Cludia Raquel Cravo da Silva
Magia Ertica e Arte Potica no Idlio 2 de Tecrito
Faculdade de Letras Universidade de Coimbra
2008
Cludia Raquel Cravo da Silva
Magia Ertica e Arte Potica no Idlio 2 de Tecrito
Dissertao de Doutoramento na rea de Estudos Clssicos, Especialidade em Literatura Grega, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro, Professor Catedrtico da Universidade de Valladolid, e da Prof. Doutora Maria do Cu Zambujo Fialho, Professora Catedrtica da Universidade de Coimbra.
Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra 2008
L idylle II est le chef-doeuvre de Thocrite.
Jajoute: un des chefs-duvre de la posie grecque.
Je dirais volontiers: un chef-duvre de la littrature damour universelle.
LEGRAND (Bucoliques Grecs, I, p. 94)
I
PREFCIO
Durante os nossos anos de licenciatura e mestrado deixmo-nos absorver pelas
grandes obras que a literatura grega das pocas pr-clssica e clssica nos legou e,
consequentemente, nunca tivemos oportunidade de contactar com os autores do perodo
denominado helenstico. Porque sentamos necessidade de colmatar esta grave lacuna,
resolvemos dedicar algum tempo ao estudo dos maiores cultores da literatura alexandrina.
Devemos confessar que a sensibilidade requintada que emana das suas obras de imediato
nos cativou. Foi com entusiasmo que descobrimos a expresso de novas emoes e um
lirismo sincero e pungente, animado por uma forte necessidade de perfeio formal. Pela
mesma altura, um feliz acaso fez-nos chegar s mos uma comunicao1 da autoria de
Pfeiffer, intitulada The Future of Studies in the Field of Hellenistic Poetry, que apelava ao
estudo da poesia helenstica, ao mesmo tempo que chamava a ateno para um sem
nmero de questes que, nessa rea, continuavam por explorar.
Impunha-se, entretanto, elegermos um tema para a nossa dissertao de
doutoramento e, embora j no tivssemos qualquer dvida a respeito do perodo literrio
em que queramos trabalhar, no conseguamos decidir-nos por um assunto especfico. Foi
ento que por intermdio do Prof. Doutor Emilio Surez de la Torre e da Prof. Doutora
Maria do Cu Fialho travmos conhecimento com o Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro,
da Universidade de Valladolid, que nos incentivou a estudar Tecrito e nos sugeriu um
trabalho muito concreto: comentar, em pormenor, um dos idlios do poeta, na esteira de
1 Publicada in JHS 75, 69-73.
II
vrias dissertaes de doutoramento que, em anos transactos, haviam vindo a lume2,
sobretudo sob a orientao do Prof. Doutor Giuseppe Giangrande. A ideia agradou-nos
desde o primeiro momento e, em conjunto com o Prof. Doutor Manuel Garca Teijeiro,
acabmos por assentar que a base do nosso estudo seria um dos mimos mais conhecidos
de Tecrito, ou seja, o seu Idlio 2.
Uma vez que a nossa investigao iria incidir sobre o principal documento literrio
referente magia ertica antiga, decidimos, por sugesto da Prof. Doutora Maria Helena da
Rocha Pereira, incluir no nosso plano de trabalho um primeiro captulo que apresentasse um
historial da magia ertica na Grcia antiga. Mas a bibliografia cientfica sobre as prticas
deste tipo de magia na Antiguidade revelou-se muito vasta e, como consequncia, durante
um largo perodo de tempo (muito superior ao previsto!), dedicmo-nos quase
exclusivamente ao estudo desta matria que era, para ns, to atractiva quanto
desconhecida. O mundo secreto revelado pelos inmeros papiros mgicos, pelas
defixiones e pelas recmdescobertas voodoo dolls3 fascinou-nos completamente.
Fascinou-nos, mais ainda, perceber que a magia de teor ertico ter sido uma realidade
muito comum na vida dos antigos Atenienses e que, com toda a probabilidade, ter sido
largamente praticada antes, durante e depois dos dias do chamado milagre grego.
Ao tomarmos conscincia de que seria difcil concentrarmos, num s captulo, toda a
histria da magia ertica na Antiguidade grega, optmos por remodelar o plano inicialmente
2 White (1979a), Chryssafis (1981), Hatzikosta (1982), Rossi (1989), Sens (1997). Vide ainda os trabalhos de Bhler (1960) e de Vaughn (1975), que tiveram como base duas composies de Mosco. 3 Preferimos, neste caso concreto, manter a designao inglesa, j que todas as tentativas de traduo para portugus soaram estranhas aos nossos ouvidos. Visto que o tema da magia grega de teor ertico praticamente ignorado pelos estudiosos portugueses, uma das grandes dificuldades que sentimos no incio do nosso trabalho adveio precisamente da necessidade de encontrarmos formas de exprimir, na nossa lngua, a terminologia especfica que lhe anda associada. S para registarmos dois exemplos, so da nossa inteira responsabilidade as tradues de por encantamento de atraco ou de por placa de maldio.
III
previsto e, com a ajuda dos Professores Doutores Maria Helena da Rocha Pereira e Manuel
Garca Teijeiro, fixmos um novo plano de trabalho, do qual deriva agora, com alguns
pequenos ajustes, o presente estudo.
O resultado final da nossa investigao vai aparecer estruturado em duas grandes
partes. A primeira, que se encontra dividida em trs captulos, tem como principal objectivo
realar a importncia especial do Idlio 2 de Tecrito no contexto da representao literria
da magia ertica. Assim, num captulo inicial, procuraremos coligir os indcios da prtica
desta classe de magia, dispersos pelos mais variados gneros literrios. Resolvemos limitar
o nosso trabalho anlise dos testemunhos anteriores a Tecrito, j que, de outra forma, a
tarefa tornar-se-ia muito morosa e ultrapassaria largamente os nossos propsitos. Importa
aqui realar a nossa constante preocupao em evidenciar os pontos de contacto entre os
textos literrios e os encantamentos erticos que encontramos nos documentos mgicos
reais. O segundo captulo desta primeira parte tentar clarificar a problemtica questo da
dependncia de Tecrito relativamente a Sfron, ilustre mimgrafo siracusano que ter
vivido no sc. V a.C.. Este aspecto, que se encontrava documentado nos esclios antigos
ao Idlio 2, volta a ser repetidamente salientado aps a descoberta, em 1933, do primeiro
fragmento substancial de Sfron, proveniente de um papiro de Oxirrinco. No terceiro (e
ltimo) captulo desta primeira parte, centraremos a nossa ateno na figura de Simeta,
numa tentativa de provarmos a singularidade desta criao de Tecrito no contexto da
magia ertica literria.
A segunda parte do nosso trabalho ser consagrada ao estudo pormenorizado do
Idlio 2, sob os mais diversos prismas. Comearemos por ter em conta a transmisso do
texto, assunto que levanta sempre muitas dvidas e que se revela ainda mais complicado
quando se trata de um autor como Tecrito, que apresenta inmeras particularidades
IV
dialectais. Avanaremos depois com a nossa interpretao da questo insolvel que
consiste em atribuir uma data ao Idlio A Feiticeira. No captulo seguinte, dedicado ao local
da aco, procuraremos enumerar as razes que nos levam a defender que a principal
cidade da ilha de Cs a mais provvel candidata a cenrio do poema em causa. Impe-se,
depois, citar o texto grego. Seguindo o conselho da Prof. Doutora Maria Helena da Rocha
Pereira, utilizaremos, como base, o texto da edio de Gow (21952, I: 16-29)4 que vem
apoiado num aparato crtico muito completo, ponderado e coerente e justificaremos, no
comentrio, todas as leituras discordantes adoptadas5. Aps apresentarmos uma sugesto
de traduo do poema, passaremos ento parte fulcral do nosso trabalho, ou seja, ao
comentrio alargado da composio teocritiana que nos detm.
O exerccio filolgico de comentrio de textos abarca tantos aspectos da vida, cultura
e civilizao, que sempre, obviamente, um trabalho inconcluso. Conscientes desta
realidade, procuraremos sobretudo clarificar e desenvolver assuntos (das mais diversas
reas) que, da parte da crtica, no tenham recebido a ateno que julgamos merecerem.
No raras vezes daremos conta do nosso embarao perante determinada questo, mas
tentaremos sempre registar as vrias hipteses de resoluo do problema em causa e
sustentar a nossa preferncia por aquela que se nos afigurar mais razovel.
Dentre as inmeras dificuldades com que nos iremos deparar, parece-nos
conveniente realar as que lngua dizem respeito. Que o Idlio 2 um dos poemas dricos
de Tecrito, disso no restam dvidas6, j que o drico7 o dialecto predominante. No
4 Embora tenhamos sempre presente o texto da mais recente edio de Gallavotti (31993), que j teve em conta as ltimas descobertas papirolgicas de Tecrito. 5 Cf. infra, p. 97, n. 1. 6 Muitos dos testemunhos que o conservam chegam mesmo a acrescentar ao ttulo a nota . 7 Sem nos esquecermos, obviamente, de que o conceito de drico muito abrangente, na medida em que cobre muitos sub-dialectos falados de este a oeste do mundo grego.
V
entanto, como por de mais sabido, o nosso poeta nunca pretendeu escrever num dialecto
puro, mas antes fez uso de um drico literrio, que se caracteriza pela presena de
elementos muito heterogneos, recolhidos em fontes to diversas quanto seriam os
dialectos regionais do seu tempo e a tradio literria anterior. Prpria da liberdade criativa
de Tecrito, esta nova linguagem, resultante da mistura de vrios ingredientes e adornada
pelo emprego do hexmetro, , evidentemente, artificial. Nestas circunstncias, muito
compreensvel que o texto do Idlio 2 tenha chegado at ns pejado de incorreces e
inconsistncias, que remontam j a tempos muito antigos e que s em parte um fillogo
actual poder emendar. que, se por vezes a mtrica permite detectar facilmente o erro,
tambm acontece com muita frequncia as formas alternativas serem metricamente
equivalentes. Ao longo do nosso comentrio, iremos deixando exemplos dos vrios tipos de
dificuldades que assolam qualquer editor teocritiano.
No obstante a complexidade dos problemas lingusticos com que nos havemos de
deparar e a conscincia do elevado grau de incerteza que envolve algumas das leituras
adoptadas, interessar-nos- principalmente demonstrar como as novas descobertas
papirolgicas de Tecrito nos permitem hoje estar em melhores condies de julgar o drico
do poeta, que at h bem pouco tempo era apenas avaliado pelos dados da tradio
manuscrita. O recente trabalho de Molinos Tejada (1990), que tem j em conta todos os
novos papiros, constitui um grande avano no sentido da recuperao do texto teocritiano
original. Desta forma, os resultados da sua investigao estaro, quase sempre, na base da
anlise dos fenmenos lingusticos que formos considerando merecedores de destaque e,
consequentemente, sero da maior relevncia para a fixao do texto em algumas
passagens concretas.
