M A C H A D O D E A S S I S T R A D U T O R:
O L A B I R I N T O D A R E P R E S E N T A Ç Ã O
A N A L Ú C I A L I M A D A C O S T A
T E S E D E D O U T O R A D O
UFRJ
2006
M A C H A D O D E A S S I S T R A D U T O R:
O L A B I R I N T O D A R E P R E S E N T A Ç Ã O
por
ANA LÚCIA LIMA DA COSTA
Tese de Doutorado apresentada à Banca Examinadora do Curso de Doutorado em Ciência da Literatura, área de concentração Literatura Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura, área de Concentração: Literatura Comparada.
Orientador: Prof. Doutor Ronaldo Lima Lins.
UFRJ
2006
E X A M E D E T E S E
COSTA, Ana Lúcia Lima da. MACHADO DE ASSIS TRADUTOR: O LABIRINTO
DA REPRESENTAÇÃO. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2006. Tese
de Doutorado em Literatura Comparada. Rio de Janeiro, 1º semestre de 2006, 260
páginas.
BANCA EXAMINADORA
______________________________________________________ Professor Doutor Ronaldo Lima Lins (Orientador – UFRJ ) ______________________________________________________ Professor Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho – UFRJ ______________________________________________________ Professora Doutora Vera Lúcia de Oliveira Lins – UFRJ _____________________________________________________ Professora Doutora Luzia de Maria Rodrigues Reis – UFF ______________________________________________________ Professora Doutora Carmem Lúcia Negreiros Figueiredo - UERJ ______________________________________________________ Professora Doutora Marta Alkmin – suplente – UFRJ ______________________________________________________ Professor Doutor Victor Manuel Ramos Lemos – suplente - UFRJ
Defendida a tese: Em: ______/_____/ 2006 Conceito:
Ofereço
A Deus, pela oportunidade da renovação
diária da minha fé.
Ofereço
Ao homem que trabalha.
Ofereço
A todo aquele que sofre e impõem-se
tarefas e, mesmo esmagado pelo
sofrimento e pelas tarefas, é belo na sua
miséria porque encontra sua grandeza na
medida máxima do amor ao próximo.
Ofereço
Ao meu filho Eduardo, minha mais sublime
poesia e razão do meu amor maior.
Ofereço ainda
Ao Professor Doutor Geraldo da Costa
Matos, que nas salas pouco iluminadas da
antiga Faculdade de Filosofia de Itaperuna,
soube acender a chama da literatura em
minha vida; pela cumplicidade carinhosa
nas minhas escolhas acadêmicas e pela
constante torcida pelas minhas
realizações.
E, finalmente,
Aos meus pais, Mário e Juracy. Conforto e
proteção nas horas difíceis. Força e
incentivo em todos os instantes.
A G R A D E C I M E N T O S
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela importante
oportunidade de realização do Curso.
À amiga Eliana Crispim França Luquetti, pelo incentivo e apoio
para tentar o exame de seleção, pelos estímulos constantes, pelo
exemplo de coragem e determinação e pela disponibilidade em
servir.
À Lenise Ribeiro Dutra, profissional eficiente e grande amiga,
pelas advertências sempre proveitosas, pelo carinho e espírito
crítico e pelas valiosas conversas sobre estudos literários.
A todos que contribuíram, de várias maneiras e em diferentes
instâncias, para a realização deste trabalho.
A todos aqueles que passaram pela minha vida e conseguiram
despertar e incentivar o meu interesse pela pesquisa.
Agradeço igualmente,
Ao CNPQ, pela ajuda material que tornou possível este trabalho.
Aos Professores que aceitaram fazer parte da banca de defesa
desta tese.
E, finalmente, agradeço,
Ao Professor Doutor Ronaldo Lima Lins, minha
eterna gratidão pelos ensinamentos
transmitidos. Meus sinceros agradecimentos
pelo convívio, pela amizade e pela confiança
que sempre demonstrou ter em meu trabalho.
Meu reconhecimento à competência e à
seriedade com que me orientou nesta
pesquisa.
SINOPSE
Este trabalho é uma reflexão sobre as relações de Machado de Assis com a
tradução. Observaremos o Machado de Assis tradutor, o crítico e o teórico, a fim
de verificar a presença de uma teoria da tradução dissimulada em sua produção.
No caminho refletiremos sobre a antecipação, por parte do autor oitocentista, de
teorias atuais de releitura da dependência cultural, da diluição de modelos
exclusivos de referência, da revisão de conceitos de cópia, imitação e plágio e a
relação entre tradução e processos criativos.
Há na alma deste livro, por mais risonho que pareça, um sentimento amargo e áspero, que está longe de vir de seus modelos. É taça que pode ter lavores de igual escola, mas leva outro vinho. Machado de Assis Nos hábitos literários é todo-poderosa a idéia de um sujeito único. É raro que os livros estejam assinados. Não existe o conceito de plágio: estabeleceu-se que todas as obras são de um só autor, que é intemporal e é anônimo. Jorge Luis Borges
S U M Á R I O
SINOPSE............................................................................................................. 08
INTRODUÇÃO:.................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 : OS CAMINHOS DA TRADUÇÃO:
1.1 – A Tradução na História ................................................................ 20
1.2 – A tradução: de sistema lingüístico ao contexto social,
considerações................................................................................................ 27
1.3 – A “Originalidade do Original”...................................................... 31
1.4 - O que traduz o tradutor? A tradução e a subjetividade............. 33
1.5 – Laurence Venuti e o “resíduo” em tradução.............................. 40
1.6 - O canibalismo tradutório.............................................................. 42
1.7 - A tradução nos trópicos............................................................. 45
CAPÍTULO 2: LITERATURA COMPARADA: “UMA DISCIPLINA
INDISCIPLINADA”
2.1 – A Literatura Comparada e a releitura da Dependência
Cultural........................................................................................................... 54
2.2 – Tradução e Literatura Comparada, relações possíveis:.......... 61
CAPÍTULO 3 – MACHADO DE ASSIS ANTECIPA O SÉCULO XX................ 66
CAPÍTULO 4 - MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO
4.1 – Machado de Assis e o fio de Ariadne..................................... 91
4.2 – O Corvo visita o Brasil............................................................. 114
CAPÍTULO 5: A TRADUÇÃO MACHADIANA E O TEATRO NACIONAL:
5.1 – Machado de Assis parecerista do Conservatório Dramático
Brasileiro.................................................................................................. 129
CAPÍTULO 6: A TRADUÇÃO NO ROMANCE MACHADIANO:
6.1 – Dom Casmurro e o novo conceito de “plágio”.................... 141
6.2 – Esaú e Jacó no labirinto da tradução................................... 154
6.3 – Memorial de Aires e a tradução literária de Machado de Assis....
.................................................................................................................. 165
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 170
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................... 180
RESUMO................................................................................................. 196
ABSTRACT............................................................................................... 197
RÉSUMÉ................................................................................................... 198
ANEXOS..................................................................................................... 199
INTRODUÇÃO
Este trabalho convida o leitor a penetrar num labirinto que não é o de
Amenenhat III, o maior de todos os tempos, construído em 1.800 a. C. ou o do
Palácio de Knossos, em Creta, habitado pelo Minotauro , mas o intrincado labirinto
da representação, em cujo centro está um Machado de Assis quase
desconhecido: o realizador e o censor de traduções, o crítico e teórico desta
prática.
No século XIX, no período pós-independência, embora fosse imperiosa a
necessidade de afirmação de uma cultura nacional, a produção local ainda não
atendia a todo tipo de publicações, a tradução de textos estrangeiros, então,
ocupou essa lacuna, acarretando um conflito com a necessidade de alargamento
de uma identidade artística independente.
Nesse contexto, Machado de Assis aparece como censor de traduções para
o Conservatório Dramático Brasileiro e desenvolve uma técnica de tradução que
ainda não foi satisfatoriamente analisada, compondo um dos elementos da
originalidade deste estudo.
É com esse Machado de Assis que ambiciono dialogar, trazendo à baila
discussões acerca dos conflitos entre o global e o local, entre a tradição e a
contemporaneidade.
De outro modo, no seu trabalho ficcional, podemos entrever como a tarefa
do tradutor foi se transformando até atingir o ápice em seu último trabalho,
13
Memorial de Aires, onde podemos observar, mesmo de forma enviesada, o que
podemos chamar de “apreciações” sobre uma teoria da tradução nos moldes que
a entendemos na atualidade: a apropriação, a liberdade do tradutor/escritor, o
tradutor/autor, a relação de autoria e originalidade enquanto transformação de um
texto alheio.
Machado de Assis é sempre lembrado, quando trazemos à tona qualquer
assunto relativo à nossa formação cultural, pela força de suas idéias. Ainda muito
cedo, quando era aprendiz de tipógrafo, teve acesso aos livros e contato com
pessoas de vasta cultura, o que lhe afiançou, através de seu ofício, revelar seus
pensamentos à sociedade em formação e definir seu objetivo primordial:
transformar em matéria-prima para seu trabalho, através de um processo
antropofágico, toda a cultura ocidental.
Todo esse processo contribuiu de forma decisiva para nossa formação
cultural e intelectual, e para confirmarmos isso, escavaremos a produção
machadiana, que de maneira clara ou não, tratam do assunto.
As recentes discussões sobre o alargamento do conceito da tradução
recomendam também uma nova avaliação da obra de Machado de Assis. Esse
trabalho nos possibilita inferir na importância da função de tradutor na formação
intelectual do escritor e compreender seu valor para a construção da identidade
cultural brasileira.
O Primeiro Capítulo desta tese começa acompanhando o percurso da
tradução e sua importância dentro da história confirmando que, assim que os
14
homens conheceram a escrita começaram a estabelecer trocas de conhecimento
desencadeando um processo de dispersão da cultura. A atuação dos tradutores
deixou marcas na história como grandes favorecedores da divulgação do
conhecimento entre nações e modificou a idéia inicial de que o papel do tradutor
era apenas o de transcodificador de línguas. Este capítulo dedica-se a esclarecer
que o conceito de “tradução” utilizado nesta tese se originou da mudança
teórica conferida ao conceito tradicional que tratava mais especificamente do
aporte lingüístico, das relações original/cópia e da fidelidade/infidelidade ao
original, por exemplo. Esse conceito fechado sofreu uma dilatação através dos
estudos de diversos teóricos como André Lefevere, Rosemary Arrojo, Jorge Luis
Borges, os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, e ainda outros.
