Pa u l o C o e l h o
Maktub
Para Nhá Chica, Patrícia Casé,
Edinho e Alcino Leite Neto
Ó Maria, concebida sem pecado,
rogai por nós, que recorremos a Vós. Amém.
“Graças te dou, ó Pai, porque ocultaste estas coisas
dos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos.”
Lucas 10:21
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Antes de começar
Maktub não é um livro de conselhos – mas uma troca de expe-
riências.
Grande parte é composta de ensinamentos de meu mestre, no
decorrer de onze longos anos de convivência. Outros textos são
relatos de amigos, ou pessoas com quem cruzei uma vez – mas
me deixaram uma mensagem inesquecível. Finalmente, existem
livros que li e as histórias que – como diz o jesuíta Anthony Mello
– pertencem à herança espiritual da raça humana.
Maktub nasceu de um telefonema de Alcino Leite Neto, então
diretor do caderno “Ilustrada” na Folha de S. Paulo. Eu estava nos
Estados Unidos, e recebi a proposta sem saber exatamente o que
ia escrever. Mas o desafio era estimulante, e resolvi ir em frente;
viver é correr riscos.
Ao ver o trabalho que dava, quase desisti. Além do mais, como
precisava viajar para a promoção de meus livros no exterior, a co-
luna diária virou um tormento. Entretanto, os sinais me diziam que
continuasse: uma carta de leitor chegava, um amigo fazia um co-
mentário, alguém me mostrava os recortes guardados na carteira.
Lentamente, fui aprendendo a ser objetivo e direto no texto.
Fui obrigado a fazer releituras que sempre adiei, e o prazer deste
reen contro foi imenso.
Comecei a anotar com mais cuidado as palavras de meu mes-
tre. Enfim, passei a olhar tudo que acontecia à minha volta como
um motivo para escrever Maktub – e isto me enriqueceu de tal
maneira que hoje sou grato por esta tarefa diária.
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Selecionei, neste volume, textos publicados na Folha de S. Paulo
entre 10 de junho de 1993 e 11 de junho de 1994. As colunas sobre
o guerreiro da luz não fazem parte deste livro: foram publicadas
em O manual do guerreiro da luz.
Ao prefaciar um de seus livros de histórias, Anthony Mello co-
menta: “Minha tarefa foi apenas a de tecelão; não tenho o mérito
do algodão e da linha.”
Nem eu, tampouco.
Paulo Coelho
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O viajante está sentado no meio do mato, olhando uma casa
humilde à sua frente. Já esteve ali antes, com alguns amigos, e na
época tudo que conseguira notar foi a semelhança entre o estilo da
casa e o de um arquiteto galego – que viveu há muitos anos, e jamais
colocara os pés naquele local.
A casa fica perto de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, e é toda cons-
truída com cacos de vidro. Seu dono, Gabriel, sonhou em 1899 com
um anjo que lhe dizia: “Constrói uma casa de cacos.” Gabriel come-
çou a colecionar ladrilhos quebrados, pratos, bibelôs e jarras par-
tidas. “Tudo caquinho transformado em beleza”, dizia Gabriel de
seu trabalho. Durante os primeiros quarenta anos, os moradores
locais afirmavam que era louco. Depois, alguns turistas descobriram
a casa, e começaram a trazer os amigos; Gabriel virou gênio. Mas a
novidade passou – e Gabriel voltou ao anonimato. Mesmo assim,
continuou construindo; aos 93 anos de idade, colocou o último caco
de vidro. E morreu.
O viajante acende um cigarro; fuma em silêncio. Hoje não está
pensando na semelhança entre a casa de Gabriel e a arquitetura de
A. Gaudí. Olha os cacos, reflete sobre sua própria existência. Tam-
bém ela – como a de qualquer pessoa – é feita de pedaços de tudo
que se passou. Mas, em determinado momento, estes fragmentos
começam a tomar forma.
E o viajante relembra um pouco do seu passado, vendo os pa-
péis em seu colo. Ali estão pedaços de sua vida; situações que viveu,
12
trechos de livros que sempre recorda, ensinamentos do seu mestre,
histórias dos amigos, fábulas que algum dia lhe contaram. Ali estão
reflexões sobre o seu tempo, e sobre os sonhos de sua geração.
Da mesma maneira que um homem sonhou com um anjo e
construiu a casa que está diante de seus olhos, ele tenta ordenar
estes papéis – para compreender sua própria construção espiritual.
