como já vimos anteriormente, num discurso, muitos discursos
discursam.
Entretanto, observamos que a pergunta é tendenciosa, tendo em vista que existe a
testemunha que reconheceu o rapaz como sendo o “ladrão”, afastando, desse modo, a
abordagem preferencial da polícia, pelo fato de ele ser negro, e focando no “engano”.
O jornal e a mídia em geral não apresentam notícias ou debates da polícia com outras
áreas do conhecimento focando esses “enganos”.
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É difícil ser negro no Brasil? É difícil, mas temos que nos unir. Sozinhos, não vamos conseguir. Eu tive apoio dos meus amigos, que lutaram aqui fora enquanto eu lutava lá dentro. A questão do racismo existe de fato, não acabou. E o que aconteceu comigo, o fato de não terem me dado chance de responder, de sentar e conversar com o inspetor: a forma como fui abordado. São tantas coisas que ainda não consegui pensar.
A voz da vítima afirma o que se quer negar, ou seja, que seu pertencimento identitário
foi fundamental para ser tratado como foi pela polícia. O jovem relata que não conseguiu
pensar sobre quais medidas serão adotadas a partir do ocorrido. Entendemos que ele sentiu na
pele como são tratados os pretos.
A voz da vítima clama por união em torno desse tema tão espinhoso para a nossa
sociedade, o racismo institucional, e para a importância de não permanecer na dependência da
família e dos amigos, tendo em vista que muitos não dispõem dessa rede para acessar, no
entanto, têm o direito de serem apoiados e defendidos.
Notícia
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to13 Você já sofreu preconceito por ser negro?
Nasci na cidade do Rio Grande (RS) em 1986 e vim para o Rio com 4 anos porque meu pai, militar, foi transferido. Estudei desde o maternal até o terceiro ano no mesmo colégio particular. Um dia, estava na primeira série, um garoto passou numa van e começou a me insultar, falar da minha cor. Minha mãe, que tinha ido me buscar, tapou meus ouvidos.
O que o enunciador-jornalista chama de preconceito, nós chamamos de discriminação
pelo pertencimento identitário ou racismo. Mais uma vez, Souza afirma que no Brasil os negros
são inferiorizados pelo fenótipo e que as crianças também são vítimas dessa perversidade.
Podemos entender que as mães queiram proteger seus filhos da violência, mas
tampar os ouvidos não torna ninguém surdo. Acreditamos que a melhor forma de empoderar as
crianças negras é falar aberta e francamente sobre a realidade dos problemas que,
infelizmente, irão enfrentar em suas vidas.
Ainda dialogando com a notícia, em publicação de autoria de Martinho da Vila sobre o
erro da polícia, publicado no mesmo jornal, o músico faz referência à prisão de Souza no artigo
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intitulado “Cenas de um drama real”. Afirma que, no Brasil, parte-se do pressuposto de que,
sempre que ocorre um roubo, desde que não seja de dinheiro público, um negro é suspeito18.
É justamente sobre essas questões que estamos tratando, controle social,
cerceamento no direito da liberdade, castigo para os criminosos, ou suspeitos, e não sobre o
crime cometido, pois, de acordo com o nosso modelo de justiça, pune-se o criminoso ou o
“suspeito” de cometer crimes e não o crime.
Notícia 7
A notícia a seguir apresenta mais um drama envolvendo uma família negra, estamos
falando do lamentável episódio envolvendo Claudia Ferreira, mãe de quatro filhos,
trabalhadora, baleada na cabeça numa comunidade onde morava no Rio de Janeiro, e em
seguida arrastada por vários metros, pendurada no porta-malas da viatura da polícia a caminho
do hospital.
Apresentamos mais uma situação de extrema desumanidade protagonizada pela
Polícia Militar do Rio de Janeiro. Acompanhe a notícia:
Vítima é colocada em porta-malas por PMs, cai e é arrastada por 250m Baleada, Cláudia Ferreira, 38, ficou pendurada no veículo e já chegou morta ao hospital no Rio. Mulher levou 2 tiros quando ia comprar pão: os 3 policiais, que foram presos, dizem que já a encontraram ferida. Marco Antônio Martins do Rio A Polícia Militar do Rio prendeu ontem três PMs acusados de arrastar por 250m a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, 38. Baleada, ela ficou pendurada, a caminho do hospital, na traseira do carro da polícia, após ser socorrida no porta-malas do veículo. Cláudia chegou morta ao hospital Carlos Chagas. Além do ferimento à bala, tinha a perna em carne viva por ter sido arrastada.O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, divulgou nota em que “repudia a ação dos policiais”. Os três seriam conduzidos à noite para o presídio Bangu 8, na zona oeste, após prestarem depoimento no IPM (Inquérito Policial Militar) que investiga o caso. Mãe de quatro filhos, Cláudia saiu de casa no domingo de manhã para comprar pão e mortadela, disse seu marido, Alexandre Silva. Carregava na mão três notas de R$ 2 e um copo de café. Disse aos filhos que voltaria rápido. Caminhou 20m, cumprimentou uma amiga e levou dois tiros: no pescoço e nas costas. Estava no ponto mais alto do morro da Congonha, em Madureira, zona norte. De acordo com os policiais militares, havia naquele momento troca de tiros entre PMs e traficantes. A família nega. “Ela tinha medo de sair de casa quando havia tiroteios. Temia uma bala perdida. Nunca sairia se houvesse troca de tiros”, disse Silva. Durante a incursão, os policiais encontraram a mulher caída no chão, baleada, segundo a Polícia Militar.
18
Folha de S. Paulo,Tendências Debates, 2 de março de 2014
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Os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves socorreram Cláudia e a colocaram dentro do porta-malas. No caminho para o hospital, um cinegrafista amador flagrou o porta-malas aberto e Cláudia presa ao veículo por partes de sua roupa. As imagens foram divulgadas ontem pelo jornal “Extra”. Por 20 segundos, o vídeo mostra a mulher batendo contra a traseira do veículo e contra o asfalto. O carro, em alta velocidade, faz duas ultrapassagens até parar num sinal de trânsito. Os policiais desceram, colocaram a mulher para dentro e fecharam o porta-malas, seguindo para o hospital. “No hospital, perguntei se ela havia rolado de algum lugar. A perna estava em carne viva”, contou Júlio César Ferreira, irmão de Cláudia. “Trataram ela como um bicho. Nem o pior traficante do mundo deveria ser tratado assim”, disse Silva, o marido. Em nota, a Polícia Militar informou que a atitude dos policiais “não condiz com o processo de formação empregados nos Centros de Ensino da corporação”. De acordo com a PM, “o procedimento adequado é o socorro da vítima no banco traseiro da viatura”. Segundo a nota, “no entendimento dos policiais da ocorrência, havia dificuldades de atendimento para uma ambulância devido ao confronto com traficantes (...), o que os levou socorrer Cláudia”. A PM não permitiu que os policiais falassem sobre o assunto.