Tendo em vista o recorte e os objetivos propostos busquei, na literatura
sobre tradução escrita a partir dos anos 60 do século XX, autores que pudessem
representar os dois pontos de vista aparentemente divergentes sobre a questão
da tradução e que tratassem dela por um dos prismas, o lingüístico ou o literário.
Este Capítulo intitulado “Os caminhos da tradução” traz subitens
importantes para definir o percurso da tradução de sistema lingüístico à
consideração da importância do contexto social; a tradução e sua relação com a
subjetividade; sua relação com a Literatura Comparada e as metáforas utilizadas
para a atualização do conceito, principalmente no Brasil.
Neste Capítulo afirmo que traduzir não é mais transpor, trasladar de uma
língua para outra buscando a equivalência lexical, mas é também ir além,
representar, interpretar, intervir.
15
Os estudos atuais concluem que a tradução é o que, de certo modo,
garante a sobrevivência do original. Neste caso, derruba-se a noção de débito
para com o original e conclui-se que o que há é um caminho de mão dupla.
O subitem que trata da tradução e a subjetividade traz considerações sobre
o importante papel do norte-americano Laurence Venuti e sua teoria sobre a
(in)visibilidade do tradutor, que vem imprimindo avanços nos estudos da tradução
na contemporaneidade negando a dicotomia tradução livre/tradução fiel, provando
que nem uma nem outra pode ocorrer de fato porque o tradutor não consegue se
despir da carga ideológica que possui. Ainda discuto o que Venuti chamou de
“resíduo”, em tradução, num estudo que oferece uma maneira de articular e
esclarecer os dilemas éticos e políticos que os tradutores enfrentam quando
trabalham em qualquer situação.
Uma outra contribuição é dada por André Lefevere através da análise de
seus artigos sobre a tradução, nos quais busca traçar um caminho alternativo que
a tire do domínio exclusivista desta ou daquela disciplina ou que a relegue a tarefa
única da busca da equivalência, o que levaria à eliminação de um farto manancial
de grande importância, que são os textos que apresentam omissões, acréscimos
ou adaptações.
Tratando do assunto abaixo da linha do Equador lembramos, ainda neste
Capítulo, da contribuição de Jorge Luis Borges e Oswald de Andrade. No caso
brasileiro, o símbolo do antropofagismo pode ser largamente utilizado na prática
tradutória da atualidade, uma vez que ao traduzir, o escritor pratica uma
devoração do texto-de-partida e o devolve modificado. Esta atitude
16
antropofágica favorece a apropriação dos textos da cultura de origem, sua
assimilação e sua devolução totalmente modificado pela interação com outros
textos originários de outras culturas que sofrem o processo simultaneamente.
No Segundo Capítulo, “Literatura Comparada: uma disciplina
indisciplinada”, pego emprestado o título de um dos capítulos do livro de Sandra
Nitrini (1997) sobre o assunto, a fim de abordar os caminhos percorridos pela
disciplina e mostrar que seus conteúdos e objetivos mudam constantemente e
que, de acordo com uma de suas tendências atuais de transcender as fronteiras
de seus próprios estudos, abarcam os estudos da tradução numa relação
amigável e possível.
Considerando que o fazer literário tornou-se um espaço propício para o
diálogo entre o influenciador e o influenciado, onde não mais se verifica as noções
de débito e dependência, porém as de acréscimo e autonomia, o enfoque da
Literatura Comparada na atualidade propõe questionamentos dialógicos que
colaborem para a descolonização cultural porque acreditam na inserção original
que o segundo texto, a tradução, pode imprimir exatamente por ser diferente do
primeiro, o “original”.
O Terceiro Capítulo, “Machado de Assis antecipa o século XX”, traz o
trabalho de alguns tradutores com os quais Machado de Assis dialoga,
antecipando questões atuais em quase um século. Destaco a presença de Walter
Benjamin e a tarefa do tradutor, reitero a presença de Oswald de Andrade para
mostrar o quanto Machado de Assis sugere em seus textos uma devoração nos
moldes do antropofagismo, alargando as fronteiras da imitação e da adaptação,
17
busco Haroldo de Campos e a transculturação e a plagiotropia na proposição de
transformar o passado em algo novo, defendendo que quanto mais dificuldades
um texto apresenta, mais recriável ele é, e por fim, Rosemary Arrojo e sua
proposta do tradutor como autor da diferença, discutindo que nenhuma tradução
será neutra, posto que é uma leitura e acreditando que existe um “outro” autor que
atravessa e é atravessado pelo texto traduzido, desmentindo qualquer hipótese de
um tradução bem-intencionada.
O Quarto Capítulo “Machado de Assis e a tradução”, vai apresentar um
Machado de Assis que exerceu tanto a tarefa de um tradutor tradicional quanto
aquele que transborda as convenções lingüísticas. Trato do percurso da tradução
no decorrer de sua carreira percorrendo o “Fio de Ariadne” para mostrar as
mudanças em seu pensamento e ações com relação à prática tradutória.
Deste modo, este trabalho propõe um retorno ao século XIX a fim de
verificar a contribuição de Machado de Assis para os Estudos da Tradução. Em
seu tempo, o escritor tanto exerceu a tarefa de um tradutor que buscava a
equivalência lexical, como a de um interventor cultural, ao “deglutir” o “patrimônio
cultural” através de uma “tradução” criativa, contribuindo, sobretudo, para o
engrandecimento do acervo nacional.
Machado de Assis, em sua obra, desde sua atuação como tradutor lexical e
literário, como teórico e crítico desta prática, iniciou o uso de um termo operatório
da crítica atual: a intertextualidade. Este conceito, como o define Julia Kristeva,
passou desde então a ser amplamente utilizado. Os críticos de literatura
mostraram o engano de se acreditar em uma leitura singular e categórica. Fez-se
18
mister desvendar o texto e sua carga interpretativa. É imperioso concluir que todas
as obras mantêm relações intertextuais, seja com outras obras, seja com o
contexto cultural de onde brotam. No caso machadiano, ressalto que o escritor
utiliza-se do diálogo intertextual ao se amparar, mas sem ser submisso, nos
numerosos modelos textuais que aproveitava para preparar os seus próprios.
Machado de Assis assim, pode ser acatado como um dos praticantes deste
conceito operatório da crítica literária, desde as traduções e reflexões que fez
sobre a tradução até os estudos de suas fontes e influências.
Num subitem deste capítulo, intitulado “O Corvo visita o Brasil”, faço um
cotejo entre o texto poético de Edgar Allan Poe e a tradução mais famosa de
Machado de Assis com o propósito de mostrar as diferenças que o nosso autor
impetrou no texto inglês tornando-o seu.
O Quinto Capítulo, “ A tradução machadiana e o teatro nacional”,
compreende alguns textos teatrais traduzidos por Machado de Assis bem como
alguns de seus textos como parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro
que funcionam como exemplo do que chamamos de tradução lexical e a
contribuição de alguns estudiosos desta prática machadiana. Retomo alguns
trabalhos que analisam sua participação como censor teatral a fim de avaliar a
mudança de seus procedimentos em tradução.
O Sexto Capítulo “ A tradução no romance machadiano” mostra Machado
de Assis funcionando como um interventor cultural. Escavo alguns de seus
19
romances da chamada segunda fase : Dom Casmurro, Esaú e Jacó e
Memorial de Aires , com a intenção de mostrar que o autor, através de suas
“traduções”, reconstitui e atualiza textos universais imprimindo diferenças
consubstanciais, que pesam como consolidadoras de uma identidade brasileira e
periférica, mostrando que atua como aquele que ficcionaliza a própria crítica.
Identifico, através do percurso machadiano, o quanto sua proposta difere da
de seus contemporâneos com relação à noção de “cor local.”
Em outro momento, confirmo que o pensamento machadiano, expresso por
meio de metáforas, elaborou conceitos essenciais para uma ampliação das fontes
teóricas do traduzir.
A presente tese estimula uma análise do desenvolvimento dos Estudos da
Tradução, dos Estudos Pós-coloniais e da Literatura Comparada porque incide na
análise do discurso ficcional machadiano como procedimento de sua teorização da
tradução enquanto fenômeno semiótico e cultural tanto discutido na atualidade.
CAPÍTULO 1: OS CAMINHOS DA TRADUÇÃO
Da mesma maneira que os fragmentos de uma ânfora, para que se possa reconstituir o todo, devem combinar uns com os outros nos mínimos detalhes, apesar de não precisarem ser iguais, a tradução, em lugar de se fazer semelhante ao sentido do original, deve, de maneira amorosa e detalhada, passar para sua própria língua o modo de significar do original, assim como os pedaços de uma mesma ânfora, o original e a tradução devem ser identificados como fragmentos de uma linguagem maior. Walter Benjamin
1.1 – A Tradução na História:
A partir da invenção da escrita, os povos procuraram adquirir o
conhecimento técnico e científico dos seus próximos. Desse modo as traduções
ocuparam um lugar amplo na busca pelo que era visto como informação útil e
necessária. Em outros termos, desde que os primeiros homens empregaram a
escrita, os tradutores têm estabelecido elos entre as nações, as culturas e as
raças. Sem dúvida alguma esse processo de apropriação de descobertas alheias
provocou o desenvolvimento da ciência, a ampliação da tecnologia e a dispersão
da cultura.
Porém, o objetivo dos tradutores não ficava restrito aos limites do
enriquecimento da sua nação apenas. Muitas vezes, eles procuraram promover o
seu trabalho atuando como educadores, e não apenas como educandos ,
21
empregando o saber adquirido com o seu trabalho para favorecer o progresso
científico. Desta forma, os tradutores deixaram marcas na história da humanidade
e, não devem apenas ser considerados como canais passivos de informação
especializada, mas ainda como pessoas atuantes e diretamente envolvidas com
os textos que reformulavam em outra língua. Foram eles que favoreceram a
transformação de importantes textos de uma certa cultura em matéria de
dimensão universal.
Mesmo diante de tal importância, não faltaram críticas rigorosas e
desconfianças para com o trabalho de tradutores através da história.
Felizmente, nos últimos anos cresceu o interesse pela história da tradução.
Principalmente a partir da década de 1980, os estudiosos da tradução perceberam
a importância da pesquisa histórica acerca do fenômeno da tradução e
começaram a determinar os procedimentos e modelos da tarefa que cresceu
enquanto disciplina. Nosso intento neste capítulo da presente tese não é, de modo
algum, fazer um percurso histórico de tradutores através dos tempos, pois isso
demandaria uma pesquisa exaustiva que, de certa maneira, fugiria do mote
principal deste estudo, e sim, considerar através da avaliação da contribuição de
alguns tradutores famosos para o pecúlio cultural de suas nações, perceber o
quanto Machado de Assis se destaca no cenário brasileiro também pela sua
contribuição neste setor.