Lembra-se de que, quando criança, leu um livro de Malba Tahan
chamado Maktub! e pensa:
“Será que eu devia fazer o mesmo?”
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Diz o mestre:
Quando pressentimos que chegou a hora de mudar, começamos –
inconscientemente – a repassar um tape mostrando nossas derrotas
até aquele momento.
É claro que, à medida que ficamos mais velhos, nossa cota de
momentos difíceis é maior. Mas, ao mesmo tempo, a experiência
nos deu meios de superar estas derrotas, e encontrar o caminho que
permite seguir adiante. É preciso também colocar esta fita em nosso
videocassete mental.
Se só assistimos ao tape da derrota, vamos ficar paralisados. Se
só assistimos ao tape da experiência, vamos terminar nos julgando
mais sábios do que realmente somos.
Precisamos das duas fitas.
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Imagine uma lagarta. Passa grande parte de sua vida no chão,
olhando os pássaros, indignada com seu destino e com sua forma.
“Sou a mais desprezível das criaturas”, pensa. “Feia, repulsiva, con-
denada a rastejar pela terra.”
Um dia, entretanto, a Natureza pede que faça um casulo. A la-
garta se assusta – jamais fizera um casulo antes. Pensa que está
construindo seu túmulo, e prepara-se para morrer. Embora indig-
nada com a vida que levou até então, reclama novamente com Deus.
“Quando finalmente me acostumei, o Senhor me tira o pouco
que tenho.”
Desesperada, tranca-se no casulo e aguarda o fim.
Alguns dias depois, vê-se transformada numa linda borboleta.
Pode passear pelos céus, e ser admirada pelos homens. Surpreende-se
com o sentido da vida e com os desígnios de Deus.
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Um estranho procurou o abade Pastor no mosteiro de Sceta.
– Quero melhorar minha vida – disse ele. – Mas não consigo
deixar de pensar em coisas pecaminosas.
O abade Pastor reparou que ventava lá fora, e pediu ao estranho:
– Aqui está muito quente. Será que o senhor podia pegar um
pouco de vento lá fora, e trazê-lo para refrescar a sala?
– Isto é impossível – disse o estranho.
– Da mesma maneira, é impossível deixar de pensar em coisas
que ofendem a Deus – respondeu o abade. – Mas se você souber
dizer não às tentações, elas não vão lhe causar nenhum mal.
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Diz o mestre:
Se existe alguma decisão a ser tomada, é melhor ir adiante e
aguentar as consequências. Você não vai saber de antemão quais
serão estas consequências.
Todas as artes divinatórias foram feitas para aconselhar o homem,
jamais para prever o futuro. São excelentes conselheiras e péssimas
profetizas.
Diz a oração que Jesus nos ensinou: “Seja feita a Vossa Vontade.”
Quando esta Vontade mostra um problema, traz junto a solução.
Se as artes divinatórias conseguissem ver o futuro, todo adivinho
seria rico, casado e feliz.
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O discípulo se aproximou do mestre:
– Durante anos busquei a iluminação – disse. – Sinto que estou
perto. Quero saber qual o próximo passo.
– E como você se sustenta? – pergunta o mestre.
– Ainda não aprendi a me sustentar; meu pai e minha mãe me
ajudam. Entretanto, isto são apenas detalhes.
– O próximo passo é olhar o sol por meio minuto – disse o mestre.
O discípulo obedeceu.
Quando acabou, o mestre pediu que descrevesse o campo à sua volta.
– Não consigo vê-lo, o brilho do sol ofuscou meus olhos – respon-
deu o discípulo.
– Um homem que apenas busca a luz, e deixa suas responsabilida-
des para os outros, termina sem encontrar a iluminação. Um homem
que mantém os olhos fixos no sol termina cego – comentou o mestre.
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Um homem caminhava por um vale dos Pireneus quando encon-
trou um velho pastor. Dividiu com ele seu alimento, e ficaram um
longo tempo conversando sobre a vida.
O homem dizia que, se acreditasse em Deus, teria que acreditar
também que não era livre, já que Deus governaria cada passo.
O pastor então o levou até um desfiladeiro, onde se podia escutar
– com toda nitidez – o eco de qualquer ruído.
– A vida são estas paredes, e o destino é o grito de cada um – disse
o pastor. – Aquilo que fizermos será levado até o coração Dele, e nos
será devolvido da mesma forma.
“Deus costuma agir como o eco de nossas ações.”
19
Maktub quer dizer está escrito. Para os árabes, “está escrito” não
é a melhor tradução – porque, embora tudo já esteja escrito, Deus é
misericordioso, e só gastou sua caneta e sua tinta para nos ajudar.