Moradores jogaram rojões em PMs durante protesto Pelo segundo dia consecutivo, moradores da favela da Congonha, onde vivia a auxiliar de serviços gerais Cláudia Ferreira, fecharam a av. Edgar Romero em protesto. A via é uma das principais de Madureira, zona norte do Rio. A partir das 14h logo após o enterro de Cláudia, um grupo de cerca de cem pessoas se concentraram na rua Leopoldino de Oliveira, transversal da avenida Edgar Romero. Perto da esquina das duas ruas eles queimaram pedaços de madeira, móveis, pneus, sacos cheios de lixo e outros objetos. Uma nuvem negra de fumaça tomou conta da área. Algumas pessoas cobriam a cabeça e o nariz com pedaços de pano para se proteger da fumaça. Para evitar que carros fossem atingidos, os cerca de 40 policiais militares que acompanhavam o ato desviavam o trânsito. Os manifestantes fizeram, então, um abraço coletivo e rezaram um Pai Nosso em homenagem a Cláudia. Logo em seguida começaram a chamar os policiais de “assassinos”. Alguns manifestantes chegaram a lançar fogos de artifício em direção aos PMs. Os policiais não reagiram. A via só foi liberada por volta das 18h. Foi a terceira manifestação desde a morte de Cláudia. Fogo em ônibus No domingo, pouco depois de ela ter sido arrastada pendurada no porta-malas do carro dos policiais que a levaram para o hospital, os moradores fecharam a mesma avenida. Mais tarde, em protesto mais violento, incendiaram dois ônibus (Folha de S. Paulo, Cotidiano, 18 de março de 2014).
Vamos à análise da notícia.
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Vítima é colocada em porta-malas por PMs, cai e é arrastada por 250m Baleada, Cláudia Ferreira, 38, ficou pendurada no veículo e já chegou morta ao hospital no Rio. Mulher levou 2 tiros quando ia comprar pão: os 3 policiais, que foram presos dizem que já a encontraram ferida. Marco Antônio Martins do Rio
O enunciador-jornalista nos dá uma ideia da cena, uma mulher sendo arrastada,
pendurada no porta-malas de uma viatura policial, provavelmente ainda viva. Pela forma como
a vítima foi socorrida, parece que não havia nenhuma preocupação com a preservação de sua
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vida “Vítima é colocada em porta-malas por PMs, cai e é arrastada por 250m”. Se os policiais
encontraram Cláudia ferida, como afirmam, acabaram de executá-la no caminho do hospital.
Essa situação nos leva a refletir sobre o tratamento dispensado a Cláudia, imaginamos
que se a vítima fosse encontrada num bairro habitado pela classe abastada, provavelmente o
socorro seria diferente, conforme deve ser o treinamento dado aos policiais para quando se
depararem com uma situação como essa.
Esse fato nos leva a refletir sobre a função social que está sendo exercida pela polícia,
será que o castigo é uma forma de exerceras práticas punitivasdestinadas a um grupo social
previamente determinado?
Notícia
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to 2
A Polícia Militar do Rio prendeu ontem três PMs acusados de arrastar por 250m a auxiliar de serviços gerais Cláudia Silva Ferreira, 38. Baleada, ela ficou pendurada, a caminho do hospital, na traseira do carro da polícia após ser socorrida no porta-malas do veículo.
A enunciador nos revela que os PMs foram presos, mas não informa quais foram os
crimes por eles praticados, se devido ao socorro inadequado da vítima no porta-malas, que
acabou por precipitar a sua morte, ou por alguma outra prática.
Notícia
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to 3
Cláudia chegou morta ao hospital Carlos Chagas. Além do ferimento à bala, tinha a perna em carne viva por ter sido arrastada. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, divulgou nota em que “repudia a ação dos policiais”. Os três seriam conduzidos à noite para o presídio Bangu 8, na zona oeste, após prestarem depoimento no IPM (Inquérito Policial Militar) que investiga o caso.
O enunciador-jornalista confirma a terrível situação, confirma que Cláudia teve seu
corpo mutilado ao ser arrastada pelo asfalto, além dos ferimentos a bala, pela enunciação,
entende-se que ambos os fatores precipitaram a sua morte, mas que se tivesse sido socorrida
de modo adequado, teria chance de sobreviver.
Além de repudiar a ação dos três policiais, o que mais o Secretário Beltrame e as
demais autoridades podem fazer? Quem se importa com o sofrimento de Cláudia e com a
perda irreparável de sua família?
Notícia
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Mãe de quatro filhos, Cláudia saiu de casa no domingo de manhã para comprar pão e mortadela, disse seu marido, Alexandre Silva. Carregava na mão três notas de R$ 2 e um copo de café. Disse aos filhos que voltaria rápido. Caminhou 20m, cumprimentou uma amiga e levou dois tiros: no pescoço e nas costas. Estava no ponto mais alto do morro da Congonha, em Madureira, zona norte.
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A enunciação nos apresenta os detalhes dos passos de Cláudia naquela manhã
fatídica na comunidade pobre onde vivia com a sua família. Ela exercia o seu papel de mãe,
quando saiu para comprar alimentos para seus filhos, como qualquer cidadã. O que não dá
para desconsiderar é o fato de a mesma viver num espaço geográfico de risco, ocupado pelos
pretos e pobres.
Notícia
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to 5
De acordo com os policiais militares, havia naquele momento troca de tiros entre PMs e traficantes. A família nega. “Ela tinha medo de sair de casa quando havia tiroteios. Temia uma bala perdida. Nunca sairia se houvesse troca de tiros”, disse Silva. Durante a incursão, os policiais encontraram a mulher caída no chão, baleada, segundo a Polícia Militar. Os subtenentes Adir Machado e Rodney Archanjo e o sargento Alex Sandro Alves socorreram Cláudia e a colocaram dentro do porta-malas.
O enunciador-jornalista mais uma vez dá voz para a polícia que apresenta sua versão
para a morte de Cláudia, eles responsabilizaram os traficantes da comunidade pela troca de
tiros com policiais, no entanto, a família afirma que não havia confronto, pois do contrário ela
não sairia de casa. Assim, estamos diante de duas versões para a morte de Cláudia. No
entanto, não é possível desconsiderar a ação, no mínimo desumana, dos policiais, ao colocá-la
no porta-malas.
O que é possível afirmar diante dessa enunciação é que os moradores das
comunidades do Rio estão reféns, pois podem ser assassinados pelo Estado representado
pela polícia e pela ausência ou omissão do mesmo.
Fica difícil nomear “os traficantes”, no entanto, os três policiais que colocaram a vítima
no porta-malas da viatura têm nome e já foram identificados.
O enunciador faz referência ao vídeo produzido pelo cinegrafista amador, que foi
divulgado por um jornal que não deixa dúvidas sobre a realidade dos fatos. Não fosse o
mesmo, talvez a família de Cláudia jamais soubesse o que realmente aconteceu com ela.
Notícia
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to 6
No caminho para o hospital, um cinegrafista amador flagrou o porta-malas aberto e Cláudia presa ao veículo por partes de sua roupa. As imagens foram divulgadas ontem pelo jornal “Extra”. Por 20 segundos, o vídeo mostra a mulher batendo contra a traseira do veículo e contra o asfalto. O carro, em alta velocidade, faz duas ultrapassagens até parar num sinal de trânsito. Os policiais desceram, colocaram a mulher para dentro e fecharam o porta-malas, seguindo para o hospital. “No hospital, perguntei se ela havia rolado de algum lugar. A perna estava em carne viva”, contou Júlio César Ferreira, irmão de Cláudia.