Verificaremos que a tradução não é uma ação individual e excepcional; é
parte complementar de todo processo normal de produção literária.
22
Espontaneamente, e com mais freqüência do que se pode supor, grande parte dos
textos escritos são produzidos a partir de traduções.
Além de ajudar a desenvolver sistemas de escrita, os tradutores em sua
tarefa de conduzir determinados textos fundamentais de uma cultura para outra,
também impulsionaram o desenvolvimento da própria linguagem.
O exemplo de Martinho Lutero faz jus a um destaque especial na história da
tradução. Além de seu papel eclesiástico, Lutero foi agente propulsor da criação
de uma língua literária na Alemanha. Suas realizações lingüísticas se norteavam
por um certo número de princípios, dentre eles a formulação de uma tradução de
acordo com a língua-meta e de que a palavra deveria seguir o sentido do texto, e
não o contrário. Na verdade, ele propõe que a tradução seja mais coloquial e mais
compreensível para tornar o texto acessível a todos.
Um bom exemplo é a tradução que fez do Novo Testamento, mais
especificamente de Mateus 12:34, que no texto em latim diz: “Ex abundantia
cordis os loquitur”. Para substituir a tradução literal, que ficava obscura ( A boca
fala a partir de um excesso de coração), Lutero propôs uma versão livre,
“mesclando” com um provérbio alemão muito conhecido: Wes das Herz voll ist,
des geht der Mund über (Arndt, 1968, p. 33). O sentido literal do provérbio é o
seguinte: “Quando o coração está pleno, a boca transborda”.
Através do exemplo acima verificamos que, em certos casos, uma
correspondência fiel trai o sentido genuíno da frase, e que os tradutores precisam,
às vezes, buscar uma correspondência na língua-meta que com outras palavras
deixe claro o pensamento contido no original. Por esse entendimento abrangente
23
do fenômeno da tradução, Lutero merece um lugar especial na história da
tradução e também da língua alemã, pois as primeiras gramáticas alemãs,
publicadas no século XVI se baseavam diretamente na tradução da Bíblia feita por
Lutero. Com sua tradução da Bíblia, ele ajudou a enriquecer e padronizar o léxico
alemão.
Da Inglaterra destacamos seu maior poeta medieval Geoffrey Chaucer
(1340-1400), para quem a tradução era uma atividade fundamental. Escrevendo
em inglês, num momento em que o latim ainda gozava de grande prestígio
cultural, Chaucer ganhou autoridade e importância com seu trabalho como
tradutor e compilador. Ele traduziu obras clássicas e vernáculas do latim, francês e
italiano, apoiou-se em Boécio, Boccaccio, Petrarca e Dante e “incorporou” aos
seus escritos os principais assuntos filosóficos e artísticos daquele momento. Para
Chaucer, como para outros antigos escritores em vernáculo, havia uma forte e
sedimentada relação entre a tradução, a compilação e o aproveitamento de textos,
de um lado, e, de outro, a autoria original. Uma maneira de revogar esses conflitos
era a idéia da tradução como recriação, costume que desapareceu durante certos
períodos diante da hegemonia da autoria original, mas que prosseguiu ao longo
da história até os nossos dias, provocando as mais acaloradas discussões.
A metáfora de Chaucer – arar velhos campos para cultivar uma nova
colheita – transcende tempo e espaço e em muito lembra a metáfora machadiana
“ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para temperá-la com o molho de sua
fábrica” de que trataremos mais adiante.
Diz Chaucer:
24
“For out of olde felds, as men seyth,
Cometh al this newe corn fro yer to yere,
And out of olde bokes, in good feyth,
Cometh al this newe science that men lere.”
Em velhos campos vê-se cada ano
Novas espigas sendo colhidas;
E dos livros antigos provém, de boa-fé,
Toda a nova ciência aprendida pelos homens.
( Chaucer, Parliament of Fowls, 1977, p. 566)
Através da história, a atração pelo original sempre esteve vinculada ao
desejo de forjar alguma coisa nova. No entanto, para Chaucer, as idéias de
traduzir e recriar, de imitar e deslocar, de importar e conquistar têm estado
indissoluvelmente vinculadas.
Desta maneira, podemos verificar que a tradução sempre se fez dentro de
um determinado contexto, que seus momentos culminantes estão fundamentados
na história e que participaram ativamente do processo de surgimento de uma
literatura, que aconteceu sempre em relação a outra numa atividade de
diferenciação. Daí conceber como parte do procedimento a relação entre centro e
margens, entre a cultura dominante e as culturas de menor peso, como confirma
Octavio Paz:
25
Há uma interação constante entre as duas, um
contínuo enriquecimento recíproco. Os períodos
mais criativos da poesia ocidental foram
precedidos ou acompanhados pelo cruzamento
de traduções poéticas. Por vezes esses
cruzamentos assumiram a forma da imitação, em
outras oportunidades adotaram a da tradução.
(PAZ, 1992, p. 160)
O século XVIII trouxe a teoria novidadeira da construção do conceito de
originalidade. Antes dessa época, as maiores tradições literárias se construíam
através da leitura e tradução, ou mesmo, da imitação das fontes estrangeiras.
De todo modo, o Romantismo europeu foi responsável por uma série de
traduções que enriqueceram as literaturas de todo o mundo ocidental. Um grande
fenômeno europeu surgiu com as traduções da obra de Shakespeare. A produção
teatral francesa se assentava sobre as traduções de Jean-François Ducis (1733-
1816), que eram consideradas “originais” já que os temas abordados por ele,
fossem históricos ou mitológicos, diferiam em diversos pontos da antiga tragédia
clássica. Suas versões eram consideradas intermediárias entre a tradição e a
inovação.
O inventário dos grandes autores que abordaram ocasionalmente o tema da
tradução ou dos problemas tradutórios é interminável, e ainda pontuamos Goethe,
Schopenhauer, Nietzsche, Matthew Arnold, Paul Valéry, Ezra Pound, Benedetto
Croce, Ortega y Gasset e Walter Benjamin. Todos eles aludem às combinações
da língua, de níveis de entendimento, da correspondência, da tradução livre, das
26
possibilidades e das limitações da tradução. E a quase totalidade deles entende o
exercício de traduzir como uma prática de “um exercício de estilo, uma pesquisa
de interpretação; é, afinal, um ato de amor, pois trata-se de se transferir por inteiro
numa outra personalidade”. (GUIMARÃES ROSA).
Antes, tudo acontecia já emendado e
envelhecido, igual se as coisas saíssem uma das
outras por obrigação sorrateira como se o atual
nunca pudesse ter uma separação certa do já
passado...
Guimarães Rosa
No século XX, mais precisamente a partir dos anos 30, o pensamento
tradutório se estruturou numa base normativa, uma vez que a tradução surgiu
como uma disciplina lingüística. O conceito de “equivalência” predominava nos
assuntos de tradução, que era desvinculada de quaisquer critérios históricos ou
contextuais. O foco da tradução era a palavra, que deveria ser reproduzida em
outra língua o mais equivalente possível com a palavra original. Com o
deslocamento do enfoque para o texto como unidade de tradução, surgiu uma
nova abordagem para os assuntos tradutórios, porém o conceito de “equivalência”
ainda permanecia arraigado, emperrando o avanço nesse campo.
A partir dos anos 30 do século XX, a tradução divorciou-se um pouco dos
estudos de base lingüística para ser vista como interpretação, alterando a visão
27
que se tinha, até então, do tradutor como um eterno descobridor de equivalências
e substituindo sua função para “mediador entre textos”.
Nos últimos anos do século XX e já nos que iniciam o novo século, o
esforço conjunto de teóricos, pesquisadores e tradutores, vem fortalecendo o
campo para que a tradução desenvolva suas próprias teorias, metodologias e
instrumentos de pesquisa, levando-a a firmar-se como uma nova e importante
área de conhecimento.
1.2 – A tradução: de sistema lingüístico ao contexto social,
considerações:
O homem é o ente que sabe expressar-se
em vários níveis . Quando passamos algum
pensamento de nossa linguagem cotidiana para o
idioma escrito, realizamos um ato tradutório, e
da mesma forma agimos, apenas em outro nível,
quando procuramos entender expressões
estrangeiras, seja em filme ou em conversas, ou
quando as utilizamos, entremeadas em nosso
próprio fluxo oratório.
Erwin Theodor
Normalmente, traduzir significa transportar textos de uma língua para outra.
Mas este sentido é restrito, pois sendo a tradução um processo complexo, há que
se considerar, portanto, além de questões culturais e lingüísticas, todo um trabalho
de criação. Isto acontece, principalmente, na tradução de textos literários.
28
Inicialmente, o papel do tradutor era, basicamente, de transcodificador de
línguas, responsável por uma atividade menor. Tanto isso ocorria, que seu nome
não era quesito obrigatório, como hoje, nas referências bibliográficas. Havia uma
tentativa de se reduzir o trabalho à busca da fidelidade ao original. Exemplo disso
é a fórmula tão amplamente propagada “tradutor/traidor”.
A partir da noção estruturalista, o tradutor foi colocado numa posição
complexa, pois, se de um lado dele se exigia a transposição literal, para a língua-
de-chegada, dos significados contidos no texto-de-partida; de outro, essa
transposição passou a ser admitida como muitas vezes impossível, motivadas
pelas diferenças naturais entre dois sistemas lingüísticos distintos, cabendo a ele
uma missão quase sobre-humana.
Toda essa discussão ganha contornos ainda maiores quando se começa a
considerar as disciplinas que tratam do assunto. Quase todos os trabalhos
dedicados ao tema abordam a perspectiva lingüística do tema tradução. Não há
muito espaço para discussões sobre a tradução do texto literário. Por outro lado,
mesmo os autores que se dedicam aos estudos literários também evitam tratar do
assunto e “a grande maioria dos escritores e poetas que abordam a questão da
tradução de textos literários considera que traduzir é destruir, é descaracterizar, é
trivializar”, ou que é “teórica e praticamente impossível” ( ARROJO, 1986, p. 25-6).
A maior parte dos trabalhos publicados que tratam de tradução e literatura
entre os anos 60 e 70 focaliza um texto específico, de uma literatura específica,
um autor ou um tradutor. Num âmbito geral, aborda-se a tradução feita com
29
finalidade estética, como criação artística ou recriação literária de um autor em
particular, contudo, os trabalhos não se sustentam em um enfoque teórico.