VI
Ainda no que concerne a aspectos lingusticos, julgamos importante vincar que a
influncia homrica particularmente evidente no Idlio 2 e que, por conseguinte, no ser
difcil ilustrar a artificialidade da lngua de Tecrito a partir da composio potica que nos
detm. Na realidade, os epicismos so aqui to frequentes que no podemos referi-los
sempre que aparecem, pois tal procedimento resultaria infrutfero e tedioso. Assim sendo,
destacaremos apenas alguns dos rasgos homricos presentes no texto, alertando, desde j,
para a existncia de vrios outros que, por serem muito comuns ou muito citados pelos
estudiosos do poema, no iro merecer ateno da nossa parte. A propsito dos genitivos
em 8, por exemplo, comentaremos somente o caso em que, por comodidade mtrica, o
poeta faz combinar formas em e (v.162). Adoptaremos o mesmo procedimento
relativamente ao dativo do plural em , que destacaremos apenas quando vem
acompanhado por uma forma em , numa sequncia de adjectivo + substantivo (v.107).
Entre os homerismos que no sero mencionados em nenhum ponto concreto do nosso
comentrio, encontram-se, por exemplo, as muitas formas verbais de pretrito sem aumento
(vv.68, 71, 82, 86, 107, 108, 113, 140, 153 e 154) ou os dativos do plural em (vv.36,
120, 125 e 153).
Feitas estas ressalvas a propsito da lngua usada por Tecrito no seu Idlio 2, h
pelo menos um outro aspecto que aconselha algumas breves consideraes da nossa parte.
Porque notrio que o comentrio por ns sugerido dar especial ateno cena de magia,
que ocupa os vv.1-63 do poema, no podemos deixar de destacar o trabalho que realizmos
com papiros mgicos e defixiones, que a se tornar particularmente evidente. Os inmeros
paralelismos assinalados entre o ritual protagonizado por Simeta e os documentos de magia
reais permitem-nos depreender que o poeta estaria bem informado acerca dos
8 Que o Idlio 2 atesta sobremaneira (vv.8, 66, 73, 78, 80, 97, 120, 134, 136, 148, 162 e 166). Vide, a propsito, infra, p. 258, n. 304.
VII
encantamentos de magia ertica que se praticavam na sua poca. Por outro lado, como
teremos oportunidade de registar, tambm so muitas as diferenas que separam os versos
do poeta helenstico das receitas mgicas reais. Este facto deixa implcito que Tecrito no
teria a mnima inteno de produzir uma fonte de informao rigorosa sobre operaes
mgicas efectivas. Em suma, Tecrito ter feito uso do motivo da magia ertica em funo
dos seus intentos artsticos, que passavam por criar um poema portentoso, um mimo
trabalhado com arte e cuidado extremos. E este seu sublime objectivo ter sido, em nossa
opinio, plenamente alcanado.
VIII
IX
AGRADECIMENTOS
Ao longo da realizao do presente estudo, pudemos usufruir do apoio de algumas
instituies e pessoas individuais, a quem queremos agora render a nossa singela
homenagem.
Os agradecimentos mais calorosos devemo-los, sem dvida, ao Prof. Doutor Manuel
Garca Teijeiro, que colocou ao nosso inteiro dispor o seu imensurvel saber a respeito dos
mais variados assuntos que mereceram tratamento da nossa parte. Agradecemos-lhe ainda
a gentileza com que, no decurso desta investigao, nos foi enviando material bibliogrfico,
ao qual, de outra forma, dificilmente teramos acesso. E nunca poderemos esquecer as suas
generosas palavras de incentivo em alturas de maior desalento. Muchas gracias por todo!
Credora do nosso sincero apreo, pela leitura que fez de grande parte deste trabalho
e pelas oportunas sugestes que nos deu, tambm a Doutora Mara Teresa Molinos
Tejada.
No podemos deixar de testemunhar o nosso sentido agradecimento Prof. Doutora
Maria Helena da Rocha Pereira, que nos orientou na primeira etapa desta tarefa e que
sempre se mostrou disponvel para acolher as inmeras dvidas com que nos debatemos
no incio dos nossos trabalhos.
Um reconhecimento especial merece, da nossa parte, a Prof. Doutora Maria do Cu
Fialho, desde logo pelo seu grande empenho em fazer-nos deslocar Universidade de
Valladolid, onde tivemos o privilgio de conhecer especialistas na rea em que
X
pretendamos trabalhar; e depois, por ter prontamente assentido em substituir a Prof.
Doutora Maria Helena da Rocha Pereira na orientao da presente dissertao.
O apoio financeiro da Fundao Calouste Gulbenkian, sob a forma de duas bolsas
de curta durao, e do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de
Coimbra facilitou enormemente a nossa tarefa de pesquisa bibliogrfica no estrangeiro,
nomeadamente em Valladolid e em Paris. A estas duas entidades, deixamos a expresso da
nossa gratido.
Aos professores e funcionrios do Instituto de Estudos Clssicos da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, temos de agradecer a ateno que sempre nos
dispensaram e as amveis palavras de encorajamento que nos dirigiram ao longo destes
anos.
Cumpre-nos ainda realar o apoio daqueles que, no crculo familiar, aceitaram
incondicionalmente os sacrifcios que acompanham este tipo de trabalho. Uma meno
especial devemo-la nossa me, pela constante preocupao, pela ajuda efectiva e pelo
imprescindvel suporte emocional.
As nossas ltimas palavras de gratido so dirigidas ao Manel, pois s a sua
pacincia infinda e a sua intrpida colaborao (em particular, no campo da informtica)
tornaram suportvel a recta final desta empreitada.
XI
OBSERVAES PRELIMINARES
Entendemos que estamos perante magia ertica sempre que h lugar a prticas mgicas relacionadas com situaes que envolvam amor sensual, nas suas mltiplas formas: paixo, cime, desejo desenfreado, etc.
Ao longo do nosso estudo, usamos, como sinnimas, as designaes magia ertica e magia amorosa.
Servimo-nos das seguintes siglas para os corpora bsicos dos textos mgicos
gregos antigos: DT = Audollent, A. 1904. Defixionum Tabellae. Paris. DTA = Wnsch, R. 1897. Defixionum Tabellae Atticae. Inscriptiones Graecae 3.3.
Berlin. PGM = Preisendanz, K. 1973-1974. Papyri Graecae Magicae. 2 vols. Stuttgart. SM = Daniel, R. W. & Maltomini, F. 1990-1992. Supplementum Magicum.
Papyrologica Coloniensia 16.1 and 2. Opladen. 2 vols. Ocorrem tambm as seguintes siglas e formas de citao simplificadas: IG = Inscriptiones Graecae (Berlin 1902-). SEG = Supplementum Epigraphicum Graecum (Leiden 1923-). LIMC = Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (Zrich /Mnchen 1981-).
Buck = Buck, C. D. 1955. The Greek Dialects. Chicago. Goodwin = Goodwin, W. W. 1912. Syntax of Greek Moods and Tenses. London.
Khner-Gerth = Khner, R. & Gerth, B. 1898-1904. Ausfhrliche Grammatik der griechischen Sprache. 2 vols. Hannover.
Lejeune = Lejeune, M. 1972. Phontique historique du mycnien et du grec ancien. Paris. Powell = Powell, J. U. 1925. Collectanea Alexandrina. Oxford. = Scholia
XII
Na citao de autores e obras da Antiguidade grega, seguimos, quase sempre, as abreviaturas de Liddell & Scott. 1996. A Greek-English Lexicon. Oxford (obra citada pela sigla LSJ); para a Antiguidade latina, as de Glare, P. G. W. 1982. Oxford Latin Dictionary. Oxford. Excepes a esta regra, por razes de clareza: Hinos de Calmaco (H.); Histria Natural de Plnio-o-Antigo (HN); Luciano (Luc.); Lucano (Lucano). Os esclios ao texto teocritiano so frequentemente citados pelos manuscritos medievais que os conservam. As publicaes peridicas so identificadas pelas siglas de LAnne Philologique. Ao longo da exposio, as edies, tradues, lxicos, comentrios e estudos citados na bibliografia final so apenas referidos pelo apelido do autor e ano da publicao.
1
PARTE I ______________________________________________________
O Idlio 2 de Tecrito no contexto da magia ertica literria
2
3
I.1) O tema da magia ertica na literatura grega anterior a Tecrito
No obstante a magia, e em particular a magia ertica, tenha sido amplamente
praticada na Grcia antiga, a literatura grega no lhe dedicou muitas linhas, talvez porque a
descrio alargada de um ritual de encantamento fosse considerada pouco consentnea com
a respeitabilidade do seu carcter.
Ainda assim, no deixamos de encontrar indcios da prtica da magia de teor ertico,
dispersos pelos mais variados gneros literrios. A epopeia, a lrica, o drama, a comdia e
at mesmo a prosa (nas suas diferentes manifestaes), encontram, aqui e ali, pretexto para
tocarem neste tema, de forma mais ou menos profunda. So essas referncias literrias
que muitas vezes no passam de aluses vagas e indirectas magia ertica que nos
propomos reunir nas pginas que se seguem.
Convm salientar que o nosso trabalho no ser mais do que uma tentativa de
compendiar, de modo muito sucinto, a histria da magia ertica literria anterior a Tecrito.
Sem quaisquer pretenses de esgotar a questo, o nosso principal objectivo to-somente
vincar a ideia de que, embora o interesse pelas prticas mgicas ligadas aos assuntos do
corao tenha sido uma constante ao longo da literatura grega antiga e variadssimos autores
tenham aludido a este tema de acordo com o estilo que lhes era prprio, nenhum deles nos
ofereceu uma descrio to pormenorizada de um encantamento de cariz amoroso como
aquela que encontramos no Idlio 2 de Tecrito.
realmente incontestvel a especial importncia deste poema no contexto da
representao literria da magia ertica. Podemos mesmo afirmar que nenhum texto da
4
literatura grega antiga mais explcito nesta matria do que os seus versos 1-62, onde
vemos aparecer, entrelaados, os mais variados ritos comummente utilizados ao servio da
magia de pendor ertico.
I.1.1) Homero A primeira aluso literria magia de cariz ertico encontramo-la no Canto 14 da
Ilada, quando Hera chama Afrodite e lhe faz um pedido capcioso (vv.198-201; 205-210):
,
.
,
,
()
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, .
,
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pois desta forma, com o argumento de que pretende resolver os conflitos amorosos
h muito existentes entre Oceano e Ttis, que Hera tenta convencer Afrodite a emprestar-lhe
a sua cinta bordada. A deusa do amor predispe-se de imediato a ceder-lhe o
que trazia ao peito (vv.214-221):
,
.
5
, ,
, .
,
, ,
,
, .
Na posse da cinta mgica, Hera consegue ento seduzir Zeus e com a ajuda do
deus Sono adormec-lo, de modo a desviar as suas atenes do campo de batalha, o que
ir permitir a Posdon socorrer os Aqueus.