Notícia
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to 7
“Trataram ela como um bicho. Nem o pior traficante do mundo deveria ser tratado assim”, disse Silva, o marido.
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O enunciador-jornalista dá voz para o esposo de Cláudia, que faz um desabafo e
qualifica a ação dos policiais de desumana, na frase “ela foi tratada como um bicho”. Como
bem disse Silva, nenhum ser humano deve ser tratado da forma como trataram Cláudia, nós
reiteramos sua posição.
Notícia
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Em nota, a Polícia Militar informou que a atitude dos policiais “não condiz com o processo de formação empregados nos Centros de Ensino da corporação”. De acordo com a PM, “o procedimento adequado é o socorro da vítima no banco traseiro da viatura”. Segundo a nota, “no entendimento dos policiais da ocorrência, havia dificuldades de atendimento para uma ambulância devido ao confronto com traficantes (...), o que os levou socorrer Cláudia”. A PM não permitiu que os policiais falassem sobre o assunto.
A Polícia Militar, ao fazer uso da voz em forma de documento oficial, confirma que os
policiais agiram em desacordo com o treinamento recebido.
Ao impedir que os policiais se pronunciem sobre o caso, a corporação assume a
responsabilidade pelo erro. Ao mesmo tempo em que a instituição afirma que os policiais
agiram contrariando os procedimentos da corporação, protege os mesmos.
Notícia
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Moradores jogaram rojões em PMs durante protesto Pelo segundo dia consecutivo, moradores da favela da Congonha, onde vivia a auxiliar de serviços gerais Cláudia Ferreira, fecharam a av. Edgar Romero em protesto. A via é uma das principais de Madureira, zona norte do Rio. A partir das 14h logo após o enterro de Cláudia, um grupo de cerca de cem pessoas se concentraram na ruaLeopoldino de Oliveira, transversal da avenida Edgar Romero. Perto da esquina das duas ruas eles queimaram pedaços de madeira, móveis, pneus, sacos cheios de lixo e outros objetos. Uma nuvem negra de fumaça tomou conta da área. Algumas pessoas cobriam a cabeça e o nariz com pedaços de pano para se proteger da fumaça.
A enunciação nos informa sobre os protestos dos moradores da comunidade onde
Cláudia vivia contra a ação da polícia que provocou sua morte. Entendemos que esse seja um
posicionamento de pessoas que correm os mesmos riscos de serem mortos como sua vizinha
e que estão denunciando a situação de abandono do poder público pela qual estão expostos.
Notícia
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Para evitar que carros fossem atingidos, os cerca de 40 policiais militares que acompanhavam o ato desviavam o trânsito.
A enunciação apresenta a grande preocupação da polícia em proteger os “carros”,
visto que a ação contava com um grande efetivo de policiais, quarenta.
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Notícia
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1 Os manifestantes fizeram, então, um abraço coletivo e rezaram um Pai Nosso em
homenagem a Cláudia. Logo em seguida começaram a chamar os policiais de “assassinos”. Alguns manifestantes chegaram a lançar fogos de artifício em direção aos PMs. Os policiais não reagiram. A via só foi liberada por volta das 18h. Foi a terceira manifestação desde a morte de Cláudia.
Depois de informar que os protestos causaram transtorno na região, o enunciador-
-jornalista dá voz aos moradores da favela, evidenciando a solidariedade na ação de rezar em
intenção da memória de Cláudia.Entendemos que a oração seja um gesto que demonstra
compaixão.
Notícia
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Fogo em ônibus No domingo, pouco depois de ela ter sido arrastada pendurada no porta-malas do carro dos policiais que a levaram para o hospital, os moradores fecharam a mesma avenida. Mais tarde, em protesto mais violento incendiaram dois ônibus.
O enunciador-jornalista mais uma vez dá voz aos vizinhos de Cláudia, moradores das
proximidades da comunidade, através de outro protesto que incendiou ônibus na região.
Infelizmente, casos semelhantes aos de Cláudia são muito comuns no Rio. Na
realidade, essas balas não são perdidas, elas têm destino certo, atingem os pobres e negros,
moradores das comunidades. Não se tem notícias de balas perdidas nos bairros nobres da
zona sul da cidade, matando seus moradores.
Em São Paulo, casos como o de Cláudia Ferreira eram comum, em janeiro de 2013,o
Secretário de Segurança Pública emitiu uma resolução que proíbe policiais militares
desocorrervítimas decorrentes de crimes resultantes de confronto com a polícia, para evitar
alteração na cena do crime e prejudicar as investigações, a orientação é para que o
atendimento seja feito por equipe de socorro com profissional habilitado do Serviço Médico de
Urgência – SAMU (Folha de S. Paulo, 8 de janeiro de 2013).
Notícia 8:
Dois assassinatos, no mesmo dia, cometidos por militares foram noticiados, por meio
da veiculação pela Folha de S. Paulo. A tragédia a seguir apresentada ocorreu na capital
paulista e teve como desfecho o assassinato, pela polícia, da vítima desequestro. O outro caso
se trata do assassinato do dançarino DG, numa comunidade do Rio de Janeiro, essa última
notícia será apresentada na sequência.
Tomamos conhecimento do fato em seminário realizado em São Paulo contra o
extermínio da juventude negra, no dia 17 de agosto de 2014, no Sindicato dos Trabalhadores
em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo, organizado por grupos do
movimento social negro. De acordo com os descritores de busca adotados nessa pesquisa não
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seria possível identidicar esse assassinato como um caso de uma pessoa negra conduzida à
condição de “suspeita” visto que o enunciador-jornalista não faz referência ao pertencimento
identitário da vítima nem do sequestrador. Segue o relato da notícia:
Refém tem celular confundido com arma e é morto por PMs Ação aconteceu na madrugada de ontem em Cidade Ademar, zona sul de São Paulo; policiais foram presos em flagrante. Policiais militares mataram um homem que era refém por um criminoso ontem de madrugada em Cidade Ademar, zona sul. Segundo a polícia civil, o gerente de loja Osvaldo José Zaratini, 32, foi abordado pelo assaltante Rafael Lima de Oliveira, 28, que minutos antes havia roubado um Hyundai i30. Perseguido por PMs, abandonou o veículo e atacou Zaratini em uma Saveiro. PMs avistaram o carro do gerente. Ele desceu com o celular em uma das mãos e correu em direção aos PMs que pensaram que ele segurava uma arma e o mataram a tiros. O criminoso ficou ferido e está internado sob escolta. Uma das testemunhas contou à Polícia Civil que Zaratini implorou para que não atirassem nele. Na delegacia, os PMs alegaram que foram recebidos a tiros e pensaram que Zaratini estivesse armado. A polícia Militar informou que os PMs foram presos em flagrante por homicídio e que os fatos serão investigados(Folha de S. Paulo, Cotidiano, 24 de abril de 2014).
Vamos acompanhar a análise da notícia.
Notícia
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Refém tem celular confundido com arma e é morto por PMs Ação aconteceu na madrugada de ontem em Cidade Ademar, zona sul de São Paulo; policiais foram presos em flagrante.