Outras vezes, por trás de uma aparência de senso comum, há, na verdade,
uma escandalosa adoração pela língua ou literatura estrangeira, o que é
inconcebível dada a radicalidade da situação ou na crença de que nenhuma
tradução é boa o suficiente. Erros, toda tradução pode apresentar e esses podem
ser corrigidos. Porém, nem mesmo nestes casos podemos diminuir sua
legibilidade, sua capacidade de comunicação.
Na verdade, o maior receio dos acadêmicos de língua estrangeira está em
acreditar que a tradução pode ameaçar os outros estudos das línguas
estrangeiras, muitas vezes um tanto automáticos. Em casos mais extremos, o
temor pode ser de que a tradução venha a diminuir ou até acabar com esses
estudos, esquecendo-se de que, sem o ensino de línguas estrangeiras não se
formam tradutores, nem a tradução pode ocorrer ou ser estudada.
Na circunstância atual, a partir da revogação das fronteiras geográficas e
intelectuais, as obras literárias espraiaram-se, perdendo os limites que a
cerceavam e passaram a reabastecer-se entre as culturas universais. O texto não
é mais um invólucro, entendido como algo hermético, e foi substituído pela noção
de texto/tecido, uma rede de informações, um “mosaico de citações”, como quis
Julia Kristeva (1974).
Mais modernamente, principalmente após ser compreendida como uma
forma de intertextualidade, a atividade de tradução passou a merecer um outro
olhar.
30
Por ser uma retomada de outros textos, a intertextualidade lega à obra
literária um outro sentido e a tradução, enquanto seu sinônimo, deixa de ser
singular, redutora e exclusiva e passa a ser inclusiva, uma alimentadora voraz de
textos, sugerindo a liberdade do tradutor de se nutrir de outros textos, tornando-se
plural. Ou seja, se através da intertextualidade, os textos literários são re-
presentados (“presentados” de novo), no sentido de trazer para o presente
novamente, mas já modificados e não mais representados, podemos afirmar que
a tradução ganha o contorno de ser um processo metamórfico, de transformação
de uma coisa em outra, porém sem o compromisso dessa segunda coisa ser igual
à primeira.
De acordo com Ronald Taveira da Cruz em seu artigo “ A tradução como o
segundo original”
Isto é a intertextualidade: uma obra pode se
apropriar de outra respectiva obra dando-lhe
cores outrora nunca reforçadas e que poderão
ser mais evidentes no momento em que sua
cultura necessitar de forças para melhor enxergar
a “alma” dessa respectiva obra literária. Em
outras palavras, se existe uma certa obra que foi
escrita em um certo país, em dada época, de
acordo com tais perspectivas e outro escritor
quiser redimensiona-la para seu país, sua época
e costumes diferentes, ele necessita com
petulância aprimorá-la aos novos ambientes
tanto socioculturais quanto lingüísticos, creio,
entre outros. (TAVEIRA, 1998). grifo nosso
31
1.3 – “A Originalidade do Original”
Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a
tradução de outro texto. Nenhum texto é
completamente original porque sua própria
língua, em sua essência, já é uma tradução: em
primeiro lugar, do mundo não-verbal e, em
segundo, porque todo signo e toda frase é a
tradução de outro signo e de outra frase.
Entretanto, esse argumento pode ser modificado
sem perder sua validade: todos os textos são
originais porque toda tradução é diferente. Toda
tradução é, até certo ponto, uma criação e, como
tal, constitui um texto único.
Octavio Paz
Um grande entrave nos estudos da tradução é o problema do “texto
original”. Alguns estudos sobre tradução se propuseram erroneamente a
considerar que teríamos pleno acesso à origem num processo tradutório. Essa
teoria é ilusória e ápora e manifesta-se pelo próprio uso do termo “texto original”
como sinônimo de “texto-fonte” ou “texto-de-partida”. Esses termos parecem
implicar na existência de uma “fonte” que carregaria o sentido e a intenção plena
e inicial de todos os textos. Porém, sendo a cultura a conseqüência de uma
interpretação, concebemos que o tradutor não lida com uma fonte, nem como uma
origem fixa, mas constrói uma interpretação que, por sua vez, também vai ser
movimento e desdobrar-se em outras interpretações.
32
Uma vez que é indiscutível a importância da leitura para a sobrevivência de
um texto, podemos deduzir que toda leitura está em dívida como o texto lido.
Assim, todo “original” depende do tradutor para essa mesma sobrevivência e é
preciso analisá-lo a partir de uma leitura contextualizada que articule os textos-de-
partida, ou o “original”, com o texto-de-chegada, ou a tradução, numa relação que
não seja de oposição. Ao constatar que o texto “original” também é produzido
através de um ato de leitura, podemos entender o paralelismo existente entre
“original” e tradução: ambos são resultado de uma leitura construída.
O pensamento contemporâneo reforçou a importância dessa relação ao
destacar que é inútil tentar neutralizar as diferenças. Essa atitude tem tido impacto
direto nas investigações sobre a atividade tradutória, pois tais concepções abalam
também a própria idéia de débito que o original tem para com a tradução, que
garantiria a sua sobrevivência.
Nesse universo, é preciso conceber a tradução como atividade produtora de
significado, o que implica que ela seja encarada como um caso particular de
leitura, ou de escritura, que promove a diferença, a transformação.
Uma concepção que espera que a tradução repita o “texto original”, que
seja sua perfeita equivalência, que reproduza seus valores, é tanto inviável quanto
impossível, porque tanto a tradução como o texto original mantém uma relação
necessária com o tempo, com o espaço, com as línguas e, na medida em que as
diferenças não permitem que dois textos estejam em relação de equivalência,
poderíamos pensar que estariam em relação de complementaridade.
33
Essa relação de complementaridade, à primeira vista, pode ser adequada
para explicar a relação entre tradução e texto-de-partida. Porém, “complementar”
significa preencher uma falta para formar uma nova estrutura completa. Implica
supor que cada texto ofereceria interpretações diferentes que se
complementariam tornando completo o texto, ou ainda que um elemento, ausente
e exterior ao primeiro texto, a ele se acrescente para formar um todo perfeito. Mas
sabemos que essa relação não é tão pacífica assim, ao contrário, desencadeia-
se numa relação em que há conflitos, em que se estabelece um embate pelo
poder de significação.
O termo exato e que caberia com sucesso para nomear esse processo é
suplementaridade. “Suplementar” significa ampliar. O suplemento é algo que
amplia, esclarece e aperfeiçoa, que uma vez adicionado, não possibilite mais o
retorno a uma origem pura, mas que verta o “novo” como um original para novas
cadeias de significações.
1.4 - O que traduz o tradutor? A tradução e a subjetividade:
No livro The translator’s invisibility- a history of translation ( 1995), o norte-
americano Laurence Venuti, ao lado de suas colocações mais tipicamente
teóricas, vinculadas a autores e ensaios, desenvolve inúmeras e minuciosas
análises, feitas sobre amplo material pesquisado. Com o emprego desse material,
que compreende traduções, prefácios e cartas, textos de crítica e literaturas dos
mais diversos gêneros e nacionalidades, ele vai construindo uma história da
34
tradução contextualizada no universo anglo-americano, em particular entre o
século XVII e os dias de hoje. Ele também assume uma atitude claramente política
através da qual convoca os tradutores a se oporem às práticas tradutórias
dominantes e a transformá-las, introduzindo, em suas culturas, textos e discursos
marginalizados, e “exigindo contratos que definam a tradução como um trabalho
de ‘autoria original’ e não como ‘prestação de serviço’ ( VENUTI,1995, p. 311).
Para ele, as estratégias tradicionalmente utilizadas na escrita e leitura das
traduções são responsáveis pela invisibilidade do autor da tarefa, marginalizando-
o. Contudo, as novas estratégias que sugere marcariam a sua visibilidade,
contribuindo assim para que o mesmo viesse a obter uma real valorização de seu
ofício em todos os sentidos: remuneração, regulamentação e, finalmente, o
prestígio desejado. Tais estratégias de escrita e leitura são observadas por
Venuti, sempre adotadas como práticas discursivas que, ideologicamente
determinadas, conseguem ou o apagamento ou o resguardo do estrangeiro, este
concebido como aquilo que difere dos cânones domésticos.
Em seu ensaio “A invisibilidade do tradutor” ( 1995), Venuti defende que
tanto uma técnica de escrita, que rompa com as estratégias hegemônicas, quanto
uma técnica de leitura crítica, nas quais o processo produtivo torne-se visível,
inclusive para leitores que desconheçam a língua estrangeira na qual o texto
original foi escrito, baseiam-se na idéia, a seu ver já aceita hoje em dia, de que
verter implica transformar o original. Essa forma de conceber, pressuposto
indispensável à construção de sua teoria de visibilidade, decorre justamente do
35
enfrentamento teórico de diferenças de sentido determinadas por contextos
sociais e externos.
“Ao efeito da visibilidade do autor, corresponde o de invisibilidade do
tradutor”. Essa relação é explicada por Venuti através de suas implicações, do
conceito de autoria: por ser o texto estrangeiro visto como a representação original
e autêntica dos “pensamentos e sentimentos” do autor, cabe ao tradutor produzir
um texto que é visto como a representação de segunda ordem, uma cópia
potencialmente falsa, e, simultânea e paradoxalmente, cabe a ele também “apagar
o seu estatuto de segunda ordem com um discurso transparente, provocando a
ilusão da presença autoral através da qual o texto traduzido pode ser encarado
com o original” .(VENUTI, 1995, p. 07)
Temos assim que, como insiste Venuti em todas as suas análises, ao autor
normalmente associa-se uma subjetividade individualista que excede limites,
enquanto ao tradutor é vinculado um estilo neutro e imparcial, já dele ou resultante
de um “auto-apagamento”. Um tradutor que, como Pound, citado por Venuti em
vários de seus ensaios, faz uma tradução “livre”, acaba sendo culpado pelas
‘liberdades’.