Desconhecemos a natureza exacta do de Afrodite1 e o modo preciso
como este adorno deveria ser usado para atingir os resultados pretendidos. O texto no deixa
perceber claramente nenhum destes aspectos, nem mesmo quais seriam os efeitos concretos
decorrentes do seu uso. Podemos imaginar que o tornasse a mulher irresistvel
aos olhos do homem, mas na verdade isso nunca explicitamente referido. Omitindo o muito
que se tem especulado volta de todas estas questes2, o nico facto que o texto homrico
torna evidente e nos importa aqui realar apenas o de Afrodite ser detentora de um
objecto com um grande poder de seduo, que funciona como o primeiro amuleto de magia
ertica da literatura grega3.
1 Nas esttuas gregas conservadas, a deusa Afrodite por vezes representada com um adereo que, pelo que se pode perceber, consiste em duas correias usadas na parte superior do corpo, a cruzar no peito. Vide LIMC, Aphrodite 779 e 1083. Vrios estudiosos entendem que esto perante a reproduo do homrico. Ainda recentemente, Ogden (2002: 262) defendeu esta mesma ideia, que sublinhe-se , apesar de atractiva, no passa de uma mera conjectura. 2 Faraone (1990: 220-222) resumiu as diferentes sugestes aventadas pelos helenistas que, desde o sc. XIX, vm tentando clarificar os muitos aspectos obscuros que rodeiam o homrico. Vide tambm Tupet (1976: 109). 3 O mesmo Faraone (1990: 222-229) chama a ateno para o facto de a histria relatada no Canto 14 da Ilada parecer reflectir actividades reais do mundo antigo. O estudioso cita vrios textos (alguns deles de pocas muito
6
Este episdio da Ilada, conhecido como o dolo de Zeus, no constitui a nica aluso
homrica magia de teor amoroso. Na Odisseia vamos encontrar vrias outras passagens
que parecem sugerir o mesmo tema. Comecemos por referir o episdio de Circe, onde, pela
primeira vez, a literatura grega nos oferece a descrio de uma feiticeira em aco4.
A histria por de mais conhecida: depois das aventuras passadas no pas dos
Lestrgones, Ulisses e os companheiros aportaram ilha de Eeia, onde vivia Circe, uma bela
e temvel deusa, filha do Sol. Com a ajuda de Hermes, que lhe oferece uma planta mgica
(), Ulisses consegue escapar ao feitio que lhe estava destinado e fazer com que Circe
solte os outros marinheiros, que entretanto haviam sido por ela transmutados em porcos.
Ameaada pela espada do heri, a feiticeira jura que no voltar a causar-lhe qualquer outro
sofrimento. Desde ento, Ulisses e os companheiros passam a gozar dos maiores privilgios
no palcio de Circe, com comida e bebida em abundncia, e por l se deixam ficar durante
um ano.
Ao longo deste episdio, que ocupa os vv.135-574 do Canto 10 da Odisseia, vrios
poderes sobrenaturais so explicitamente atribudos a Circe: ela consegue transformar
homens em porcos5, fazendo uso de uma poo e de uma varinha mgicas (vv.230-240); ela
recuadas) que testemunham a existncia de uma longa tradio de prticas mgicas que envolviam o uso de apetrechos muito semelhantes cinta de Afrodite. Vide ainda infra, pp. 42-43, um epigrama da Antologia Palatina que deixa perceber que, no sc. III a.C., as mulheres gregas fariam uso de adereos similares ao homrico. 4 Convm no esquecer que, se para ns incontestvel que Circe seja uma feiticeira, no texto de Homero nunca se evidencia este aspecto, j que, como sabido, a magia era uma categoria de pensamento que no existia no esprito dos primeiros autores gregos. A respeito da formao e da natureza do conceito grego de magia, vide o recente estudo de Dickie (2001: 18-46, esp. 23, sobre o facto de a literatura grega s muito tardiamente ter assumido Circe como uma feiticeira). 5 As razes que levam Circe a transformar em porcos (e, provavelmente, tambm noutros animais. Cf. Apollod. Epit. 7.14-18) os homens que a visitam so uma incgnita. Luck (1985: 10) levanta, a este propsito, algumas hipteses dignas de marca: It is not clear why she [Circe] does this: perhaps because she hates men; perhaps because she represents a more ancient matriarchal society; perhaps because she is just a semidivine power left
7
restitui-os novamente condio humana, mediante a frico de um unguento (vv.388-396);
ao devolver aos marinheiros a forma que tinham antes, Circe mostra tambm a capacidade
de rejuvenesc-los6 e de torn-los mais belos e mais altos (vv.395-396); ela consegue
predizer o futuro, ao mesmo tempo que revela que entendida em necromancia, quando d
a Ulisses instrues precisas relativas viagem que ele ter de fazer ao Hades para
consultar a alma do adivinho Tirsias (vv.490-540); ela tem ainda a capacidade de se tornar
invisvel (vv.569-574). Para alm de todos estes poderes que declaradamente lhe so
atribudos, o texto de Homero deixa implcito que Circe detentora de uma outra
competncia, que provavelmente escapar ao comum dos leitores, mas que nos importa
aqui, em particular, realar. Quando Ulisses deixa a sua nau e se dirige para o palcio da
maga, interceptado por Hermes que, na figura de um jovem, lhe revela o dolo de que os
companheiros foram alvo, lhe d a conhecer a planta mgica que o h-de proteger dos
encantamentos de Circe e lhe diz como proceder perante as vrias situaes com que ir
deparar-se em casa da mesma. De acordo com Hermes, Ulisses deve tomar algumas
precaues antes de se deitar com a bela Circe (vv.299-301):
,
.
over from an older culture, a relatively harmless power if one keeps ones distance, but very dangerous if one comes within her reach. 6 interessante notar como o rejuvenescimento pela magia uma capacidade que, na tradio, vai aparecer muito associada sobrinha de Circe, Medeia. O relato mais completo dos rejuvenescimentos mgicos protagonizados por Medeia foi-nos deixado por Ovdio (Met. 7.159-351).
8
A feiticeira deve jurar que no infligir nenhum outro sofrimento a Ulisses, uma vez
que, como acabmos de escutar, ela tem poder para lhe tirar a coragem e a virilidade7
quando ele estiver nu na sua cama. Subentende-se, por estas palavras de Hermes8, que
Circe versada em magia ertica pois, caso contrrio, no teria a capacidade de roubar a
Ulisses o seu vigor msculo. Este aspecto afigura-se-nos muito verosmil, j que, como
vimos, Circe conhece todos os segredos de uma verdadeira feiticeira, e o que seria de
estranhar era que ela no possusse conhecimentos de magia ertica.
A associao de Circe a este tipo de magia vai aparecer na literatura grega, muitos
sculos mais tarde, pela mo de Plutarco. Em Moralia 139a, o autor comea por afirmar que
a pesca com veneno () um mtodo rpido e fcil para apanhar o peixe, mas que o
torna no comestvel e sem valor. O mesmo se passa, em seu entender, quando as mulheres
fazem uso de poes e feitios amorosos para apanharem os seus homens:
.
, ,
.
O intuito do moralista , obviamente, dissuadir as mulheres suas contemporneas de
usarem filtros amorosos para controlarem os maridos. Interessante notar como, ao
mencionar o episdio de Circe neste contexto, Plutarco deixa implcito que a poo mgica
usada pela maga homrica pode ser interpretada como uma forma lograda de encantamento
amoroso.
7 Traduo de Loureno, F. (2003). 8 Repetidas depois por Ulisses, no v.341.
9
J antes havamos conhecido uma outra figura feminina sobrenatural que, tal como
Circe, possua uma voz harmoniosa, lindas tranas e uma grande habilidade para trabalhar
no tear. Tambm ela vivia isolada no meio da natureza selvagem e tambm ela retivera
Ulisses na sua ilha. Referimo-nos, obviamente, a Calipso.
Apesar dos muitos pontos de contacto que encontramos nos retratos das duas figuras
femininas e da sensao que nos fica de que tambm a bela ninfa detentora de poderes
mgicos9, no podemos afirmar que esta ltima seja uma feiticeira. Calipso ser aquilo a que
Bernand (1991: 167) chamou une magicienne en puissance. Ela pode prometer a Ulisses a
imortalidade e a juventude eterna (5.135-136) e ela sabe praticar a magia do tempo, j que,
quando decide deixar partir o heri, faz soprar um vento suave, favorvel navegao (5.167
e 268). Alm disso, Calipso aparece, ainda que de um modo muito discreto, ligada magia
amorosa. Perdidamente apaixonada por Ulisses, ela dirige-lhe palavras doces e insinuantes,
na tentativa de faz-lo esquecer taca e a sua querida Penlope. curioso notar que, quando
pretende explicar a aco que as palavras da ninfa tm sobre o homem amado, o poeta se
serve do verbo (1.57), exactamente o mesmo verbo (tpico do vocabulrio da magia)
que Hermes vai usar quando explica a Ulisses que Circe no ser capaz de enfeiti-lo,
estando ele na posse da planta mgica (): (10.291).
E porque no ousarmos ir mais longe nesta associao de Calipso magia de teor
amoroso e tentarmos encontrar, nesse contexto, uma explicao para a deteno de Ulisses
na ilha de Oggia? No v.16 do Canto 5, Atena diz que o heri est retido na ilha de Calipso
porque tem falta de naus equipadas de remos mas, no final, vemos que, na realidade, ele no
precisa de uma grande embarcao para sair de Oggia. No seguimento deste raciocnio,
9 Este sentimento partilhado por vrios estudiosos, como Eitrem (1941: 41-42) e Tupet (1976: 117). Opinio contrria tem-na, por exemplo, Hogan (1976: 190), para quem a magia se encontra completamente arredada do episdio de Calipso.
10
nada nos impede de conjecturar que Ulisses pode ter sido vtima de um encantamento ertico
que o prendeu durante muito tempo a Calipso, embora ainda amasse Penlope.
No podemos deixar a Odisseia sem antes nos determos no breve episdio das
Sereias (12.39-54, 158-200), figuras enigmticas, de aspecto e natureza mal definidos10, que
atraem os homens com a sua voz melodiosa e fatalmente os conduzem morte. Entendemos
que, tambm elas so, de certa forma, feiticeiras. O poder da sua voz imperioso para as
vtimas desprevenidas, tal como as drogas mgicas de Circe o eram. De realar que o poeta
volta a fazer uso de (vv.40 e 44), verbo que utilizara em relao a Circe e Calipso11 e
que est claramente associado magia. E no podemos tambm esquecer-nos de que o
tema central da histria das duas Sereias , indubitavelmente, o canto mgico. O episdio
abre com este tema (vv.39-40) e ele que vai dominar toda a passagem, do princpio ao fim
(vv.41, 44, 49, 52-53, 158, 160, 183, 185, 187, 192-193 e 198).