Pelo título apresentado pelo enunciador-jornalista, pode-se entender que o refém foi o
culpado pela sua própria morte, uma vez que confundiu a polícia, no entanto, há uma
contradição quando afirma que os policiais foram presos em flagrante. Podemos entender que
a prisão dos policiais foi uma punição pela adoção de uma conduta inadequada na execução
de suas atividades profissionais tirando a vida de indivíduo quando poderia preservá-la.
Conforme a enunciação, houve uma dificuldade dos policiais em diferenciar o celular
de uma arma.
Notícia
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Policiais militares mataram um homem que era refém por um criminoso ontem de madrugada em Cidade Ademar, zona sul. Segundo a polícia civil, o gerente de loja Osvaldo José Zaratini, 32, foi abordado pelo assaltante Rafael Lima de Oliveira, 28, que minutos antes havia roubado um Hyundai i30. Perseguido por PMs, abandonou o veículo e atacou Zaratini em uma Saveiro.
O enunciador-jornalista nos dá a conhecer que houve um erro da polícia ao matar a
vítima em lugar do criminoso. Ao decodificar a informação, vamos percebendo outros
desdobramentos que parecem não condizer com a justificativa dada para o assassinato do
homem “confundido”. O que teria levado a polícia a cometer esse terrível “engano”, falta de
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preparo ou o fator da corporação agir com base na hegemonia discursiva contribuiu com a
morte de mais um cidadão?
Notícia
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PMs avistaram o carro do gerente. Ele desceu com o celular em uma das mãos e correu em direção aos PMs que pensaram que ele segurava uma arma e o mataram a tiros. O criminoso ficou ferido e está internado sob escolta. Uma das testemunhas contou à Polícia Civil que Zaratini implorou para que não atirassem nele. Na delegacia, os PMs alegaram que foram recebidos a tiros e pensaram que Zaratini estivesse armado. A polícia Militar informou que os PMs foram presos em flagrante por homicídio e que os fatos serão investigados.
O enunciador-jornalista dá voz à polícia, que apresenta sua versão para o assassinato
de Zaratini, a legítima defesa. Deixando de lado a hegemonia discursiva, no mínimo, pode-se
afirmar que houve despreparo dos policiais.
Conforme visto anteriormente, a linguagem está carregada de simbolismos, o
enunciado jornalístico transmite muitas informações nessa comunicação, uma delas está
associada ao fato de a vítima confundir a polícia com um celular em mãos e esse fato justificar
seu assassinato, não havendo, desse modo, culpados. Esse discurso sobre a verdade
encontra ressonância na corporação da Polícia Militar e na mídia que reforça os discursos
limitantes, uma vez que não promove a veiculação de informação ampla e irrestrita.
Na enunciação, não há questionamentos sobre o assassinato de um homem, mas sim
justificativas para a polícia ter assassinado o homem errado. A cena enunciativa apresenta as
vozes polêmicas presentes no discurso, os policiais disseram que confundiram o celular com
uma arma e as vozes dissonantes, a testemunha afirmou que não foi bem assim: “Uma das
testemunhas contou à Polícia Civil que Zaratini implorou para que não atirassem nele”. Nessa
visão, haveria outros motivos para os policiais atirarem em Zaratini? Quais teriam sido os
motivos que levaram os policiais a o “confundirem” com o sequestrador?
Conforme a enunciação existe uma responsabilização do criminoso pela morte do
inocente. Quando se trata de conhecer a mesma história pelo ponto de vista do movimento
social negro, ela é apresentada de outro modo, foca a atenção no fato da vítima ser um negro
e, o sequestrador, branco. Pela visão de mundo ou pelo posicionamento ideológico de cada
grupo, que, como já vimos não é neutra, e tem relação direta com sua forma de ler a vida
social, torna-se possível dialogar com o problema, apresentando visões diferentes sobre o
mesmo tema. O enunciador-jornalista apresenta uma visão dos acontecimentos, no entanto,
como já vimos, há muitas outras possíveis.
O que será que aconteceu com os policiais envolvidos na ação? Que aprendizado a
polícia tira desse erro?
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Notícia 9
Apresentamos a seguir a notícia do assassinato do jovem dançarino Douglas Rafael
da Silva Pereira, conhecido como DG, 26 anos de idade.
O cenário, mais uma vez, é uma comunidade pobre do Rio, infelizmente acostumada a
conviver com o drama do extermínio dos seus jovens negros. Descrição da notícia:
Dançarino morreu com tiro nas costas em favela de Copacabana Morte teve repercussão internacional a 50 dias da Copa; “Meu filho não vai virar um Amarildo”, desabafou a mãe. O dançarino Douglas Pereira, 26, o DG, morreu com um tiro nas costas durante troca de tiros entre policiais e traficantes na favela do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, na Zona Sul do Rio. A informação foi dada ontem pela polícia, que no dia anterior indicava como provável causa da morte a queda dele em um barranco. A morte de DG na noite de segunda resultou em protestos com repercussão internacional. Moradores fecharam ruas de Copacabana, incendiaram pilhas de lixo e apedrejaram prédios perto de locais turísticos, a 50 dias da abertura da Copa. O dançarino era do grupo funk Bonde da Madrugada, que costumava se apresentar no programa “Esquenta”, de Regina Casé, na TV Globo. Segundo a polícia, o tiro atravessou o pulmão do dançarino, causando hemorragia interna, e saiu pelo ombro. Mas ainda não se sabia de onde ele teria partido – o projétil não foi encontrado. “A perfuração por arma de fogo foi fatal”, disse o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame. DG foi morto quando dez policiais da UPP (Unidade e Polícia Pacificadora) do Pavão-Pavãozinho que investigavam uma denúncia anônima encontraram traficantes. Ele estaria na favela para ensaiar com o grupo e visitar a filha de quatro anos. No protesto realizado no dia seguinte em Copacabana, um outro rapaz, Edson da Silva Santos, 27, foi morto com um tiro no rosto – a autoria ainda é desconhecida. Mãe do dançarino, a auxiliar de enfermagem Maria de Fátima da Silva, 56, afirmou ontem ter certeza de que seu filho foi torturado e morto pelos PMs. “Ele tinha um corte na cabeça e no nariz. Estava muito machucado, tinha marcas de botas nas costas.” Maria de Fátima afirmou ter sido informada de que moradores fizeram imagens de PMs usando luvas cirúrgicas e desfazendo a área do crime. “Meu filho não vai virar um Amarildo”, desabafou, referindo-se ao ajudante de pedreiro que desapareceu em 2013, depois de ter sido levado para a UPP da Rocinha durante operação policial. A PM investiga se os policiais da UPP têm participação na morte de DG, mas nega que tenham mexido no corpo do jovem. Segundo Beltrame, ainda não há indícios claros de envolvimento, por isso eles não foram afastados. “Não quero antecipar proteção aos policiais, mas não quero condená-los preliminarmente. Preciso de um indício mínimo”, afirmou. O governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) disse que “aguarda o resultado das investigações para tomar as medidas cabíveis” (Folha de S. Paulo, Cotidiano, 24 de abril de 2014).