Ao chegar a esse ponto da reflexão, podemos observar a dura tarefa que o
trabalho com a tradução enfrenta: de um lado, a exigência da literalidade,
neutralidade e fidelidade; de outro , a da criatividade ou liberdade, nas quais a
tradução se vê tradicionalmente colocada, e que resultam numa bifurcação nesses
estudos e na maneira de relacionar o tradutor , as línguas e os textos. Os
trabalhos de Venuti têm como ponto de partida a afirmação de que toda
36
tradução necessariamente implica a intervenção daquele que a realiza e, como
este trabalho, investiga um enfoque teórico da tradução que ultrapasse a
‘dicotomia fidelidade-liberdade’:
O conceito de tradução como prática social
escapa às ciladas da dicotomia fidelidade-
liberdade que têm levado as discussões sobre
textos traduzidos a um impasse. A “fidelidade”
não pode ser entendida como uma equivalência
lingüística, pois, como o tradutor é obrigado a
fazer escolhas interpretativas, a tradução torna-
se necessariamente uma aproximação ou
estimativa que vai além do texto original. Isto não
significa, entretanto, que a tradução esteja
eternamente confinada à esfera da ‘liberdade’, da
‘impossibilidade’, do ‘erro’ e da ‘subjetividade’,
pois a interpretação do tradutor é limitada por um
conhecimento da cultura da língua-fonte, ainda
que parcial, e por uma assimilação dos valores
culturais da língua-meta. (Ibidem. p 122)
Para Venuti, em todo e qualquer ato de tradução reside uma violência
etnocêntrica, uma vez que traduzir consiste justamente em substituir a diferença
lingüística e cultural do texto estrangeiro por um texto inteligível para o leitor da
língua-meta. Como avalia o teórico, essa diferença nunca pode ser totalmente
extraída; contudo, ela passa a ser abalada pela cultura da língua-de-chegada,
suas tradições e ideologias, seus códigos e interditos.
Por esse caminho, ele nega a dicotomia estabelecida tradução livre/tradução
fiel, mostrando que nem uma nem outra pode de fato acontecer, uma vez que não
37
é possível ao tradutor despir-se de toda uma carga ideológica e cultural que o
constitui, a qual se refletirá em suas interpretações. Assim como a autoria ou a
tradução tida como livre, a pretendida neutralidade do ato tradutório é por ele
mostrada como um resultado superficial, suscitado por determinada tática de
escrita.
Para Venuti, a tradução nunca pode ser meramente a comunicação entre
semelhantes, porque ela é profundamente etnocêntrica. Isso é explicado já na
necessidade de escolha do texto que será traduzido, já que o texto estrangeiro é
selecionado para satisfazer gostos diferentes daqueles que motivaram sua
composição e recepção em sua cultura nativa. Essa é uma das principais funções
da tradução, a assimilação, a inscrição de um texto estrangeiro com
inteligibilidades e interesses domésticos.
Para exemplificar o que afirma, Venuti comenta a tradução que fez, em
1994, de um romance de Tarchetti, um escritor italiano do século XIX, chamado
Fosca a qual deu o título de Passion. O romance de Tarchetti mistura melodrama
romântico com realismo num texto que remete tanto a Madame Bovary
(FLAUBERT, 1857) quanto a Thérèse Raquin ( ZOLA, 1867 ). Vertido para o
inglês, Fosca garantia aos leitores a redescoberta de um clássico histórico, uma
“interferência estrangeira” à cena italiana. De certa maneira, durante o processo
da tradução percebeu que o romance de Tarchetti se transformara em uma versão
metamorfoseada para uma forma mais popular. Em outros termos, a tradução de
um texto canônico italiano que deveria interessar a um público mais elitizado, em
sua nova forma acabou tendo maior abrangência. O “ produto-derivado ” da
38
tradução não só assumiu uma nova forma, como um novo público. Venuti utiliza o
termo “produto-derivado” para significar um produto que é lançado a partir de outro
produto “original” ou a partir de uma obra como um livro, peça teatral, etc.
A teoria que se observa surgir a partir disso mostra que as estratégias
desenvolvidas nas traduções dependem primeiramente da interpretação que o
tradutor faz do texto estrangeiro. De acordo com Venuti, essa interpretação
“sempre olha para as duas direções”, por um lado é mister se afinar com as
qualidades especificamente literárias daquele texto, por outro, é imperiosa uma
avaliação dos leitores domésticos que o tradutor espera alcançar.
Voltando à tradução que fez, Venuti observa que em alguns pontos,
combinou várias palavras que se apresentavam mais desarmônicas para lembrar
o leitor de que ele ou ela estava lendo uma tradução atual. Numa cena em que a
personagem Giorgio passa uma noite inteira com Fosca, que se mostra
arrebatada de amor como quem está desfalecendo, Venuti faz as seguintes
alterações:
Suonarono le due ore all’orologio.
- Come passa presto la nolte; il tempo vola quando si è felici
– diss’ela.
( Tarchetti, 1971, p.82)
The clock struck two.
39
“ How quickly the nigth passes; time flies when you’re having
fun”, she said.
(Venuti, 1994, p. 83)
O relógio bateu duas horas.
“Como passa rapidamente a noite; o tempo voa quando
você está se divertindo”, disse ela.
A declaração time flies when you’re having fun é realmente uma variante
consoante com a do italiano. No entanto, no inglês americano adquiriu a forma de
um chavão quase irônico.
E assim declara Venuti
Por um lado, o clichê é característico de Fosca,
que tanto tende a fazer vigorosas declarações de
lugares-comuns românticos como está inclinada
a ser irônica em suas conversas; por outro lado,
o aparecimento abrupto de uma expressão
contemporânea num contexto arcaico quebra a
ilusão realista da narrativa, interrompendo a
participação do leitor no drama dos personagens
e chamando a atenção para o momento no qual a
leitura está sendo feita. E quando esse momento
torna-se consciente, o leitor vem a perceber que
o texto não é o italiano de Tarchetti, mas uma
tradução em língua inglesa. (VENUTI, 2002,
p.40)
40
A intenção de colocar essa exemplificação nesta tese foi a de constatarmos
como numa tradução um simples “resíduo” pode ter efeitos múltiplos.
1.5 – Laurence Venuti e o “resíduo” em tradução:
Depois de muitos anos dedicados a formulações de teorias e diversos
outros dedicados à prática da tradução, Venuti questiona as abordagens de
orientação lingüística que surgiram nos estudos da tradução durante os anos 60
do século XX, e que se caracterizaram, desde então, numa disposição
predominante. Essas orientações, geralmente baseadas na lingüística textual e na
pragmática, partem de conjecturações divergentes sobre língua e textualidade. De
acordo com Venuti, essas abordagens realçam um padrão conservador de
tradução que abrevia seu papel na inovação cultural e na transformação social.
Com a intenção de não condenar essas abordagens ao abandono, mas sugerindo
sua própria reconsideração a partir de uma nova orientação teórica e prática,
Venuti acredita que o caminho correto é o que permita ao tradutor escolher entre
práticas textuais diferentes a que deve empreender, considerando, sempre, o
cotejo entre textos estrangeiros e traduzidos, buscando mudanças, inferindo
preceitos, e baseando o ato tradutório na consideração do conceito de resíduo.
De acordo com Venuti
Estudar o resíduo em tradução não
implica abandonar a descrição empírica das
práticas textuais recorrentes e das situações
41
típicas. Pelo contrário, esse estudo oferece uma
maneira de articular e esclarecer – em termos
que são tanto textuais como sociais – os dilemas
éticos e políticos que os tradutores enfrentam
quando trabalham em qualquer situação. Nosso
objetivo deve ser a pesquisa e o treinamento que
produzem leitores de traduções e tradutores que
sejam criticamente conscientes, não predispostos
a normas que excluam a heterogeneidade da
língua. (VENUTI, 2002, p. 63)
Se a conseqüência da tradução revela-se conservadora ou transgressora,
vai depender basicamente das táticas discursivas empregadas pelo tradutor, mas
também dos vários fatores envolvidos na sua recepção.
O importante é considerar de sobremaneira que sendo a tradução uma
imponente contribuidora para a criação de discursos literários domésticos, ela
precisa ser incluída, de forma inevitável, em projetos culturais ambiciosos,
especialmente no desenvolvimento de uma linguagem e literatura que reflitam o
local. A formação de identidades culturais sempre resultou desses projetos, que
devem sempre considerar as estratégias discursivas, sejam elas acadêmicas ou
não. Isso não significa afirmar que a tradução pode sempre se livrar de sua tarefa
básica de reescrever o texto estrangeiro em termos culturais domésticos. A
questão, na verdade, é que um tradutor pode eleger um caminho que
descentralize e redirecione o movimento etnocêntrico do qual se utilize. A
identidade forjada nessa empreitada será legitimamente intercultural, não só
42
porque se ajusta em duas culturas, a doméstica e a estrangeira, mas porque
cruza as fronteiras culturais entre os vários públicos locais. Essa é uma ética da
diferença que pode mudar a cultura local e acentuar o viés “escandaloso” de uma
tradução, segundo Venuti.
1.6 – O Canibalismo Tradutório:
A presente discussão acerca das teorias da tradução é marcada por um
espírito mais ponderado de nossos tempos.
Uma alteração teórica vem-se dando no sentido de entender a tradução
como uma atividade em que se trabalha com a linguagem, atua-se com a
diferença, não se podendo mais ter, portanto, a perspectiva de que ela se atenha
a uma mera adaptação de significados e intenções.
André Lefevere, estudioso da tradução pertencente ao chamado grupo
Anglo-Americano, auxiliado sobretudo por descrições de traduções de textos
literários, tem definido importantes áreas de oposição ao domínio da lingüística
sobre a pesquisa em tradução, principalmente por causa das críticas que
apresenta aos que avaliam como entraves as tentativas de sistematização do ato
tradutório.
A apreciação dos trabalhos de Lefevere entre 1981 e 1992 mostra que o
teórico considera a tradução uma reescritura, podendo sofrer a mesma espécie
de coibições que ela. O intercâmbio entre ambas seria, até mesmo, responsável
43
pela canonização de certos autores, reprovação de outros e as modificações
pelas quais passa a literatura, na medida em que a tradução pode contribuir para
o seu percurso.
Em Translation, rewriting and the Manipulation of Literary fame (1992),
Lefevere salienta a dupla função exercida pela reescritura. Por um lado, pode ser
inovadora e revolucionária, pois “pode introduzir novos conceitos, novos gêneros,
novos mecanismos e a história da tradução é também a história da inovação
literária, do poder modelador de uma cultura sobre a outra.” (LEFEVERE,1992,p.
07). Por outro lado, pode ser repressiva e conservadora ao manipular as obras
para que se moldem à poética ou à ideologia constituída. Em quaisquer situações,
o autor ressalta “ tanto a importância da reescritura, a força motriz por trás da
evolução literária, quanto a necessidade de estudo do fenômeno em maior
profundidade”( idem), ao argumentar que a tradução não pode estar unicamente
ligada à lingüística, pois envolve fatores extralingüísticos, tanto na análise quanto
no ensino.