O viajante está em Nova York. Acordou tarde para um encontro,
e, quando desce, descobre que seu carro foi rebocado pela polícia.
Chega depois da hora, o almoço se prolonga mais do que o ne-
cessário, ele pensa na multa – irá custar uma fortuna. De repente,
lembra-se da nota de um dólar que encontrou no dia anterior. Es-
tabelece uma relação louca entre aquela nota e o que aconteceu de
manhã. “Quem sabe eu peguei a nota antes que a pessoa certa a
encontrasse? Quem sabe tirei aquele dólar do caminho de alguém
que estava precisando? Quem sabe interferi no que estava escrito?”
Precisava livrar-se dela – e neste momento vê um mendigo sen-
tado no chão. Entrega rapidamente o dólar.
– Um momento – diz o mendigo. – Sou um poeta, quero pagar
com uma poesia.
– A mais curta, porque estou com pressa – responde o viajante.
O mendigo diz:
– Se você continua vivo, é porque ainda não chegou aonde devia.
20
O discípulo disse ao mestre:
– Tenho passado grande parte do meu dia pensando coisas que
não devia pensar, desejando coisas que não devia desejar, fazendo
planos que não devia fazer.
O mestre convidou o discípulo para um passeio na floresta perto
de sua casa. No caminho, apontou uma planta e perguntou se o
discípulo sabia o que era.
– Beladona – disse o discípulo. – Pode matar quem comer suas
folhas.
– Mas não pode matar quem simplesmente a contempla – disse
o mestre. – Da mesma maneira, os desejos negativos não podem
causar qualquer mal se você não se deixar seduzir por eles.
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Entre a França e a Espanha existe uma cadeia de montanhas.
Numa destas montanhas existe uma aldeia chamada Argelès. Nesta
aldeia existe uma ladeira que leva até o vale.
Todas as tardes, um velho sobe e desce esta ladeira.
Quando o viajante foi a Argelès pela primeira vez, não reparou
nada. Da segunda vez, viu que um homem sempre cruzava com ele.
E, cada vez que ia àquela aldeia, reparava mais detalhes – a roupa,
a boina, a bengala, os óculos. Hoje em dia, sempre que pensa na
aldeia, pensa também no velhinho – embora ele não saiba disso.
Uma única vez o viajante conversou com ele.
Querendo brincar, perguntou:
– Será que Deus vive nestas lindas montanhas à nossa volta?
– Deus vive – disse o velhinho – nos lugares onde O deixam entrar.
22
O mestre se encontrou com os discípulos certa noite, e pediu que
acendessem uma fogueira, para que pudessem conversar.
– O caminho espiritual é como o fogo que arde diante de nós –
disse. – Um homem que deseja acendê-lo tem que se conformar com a
fumaça desagradável, que torna a respiração difícil e arranca lágrimas
do rosto.
Assim é a reconquista da fé.
– Entretanto, uma vez o fogo aceso, a fumaça desaparece, e as
chamas iluminam tudo ao redor – nos dando calor e calma.
– E se alguém acender o fogo para nós? – perguntou um dos dis-
cípulos. – E se alguém nos ajudar a evitar a fumaça?
– Se alguém fizer isso, é um falso mestre. Que pode levar o fogo
para onde tiver vontade, ou apagá-lo na hora que quiser. E, como
não ensinou ninguém a acendê-lo, é capaz de deixar todo mundo
na escuridão.
23
Uma amiga pegou seus três filhos e resolveu viver numa pequena
fazenda no interior do Canadá.
Queria dedicar-se apenas à contemplação espiritual.
Em menos de um ano apaixonou-se, casou de novo, estudou as
técnicas de meditação dos santos, lutou por uma escola para os fi-
lhos, fez amigos, fez inimigos, descuidou do tratamento dentário,
teve um abscesso, pegou carona debaixo de tempestades de neve,
aprendeu a consertar o carro, degelar os encanamentos, esticar o
dinheiro da pensão no final do mês, viver do seguro-desemprego,
dormir sem calefação, rir sem motivo, chorar de desespero, construir
uma capela, fazer reparos na casa, pintar paredes, dar cursos sobre
contemplação espiritual.
– E terminei entendendo que a vida em oração não significa isola-
mento – diz. – O amor de Deus é tão grande que precisa ser dividido.
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– Quando você começar seu caminho, vai encontrar uma porta
com uma frase escrita – diz o mestre. – Volte e me conte qual é esta
frase.