A seguir apresentamos nossas análises:
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Notícia
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Dançarino morreu com tiro nas costas em favela de Copacabana Morte teve repercussão internacional a 50 dias da Copa; “Meu filho não vai virar um Amarildo”, desabafou a mãe. O dançarino Douglas Pereira, 26, o DG, morreu com um tiro nas costas durante troca de tiros entre policiais e traficantes na favela do Pavão-Pavãozinho, em Copacabana, na Zona Sul do Rio.
A cena enunciativa nos aponta para mais um assassinato de um jovem em favela do
Rio de Janeiro, cuja repercussão internacional seria inevitável, pelo fato de ter ocorrido próximo
da realização do mundial de futebol no país, agravado pelo fato de a cidade onde o episódio
ocorreu ser uma das sedes dos jogos. O discurso chama a atenção para a repercussão
negativa do assassinato no exterior, o que poderia afastar os turistas e nada diz sobre a alta
vulnerabilidade com a qual convivem os moradores das favelas cariocas.
A mãe do rapaz, ao vivenciar a tragédia, faz referência ao assassinato de Amarildo,
conforme relatado anteriormente, ela teme que os culpados não sejam punidos.
Notícia
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to 2
A informação foi dada ontem pela polícia, que no dia anterior indicava como provável causa da morte a queda dele em um barranco.
Conforme a enunciação jornalística dando voz à polícia, estamos diante de um caso
em que o próprio jovem foi responsável por sua morte, ao pular de um barranco. O caso
anterior foi por confundir a polícia, que pensou que o celular fosse uma arma.
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A morte de DG na noite de segunda resultou em protestos com repercussão internacional. Moradores fecharam ruas de Copacabana, incendiaram pilhas de lixo e apedrejaram prédios perto de locais turísticos, a 50 dias da abertura da Copa.
Mais uma vez, o enunciador destaca a repercussão internacional da morte de DG e a
aproximação do mundial de futebol. Talvez os moradores da comunidade soubessem que o
evento em si daria visibilidade aos protestos, através da mídia, e chamaria a atenção do poder
público para essa problemática. Entendemos que havia uma preocupação das autoridades e
empresários com a imagem que se poderia fazer no exterior sobre a cidade do Rio de Janeiro
e assim afastar os turistas. Quanto ao problema do extermínio da juventude negra, a
enunciação não diz nada.
Notícia
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O dançarino era do grupo funk Bonde da Madrugada, que costumava se apresentar no programa “Esquenta”, de Regina Casé, na TV Globo.
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Aqui o enunciador-jornalista apresenta um traço da identidade do homem
assassinado, parece que o mesmo tinha profissão, inclusive, era conhecido pelo público pelo
fato de se apresentar na televisão, contrariando o discurso hegemônico para aqueles que
vivem ou circulam pelo morro.
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to 5
Segundo a polícia, o tiro atravessou o pulmão do dançarino, causando hemorragia interna, e saiu pelo ombro. Mas ainda não se sabia de onde ele teria partido – o projétil não foi encontrado. “A perfuração por arma de fogo foi fatal”, disse o secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame.
Observamos uma mudança no discurso da polícia, que anteriormente havia informado
que a morte do rapaz havia sido em consequência da queda de um barranco. Provavelmente,
mais um caso em que a responsabilidade recairá sobre “os traficantes”.
Conforme notícia veiculada pela própria Folha, na maioria das favelas do Rio de
Janeiro há milícias compostas por policiais militares, bombeiros, ex-militares e moradores do
local, que encontraram uma forma de ganhar dinheiro explorando serviços e investindo na
eleição de candidatos. De acordo com o relato do enunciador-jornalista é comum o
desaparecimento de pessoas das comunidades cariocas sem que seus corpos sejam
encontrados, como aconteceu com Amarildo, em julho de 2013 (Folha de S. Paulo, 1 de
setembro de 2014).
Notícia
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DG foi morto quando dez policiais da UPP (Unidade e Polícia Pacificadora) do Pavão-Pavãozinho que investigavam uma denúncia anônima encontraram traficantes.Ele estaria na favela para ensaiar com o grupo e visitar a filha de quatro anos.
O enunciador apresenta mais uma vez a versão da polícia para o assassinato de DG,
mas não apresentanenhum dado sobre a referida denúncia, horário ou o conteúdo da mesma.
Conforme a enunciação faz parecer, a morte de Douglas foi uma fatalidade, no entanto, essa
realidade, infelizmente, é rotina nas comunidades do Rio.
Notícia
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No protesto realizado no dia seguinte em Copacabana, um outro rapaz, Edson da Silva Santos, 27, foi morto com um tiro no rosto – a autoria ainda é desconhecida.
Em dois dias seguidos, dois jovens foram assassinados na mesma região,
confirmando o que dissemos anteriormente, ou pelos menos duas mortes se tornaram públicas.
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Esses assassinatos confirmam as estatísticas dos mapas da vulnerabilidade, à qual está
sujeita a população jovem, negra e pobre no Brasil.
Será que a polícia já descobriu a autoria do disparo que matou DG e Edson da Silva
Santos ou serão mais dois crimes sem condenação?
Notícia
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Mãe do dançarino, a auxiliar de enfermagem Maria de Fátima da Silva, 56, afirmou ontem ter certeza de que seu filho foi torturado e morto pelos PMs. “Ele tinha um corte na cabeça e no nariz. Estava muito machucado, tinha marcas de botas nas costas.” Maria de Fátima afirmou ter sido informada de que moradores fizeram imagens de PMs usando luvas cirúrgicas e desfazendo a área do crime. “Meu filho não vai virar um Amarildo”, desabafou, referindo-se ao ajudante de pedreiro que desapareceu em 2013, depois de ter sido levado para a UPP da Rocinha durante operação policial.
O enunciador-jornalista não informa se o rapaz foi socorrido pela polícia, mas pelo que
apreendemos das vozes dissonantes; “moradores fizeram imagens de PMs usando luvas
cirúrgicas e desfazendo a área do crime”, houve alteração na cena do crime, prática já
conhecida pela população, usada pela polícia para dificultar a investigação e prevista pela
Resolução Nº8 de dezembro de 2012, da Secretaria de Direitos da Pessoa Humana, conforme
apresentado anteriormente. Com essa prática podemos entender que a Polícia Militar tem
dificuldade em adotar as regras que regulam sua atuação profissional.
Os discursos contra-hegemônicos possibilitam a apreensão do problema do ponto de
vista da família e da comunidade. A mãe da vítima acusa a polícia de prática de tortura e
execução, tal qual ocorreu com o Amarildo, também em uma favela do Rio de Janeiro.
Identificamos nessa situação um grave problema, uma vez que a pena de morte não é prevista
na lei brasileira.
Notícia
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A PM investiga se os policiais da UPP têm participação na morte de DG, mas nega que tenham mexido no corpo do jovem. Segundo Beltrame, ainda não há indícios claros de envolvimento, por isso eles não foram afastados. “Não quero antecipar proteção aos policiais, mas não quero condená-los preliminarmente. Preciso de um indício mínimo”, afirmou. O governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) disse que “aguarda o resultado das investigações para tomar as medidas cabíveis”.