Num passo de Xenofonte (Mem. 2.6.10-12), o episdio das Sereias aparece
associado magia de teor ertico. Scrates e Critobulo encetam uma interessante discusso
sobre sortilgios amorosos e o primeiro apresenta o canto das Sereias homricas como um
exemplo de um encantamento ertico:
,
, , .
, , ;
, ,
, , .
10 As diferentes posturas da crtica relativamente a estas (e outras) questes foram resumidas por Gresseth (1970), num estudo inteiramente dedicado s Sereias de Homero. Vide ainda, a este propsito, Lambin (1995: 236-242). 11 Vide supra, p. 9.
11
, , , ,
, ;
12.
Este passo reveste-se, para ns, de grande importncia, na medida em que deixa
perceber as crenas existentes em torno da magia ertica na poca de Scrates, ao mesmo
tempo que reflecte o modo como o famoso canto das Sereias era interpretado pelos Gregos
ou, pelo menos, por alguns deles que viveram vrios sculos depois de Homero: como
um encantamento mgico que elas usavam para atrair e prender os homens contra a sua
vontade, ou seja, como um feitio amoroso.
I.1.2) Hesodo De uma obra perdida de Hesodo, o Catlogo das Mulheres, chegou-nos um
fragmento (76 Merkelbach-West) que preserva parte da histria de Atalanta, a herona virgem
que fizera o voto de apenas desposar o homem que a vencesse na corrida. Este feito era
praticamente impossvel porque a jovem tinha uma agilidade extraordinria, mas Hipmenes,
um dos seus pretendentes, conseguiu tal proeza com a ajuda das mas que Afrodite lhe
havia oferecido e que ele foi lanando, uma a uma, na direco de Atalanta, ao longo da
prova de velocidade. Infelizmente, o fragmento de Hesodo est muito lacunoso e, talvez por
essa razo, ficamos sem perceber qual foi o efeito que as mas tiveram sobre a jovem
mulher. No entanto, os autores do perodo helenstico13 so unnimes em considerar que as
12 Esta declarao de que as Sereias apenas usam os seus poderes contra os homens ambiciosos um juzo do prprio Xenofonte. 13 Depois de Hesodo, as fontes helensticas so os mais antigos testemunhos do mito de Atalanta e Hipmenes. A mesma histria foi inmeras vezes retomada por autores de pocas posteriores. Littlewood (1968: 152) apresenta uma listagem completa das referncias antigas a este mito.
12
mas de Afrodite acenderam o desejo ertico de Atalanta por Hipmenes, ou seja,
funcionaram como um verdadeiro afrodisaco. De acordo com um esclio de Tecrito
(2.12014), Filitas (Fr. 18 Powell) ter referido que . O
prprio Tecrito mantm uma verso muito semelhante do seu contemporneo Filitas,
quando alude, de passagem, histria de Atalanta e Hipmenes, em 3.40-42:
, ,
, , .
O costume de lanar mas como sinal de afecto, ou mesmo com propsitos sexuais
explcitos, mencionado muitas vezes ao longo da literatura greco-romana 15 e est
amplamente atestado pela expresso popular ser atingido por uma ma16. A certeza,
porm, da ligao desta conhecida tcnica de galanteio s prticas reais de magia ertica s
recentemente nos foi dada, com a descoberta de um fragmento de um manual grego de
magia da poca de Augusto. Publicado pela primeira vez em 197917, o papiro em causa
contm precisamente aquilo a que podemos chamar um encantamento com mas e
confirma o uso daqueles frutos como poderosos afrodisacos. Pela sua relevncia, citamos
aqui as linhas 5-14 (col.1)18, que terminam com um apelo a Afrodite, final que muito comum
em encantamentos de teor ertico:
14 Sch. KUEA. 15 Vide, e.g., Ar. Nu. 997; AP 5.79; Theoc. 5.88, 6.6; Luc. DMeretr. 12.1; Verg. Ecl. 3.64. Littlewood (1968: 154--155) remete-nos para muitas outras referncias ao mesmo costume. 16 A propsito desta curiosa expresso grega, vide infra, p. 31, n. 51. 17 Brashear (1979). Este papiro (P. Berol. 21243) foi depois estudado por Maltomini (1980 e 1988) e por Janko (1988). Betz (1986: 316-317) traduziu-o para a lngua inglesa. 18 O texto aqui apresentado o da edio de Daniel & Maltomini (SM 72).
13
[]
[] [] -
[] -
.
,
, []
. . . . . . . .
.
.
Estamos diante de um dos mais antigos papiros mgicos existentes. Alm disso, a
enorme corrupo da mtrica deixa perceber que este encantamento ter sido alvo de vrias
cpias, o que significa que o texto , muito provavelmente, de uma poca ainda anterior de
Augusto e que o ritual mgico do lanamento da ma aqui descrito teria sido usado desde
tempos mais recuados19.
I.1.3) Poetas arcaicos Detenhamo-nos agora, por breves momentos, na poesia lrica arcaica, qual tambm
no alheia a magia de pendor ertico.
Comecemos por apreciar os vv.73-77 do clebre Grande Partenion (Fr. 1 Page) de
lcman:
[]
19 Faraone (1990: 233-236) defende que este tipo particular de ritual mgico era extremamente antigo. A sua argumentao baseia-se em indicaes retiradas do mito grego primitivo e dos rituais das cerimnias de casamento, bem como em evidncias textuais que remontam ao sc. IX a.C., encontradas fora dos limites do mundo grego.
14
[]
[] F
.
Tal como acontece com praticamente todas as linhas conservadas deste poema,
tambm o entendimento do trecho em questo no bvio20. O contexto no nos permite
identificar com clareza quem so as seis mulheres aqui mencionadas. Percebemos, no
entanto, que Enesmbrota (v.73) tem um estatuto diferente do das outras figuras femininas.
Das vrias interpretaes possveis para este passo, a mais sugestiva , sem dvida, aquela
que reconhece em Enesmbrota uma capaz de fazer os outros apaixonarem-
-se. A sustentar-se esta hiptese sugerida por West (1965: 200) e depois largamente
repetida estaramos ento perante uma mulher versada nas artes da magia ertica, a
quem poderiam recorrer todos aqueles que pretendessem conquistar o ser amado.
Na obra de Safo no encontramos propriamente aluses prtica de magia ertica,
mas vrios estudiosos tm chamado a ateno para o facto de o seu Hino a Afrodite (Fr. 1
Lobel-Page) reflectir a forma, o contedo e a inteno de encantamentos amorosos reais que
os papiros mgicos nos deram a conhecer. No pretendendo aprofundar esta questo, que j
20 extenso o rol de conjecturas aventadas por todos aqueles que se esforam por decifrar o sentido do Grande Partenion, e nenhum detalhe interpretativo parece merecer a concordncia geral da crtica. Dentre os inmeros estudos dedicados a este poema de lcman, limitamo-nos a citar os que se nos afiguram mais relevantes: Page (1951), Puelma (1977), Eisenberger (1991), Pavese (1992), Robbins (1994); sem esquecer, obviamente, os valiosos comentrios de Garzya (1954) e, sobretudo, os de Calame (1983). Para uma lista ainda mais completa, vide Vetta (1982).
15
foi por de mais explorada21, convir talvez tocar nos seus pontos essenciais, para assim
compreendermos a sua pertinncia.
Num poema repleto de ardente e angustiada paixo, Safo invoca Afrodite e suplica a
sua interveno naquele momento de sofrimento por um desejo insaciado. A poetisa recorda
imagens das anteriores aparies da divindade em ocasies idnticas e, subitamente, a
prpria Afrodite que comea a falar (vv.18-24):
.]. ; ,
, ;
, ,
, ,
,
.
A deusa pergunta amavelmente a Safo quem o actual objecto do seu desejo e
promete-lhe que, tal como das outras vezes, tambm agora haver de dar cumprimento aos
seus propsitos e fazer com que o seu amor no correspondido passe imediatamente a
merecer retribuio.
Se atentarmos, com algum cuidado, nos versos acabados de citar, facilmente
encontramos vrios ingredientes que justificam a frequente associao desta composio
potica aos encantamentos erticos de atraco tradicionais, conhecidos como .
Desde logo, o facto de Afrodite querer saber quem deve convencer, daquela vez, a amar a
21 Vide, a este respeito, Cameron (1939), Segal (1974), Burnett (1983: 254-256), Faraone (1992) e Petropoulos (1993).
16
poetisa, implica que as preces que esta normalmente lhe dirige tenham sempre uma nica
finalidade: atrair a si o ente amado. Alm disso, quando prediz a mudana da situao
amorosa de Safo, nos vv.21-24, a deusa utiliza uma formulao sintctica que nos reporta, de
imediato, para a linguagem dos textos mgicos reais. De facto, as vrias proposies
condicionais pronunciadas sob a forma de repetio antittica (se , ento )
assemelham-se a certas enunciaes mgicas, como quela que encontramos em PGM
4.1510-1520:
, , , , , ,
, , , , , , , ,
, , , , , ,
, , .
Tambm a reiterao do advrbio , nos vv.21 e 2322, nos remete para o mundo
da magia e, em particular, para os encantamentos de teor ertico, onde frmulas como
, ; , ou mesmo , , , so
extremamente comuns, reflectindo o princpio mgico de que a interveno da divindade se
deseja imediata. Vide, entre muitos outros passos, PGM 1.262; 3.85, 123; 4.973, 1593;
17a.25; 19a.52, 54; 68.11, 18. O advrbio pode encontrar-se, por exemplo, em PGM
1.107; 4.72, 1265.
No v.24, Afrodite reafirma a sua pretenso de forar a amada de Safo a am-la
tambm, mesmo que aquela o no queira ( )23. Petropoulos (1993: 48), no
22 Segal (1974: 158, n.16) chama ainda a ateno para a estratgica colocao da cesura: coming after the fifth syllable in the first and third lines (21 and 23), it reinforces the repetition of . 23 A orientao homossexual do poema explcita. O amor entre pessoas do mesmo sexo tambm encontra expresso nos encantamentos mgicos de atraco que chegaram at aos nossos dias, embora em muito pequena escala. Segundo pudemos verificar, das oitenta e uma publicadas, apenas trs so, inequivocamente, de ndole homoertica: SM 42, PGM 32 e PGM 32a.
17
seguimento de Cameron (1939: 9, n. 42), nota que esta capacidade, demonstrada por
Afrodite, de induzir uma pessoa a amar outra mesmo contra a sua vontade, figura tambm
num hino deusa, que aparece encaixado num encantamento amoroso muito elaborado
(PGM 4.2934: ).
Voltamos a ouvir a poetisa nos ltimos versos da composio (25-28):
,
,
, ,
.