O discípulo se entrega de corpo e alma à sua busca. Chega um dia
em que vê a porta, e volta até o mestre.
– Estava escrito no começo do caminho: isto não é possível – diz.
– Onde estava escrito isso, num muro ou numa porta? – pergunta
o mestre.
– Numa porta – responde o discípulo.
– Pois coloque a mão na maçaneta e abra.
O discípulo obedece. Como a frase está pintada na porta, também
vai se movendo com ela. Com a porta totalmente aberta, ele já não
consegue mais enxergar a frase – e segue adiante.
25
Diz o mestre:
Feche os olhos. Não precisa sequer fechar os olhos. Basta imaginar
a seguinte cena: um bando de pássaros voando. Ok, agora me diga
quantos pássaros você vê: cinco? onze? dezessete?
Seja qual for a resposta – e dificilmente alguém sabe dizer o nú-
mero exato –, alguma coisa fica bem clara nesta pequena experiên-
cia. Você pode imaginar um bando de pássaros, mas o número de
aves fugiu ao seu controle. Entretanto, a cena era clara, definida,
exata. Em algum lugar existe a resposta para esta pergunta.
Quem definiu quantos pássaros deviam aparecer na cena? Você
não foi.
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Um homem resolveu visitar um ermitão que vivia perto do mos-
teiro de Sceta. Depois de caminhar sem rumo pelo deserto, terminou
encontrando o monge.
– Preciso saber qual o primeiro passo que se deve dar no caminho
espiritual – disse.
O ermitão levou-o até um pequeno poço e pediu que ele olhasse
seu reflexo na água. O homem obedeceu – mas o ermitão começou
a jogar pedrinhas na água, fazendo com que a superfície se movesse.
– Não poderei ver direito o meu rosto enquanto o senhor jogar
pedras – disse o homem.
– Assim como é impossível para um homem ver seu rosto em
águas turbulentas, também é impossível buscar Deus se a mente es-
tiver ansiosa com a busca – disse o monge. – Este é o primeiro passo.
27
Na época em que o viajante praticava meditação zen-budista,
havia um momento em que o mestre ia até o canto do dojo (local
onde os discípulos se reuniam) e voltava com uma varinha de bambu.
Certos alunos – que não haviam conseguido concentrar-se direito
– levantavam a mão: o mestre se aproximava e dava três golpes em
cada ombro.
No primeiro dia, isto pareceu medieval e absurdo.
Mais tarde o viajante entendeu que muitas vezes é necessário co-
locar no plano físico a dor espiritual, para ver o mal que ela causa.
No caminho de Santiago, ele aprendeu um exercício que consistia
em cravar a unha do indicador no polegar quando pensasse em
algo prejudicial.
As terríveis consequências dos pensamentos negativos são per-
cebidas muito tarde. Mas, fazendo com que esses pensamentos se
manifestem no plano físico através da dor, entendemos o mal que
nos causam.
E terminamos por evitá-los.
28
Um paciente de 32 anos procurou o terapeuta Richard Crowley:
– Não consigo parar de chupar o dedo – disse.
– Não ligue para isso – respondeu Crowley. – Mas chupe um dedo
diferente a cada dia da semana.
A partir deste momento o paciente – toda vez que levava a mão à
boca – era instintivamente obrigado a escolher o dedo que devia ser
objeto de sua atenção naquele dia. Antes que a semana terminasse,
estava curado.
– Quando o mal torna-se um hábito, fica difícil lidar com ele –
conta Richard Crowley. – Mas, quando ele passa a nos exigir atitu-
des novas, decisões, escolhas, então temos consciência de que não vale
tanto esforço.
29
Na antiga Roma, um grupo de feiticeiras conhecidas como Sibilas
escreveu nove livros contando o futuro de Roma. Levaram os nove
livros para Tibério.
– Quanto custa? – perguntou o imperador de Roma.
– Cem moedas de ouro – responderam as Sibilas.
Indignado, Tibério expulsou-as. As Sibilas queimaram três livros
e voltaram:
– Continuam custando cem moedas – disseram.
Tibério riu e não aceitou: pagar por seis livros o mesmo que pa-
garia por nove?
As Sibilas queimaram mais três livros e voltaram com os três
restantes:
– Continuam custando cem moedas de ouro – disseram.
Tibério, mordido pela curiosidade, terminou por pagar – mas só
conseguiu ler parte do futuro de seu Império.
Diz o mestre:
Faz parte da arte de viver não barganhar com a oportunidade.
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