O enunciador apresenta por último a versão oficial dos detentores do poder de
verdade, que relatam estarem investigando os fatos. Quais serão os limites do Estado usando
suas prerrogativas no combate ao crime dentro do próprio Estado? O Governador do estado
também não se posiciona diante dos fatos.
Com base nas análises das notícias, tendo como referência a teoria apresentada, no
próximo tópico faremos nossas considerações finais.
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Considerações Finais
A pesquisa foi dividida emcinco partes, construída com o propósito de situar o leitor
sobre a problemática das questões raciais que perduram nas relações sociais entre negros e
brancos no Brasil, reproduzida pela polícia e sociedade como um todo e reforçada pelos meios
de comunicação.
Já na introdução, apresentamos a justificativa para a escolha do nosso objeto de
estudo: “Se é negro é suspeito, se é suspeito é negro: uma análise discursiva da produção de
suspeita na Folha de S. Paulo”, cuja eleição se deu a partir do ofício emitido pela Polícia Militar
de Campinas, com ordem para que os policiais focalizassem abordagens prioritárias em
homens pardos e negros, entre 18 e 25 anos de idade, em um bairro nobre da cidade.
Como vimos no decorrer desse estudo, homens nessa faixa etária (18 a 25) são os
alvos preferenciais da polícia, ou seja, são os que mais morrem assassinados, de acordo com
os mapas da violência. Deste modo, podemos aferir que há seletividade na abordagem,
inclusive foi oficializada pela Polícia Militar de Campinas, sendo esse modus operandi praticado
pela polícia do país como um todo.
No primeiro capítulo, abordaram-se questões relacionadas à raça, racismo, mito da
democracia racial e racismo institucional. Na segunda parte, buscou-se entender o
funcionamento do poder judiciário, crimes e punição, racismo e justiça, políticas públicas e
ação afirmativa e o Estatuto da Igualdade Racial. Na terceira parte, introduziram-se questões
referentes à negritude, à identidade e à cultura, de acordo com HALL (1998, 2000, 2003 e
2013), ao poder e ao saber, conforme FOUCAULT (2002, 2004, 2013 e 2013a), além de
questões teóricas sobre linguagem, segundo BAKHTIN (1995, 1997) e análise de discurso, de
acordo com MAINGUENEAU (2004, 2013). Por último, realizou-se a análise de nove notícias
veiculadas pelo jornal Folha de São Paulo, envolvendo a Polícia Militar ou civis (indivíduos), em
casos que entendemos que a pessoa negra foi conduzida à condição de “suspeito” ou de estar
“fora de lugar”.
Como as análises das notícias evidenciaram que enunciador fala em nome do jornal,
para o co-enunciador, pela polícia, pela justiça e pelo grupo hegemônico do qual faz parte,
deste modo, seu discurso é atravessado por muitos discursos. É possível constatar nessa
relação aspectos do ambiente social, cultural e institucional.
Percebeu-se também que, em nome da neutralidade e da imparcialidade, ao noticiar
os fatos, o jornal reafirma seu posicionamento político que está alinhado ao grupo hegemônico,
assim, ele assume o lado do grupo dominante, é a expressão do poder através da linguagem.
Essa posição é observada quando o mesmo não denuncia a violência policial, não apresenta
vozes dissonantes diante dos casos apresentados para ampliar a reflexão.
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Observa-se a necessidade de o jornal adotar um novo paradigma e passar a veicular a
diversidade de vozes em torno da extrema desigualdade entre negros e brancos no Brasil, ao
assumir que essa questão também é de sua responsabilidade, a mídia estará contribuindo
incontestavelmente com a justiça social, tendo em vista que a desumanização da pessoa negra
atrofia as relações sociais, de modo que o negro continua sendo castigado e exterminado, de
maneira concreta e simbólica, fato demonstrado nos últimas publicações de mapas da
violência, enquanto as pessoas brancas estão mais protegidas. Essa invisibilidade é o
resultado da desigualdade que legitima o apartheidsocial com o qual se convive nesse país que
se afirma democrático.
Identificou-se a partir das notícias a heterogeneidade do discurso, ou seja, a forma
como um determinado discurso pessoal incorpora outros discursos, ou a presença da voz do
outro, conforme concebido por Bakhtin, denominado de polifonia, presente no discurso da
imprensa. Falando de outro modo, podemos dizer que o discurso está impregnado de
ideologia.
Em todas as notícias que analisamos, ou o negro estava num ambiente caracterizado
ideologicamente como sendo um espaço de mais probabilidade de reunir o suspeito ou,
quando estava fora desse ambiente, foi levado a essa condições de “fora do lugar”. A criança
na concessionária, o músico no shopping e o refém assassinado “confundido” com criminoso
são alguns dos exemplos.
Foi possível constatar uma limitação do negro no espaço público, ele é interditado nos
espaços geográficos que o pensamento hegemônico elege como sendo prioritário para o grupo
branco e,naqueles”destinados” aos pobres, ele é executado, além do mesmo ser “suspeito” em
ambos os espaços.
É importante ressaltar que as notícias selecionadas no jornal não representam a
realidade dos homicídios da população negra brasileira, pois de acordo com dados dos do
último mapa da violência, mais que quadruplicaram os números de assassinatos no Rio
Grande do Norte, e nos estados da Bahia, Maranhão e Ceará, mais que triplicou, sendo que o
número de homicídios para a população branca caiu. Entretanto, os estados de São Paulo e
Rio de Janeiro, onde ocorreram os casos contemplados nas notícias por nós analisadas, houve
redução, com destaque positivo para o primeiro, segundo (WAISELFISZ, 2014).
A mídia pouco noticia os casos de assassinato de pessoas negras pela polícia e,
quando o faz, não existe a circulação livre da informação. Essa tolerância é observada na
invisibilidade, caracterizada pela desumanização do sofrimento do negro, isso está implícito na
adoção de mecanismos que ignoram a dor das famílias negras que perdem seus filhos na
adolescência, na saúde, quando a equipe de enfermagem e médica prioriza o atendimento à
parturiente branca, em detrimento da negra, aplica mais anestesia em pessoas brancas do que
em negras ou prescreve medicamentos ou solicita exames a umas e não às outras. Com
100
relação ao abuso de drogas, não há estranhamento quando são os negros que estão nas ruas,
entregues ao vício, mas se a pessoa for branca gera comoção em rede nacional. A mídia como
representante da sociedade exerce seu papel na hegemonia discursiva, ao não se considerar a
vulnerabilidade do negro face ao racismo presente nas abordagens policiais, por exemplo, a
mídia legitima essa prática dentro da instituição.
Como podemos ver, a desumanização do indivíduo negro extrapola o campo da
segurança pública, ela está presente em toda a sociedade. É possível observá-la com grande
evidência entre os trabalhadores na área de serviços, uma vez que esses ambientes
possibilitam maior visibilidade. Nessa área, em especial a destinada aos consumidores de alto
poder aquisitivo, há uma desigualdade abissal entre a presença de trabalhadores brancos e
negros. Os negros nesses espaços são apenas os consumidores. Entendemos que a
discriminação da clientela é feita pelo poder de consumo, no entanto, não é aceitável a
discriminação de pessoas negras no quadro de colaboradores.