Tambm aqui possvel descobrirmos paralelos com a tradio grega de magia
amorosa. O verbo , usado por Safo nos vv.26 e 27, aparece com muita frequncia no
final dos encantamentos erticos de atraco. Faraone (1992) chamou a ateno para este
facto e foi mais longe, ao interpretar o pedido de Safo ( ,
) como uma adaptao da frmula , tpica da parte final de vrios
sortilgios erticos reais, alguns dos quais dirigidos a Afrodite, como o caso de PGM
4.293924.
Uma vez que desconhecemos as circunstncias externas que rodeiam o Hino a
Afrodite, no podemos defender o argumento de que as palavras de Safo pressupem o
acompanhamento de um acto mgico efectivo25. As evidncias de que dispomos permitem-
-nos to-somente concluir que as muitas afinidades sintcticas encontradas entre o poema
24 Abstemo-nos de desenvolver esta questo, que foi largamente estudada e exemplificada por Faraone, no artigo acima citado. Vide ainda Faraone (1999: 137). 25 Petropoulos (1993: 54) levanta essa hiptese: If () Hippon. Fr.115 (W) was an actual curse that realised its primary function in actual life as Fraenkel believed, there is no positive reason why Sapphos poem should not correspondingly have been a real love spell.
18
em causa e o discurso da magia no sero, decerto, mera obra do acaso. Parece, de facto,
existir uma base comum entre as palavras de Safo e uma longa tradio de encantamentos
erticos dirigidos a Afrodite.
o mais ilustre de todos os poetas lricos gregos que nos oferece a primeira descrio
detalhada de um rito de magia ertica. Pndaro, na sua Ptica 4, deixa-nos o relato das
aventuras de Medeia e faz o elogio desta princesa da Clquida que, por ser muito entendida
em drogas mgicas, merece o epteto de (v.233). Mas Jaso que,
paradoxalmente, recorre magia amorosa para seduzir a feiticeira. Conta o poeta que
Afrodite amarrou a uma roda o torcicolo de plumagem variada ( ), ligado pelos
quatro membros, e que trouxe do Olimpo este pssaro delirante ( ), para
benefcio dos homens. De acordo com Pndaro, a deusa teria assim inventado um poderoso
instrumento de magia ertica, com o qual Jaso poderia inflamar de desejo o corao de
Medeia e convenc-la a segui-lo at Grcia. Valer a pena recordar o passo em questo
(vv.213-219)26:
-
26 Existem dois trabalhos recentes consagrados a estas linhas de Pndaro: Faraone (1993) e Johnston (1995). Embora apresentem duas interpretaes muito diferentes e at, em vrios pontos, contraditrias do mesmo passo, ambos os estudos so, em nossa opinio, de inegvel qualidade.
19
,
.
Interessa salientar que o procedimento mgico aqui descrito por Pndaro alia a
(o acto de atar o pssaro roda e a manipulao da prpria ) ao (
que Afrodite ensinou a Jaso), como natural acontecer nos rituais de magia reais27.
Estas linhas da Ptica 4 so extremamente valiosas para a histria da magia de teor
ertico, na medida em que atestam, pela primeira vez, um encantamento amoroso de
atraco (), um tipo de sortilgio que, como sabido, foi depois largamente usado em
todo o mundo grego. Ainda mais preciosos sero estes versos de Pndaro se nos lembrarmos
que eles constituem a primeira meno ao bizarro expediente mgico conhecido por 28,
que haveremos de encontrar depois, repetidas vezes, nesses mesmos ritos de magia ertica
de atraco. Em suma, e evitando entrar em delongas sobre um assunto que
desenvolveremos mais tarde29, importa apenas reter que na breve descrio de Pndaro,
um poeta pouco ou nada interessado em temas mgicos, que encontramos uma importante
prova da antiguidade da prtica das e do recurso como instrumento de magia
amorosa.
I.1.4) Tragedigrafos Passemos agora a considerar a tragdia tica, gnero literrio que tambm nos h-de
brindar com algumas referncias a actividades mgicas de teor amoroso.
27 Sobre as muitas afinidades existentes entre a descrio pindrica do rito de magia ertica e os encantamentos de atraco preservados nos papiros e nas defixiones, vide Faraone (1993a). 28 A propsito das vrias acepes deste termo, vide infra, pp. 146-151. 29 A pretexto da utilizada por Simeta no poema de Tecrito que nos detm. Cf. infra, pp. 146-151.
20
De uma obra perdida de Sfocles, intitulada , chegou at ns um pequeno
fragmento (536 Radt) que parece aludir a este tipo de prticas: . A
crermos em Macrbio (5.19.8), o drama em questo desenvolver-se-ia em torno do tema das
artes mgicas de Medeia e, de facto, as trs palavras conservadas, ao sugerirem o
derretimento de uma figura de cera no fogo, fariam todo o sentido no contexto de um ritual de
magia30. Esta interpretao, sublinhe-se, meramente conjectural, j que, a propsito da
obra de Sfocles nada pode ser afirmado com segurana31.
Evidncias incontestveis do uso de magia ertica encontramo-las em As Traqunias,
do mesmo dramaturgo. O enredo desta pea muito conhecido: Hracles, no seu regresso a
Trquis depois de uma vitria militar, resolve parar na Eubeia para oferecer sacrifcios a
Zeus. Entretanto faz chegar a sua casa uma bela cativa de guerra, chamada ole, por quem
se apaixonara. Dejanira fica desesperada quando percebe que a afeio de Hracles fora
transferida para uma outra mulher, bem mais jovem do que ela. Na contingncia de perder o
marido, decide ento fazer uso de um filtro amoroso que guardava h j muito tempo, desde
o dia da morte do centauro Nesso. Atingido pela flecha de Hracles, o centauro recomendara
a Dejanira que recolhesse o sangue coagulado volta da chaga, pois, deste modo, ficaria na
posse de um poderoso amavio destinado a impedir o marido de olhar para qualquer outra
mulher que no ela. com este filtro que Dejanira vai besuntar uma tnica que faz depois
chegar a Hracles. Mas o sangue do centauro no surte o efeito esperado e, em vez de
reconquistar o marido, Dejanira acaba por provocar a sua morte.
30 Sobre a prtica comum de derreter imagens de cera em rituais de magia ertica, vide infra, pp. 165-169. 31 Outras leituras, diferentes da nossa, tm sido propostas para o Fr. 536 Radt. Vide comentrio do mesmo Radt, ad loc. O prprio ttulo () tem sido interpretado de vrias formas, pois, como explica Tupet (1976: 140): ce titre ne permet mme pas de dcider sil sagissait de cueilleuses d herbes magiques ou mdicinales, de sorcires ou de practiciennes de la mdicine lgale.
21
O presente que o centauro oferece esposa de Hracles pertence, sem dvida,
categoria de sortilgios amorosos comummente usados por homens e mulheres para prender
a afeio da pessoa amada, impedindo-a assim de se interessar por terceiros. Muitos papiros
e defixiones contm frmulas especficas destinadas a este tipo de encantamentos de
atraco, mas nenhum dos testemunhos remanescentes to antigo como o texto de
Sfocles. Este facto, por si s, faria de As Traqunias uma obra marcante no contexto da
magia de cariz ertico. Mas no podemos deixar sem meno um conjunto de outras
circunstncias, que vm contribuir, de igual forma, para a importncia da pea no mbito em
causa.
Aps ter aplicado o filtro tnica de Hracles, Dejanira ainda hesita, por instantes, em
envi-la ao marido. Decide ento pedir a anuncia do coro para o acto que est prestes a
levar a cabo. As palavras que ela profere nesse momento constituem uma das raras provas
de que, j na poca clssica, as prticas mgicas com finalidades erticas bem como os
resultados catastrficos decorrentes do seu uso seriam muito comuns32. Diz Dejanira, nos
vv.582-587:
, .
,
[ ]
,
, .
32 Em Antifonte, encontramos outro dos poucos testemunhos da utilizao desastrosa da magia ertica na Grcia clssica. Cf. infra, p. 38.
22
A esposa de Hracles faz questo de realar que no versada em prticas de magia
e que o seu objectivo apenas atrair o marido e prevalecer sobre ole. Dejanira mostra uma
enorme repugnncia pelas mulheres suas contemporneas que conhecem as artes mgicas
e se dedicam a actos imorais e criminosos. Curiosamente, porm, j neste trecho ela deixa
perpassar o seu receio relativamente s consequncias do uso do filtro amoroso, pois nas
suas palavras vislumbra-se a hiptese de o efeito no ser o
esperado. O mesmo sentimento de insegurana volta a estar implcito nos vv.596-597,
quando Dejanira pede ao coro que guarde segredo quanto a esta sua aco, que ela prpria
considera ignominiosa (). Uns versos mais adiante, ela admite abertamente que tem
medo de se ter excedido (vv.663-664) e que a aco que acaba de empreender de
resultado incerto (vv.669-670).
Toda esta conscincia angustiante, revelada por Dejanira, das possveis
consequncias nefastas resultantes da utilizao do amavio permite-nos inferir que o carcter
ambguo dos sortilgios amorosos, testemunhado sobretudo por autores de perodos
posteriores33, era j sobejamente conhecido no tempo de Sfocles.
A angstia que o uso do filtro provoca em Dejanira uma questo que toca de perto
numa outra, muito controversa, que tem feito correr rios de tinta entre os estudiosos da pea:
a culpa (ou no) da mulher de Hracles pela morte do marido. Se Dejanira sincera quando
diz que o seu objectivo reconquistar o homem que ama ou se, pelo contrrio, est a simular
uma inteno benvola que na verdade no acalenta, esse , de facto, um assunto muito
pouco consensual34. Porque est fora do propsito do nosso trabalho, no nos alongaremos
33 Essa ambiguidade foi magnificamente ilustrada por Plutarco, em Moralia 139a, passo que citmos supra, p. 8. Para outras aluses aos efeitos catastrficos decorrentes do uso de sortilgios amorosos, vide infra, pp. 189-190. 34 Os crticos modernos so tudo menos unnimes no que concerne interpretao de As Traqunias, em particular no que diz respeito avaliao da figura de Dejanira. Se quisermos resumir a questo em breves palavras e sem esquecer que muitos estudiosos evitam atitudes radicais e se situam numa posio intermdia
23
sobre ele, mas no podemos deixar de mencionar um brilhante estudo de Faraone (1994)
que, ao propor uma abordagem invulgar da questo da culpabilidade de Dejanira, acaba
tambm por focar alguns detalhes importantes para quem, como ns, se preocupa em
entender a realidade das prticas de magia ertica em pocas recuadas. Apoiado em vrios
testemunhos antigos, Faraone argumenta que, entre os Gregos, era prtica comum as
mulheres darem pequenas doses de veneno aos seus maridos, na crena de que essas
substncias funcionassem como afrodisacos e fizessem com que os seus homens as
amassem mais e melhor. A aco levada a cabo pela protagonista de As Traqunias deve
pois, segundo o estudioso, ser entendida luz deste costume do folclore grego e,
consequentemente, devemos aceitar que o erro de Dejanira consistiu apenas numa m
avaliao do poder do veneno que enviou a Hracles. Esta interpretao dos factos, que nos
parece muito verosmil, mitiga extraordinariamente a culpa de Dejanira, ainda mais se
tivermos em conta que, na Atenas da poca clssica, o uso de veneno como remdio para
recuperar um amor perdido nem sempre era considerado um acto ilegal e condenvel35.