Por muito tempo, tais estudos seguiram rumos diferentes: a área de
literatura enfocando exclusivamente a tradução literária e outras áreas,
especialmente a lingüística, enfocando a tradução “comum”. E como o próprio
Lefevere aponta em vários trabalhos, os rumos que esses estudos seguiram não
foram satisfatórios. Entretanto, dividir o território em dois campos não leva
apenas à noção de que é necessário ter algum talento especial para traduzir
literatura: acaba por conduzir à crença de que a tradução seria uma arte. Por um
44
lado afirma que a especificidade da tradução de literatura não se relaciona ao
processo, mas ao modo como a tradução funciona na literatura ou na cultura-alvo.
De outra forma, também de acordo com Lefevere (1992), o estudo da
tradução nos anos 30 e depois da Segunda Guerra Mundial enfocava tão-somente
o panorama lingüístico. Conjecturava-se que tradução era equivalência e
ignorava-se a tradução literária. Considerava-se mais fortemente a noção de que
são traduções apenas os textos que se apontam como equivalentes, ou seja, que
apresentam todos os segmentos substituídos em outra língua, e tal atitude levaria
à eliminação de muito material que o crítico avalia de primordial importância,
principalmente textos que exibem omissões, acréscimos, resumos,
adaptações, extirpados de análise pelos lingüistas.
Esse olhar sobre o tema da fidelidade aparece assim em Translation/
history/ culture:
Na maior parte dos casos, os
tradutores...reescrevem, tanto no nível do
conteúdo quanto no do estilo...pode-se
mostrar, portanto, que a “fidelidade” em
tradução não é exatidão, nem primeiramente
uma questão de ajustes no nível lingüístico.
Envolve, mais precisamente, uma complexa
rede de decisões tomadas pelos tradutores
nos níveis de ideologia, da poética e do
universo do discurso. (LEFEVERE, 1992, p
35)
45
Neste panorama, a palavra “manipulação” poderia ser avaliada por dois
caminhos que se bifurcam: o de “preparar”, “engendrar”, “forjar”; mas também, o
de “adaptar ou mudar intencionalmente alguma coisa para adequar-se a algum
objetivo”. Da mesma maneira, as noções de desafio e de subversão, que Lefevere
(1992) relaciona podem se reverter para a noção de traição, explícita na
expressão “traduttore, traditore”.
Assim, Lefevere tanto busca traçar caminhos alternativos para o estudo da
literatura, quanto para o estudo da tradução. Uma análise cuidadosa de seus
textos leva a cogitar se seu objetivo não seria oferecer os fundamentos de uma
disciplina que estudasse os textos refratados, ou seja, estabelecer um esboço de
uma disciplina autônoma que tivesse como objeto a reescritura, por que de acordo
com o próprio significado da palavra refractario considera-se que é “aquilo que (de
certo modo) resiste a certas influências”. Reafirmando o indício desse propósito
mais amplo, Lefevere & Bassnett (1990) analisam que o futuro dos estudos da
tradução está na análise de imagens, tanto a de uma determinada literatura
quanto a dos trabalhos que a constituem, ou seja, no estudo da reescritura.
Pensam que a tradução tem sido um dos elementos que moldaram as culturas, o
que implica que não se pode conduzir o estudo da literatura comparada sem a
tradução.
1.7 – A Tradução nos Trópicos:
46
Começaremos esta parte da presente tese relembrando uma máxima do
argentino Jorge Luís Borges na qual afirma que
Se as páginas deste livro consentem algum verso
feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de tê-lo
usurpado, previamente. Nossos nadas pouco
diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que
sejas tu o leitor destes exercícios, e eu o redator
deles. ( Prefácio do livro Fervor de Buenos Aires)
É com esta citação de Borges que Ermelinda Ferreira começa seu ensaio “
O Leitor no Texto” (s/d), relembrando que
Nas ficções de Jorge Luís Borges, uma das
quais, o conto “Pierre Menard, Autor do Quixote”,
tornou-se um verdadeiro fetiche da crítica
contemporânea, ilustrando um dos temas
centrais de teorias da literatura recentes, ao
sugerir um personagem que se impõe a tarefa
quixotesca de escrever o Dom Quixote de
Cervantes, não como uma paródia ou paráfrase
ou cópia ou transcrição, mas como se ele,
Menard, pudesse ser o próprio Cervantes. A
frustração do projeto do francês acaba revelando,
porém, um fato inusitado: afinal, haveria hoje
algum outro Quixote senão o de Menard?; ou
seja, haveria, hoje, alguém capaz de ler a obra
de Cervantes tal como ela teria sido lida no
século XVII, ou só poderíamos ler da obra de
Cervantes aquilo que nosso ‘ horizonte de
47
expectativas’ nos possibilita? Neste caso, o que
lemos não é o Quixote de Cervantes , mas o
Quixote do nosso contemporâneo Menard ( que
nem precisou realmente escrevê-lo, uma vez que
o texto já estava escrito). Em outras palavras –
como diria Fish – não lemos o Quixote, nós o
‘escrevemos’, nós o construímos. (FERREIRA).
A ensaísta neste estudo destaca a importância e a presença do leitor, direta
ou indiretamente, no universo textual, e como tal lembra que a própria leitura é
uma tarefa de escritura. Baseando-se em Borges e seu Pierre Menard, afirma que
os textos “brotam” de outros textos, oriundos dos recantos mais indizíveis de
nossa memória leitora, e portanto estamos autorizados a usar dos livros alheios
como bem nos aprouver. Somos todos “Pierre Menards”, afirma Ferreira, autores
de Quixote, de Hamlet, da Divina Comédia...
Assim podemos admitir que encontramos também considerações amplas
como essa quanto ao fato de “tudo” ser uma tradução, neste novo sentido que o
termo abarca. Partindo deste princípio, desempenhamos todos, e a todo o
momento, ação tradutória, voluntária ou involuntariamente, e chegamos à
conclusão, como querem muitos, de que a tradução é atividade essencial.
Para o argentino Borges, as palavras do passado são contemporâneas,
porque a literatura não distingue diferenças de tempo ou nacionalidade. Em sua
obra – os escritos teóricos, sua ficção e as meticulosas notas explicativas –
podemos perscrutar uma clara identificação das traduções com a criação. Para
48
ele, a verdadeira função da tradução está em transmitir processos estilísticos,
novas formas poéticas, modelos e métodos narrativos, até mesmo critérios de
verdade e beleza, considerando que as línguas não são universos simbólicos
estanques, mas depósitos de processos poéticos e narrativos, de fácil acesso para
a utilização de todos os escritores do mundo.
No Brasil, a tarefa tradutória é algo que coincide com o surgimento das
produções literárias nitidamente nacionais. Um dos primeiros tradutores de que
temos notícia e que citaremos por sua importância em utilizar a tradução como
criação foi Justiniano José da Rocha (1811-1862), o “primeiro dos jornalistas
brasileiros de seu tempo”, título conferido pelo Barão do Rio Branco. Justiniano foi
um dos precursores do romance no Brasil e também um dos responsáveis pela
introdução do romance-folhetim no país, confessou na nota de pé de página de
um de seus romances a imitação de uma obra francesa:
Será traduzida, será imitada, será original
a novela que vos ofereço, leitor benévolo? Nem
eu mesmo que a fiz posso dizer. Uma obra existe
em dois volumes, e em francês, que se ocupa
com os mesmos fatos; eu a li, segui seus
desenvolvimentos, tendo o cuidado de reduzi-
los aos limites de apêndices, cerceando umas,
amplificando outras circunstâncias, traduzindo
os lugares em que me parecia dever traduzir,
substituindo com reflexões minhas o que
parecia dever ser substituído(...) (ROCHA, 1839)
grifo nosso.
49
Percebemos que esses folhetins traduzidos vieram preencher um vazio na
literatura brasileira, quando esta se encontrava ainda em formação. Nesse tempo
ela dependia de modelos estrangeiros, porque não criava todo tipo de produção
literária. Esses folhetins é que trouxeram os elementos inovadores que
proporcionaram sua ampliação e renovação. As traduções utilizadas propuseram
novos parâmetros e não funcionaram como uma força conservadora, preservando
formas tradicionais, mas apresentaram um gênero novo – o que ilustra a
relevância da tradução na evolução de uma literatura.
Também em terras brasileiras, vamos encontrar Paulo Ronái, que embora
húngaro de nascimento, estabeleceu-se no Brasil desde 1941, considerado como
um dos mais importantes teóricos da tradução em nosso país.
Todos são unânimes em destacar a importância cultural de seu trabalho
como tradutor rigoroso e dotado de grande conhecimento literário e lingüístico.
Os irmãos Campos, Haroldo e Augusto, levaram a prática da tradução
criativa às últimas conseqüências, chegando a se deslocar, em alguns momentos,
do texto de origem, e até a inserir versos contemporâneos em poemas do
passado.
Tal prática só foi possível a partir de uma mudança no campo do
conhecimento que relativizou as fronteiras entre modelo e cópia, na medida em
que pôs em questão a própria noção de origem. Não se acreditando no chamado
texto original como gerador de outros, a relação passa a ser não mais de
subordinação, mas de coordenação entre textos.
50
Muitos escritores se apropriaram de outros textos para fazerem os seus.
Entre muitos, destacamos Mário de Andrade, que em carta ao seu amigo
Raimundo Moraes explica o prazer em copiar:
“ copiei sim meu querido defensor. O que me
espanta e acho sublime de bondade, é os
maldizentes se esquecerem de tudo quanto
sabem restringindo a minha cópia a Koch-
Grünberg, quando copiei todos (...) confesso
que copiei, copiei às vezes textualmente” (in
CURY, PAULINO & WALTY, 1998, p.22).
Por ser bem crítico e conhecedor de sua potencialidade, Mário ironiza:
“sinto que meu copo é grande demais para mim, e ainda assim bebo no copo dos
outros”.( Idem, 1998, p.22).