Observamos o estranhamento da presença de negros nos ambientes “destinados ao
grupo hegemônico” no caso do músico no Shopping Cidade Jardim e da criança na
concessionária da BMW.
A identidade negra vem ao logo do nosso processo histórico violentada de vários
modos, seja pela desumanização do indivíduo e por sua descaracterização. Um exemplo está
no carnaval, no samba e na cultura como um todo. Existe no Brasil uma apropriação pelo
branco de tudo que é criado pelo negro, retirando o elemento negro e fundindo tudo em cultura
nacional, conforme refere ORTIZ (2012).
A alteridade e o respeito às diferentes culturas ficam prejudicadas num sistema social
e político que tem como referencial o branco. Nesse sentido, é fundamental desconstruir essas
ideias a partir do protagonismo dos negros, isso pode acontecer através da produção
cinematográfica, exigência por espaço na televisão e na mídia, produção científica, criação de
espaços de reflexão sobre branquitude ou o que é ser branco no Brasil.
Consideramos essa reflexão importante, como uma forma de compromisso coletivo
com a redução da desigualdade entre brancos e negros, pensando que a violência policial que
atinge as vítimas e suas famílias, além de desumana, interfere na vida social, econômica e
política do país como um todo.
Uma vez que o processo de construção da identidade é contínuo, isso implica que é
possível sair do aprisionamento que está contido no estereótipo a partir da libertação da mente
e da apropriação individual e coletiva dos negros. Tendo como perspectiva que os discursos
construídos para dominação e as estratégias ideológicas podem ser desconstruídos e os
negros podem assumir uma postura de protagonismo, recontar sua própria história.
Desconstruir as narrativas de influências limitantes e de histórias estreitas e dominantes que
constróem visões negativas do povo negro como pessoas “desempoderadas”, frágeis e
101
inadequadas, para reescrever novas e ricas histórias de esperança, como forma de
emancipação pessoal e social.
Identificamos que o termo “mal-entendido” é usado constantemente para desqualificar
a vítima que se sente agredida na sua identidade racial. Esse problema foi observado na fala
do advogado, convidado pela Folha de S. Paulo, para dar seu veredicto no caso da acusação
de racismo pelo ofício emitido pela polícia de Campinas, acusado de racismo por um policial
federal e no e-mail enviado pela concessionária para a família da criança expulsa da loja.
Diante dessa evidência, sugerimos uma mudança na lei que qualifica o racismo ou a
injúria racial para o crime de “mal-entendido”, talvez assim seja mais fácil punir os racistas, uma
vez que exista a confirmação da prática.
Como sabemos, boa parte da corporação da polícia é composta de negros nos seus
quadros, mesmo assim, na corporação como um todo, impera os discursos hegemônicos. Esse
fenômeno demonstra o quanto as práticas discursivas e os signos ideológicos produzidos no
meio social e reproduzidos na vida social criam obstáculos para os negros brasileiros
assumirem a identidade cultural do seu grupo de pertencimento, uma vez que a linguagem
reforça a ideologia do grupo que está no poder.
Entendemos que o mais importante seja a concretização de mais igualdade e menos
privilégio, mas também consideramos importante que os negros brasileiros ressignifiquem sua
identidade e reconheçam as características positivas dos seus ancestrais, tais como espírito de
luta, persistência, valentia, nobreza, superação, entre tantas outras e passe a ter uma
identificação positiva com sua cultura, do contrário, permanecerão conectados aos discursos
conservadores que resiste à aceitação de um país onde todos tenham as mesmas
oportunidades. Os negros precisam de representação em todas as esferas sociais, trabalho,
justiça e, principalmente, na política, para concretizar as mudanças necessárias ao acesso em
condições de igualdade de todos, pois, como vimos no decorrer do trabalho, isso ainda está
distante.
A infraestrutura que dá a sensação de segurança é desviada para as áreas mais ricas
das cidades, enquanto os espaços públicos das favelas ficam abandonados. Ao persistir essa
lógica de investir em espaços públicos privilegiados e excluir as favelas, essa desigualdade irá
gerar mais violência, mais exclusão.
No shopping, o negro é interditado, na favela também. Os saberes transmitidos pela
ideologia dominante através da mídia mostram que em ambos os espaços há coerção, visto
que são relacionados por uma formação ideológica. FANON (2008) observa a reprodução do
estereótipo do negro como o “fora do lugar” que o aprisiona, limitando suas possibilidades.
É importante que as cidades sejam pensadas dentro de uma lógica mais humanista,
sem haver restrição do espaço físico, e que as relações de classe repensadas, pois essa
102
separação acarreta em uma divisão da população, uma vez que os espaços privilegiados têm
donos e esses donos não os querem compartilhar.
Parte do movimento social negro denomina o forte crescimento no número de
homicídios negros de genocídio por entender que, além da polícia que mata, existe um modus
operandi na sociedade brasileira, que coloca o negro numa situação de desvantagem, o que
contribui com seu desaparecimento. Esses grupos já existiam muito antes de o Estado
brasileiro reconhecer a presença do racismo no nosso meio social.
Alguns deles criticam o governo federal e o Programa Juventude Viva, que foi
apresentado ao longo desse estudo, ao afirmar que o mesmo não corresponde às
necessidades da comunidade negra e é equivocado, uma vez que o programa não especifica a
população negra. Defende-se que o Programa deve referir-se aos jovens negros, que são
diariamente mortos. O movimento “Reaja”, com forte atuação na Bahia, denuncia a polícia nos
casos de assassinato da juventude negra e apóia as famílias dos jovens assassinados, de
acordo com BORGES (2014).
Para se ter ideia da seletividade na escolha dos que morrem em confrontos com a
polícia ou vítimas de “balas perdidas”, “em nove dias, Rio tem 16 atingidos por bala perdida”
(Folha de S. Paulo, 27/01/2015). Dessas vítimas, quatro morreram. A vítima mais recente foi
uma jovem de 21 anos de idade, baleada num confronto entre policiais de uma Unidade de
Polícia Pacificadora (UPP) e traficantes na Rocinha, de acordo com o jornal. Entre as vítimas,
existem crianças e adolescentes.
Diante das recorrentes mortes em consequência de troca de tiros entre a polícia e
traficantes no Rio de Janeiro, acreditamos que a corporação precisa urgentemente rever seu
posicionamento no combate ao crime organizado, pois nessa guerra a população pobre e preta
moradora das comunidades é a maior vítima. Os dados apontados por essa pesquisa
demonstraram que as balas não são perdidas, suas vítimas são bem conhecidas. Perdidas
seriam se elas estivessem vitimizando a população moradora na zona sul da cidade.
Como ressignificar esses lugares, uma vez que as construções políticas e culturais do
poder e da dominação estão enraizadas? Essa construção social precisa ser desconstruída na
prática discursiva e extralinguística.
A necessidade de se criar leis de ação afirmativa se faz necessária, pelo fato de o
grupo hegemônico representado pela mídia, os militares e os juízes na prática discursiva serem
legitimados para exercer o poder sobre o outro grupo, composto pelos “diferentes”.