Desta evidncia chegaram at ns vrios testemunhos, entre os quais um episdio
podemos dizer que, em termos gerais, a crtica segue duas direces. De um lado esto aqueles helenistas que vem a filha de Eneu como uma mulher bem-intencionada, que provoca a morte do marido involuntariamente, por um trgico engano. Vide, e.g., Bowra (1944), Kamerbeek (1959), Kirkwood (1967), Easterling (1968) e Winnington-Ingram (1980). Whitman (1951: 113) chega mesmo a dizer que Deianira is all love; she is probably the only completely dignified picture of a passionately devoted woman extant in Greek tragedy. No plo diametralmente oposto, encontramos aqueles que consideram que Dejanira mata Hracles de propsito, dominada que est pelos cimes da relao que ele mantinha com ole. Vide, e.g., Reinhardt (1947), Errandonea (1958) cujo ponto de vista o mais extremista de todos os que tivemos oportunidade de conhecer , LaRue (1965) e Albini (1968). Para uma smula mais completa das tendncias da crtica a este respeito, vide Hester (1980), estudioso que, antes de apresentar as suas prprias convices sobre o assunto, nos oferece um abalizado ponto da situao. Tambm Davies (1989) faz um breve historial da questo, antes de refutar a argumentao daqueles que vem Dejanira como uma mulher agressiva e sanguinria. 35 Que, em termos gerais, a lei ateniense condenava o uso de filtros, sabemo-lo por vrios autores antigos. Vide, e.g., os casos relatados pelos oradores ticos, infra, pp.38-40. No entanto, quando se tratava de ajuizar uma morte decorrente do emprego de substncias alegadamente afrodisacas, havia tambm de considerar-se a lei geral do homicdio que vigorava na Atenas de ento e que assentava, basicamente, na distino entre assassinato intencional e no-intencional. Sobre esta curiosa particularidade da lei ateniense, vide MacDowell (1978: 113-118).
24
anedtico, conservado pelo autor da obra aristotlica Magna Moralia, que relata o caso de
uma mulher que, embora tenha provocado a morte do marido ao dar-lhe um poderoso filtro,
foi absolvida pelo Arepago, que considerou que ela no agira deliberadamente, j que a sua
inteno era conquistar a afeio () do homem que amava. Parece-nos pertinente, pela
sua relevncia, citar o passo em causa (1188b):
, ,
. , ,
.
.
Num contexto social onde, ao que tudo indica, existia o conceito de homicdio
involuntrio aplicado ao uso de substncias txicas com fins amorosos, natural que o
pblico de As Traqunias fizesse da questo do envenenamento de Hracles uma leitura
muito diferente daquela que ns hoje tendemos a fazer. Se quisermos ir mais longe nas
nossas suposies, podemos at imaginar que o facto de Sfocles ter produzido uma obra
em torno da confuso existente entre venenos e amavios significaria que, para os Atenienses
do sc. V a.C., este assunto estava na ordem do dia36.
Tambm Eurpides recorre magia ertica em duas das suas tragdias.
Curiosamente, os passos em que o dramaturgo alude a este tema esto envoltos numa
ambiguidade desconcertante. Em Hiplito, Fedra mostra-se decidida a pr termo sua vida,
como nico remdio que encontra para a paixo avassaladora que sente pelo enteado. Na
36 Note-se que, sensivelmente pela mesma altura, Antifonte escreveu o seu primeiro discurso, que desenvolve o mesmo tema.
25
tentativa de dissuadir a patroa do suicdio, a ama dirige-lhe palavras de nimo e no termina
o seu arrazoado sem antes evocar a existncia de encantamentos e palavras mgicas que
podero ajud-la (vv.477-481):
.
.
,
.
O discurso da ama intencionalmente impreciso. No v.478, como diz Barrett (1964:
247), she is speaking quite generally, with no particular magic in mind. Na linha seguinte, o
uso da palavra acentua o tom de dvida que atravessa este passo37. Estar a ama
a referir-se a um qualquer antiafrodisaco que viria atenuar o arrebatamento amoroso de
Fedra ou, pelo contrrio, ter ela em mente um afrodisaco que induziria Hiplito a apaixonar-
-se pela rainha, curando-a assim das suas penas? O texto admite ambas as possibilidades,
embora a segunda hiptese parea fazer mais sentido na sequncia de um discurso de
incitamento fruio do amor.
Nas ltimas duas linhas, a ama alude facilidade com que as mulheres fabricam
expedientes mgicos, ao contrrio dos homens, que so muito menos hbeis nessas
matrias. Ao utilizar a primeira pessoa do plural, a ama est a sugerir que ela prpria se inclui
no conceito estereotipado a que d voz. Estes dois versos esto investidos da maior
importncia, pois constituem a prova de que j na Atenas do sc. V a.C. existia a ideia
37 Como sabido, a palavra comporta vrios significados, que vo desde remdio, veneno a encantamento, sortilgio. Vide LSJ, ad loc. Sobre a perigosa instabilidade semntica do termo e sobre o modo como, em Hiplito, ele domina toda a cena de persuaso entre a ama e Fedra (vv.477-524), vide Goff (1990: 48--54).
26
preconcebida e comum de que o sexo feminino muito mais entendido em prticas mgicas
do que o sexo masculino38.
Apesar de destruda pelas agonias de um amor impossvel, Fedra no aprova as
palavras de estmulo que lhe so dirigidas, por consider-las baixas e vergonhosas (,
v.499). Perante a intransigncia da patroa, a ama resolve ento fazer uma nova investida,
onde insiste na mesma ideia do recurso a prticas mgicas, acrescentando-lhe porm, desta
feita, alguns detalhes mais concretos (vv.509-515):
, ,
, .
,
, .
A ama explica que detentora de filtros de amor que ho-de acabar com a doena de
Fedra. As palavras que utiliza no desfazem a ambiguidade procedente dos vv.477-481, mas
antes a acentuam39. Continuamos sem divisar qual seria o resultado pretendido com o
recurso magia. Mais importante, no entanto, do que percebermos se o que est em jogo a
cura ou a consumao do desejo desenfreado de Fedra, ser analisarmos as preciosas
38 A noo generalizada, j evidente na poca de Eurpides, de que as mulheres seriam mais versadas nas artes mgicas do que os homens, contrasta inexplicavelmente com o facto de at ns ter chegado um nmero muitssimo maior de informaes sobre os feiticeiros que existiam em Atenas nos sculos V e IV a.C. do que sobre as suas congneres femininas. Este assunto mereceu, recentemente, especial ateno da parte de Dickie (2001: 47-95). 39 No seu comentrio da pea, Barrett (1964: 254-255) esmia os vrios sentidos possveis de cada uma das palavras e expresses usadas por Eurpides nesta passagem, no sem antes ter feito notar que the whole thing is a string of ambiguities e que the audience will be bemused.
27
informaes que estas linhas contm sobre o universo das prticas da magia ertica na
Atenas contempornea de Eurpides.
Ao sugerir a Fedra o uso de filtros, a ama deixa claro que eles no afectaro o
intelecto ( ). Este esclarecimento a prova de que j no sc. V a.C.
existia a crena 40 (provavelmente justificada) de que os amavios podiam prejudicar as
faculdades mentais daqueles a quem eram ministrados. Por outro lado, a referncia, nos
vv.513-515, necessidade de um sinal de Hiplito para a prossecuo do sortilgio
testemunho de que o uso de objectos pessoais do ser amado, em contextos de magia
ertica, era uma prtica j muito divulgada na poca clssica41.
Fedra mostra-se tentada pela proposta da ama, como se pode inferir pela pergunta
que lhe dirige logo de seguida (v.516: ;). A
curiosidade da rainha em querer saber se o tal seria para besuntar ou para beber
implica, necessariamente, que ela possua alguns conhecimentos relativos aos procedimentos
que envolvem os rituais de magia ertica. Este aspecto que no vimos focado por nenhum
dos estudiosos da pea afigura-se-nos da maior importncia, uma vez que nos permite
depreender que at mesmo as mulheres da mais alta estirpe, para quem o uso de sortilgios
amorosos parecia ser moralmente repugnante, no eram indiferentes s artes mgicas de
teor ertico e ao modo como elas eram praticadas.
A relevncia de toda esta cena de persuaso entre Fedra e a sua ama vai ainda mais
alm, j que dela podemos extrair um outro dado essencial relativo ao exerccio da magia
amorosa na Antiguidade. Referimo-nos ao facto de aqui se encontrar atestada a existncia de
mulheres que, no sc. V a.C., punham os seus conhecimentos de magia disposio de
40 Muitas vezes repetida por autores de pocas posteriores. Vide, entre outros, Plu. Luc. 43.2; Ach. Tat. 4.15.3; Plin. HN 25.25; Juv. 6.610-620; Suet. Cal. 50, Poet.16. 41 Cf. infra, pp.183-184.
28
terceiros 42 . Ao que sabemos, estamos perante o primeiro testemunho explcito desta
importante realidade, que continua ainda a marcar presena nos nossos dias.
Concomitantemente, tambm a primeira vez em que se vislumbra o clebre costume de
mulheres de alto estrato social que recorrem s suas serviais quando pretendem exercer
prticas de magia sobre outrem.
Eurpides volta a aludir ao tema da magia ertica na sua Andrmaca. Tambm aqui,
as passagens que abordam este assunto esto imbudas de uma ambiguidade intencional,
que faz ressaltar a conjuntura dramtica da tragdia. Logo no monlogo inicial da pea,
Andrmaca queixa-se de que a lacnia Hermone, esposa legtima de Neoptlemo, a acusa
de fazer uso de secretos para a tornar estril e odiosa aos olhos do marido (vv.32-
-33):
.
Um pouco mais frente, nos vv.155-160, ouvimos as mesmas duras incriminaes da
boca da prpria Hermone:
, ,
42 Para melhor entendermos a importncia deste testemunho euripidiano, vale a pena citar a concluso do captulo que Dickie (2001: 95) dedicou ao estudo das feiticeiras existentes em Atenas nos sculos V e IV a. C.: There is a good deal of evidence for women practising sorcery on their own behalf in Athens in the fifth and fourth centuries BC, but rather less for women who put their expertise in sorcery at the disposal of others. Such women unquestionably existed; identifying them is largely a matter of guess-work.
29
Cega de cimes, Hermone acusa Andrmaca de querer ocupar o seu lugar na casa
de Neoptlemo e de, com esse objectivo, ter provocado a sua runa, tornando-a infrtil43 e
preterida pelo marido. Tanto no primeiro trecho como agora neste, o emprego da palavra
obscurece o sentido exacto das crticas de que a viva de Heitor alvo44. No
entanto, evidente que estamos perante um caso de alegado uso de prticas mgicas, at
porque, se houvesse dvidas a esse respeito, a referncia, neste contexto, origem
asitica45 de Andrmaca dissip-las-ia.