Deste modo, o tradutor se instaura no texto que escreve, resultando daí um
total contra-senso em se afirmar a existência de uma escrita neutra, da qual ele
não se fizesse elemento, e também da existência de uma escrita livre, da qual ele
decidisse por si não participar e ser apenas um manipulador. De acordo com
Ronald Taveira da Cruz, em artigo já citado,
A cada obra de arte (re)lançada, outras mais
estão querendo sair do casulo que tanto as
protege. Saindo dessa proteção, a obra de arte
está exposta a milhares de ângulos de
observação. E cada ângulo tem sua história de
51
leitura e cada nova (re)leitura melhor se afina o
instinto criativo. Essa facilidade de descobrir o
tom mais adequado formando uma harmonia
entre as leituras passadas faz depreender novos
campos de interpretação ao mesmo tempo em
que nos concebe enquanto leitores. E mais,
concebe os criadores como autores. Por isso
todo leitor pode ser autor . E todo autor ,
infalivelmente, é leitor. Neste percurso, o mundo
é uma eterna (re)leitura. Essas (re)leituras
modificam o tempo artístico, fazendo com que o
passado literário , por exemplo, possa ser sempre
moderno. Porque através de um autor moderno,
uma(s) obra(s) que já estava(m) por desistir da(s)
aparência(s), revolta e volta toda cheia de forças
tornando-se (novamente) interessante(s) e
legível(eis). É notável essa visão de que uma
forte e moderna obra literária traz consigo um
passado literário e podemos observar que os
escritores são precursores, nas palavras de
Borges, ‘O fato é que cada escritor cria seus
precursores. Seu trabalho modifica nossa
concepção de passado, como há de modificar o
futuro’ (1999, p. 98). Assim, percebe-se que toda
obra literária está sujeita a novas leituras,
recepções e interpretações, deixando de ser
única e insubstituível.” ( CRUZ, 1998, p. 3 ).
A partir deste ponto, há que se desejar a presença de Oswald de Andrade
com sua antropofagia, que com seu desejo de assimilação do Outro nos indicou
outras perspectivas da construção de uma obra de arte. Ao abastecer-se
52
- no sentido de assimilar, digerir - de uma determinada obra, o autor está
fatalmente ingerindo outras já antes digeridas num sem-fim digestivo. E
esse ato de alimentar-se, se faz a partir das expressões artísticas sempre de
modo seletivo, como um bucho de ruminante, que num processo de mastigação
faz uma seleção daquilo que serviria para assimilação e o que seria, de certo
modo, excretado. “Desta forma, a vontade de comer nutre tanto o original
quanto o traduzido, afastando a imagem de origem inatingível e a projeta como
uma construção híbrida”( CRUZ, 1998, p. 4).
Neste ponto relembramos algumas partes do manifesto oswaldiano:
Só a antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente.
[...]
Só me interessa aquilo que não é meu. Lei do
homem. Lei do antropófago.
[...]
De William James a Voronoff. A transfiguração do
tabu em totem. Antropofagia.
[...]
A luta entre o que se chamaria Incriado e a
Criatura-ilustrada pela contradição permanente
do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o
modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção
do inimigo sacro. Para transforma-lo em totem. A
humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só
as puras elites conseguiram realizar a
antropofagia carnal, que traz em si o mais alto
sentido da vida e evita todos os males
53
identificados por Freud, males catequistas. O que
se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É
a escala termométrica do instinto antropofágico,
de carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade.
Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-
se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A
baixa antropofagia aglomerada nos pecados do
catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o
assassinato. Peste dos chamados povos cultos e
cristianizados, é contra ela que estamos agindo.
Antropófagos. (TELES, 2002, p.353).
Vem daí a afirmação imperiosa da ‘palavra’ como algo em construção, ou
seja, a palavra está em processo e seus sentidos estão em sucessivas alterações.
Então, pode-se asseverar que a obra de arte, constituída de palavras e sentidos,
é uma “difusão de saber, inquietação e prazer. Interminável”. ( CRUZ, 1998, p. 4)
Outro que também se manifesta sobre o fenômeno da tradução é Ledo Ivo.
Em um artigo publicado em seu livro A Ética da Aventura (1982), a propósito de
sua tradução de Rimbaud, escreve:
“para o tradutor atento, cada palavra se
engravida de opções; cada frase oferece versões
diversas, desfechando perplexidades e
intimidações; cada parágrafo abre as suas
veredas nos bosques das dúvidas. Nesse
território crítico, ao sabor dos humores cotidianos
e das sugestões dos dicionários, o oficiante se
sente intranqüilizado pelas possibilidades que a
cada passo vão vincando seu trabalho” (IN
Silveira Jr, 1983, p.47)
CAPÍTULO 2:
LITERATURA COMPARADA:
“UMA DISCIPLINA INDISCIPLINADA”:
La reflexión desde la periferia, entonces, está
atravesada por múltiples presupuestos y
estereotipos y genera actitudes variadas. Mirar
desde afuera sirve, mirar desde adentro
también. Lo que no sirve es mirar sólo desde la
afuera o sólo desde la región.
HUGO ACHUGAR
2.1 – A Literatura Comparada e a releitura da Dependência
Cultural:
O comparatismo tradicional no Ocidente foi marcado pelas noções de
“fonte” e “influência” que determinavam uma filiação excludente entre textos,
valorizando os pontos de contato entre eles numa relação que denotava
vassalagem ou filiação de uma obra a outra. A valorização dos textos era feita a
partir do estabelecimento de uma grande quantidade de pontos em comum com a
obra considerada matriz privilegiando o rastreamento das semelhanças e
analogias e desprezando as diferenças responsáveis por marcar as peculiaridades
de cada autor . Estabelecidos os critérios de valoração , aquilo que não
encontrava correspondência dentro do cânone era considerado uma cópia
55
imperfeita do modelo. Segundo este paradigma, favorecia-se a noção de
continuidade do texto influenciador, promovendo, no texto influenciado, uma
sensação de desvantagem. Nesse sentido, foram formadas verdadeiras
“linhagens” culturais privilegiadas por serem originais e cronologicamente
anteriores a quaisquer outras não pertencentes ao restrito círculo. A cronologia se
faz, portanto, fator fundamental num universo tradicional e marca ainda mais a
dependência dos textos periféricos sempre feitos com atraso cronológico com
relação aos textos da metrópole. A crítica brasileira Sandra Nitrini assim se
posiciona quanto a essa prática no capítulo em que traça os percursos históricos e
teóricos da Literatura Comparada.
A literatura comparada tinha-se limitado, até
então, a estudar mecanicamente as fontes e as
influências, as relações de fato, a fortuna, a
reputação ou a acolhida reservada a um
escritor ou a uma obra e as causas e
conseqüências deterministas das produções
literárias, sem nunca se ter preocupado em
desvendar o que tais relações supõem ou
poderiam mostrar no âmbito de um fenômeno
literário mais geral, a não ser mostrar que um
escritor leu ou conheceu outro escritor.
(NITRINI, 1997, p. 34).
Nesse histórico, percebemos que toda a literatura produzida no ocidente
era fruto de uma proposta eurocêntrica de busca de analogias entre textos.
56
O rastreamento dessas “afinidades” proporcionou uma “contabilidade”
baseada em débitos e créditos. Essa orientação mostrou-se, muitas vezes,
imperialista, pois aumentava a noção de débito do segundo texto com relação ao
primeiro. De fato, ao valorizar mais as culturas já estabelecidas, preservava-se o
cânone literários e criava-se um certo sentimento de dependência. Os textos das
culturas periféricas eram valorizados à medida que apresentavam uma série de
pontos afins com os textos europeus tomados como matriz. Dessa forma a
influência destes naqueles era vista como uma via de mão única, do colonizador
para o colonizado, reforçando a dependência cultural. A partir daí, concluiu-se que
a instauração de espaços definidos para o “mesmo” e o “outro” subjazia todo o
processo comparatista tradicional.
No sentido geral e no contexto brasileiro, a Literatura Comparada sofreu
com esta perspectiva universalizante que permeava os estudos comparatistas. O
trabalho comparatista brasileiro antes dos anos 70 apoiava-se nos modelos
franceses que apregoavam a valorização das fontes e influências. Deste modo
aumentava-se ainda mais a noção de débito. Nesse universo de dependência
cultural, apenas as apropriações “elogiosas” eram permitidas porque não
desestabilizavam uma hierarquia sistematicamente constituída. Assim se fortalecia
a prática colonizadora mascarada de um falso universalismo.
Novas orientações comparatistas no ocidente surgiram sobretudo a partir
da década de 70. Os antigos conceitos de “fonte” e “influência” foram substituídos
pela idéia de “diálogo entre textos”. A Literatura Comparada assumiu uma postura
57
mais democrática e encabeçou uma proposta valorizadora de questões referentes
à identidade cultural e de uma revisão dos “cânones literários”. Essa articulação
proporcionou uma nova dimensão para as literaturas periféricas. O conceito de
influência passou por uma revisão geral que confirmou sua existência, porém
considerando-se agora a mudança criativa imposta por parte do texto influenciado.
Essa atitude foi o primeiro passo para que o comparatismo assumisse uma nova
postura que valorizasse sobretudo as diferenças e caminhasse para uma
desarticulação da relação colonizador/colonizado promovendo mesmo, uma
descolonização cultural. O fazer literário tornou-se o principal espaço para o
diálogo entre o influenciador e o influenciado, este já não mais restrito à
inferioridade da periferia. Nessa relação não mais se sublinha as noções de débito
e dependência e sim as de acréscimo e autonomia. A diferença, agora em
evidência, passa a ser vista como uma possível mudança no texto matriz.
É importante lembrar que a tônica dos estudos comparatistas atuais está
longe de se embasar em um deslocamento do que antes era tido como central e a
ocupação de seu diferencial periférico. O enfoque dos estudos de Literatura
Comparada na atualidade propõe um questionamento da supremacia e
hegemonia das culturas colonizadoras e uma valorização da pluralidade resultante
do contato dialógico entre colonizador e colonizado.
Nas abordagens comparatistas atuais aparece o contato recíproco entre os
textos em substituição à via de mão única que relativizava o valor do segundo
texto em detrimento do primeiro. A diferença, antes vista como um “defeito” no
58
segundo texto, passa a ser a grande responsável pela possível afirmação de uma
identidade cultural. Nesse sentido a Literatura Comparada cai como uma luva
sobre a necessidade de auto-afirmação de países periféricos com é o caso do
Brasil. O comparatismo atual deu o devido destaque às peculiaridades de cada
autor e de cada literatura. Por este âmbito, os estudos comparatistas podem
colaborar para a descolonização cultural uma vez que o comparatismo atual
acredita na inserção original que o segundo texto pode imprimir ao se diferenciar
do primeiro. De acordo com os críticos comparatistas da atualidade, esse diálogo
permite que os textos da metrópole, antes aceitos irretocavelmente, possam ser
avaliados dentro da sua universalidade e os textos periféricos, na diferença que
imprimem. Ainda de acordo com esse críticos, os textos agora descolonizados
possuiriam uma riqueza por conter em si o texto original e a diferença como
resposta à influência. Com relação a essa postura assim resume o crítico Silviano
Santiago
Paradoxalmente, o texto descolonizado da
cultura dominada acaba por ser o mais rico ( não
do ponto de vista de uma estreita economia
interna da obra) por conter em si uma
representação do texto dominante e uma
resposta a esta representação no próprio nível da
fabulação. (SANTIAGO, 1982, p. 23).