O processo de subjetivação gera transformação, entretanto, ele sozinho não dá conta
de preservar as garantias individuais e coletivas do povo negro, necessitando de leis efetivas
que garantam os direitos, uma vez que eles não são iguais para todos.
Nesse sentido, o Estatuto da Igualdade Racial precisa ser colocado em prática, faz-se
necessário a criação de estratégias de pressão e intervenção nesses espaços sociais,
103
entretanto, isso não se faz sem a adesão da justiça. Acreditamos que é chegado o momento de
o judiciário fazer uso de suas prerrogativas para reduzir essas desigualdades, do contrário,
esse privilégio no uso do poder continuará beneficiando o grupo hegemônico.
O Programa de Pós-graduação em Relações Etnicorraciais (PPRER) do CEFET-RJ,
ao qual essa pesquisa está veiculada, é uma ação afirmativa que está produzindo “saberes”
sobre as relações raciais no Brasil, no sentido formar profissionais para levar reflexão crítica
sobre essas e outras temáticas, com o objetivo de sair do discurso que justifica a não adesão à
Lei 10.639 no Ensino Fundamental e Médio, cujo argumento é a falta de preparo dos
professores. Promover debates a respeito do Estatuto da Igualdade Racial, entre outras
temáticas relevantes. Acreditamos que as universidades brasileiras precisam urgentemente
incluir em seus currículos essa matéria, que já faz parte das diretrizes curriculares de base da
educação nacional na formação dos professores.
Foi possível constatar com nossa pesquisa que o Estado não é o único órgão detentor
do poder. Ele está presente no jornal e na mídia em geral, na forma de “biopoderes”,
reproduzido pelos indivíduos nos diversos campos do conhecimento.
Para concluir, não podemos deixar de afirmar a importância da união de todas as
pessoas para dar visibilidadeà dor que enfrentam as famílias negras,causada pela morte
violenta de seus entes queridos e no combate às ideias totalizantes criadas para proteger o
grupo hegemônico.
104
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107
ANEXO I – ORDEM DA PM DETERMINA REVISTA EM PESSOAS “DA COR PARDA
E NEGRA” EM BAIRRO NOBRE DE CAMPINAS (SP)
108
A assessoria de imprensa da PM informou que existe a carta dos moradores, que chegou para o capitão. O órgão informou
ainda que a carta pedia providências, pois vários roubos e furtos estavam sendo realizados. Essa carta descrevia o perfil
dos criminosos e as ações, informou a assessoria de imprensa da instituição, acrescentando que "não existiu cunho
racista".
A PM informou ainda que o capitão Beneducci é, ele mesmo, pardo, e que ele "ficou triste" com a repercussão do caso. Ele
foi procurado para comentar no 8º Batalhão, mas não foi encontrado.
Racismo
Para o coordenador do Cepir (Coordenaria Especial de Promoção da Igualdade Racial), Benedito José Paulino, a indicação
de procura de negros e pardos é claramente racista. Ele afirmou não acreditar que recomendação semelhante fosse dada
caso os suspeitos fossem brancos.
"Isso é racismo. Se ele está atrás de qualquer negro, sem apontar um em específico, isso é racismo. Se fosse um negro
identificado, não teria problema. O jovem negro é que o mais sofre nas mãos da polícia", afirmou.
A SSP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo) informou que somente a PM pode comentar o caso, e
por isso, não iria se pronunciar.
Análise
O advogado Dijalma Lacerda, especialista em direito criminalista e ex-presidente da OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), em Campinas, afirmou que não vê racismo na atitude do capitão, e que ela precisa ser analisada com cuidado.
"Quando a causa é nobre, é maior, o capitão acaba assumindo o risco. Eu não conheço o capitão, e nem o caso por um
todo, mas, em tese, se o mote for encontrar as pessoas que estão assaltando a residência naquele bairro, não há racismo",
afirmou o advogado.
Para o jurista, o racismo depende de um contexto. "Digamos que o suspeito não tivesse uma perna, o foco seria em
pessoas sem uma perna. Se ele estivesse atrás de pessoas nipônicas, uma pessoa da Ásia acharia que é preconceito. O
que precisa ser verificado é se quem deu a ordem teve a intenção discriminatória", disse.
Djalma chegou a ser condenado a uma pena de dois anos e um mês de reclusão pelos crimes de injúria e calúnia
motivados por ato de racismo, por supostamente ter chamado o delegado da Polícia Federal de Foz do Iguaçu Adriano
Santana de "negrão", em 1999, mas a condenação foi revertida, em instância definitiva, no ano de 2007.
Ele afirmou, na ocasião, que o caso foi um grande mal entendido.
109
ANEXO II – CASAL DIZ QUE FILHO FOI VÍTIMA DE RACISMO EM LOJA DA BMW,
NO RIO
Casal diz que filho foi vítima de racismo em loja da BMW, no Rio JULIANA DAL PIVA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DO RIO
24/01/2013 04h00
Uma visita a concessionária BMW Autocraft na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio, há 12 dias, terminou em
campanha contra o racismo.
O consultor Ronald Munk, 55, e a mulher Priscilla Celeste, 53, afirmam que seu filho mais novo, de sete anos,
foi vítima de racismo no local. O menino, filho adotivo do casal, é negro.
Representantes da concessionária, em e-mail enviado à família, se desculparam e classificaram o episódio como
um "mal-entendido".
Priscilla relata que ela e o marido conversavam com o gerente de vendas da concessionária sobre a compra de
um novo carro quando o filho, que estava distante dos pais, se aproximou.
Segundo ela, o gerente mandou o menino sair da loja e, voltando-se para o casal, justificou a atitude, dizendo
que "eles pedem dinheiro, incomodam os clientes".
Munk disse então ao gerente que o menino era seu filho e a família deixou a loja.
O casal encaminhou uma queixa ao grupo BMW, que notificou a concessionária.
Eles decidiram criar também uma página no Facebook, "Preconceito racial não é mal-entendido. É crime", para
contar a história. Até ontem à noite a página já tinha mais de 29 mil seguidores.
Priscilla disse que o caso não foi registrado na polícia para preservar o filho, mas a que família ainda estuda a
medida.
Contatada, a concessionária não havia se pronunciado até a conclusão desta edição.
110
ANEXO III – POLÍCIA APURA SE SANGUE EM CARRO É DE DESAPARECIDO DA
ROCINHA
111
ANEXO IV – SHOPPING TERÁ QUE INDENIZAR MÚSICO NEGRO
CONSTRANGIDO POR SEGURANÇAS
112
113
ANEXO V – POLÍCIA BUSCA GRUPO QUE PRENDEU LADRÃO EM POSTE
114
ANEXO VI – `EU A PERDOO`, AFIRMA ATOR RECONHECIDO POR ENGANO POR
VÍTIMA
115
116
ANEXO VII – VÍTIMA É COLOCADA EM PORTA-MALAS POR PMs, CAI E É ARRASTADA
POR 250 m
117
118
VIII – REFÉM TEM CELULAR CONFUNDIDO COM ARMA E É MORTO POR PMs
119
ANEXO IX – DANÇARINO MORREU COM TIRO NAS COSTAS EM FAVELA DE
COPACABANA
120
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