Mais adiante, nos vv.205-208, ao tentar defender-se das acusaes de Hermone,
Andrmaca sustenta que no por causa dos seus que Neoptlemo a repudia, mas
sim porque ela no uma pessoa agradvel. E faz ainda questo de lhe explicar, com ironia,
que um eficaz para atrair o homem com que se partilha a cama um carcter
virtuoso.
Pelo que acabmos de ver, fica claro que na tragdia em causa no existe um uso
efectivo de magia ertica, mas apenas uma denncia baseada numa suspeita que , muito
provavelmente, infundada. Ainda assim, importante termos presente que as acusaes de
Hermone encontram eco em vrios encantamentos amorosos no-literrios, alguns deles
datados ainda da poca clssica. Para alm das frmulas mgicas abortivas j
43 Perante Menelau, Andrmaca explicita melhor esta grave delao que recai sobre os seus ombros. Fica claro, no v.356, que Hermone a acusa de ter recorrido a prticas mgicas que a fizeram abortar os filhos de Neoptlemo. A este propsito, curioso notar que chegaram, de facto, at ns registos de frmulas mgicas abortivas, das quais vale a pena citar pelo menos uma, do sc. III d.C., pela sua expressividade: , (PGM 62.102-103). Para outros exemplos que evoquem procedimentos mgicos associados ao aborto e esterilidade, vide Ogden (2002: 243-244). 44 A propsito dos vrios significados do termo , cf. supra, p. 25, n. 37. 45 Note-se que Eurpides usa (v.159) para se referir ao continente asitico. O mesmo volta a acontecer no v.652. Nos vv.1 e 119, no entanto, emprega .
30
mencionadas 46 , encontramos muitos cujo principal objectivo impedir o
desempenho sexual da pessoa amada com terceiros47, eliminando assim a concorrncia. a
este tipo de prticas mgicas que Hermone se refere quando culpa Andrmaca pelo facto de
o marido a repudiar, o que s pode significar que, tambm aqui, o poeta est a aludir a uma
forma de magia ertica largamente conhecida no seu tempo.
Em suma, o teatro de Eurpides vem acentuar a ideia de que os rituais de magia
ertica, nas suas mais diversas manifestaes, estariam j muito divulgados no apogeu da
poca clssica, nomeadamente entre os Atenienses, que constituam o auditrio das peas
trgicas.
I.1.5) Comedigrafos Se voltarmos agora a nossa ateno para os autores cmicos, dos quais, na grande
maioria dos casos, s conhecemos escassos e curtos fragmentos, ainda assim encontramos
mltiplas aluses magia de teor ertico, o que significa que este tema no passou
despercebido aos cultores do gnero literrio em questo. Sempre muito breves, as
referncias dos comedigrafos s substncias e aos instrumentos que esto ao servio das
prticas de magia amorosa so, no entanto, variadas e explcitas.
upolis, em Mergulhadores (Fr. 83 Kassel-Austin), menciona o , um
instrumento mgico de atraco tambm referido por Aristfanes, em Heris (Fr. 315 Kassel-
46 Cf. supra, p. 29, n. 43. 47 Faraone (1999: 12-13) transcreve trs do sc. IV a.C. (dois dos quais provenientes de Atenas) escritos por mulheres que pretendem vedar aos homens que amam a possibilidade de se relacionarem sexualmente com qualquer outra pessoa. Como podemos constatar pelos documentos mgicos a que temos acesso, este gnero de encantamentos amorosos foi sempre muito popular ao longo de toda a Antiguidade.
31
-Austin). Um outro expediente de magia amorosa a 48 aludido em Lisstrata
(v.1110)49.
O mesmo Aristfanes refere, de passagem, o costume de lanar mas com
propsitos erticos50. Na sua clebre comdia As Nuvens, a figura do Raciocnio Justo,
defensor dos valores tradicionais atenienses, dirige a Fidpides um discurso pejado de
preceitos morais, entre os quais consta o seguinte (vv.996-997):
,
O rapaz aconselhado a ter cuidado para no ser atingido por uma ma (
) lanada por uma qualquer mulher de m fama. Este detalhe importante para ns,
na medida em que parece sugerir que o ritual ertico da ma, usado tradicionalmente por
homens contra mulheres, tambm era utilizado por prostitutas para seduzirem jovens
inexperientes51.
48 Desde Pndaro que conhecemos este instrumento mgico. Cf. supra, pp.18-19. A propsito da e do , e da sua ligao s operaes tpicas da magia de pendor ertico, vide infra, respectivamente, pp. 146-151 e 169-172. 49 Cf. infra, p. 150. 50 Sobre a ligao desta tcnica de seduo aos encantamentos erticos reais, vide supra, p.12. Cf. tambm infra, pp. 234-235. 51 A expresso pode ser entendida apenas metaforicamente, com o sentido de apaixonar-se por (que mais no do que uma consequncia do aoristo passivo: alcanado por uma ma > enamorado). Neste caso, o Raciocnio Justo estaria to-somente a dizer a Fidpides qualquer coisa como no te apaixones por uma prostituta!, sem que estivesse implcito o lanamento efectivo de uma ma. As explicaes do escoliasta e dos lexicgrafos tardios tendem para este sentido figurado. Vide Hsch. s.v. ; Phot. s.v. ; Suid. s.v. , e . Parece-nos, no entanto, muito mais atraente (e at mais verosmil) aceitar que estamos perante uma aluso ao receio concreto sentido pelos Atenienses contemporneos de Aristfanes relativamente ao uso que as prostitutas fariam de certos rituais de magia ertica neste caso, do lanamento da ma para atrair clientela. Sobre a estreita ligao das prostitutas e das cortess s prticas de magia ertica, vide Faraone (1999: 146-160).
32
Em As Mulheres no Parlamento, Aristfanes alude s propriedades afrodisacas das
cebolas, num passo hilariante, que no resistimos a citar. Encontramo-nos na cena final da
pea, quando o moo est a ser impetuosamente assediado pelas trs velhas. Este pequeno
trecho (vv.1090-1092) passa-se entre o jovem (.) e a terceira velha (. ):
. (...) .
;
. , .
Conhecemos, por intermdio de Ateneu, muitos passos de comedigrafos do sc. IV
a.C. que contm referncias a alimentos afrodisacos, com especial destaque para as
cebolas, os caracis e o marisco. Entre as vrias citaes que encontramos em Ath. 2.63d-
-64b e que passam por autores como Eubulo52, Alxis53 e Xenarco54, entre outros
destacamos a de Heraclides de Tarento e a de Dfilo, pela sua conciso e clareza. Diz o
primeiro:
, ,
.
O passo de Dfilo, por seu turno, fala exclusivamente das virtudes das cebolas:
, , ,
.
52 = Fr. 6 Kassel-Austin. 53 = Fr. 281 Kassel-Austin. 54 = Fr. 1 Kassel-Austin.
33
Em 8.356e-f, Ateneu cita ainda uma curiosa passagem de Pnfila, obra perdida de
Alxis, que revela uma srie de produtos comestveis de alto valor afrodisaco, entre os quais
se encontram de novo as cebolas, mas tambm peixe e, sobretudo, vrias espcies de
marisco55.
Os poucos dados que temos acerca do mais ilustre representante da Comdia Nova
no nos permitem adiantar muito relativamente ao lugar que o tema da magia ertica teria
ocupado na sua obra. Ainda assim, num exame atento da produo teatral remanescente de
Menandro, encontramos duas breves referncias a este motivo. No Fr. 351 Kassel-Austin, o
poeta alude, genericamente, a comidas que provocam desejos sensuais (
) e, no Fr. 794 Kassel-Austin, fala da nobreza de carcter como sendo um
verdadeiro filtro amoroso56:
, ,
.
No dispondo de outros testemunhos directos que provem a importncia do tema da
magia ertica na Comdia Nova, ainda assim acreditamos que este assunto tenha
interessado os comedigrafos daquele perodo, uma vez que Luciano, escritor satrico que foi
sobretudo influenciado por esta realidade literria, se revela muitssimo bem informado sobre
as prticas de magia associadas a questes do corao. Basta recordarmos como, em
DMeretr. 4.4-5, ele descreve em pormenor as aces de uma feiticeira da Sria que perita
em recuperar os amantes das suas clientes; ou ainda como, em Philops. 13-15, nos relata
55 = Fr. 175 Kassel-Austin. 56 As suas palavras lembram as de Andrmaca, nos vv. 207-208 da pea homnima de Eurpides. Cf. supra, p. 29.
34
uma histria anedtica que gira volta de um feiticeiro hiperbreo que executa um
encantamento de atraco altamente elaborado para que Glucias consiga consumar o amor
que sente pela sua vizinha.
I.1.6) Filsofos Encontramos a mesma atitude satrica para com as actividades ligadas magia
ertica num passo dos Memorveis que relata a dilogo humorstico que Scrates manteve
com uma cortes chamada Tedota. Conta-nos Xenofonte que o filsofo e os seus discpulos
tinham ido visitar aquela famosa beldade e que a conversa estava acesa a propsito dos
artifcios por ela utilizados para atrair os homens. A dada altura, a cortes pede a Scrates
que este a visite com mais frequncia. A resposta do filsofo to espirituosa e inusitada que
no resistimos a cit-la (3.11.16):
, , ,
,
.
Tedota mostra-se muito surpreendida com esta revelao e pergunta ao ilustre
mestre se ele , de facto, entendido em assuntos de magia ertica. Scrates replica no
mesmo tom facecioso (3.11.17):
, , ;
; ,
.
35
A cortes pede-lhe ento emprestada a tal 57 que Scrates diz usar para atrair e
conservar perto de si todos aqueles que o rodeiam. Com ironia, a bela mulher alega querer
utiliz-la, antes de mais, para atrair o prprio filsofo.
No de somenos importncia a contribuio destas linhas de Xenofonte para a
histria da magia antiga. certo que Scrates se limita a gracejar com Tedota quando se
apresenta como algum entendido em sortilgios amorosos, mas o tom irnico e jocoso que
perpassa todo o dilogo nem por isso ofusca alguns pormenores dignos de realce. Desde
logo, o facto de o mundo das cortess se encontrar inquestionavelmente ligado magia de
teor ertico, cujas prticas, ao que parece, eram vistas como mais um dos truques do ofcio.
Mas o aspecto essencial a reter deste episdio a naturalidade com que Scrates introduz o
tpico da magia ertica e faz uso de termos tcnicos que lhe esto associados (como ,
ou ), o que s pode querer significar que a sociedade grega de ento estava
muito familiarizada com o assunto e com a sua respectiva terminologia. S assim, de resto,
seria possvel a Xenofonte fazer humor a partir daquela matria58.
Longe do tom jocoso deste episdio dos Memorveis esto os passos em que Plato
se refere ao exerccio de prticas mgicas. Contemporneo de Xenofonte, Plato revela-se
muito preocupado em libertar a sua sociedade de todas as aces injustas. No , por isso,
de estranhar que o ilustre filsofo se tenha insurgido contra as principais crenas e tradies
mgicas do seu tempo e, sobretudo, contra aqueles que as praticavam em troca de dinheiro.
Nos vrios passos em que Plato reage, de forma contundente, contra a actividade dos
57 A propsito deste poderoso instrumento de atraco usado no exerccio da magia de pendor ertico, vide supra, pp.18-19 e infra, pp. 146-151. 58 Esta no a nica vez em que Xenofonte alude, de modo divertido, ao tema da magia ertica. Na mesma obra, em 2.6.10-13, j havamos assistido a uma curiosa discusso entre Scrates e Critobulo sobre encantamentos erticos (cf. supra, pp. 10-11) e sobre a suposta ligao de Pricles a esse tipo de magia.
36
feiticeiros59, f-lo sempre de um modo muito geral, sem nunca aludir abertamente magia de
pendor ertico. Os seus textos deixam-nos, no entanto, testemunhos valiosos sobre prticas
que esto intimamente ligadas a este tipo de magia. S para ficarmos com um exemplo
elucidativo deste facto, consideremos um passo de As Leis em que o filsofo, ao insistir no
carcter enganador das artes mgicas, adianta o seguinte (933b):
,
,
.
Se tivermos em considerao que o uso de figurinhas de cera era um fenmeno muito
comum no contexto da magia ertica de atraco60, facilmente percebemos a relevncia que
tm para ns as informaes contidas nestas linhas. Diz-nos Plato que essas
podiam ser colocadas entrada das portas, nas encruzilhadas ou nos sepulcros,
esclarecimento muito til para quem se esfora por entender os procedimentos que
envolviam este tipo de operaes mgicas na Antiguidade grega.
I.1.7) Herdoto Abandonamos o maior autor da prosa grega, mas prosseguimos no encalo daqueles
que privilegiaram este veculo de expresso.
A historiografia grega passou praticamente em silncio o tema da magia ertica.
Herdoto abriu uma pequena excepo e, em 2.181, brindou o seu auditrio com a histria
59 Vide, especialmente, R. 364b-e; Lg. 909a-d, 933a-e. Todos estes passos mereceram o comentrio de Ogden (2002: 20-22). Vide tambm Eitrem (1941: 51-53). 60 Cf. infra, pp. 165-169.
37
surpreendente de Ldice, uma jovem grega originria da cidade de Cirene. Esta mulher
estava casada com o fara do Egipto, masis, que se debatia com um srio problema: ele
era incapaz de consumar o casamento, embora conseguisse relacionar-se sexualmente com
outras mulheres. Enfurecido com a situao, masis acusou a esposa de lhe ter lanado um
feitio () e avisou-a de que ela no escaparia morte mais terrvel.
Assustada, Ldice dirigiu ento uma prece silenciosa a Afrodite, com a promessa de que
enviaria para Cirene uma esttua da deusa, caso o problema de impotncia do marido se
resolvesse naquela mesma noite. masis recuperou de imediato a virilidade e, a partir
daquele dia, passou a am-la profundamente.
Para alm da prece dirigida a Afrodite, que, como j vimos61, uma manifestao
muito frequente em contextos de magia ertica de atraco, o que importa realar desta
histria a indicao de que o alegado exerccio de prticas mgicas conduziria Ldice a
uma morte atroz. As palavras ameaadoras de masis so muito sugestivas pois permitem-
-nos imaginar o que sucederia (ou poderia suceder) a uma pessoa que, na Grcia do sc. V
a.C., fosse declarada culpada pelo uso de magia ertica com prejuzo de outrem62. Tambm
o desfecho da histria de Andrmaca, relatada por Eurpides na pea com o mesmo nome,
corrobora esta ideia de que as pessoas que eram acusadas de feitiaria de teor amoroso
contra terceiros recebiam um severo castigo. Os casos de Ldice e de Andrmaca so dos
poucos testemunhos que nos permitem entrever uma realidade que est praticamente
remetida ao obscurantismo.
61 A propsito do Hino a Afrodite de Safo. Cf. supra, pp.14-18. 62 Embora a histria de Ldice tenha lugar no Egipto, bvio que Herdoto considerava que o castigo era perfeitamente compreensvel para a mentalidade grega pois, caso contrrio, teria certamente explicado que se tratava de um costume particular egpcio. Por outro lado, temos tambm de ter em conta que provvel que as medidas tomadas contra aqueles que recorriam s artes mgicas para prejudicar terceiros no fossem exactamente as mesmas em todo o mundo grego, mas tudo o que a esse respeito poderamos acrescentar no passaria de meramente conjectural.
38
I.1.8) Oradores ticos Deixamos o pater historiae, que no seguramente uma das melhores fontes para o
conhecimento da magia ertica antiga, mas continuamos entre os cultores da prosa grega,
pois valer a pena considerar as informaes que nos chegaram pela mo dos oradores
ticos.
de Antifonte o testemunho mais importante que a oratria nos legou sobre a prtica
de magia ertica na Grcia antiga. No seu primeiro discurso, escrito na segunda metade do
sc. V a.C., o orador ateniense d-nos a conhecer um drama familiar que ter tido origem no
uso de uma poo supostamente afrodisaca. As circunstncias que rodeiam todo o processo
legal, que nos narrado na primeira pessoa, so um pouco intrincadas, pelo que tentaremos
resumi-las da forma mais clara possvel.
Um sujeito annimo explica, em 1.14-20, as razes que o levam a processar a sua
madrasta como instigadora do crime que tirara a vida ao seu pai (e marido dela) h alguns
anos atrs. Conta-nos o queixoso que o seu pai tinha um amigo chamado Filneo e que este
homem sustentava uma concubina, da qual a sua madrasta se fizera amiga. Ao saber que
Filneo pretendia colocar a rapariga numa casa pblica, a mulher do seu pai ter-lhe- dito
que tambm ela prpria tinha queixas do marido e que deviam unir-se, em torno de um plano
comum, para recuperar o afecto dos dois homens. O combinado foi ento o seguinte: ela
ficava encarregada de arranjar o amavio e a concubina de Filneo tinha a incumbncia de
fazer com que os dois amigos o ingerissem. Depressa encontraram a ocasio ideal para
executar o seu intento: um jantar que Filneo iria oferecer ao amigo, aps um sacrifcio que
teria lugar no Pireu. Quando esse dia chegou, a concubina esperou pelo momento das
libaes, j no fim do jantar, para misturar o com o vinho. Filneo teve morte
imediata, pois a rapariga, crente de que estava na posse de um filtro amoroso, vertera uma
39
quantidade muito maior no seu copo. O pai do queixoso, que bebera uma pequena dose da
tal poo, adoeceu e morreu vinte dias depois. A concubina de Filneo foi torturada e morta,
mas a outra mulher, aquela que a aconselhara a usar o , escapara ilesa at quele
momento. o seu enteado, o filho do amigo de Filneo, que reivindica agora em tribunal que
ela seja acusada de homicdio intencional. Um pouco atrs no seu discurso (1.9), o queixoso
fizera saber que os escravos da madrasta poderiam ser testemunhas de que j anteriormente
ela havia atentado contra a vida do marido:
,
(...) ,
, , .
No ficamos a conhecer o desenlace desta demanda judicial, nem mesmo as razes
que a acusada apresenta em defesa prpria. Acabmos de ouvir a argumentao por ela
utilizada quando, da primeira vez, quis debelar as suspeitas do marido a respeito das
motivaes que a levaram a fazer uso de . Perante as acusaes do enteado, de
crer que a mulher tenha voltado a alegar que a sua inteno era apenas fazer com que o seu
marido a amasse mais. Se, de facto, foi esta a estratgia da defesa, a madrasta do autor da
aco pode perfeitamente ter sido ilibada, j que, como vimos num passo dos Magna
Moralia63, o argumento de homicdio involuntrio funcionava em casos muito semelhantes a
este.
No obstante o discurso de Antifonte seja, ao que parece, um simples exerccio
retrico construdo a partir de uma situao imaginria64, evidente que o autor encontrou
63 Vide supra, p. 24. 64 interessante notar, como fez Ogden (2002: 103), a correspondncia entre os acontecimentos narrados neste primeiro discurso de Antifonte e o mito de Dejanira. Cf. supra, p. 24, n. 36.
40
inspirao na realidade circundante e, nesse sentido, a histria narrada pelo filho do amigo
de Filneo esclarecedora em vrios aspectos: para alm de testemunhar o uso catastrfico
da magia amorosa na poca clssica, deixa claro que o conhecimento deste tipo de magia
no estava confinado s mulheres de condio humilde, que podiam ser bem mais inocentes
nestas matrias do que algumas senhoras de posio social elevada.
Da oratria do sc. IV a.C. chegou-nos apenas uma breve aluso velada ao uso de
magia de cariz ertico. Em 19.281, Demstenes refere, de passagem, a condenao de uma
mulher morte. O orador diz-nos apenas que Glauctea, me de squines, costumava
convocar reunies bquicas, e que, por causa dessas reunies, uma outra sacerdotisa
acabou por ser executada. A crermos num esclio a este passo, Demstenes est a aludir a
uma mulher chamada Nino que fora condenada morte por fazer amavios () para
jovens do sexo masculino.
I.1.9) Autores de obras cientficas No podemos sair dos textos em prosa sem antes recordarmos os escritores de obras
cientficas, que nos ofereceram registos de grande relevncia para o entendimento da magia
amorosa na Grcia antiga. Destes, alguns, pelo menos, merecem especial meno. ,
obviamente, o caso do grande mestre Aristteles que, em diferentes passos da sua Histria
dos Animais65, explica em pormenor a natureza controversa do famoso afrodisaco conhecido
por hipmanes, que um lugar-comum da magia ertica literria 66 . Para alm deste
importante esclarecimento, Aristteles vai mencionando, sempre que o assunto vem a
65 Vide, sobretudo, 572a19-29; 577a8-14; 605a2-8. 66 Desenvolveremos este assunto mais frente, a propsito da aluso de Tecrito ao efeito que o hipmanes exerce sobre as guas. Vide infra, pp. 178-183.
41
propsito, os poderes mgicos de determinadas substncias vegetais e animais. Em HA
505b18-20, por exemplo, ao descrever um pequeno peixe a que damos o nome de rmora,
diz-nos que esse animal era utilizado na preparao de filtros amorosos67.
O seu discpulo Teofrasto (que tambm no se esquece do hipmanes! 68 )
especialmente prolixo em referncias aos poderes mgicos das plantas. Tendo como
principais fontes de informao os (herbanrios profissionais que reuniam razes e
erva
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