59
Nesse sentido e no contexto periférico brasileiro, esses estudos
comparatistas participam ativamente do processo de descolonização cultural. O
papel do comparatista nas comunidades periféricas é de suprema importância
para a definição do próprio sistema literário e muito além de estar a serviço das
literaturas nacionais, o rastreamento das relações intertextuais possibilita a
identificação das apropriações modificadoras e criativas, incluindo aí as traduções.
Em resumo, o comparatista deixa de ter uma função única e exclusiva de
contrapor e confrontar autores e obras literárias para avaliar um texto que se
articula com o contexto social, político e cultural onde o fazer literário acontece.
Sem sombra de dúvida a Literatura Brasileira, que aqui tomamos como exemplo,
recebe uma forte influência da européia e de outras literaturas, mas para além
desta influência é preciso considerar a relevância de uma “fidelidade ao contexto”
em que ela se insere. A palavra contextualização torna-se lugar comum nos
estudos comparativos atuais porque proporciona uma possível explicação para as
diferenças entre os textos.
Assim aconselha o crítico Antonio Candido:
Se pudermos marcar alguns aspectos desta
interação talvez possamos esclarecer como, em
país subdesenvolvido, a elaboração de um
mundo ficcional coerente sofre de maneira
acentuada o impacto dos textos feitos nos países
centrais e, ao mesmo tempo, a solicitação
imperiosa da realidade natural e social imediata.
(CANDIDO, 1993, p. 125).
60
Dentro da perspectiva da Literatura Comparada atual observamos um
favorecimento para que as questões de identidade e descolonização culturais
sejam postas na ordem do dia. A partir dos anos 70, a Literatura Comparada
adicionou à sua prática, que até então valorizava um discurso unidirecional, um
estudo mais situado historicamente. Aos poucos revertem-se as “tintas
etnocêntricas” e animam-se os que pretendem uma aproximação com questões de
valor indiscutível nas comunidades periféricas como as questões sobre identidade
cultural.
As discussões críticas voltaram os olhos para as questões locais onde
antes se discutia o universal – um universal camuflador da prepotência imperialista
eurocêntrica.
As questões interdisciplinares e intersemióticas ganharam destaque
somadas às diferentes relações culturais antes destituídas de crédito. O contexto
ganhou um outro verniz a partir do momento em que as obras e textos literários já
não podem mais ser vistos sob o ângulo exclusivamente estético.
Os locais periféricos tornaram-se de extrema importância para a discussão
de temas tais como a articulação de produtos culturais destes postos e o resgate
da tradição local. O resultado deste questionamento tem sido uma
desierarquização da hegemonia colonizadora. Nesse sentido assim se posicionam
Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda
Assim é que repensar a nossa tradição cultural
de forma a colocá-la em posição diferenciada e
61
particularizada diante da tradição estrangeira (por
sua vez assimilada por nós) constitui um dos
pontos básicos de se colocar a questão da
dependência e, ao mesmo tempo, se livrar de
seu condicionamento exclusivista. (SOUZA &
MIRANDA, 1997, p. 42).
No caso brasileiro, o comparatismo até os anos 70 também esteve ligado
ao estudo das fontes e influências tomando por base textos franceses sempre
revestidos por uma aura superior que acentuava ainda mais a condição de
dependência dos textos aqui produzidos.
Na postura atual, os estudos comparatistas brasileiros enfatizam nos textos
a devolução criativa e a apropriação transformadora das fontes européias e norte-
americanas. Importa destacar que o valor da diferença não reside na simples
diferença literária, mas na sua relação com os registros locais e na valorização
dos discursos multiculturais.
2.2 – Tradução e Literatura Comparada, relações possíveis.
Uma vez que corrobora para o entendimento do Outro, a Literatura
Comparada avaliza sua presença na construção do processo de integração
cultural, e nesta empreitada muitos podem ser os caminhos escolhidos pelo
62
comparatista para chegar ao seu intento: lançar-se no trabalho com a tradução
literária, atuar com a estética da recepção e outros tantos mais.
Como nosso objetivo nesta tese é refletir, dentre outras hipóteses, sobre os
caminhos trilhados pela Literatura Comparada e seu envolvimento com a
tradução, pretendemos inventariar neste momento algumas considerações sobre o
assunto.
Nossa empreitada sugere um exame da participação da tradução como
intercessora nas relações interculturais e de sua atuação como instrumento de
trabalho do comparatista em sua tarefa de contrastar literaturas ou culturas
diferentes a fim de verificar de que forma o comparatista, ao lidar com a tradução,
transpõe os limites do simples ato de comparar traduções e aprofunda-se no
estudo das influências.
O estudo da recepção dessas traduções revela, muitas vezes, o impacto
que as traduções podem causar, seja pelas relações entre as línguas e culturas
envolvidas, seja pelas diferenças que as mesmas possam desvendar.
Num artigo intitulado “ O que é Literatura Comparada”, George Steiner
(1997) reflete sobre essas relações deste modo:
“Todas las facetas de la traducción – su
historia, sus medios léxicos y gramaticales, las
diferencias de enfoque, que van desde la
traducción interlineal , palabra por palabra ,
hasta la más libre imitación o adaptación
metamórfica – tienen un valor crucial para el
comparatista. El comercio que se da entre las
63
lenguas, entre los textos de distintos períodos
históricos o formas literarias, las complejas
interacciones que se producen entre una
traducción nueva y las que la han precedido, la
antigua pero siempre viva batalla entre ideales,
entre ‘la letra’ y ‘el espíritu’, es el de la literatura
comparada misma.” (STEINER,1997, p. 150).
Nesse mesmo caminho, estudando o objeto e a finalidade da Literatura
Comparada, Leyla Perrone-Moysés também nos fornece os seu olhar:
“Estudando relações entre diferentes
literaturas nacionais, autores e obras, a
literatura comparada não só admite, mas
comprova que a literatura se produz num
constante diálogo de textos, por retomadas,
empréstimos e trocas. A literatura nasce da
literatura; cada obra nova é uma continuação,
por consentimento ou contestação, das obras
anteriores, dos gêneros e temas já existentes.
Escrever é pois, dialogar com a literatura
anterior e com a contemporânea. (PERRONE-
MOYSÉS,1990, p. 94).
A tradução sempre facilitou a inter-relação com as obras-primas da
literatura mundial e é uma das maneiras de se revelar as marcas tanto estilísticas
quanto culturais da produção artística da humanidade.
Ponderar que a tradução de textos literários é um processo intelectual e
criativo é ponderar que depois de ser repatriado de um contexto para outro, estão
64
envolvidos nesse processo, além das duas línguas distintas também duas culturas
diferentes. O comparatista tem aí um prato cheio para a verificação do quanto
esse texto-de-partida alterou ou não a cultura que o recebeu ou que aclimatações
foram feitas, ou seja, o comparatista tem ampliado seu processo investigativo de
fontes e influências.
Ao apreciar a tradução a partir destes aspectos, o comparatista ainda deve
considerar a necessidade de sua feitura, a qual patrimônio literário ela passou a
integrar e até que relações ela pode ter com a produção local. É tarefa do
comparatista divulgar, como afirma BRUNEL, PICHOIS & ROUSSEAU ( 1993, p.
137) , que ela é muito mais que a “ multiplicação aparente do número de leitores,
mas escola de invenção e descoberta”.
Num contexto histórico decisivo, as culturas dependentes têm tomado uma
direção que considera a tradução como uma prática que possibilita a construção
de identidade, com participação efetiva na constituição de autores, leitores e
nações.
Uma vez que os países em desenvolvimento são locais que proporcionam
o conflito entre igualdade e a diferença cultural, o texto estrangeiro passa a ter a
oportunidade de revisar a hierarquia dos discursos culturais estabelecidos, cruzar
as fronteiras entre as comunidades culturais locais e alterar a reprodução de
valores e práticas já instituídas, promovendo a inovação e a mudança cultural.
Nesse caso, a importância de qualquer texto traduzido depende dos
efeitos e funções de sua recepção, os quais não podem ser anteriormente
65
calculados ou controlados. Um aparato crítico sobre a tradução e suas funções
pode contribuir para desfazer a imagem de que traduzir é destruir, corromper,
mas por outro lado não consegue retirar a idéia de que a tradução é um desvio ou
um deslocamento em relação a um “equivalente” possível, e isso de modo algum é
pernicioso, ao contrário, contribui a ponto de fortalecer a idéia de que a tradução
age como intercessora nas relações interculturais e se torna, mais do que nunca,
um lauto material para o trabalho do comparatista.
Sandra Nitrini (1997) em seu livro Literatura Comparada – História, Teoria e
Crítica, mais especificamente no subcapítulo intitulado “Tradução, Tubo de Ensaio
de uma Influência” apresenta o trabalho de Onédia Barboza que tem o título de
Byron no Brasil, Traduções (1975), a fim de destacar os estudos desta autora
acerca dos levantamentos e análises das traduções brasileiras da obra de Byron
entre os anos de 1832 e 1911. Com o intuito de aprofundar suas idéias sobre o
tema, Onédia apóia-se no livro de ensaios de Literatura Comparada de Harry
Levin chamado Refractions (1994), no qual o estudioso, apropriando-se de um
termo da física que explica a transformação de um raio luminoso, o transporta
para os estudos das relações literárias internacionais. Ao raio de luz, ao calor,
corresponderia em literatura a comunicação, a expressão e qualquer mudança no
seu rumo seria determinada pela natureza do meio. Nitrini afirma que, em
literatura comparada, tanto as traduções quanto as suas “meias-irmãs” ( 1997, p.
230) , as paráfrases, as imitações servem para destacar as intellectual refractions
descritas por Levin.
CAPÍTULO 3:
MACHADO DE ASSIS ANTECIPANDO O SÉCULO XX
Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como
se o estivesse “traduzindo”, de algum alto original,
existente alhures, no mundo astral ou no plano
das idéias, dos arquétipos, por exemplo. Nunca
sei se estou acertando ou falhando, nessa
“tradução”. Assim, quando me “re”- traduzem para
outro idioma, nunca sei, também, em casos de
divergência, se não foi o tradutor quem, de fato,
acertou, restabelecendo a verdade do “original
ideal”, que eu desvirtuara...
Guimarães Rosa
Como é impossível trazer aqui as manifestações de todos os que se
pronunciaram a respeito das teorias de citação, apropriação, reescritura,
reinterpretação, ou seja, tudo aquilo que na atualidade é abarcado pelos estudos
de tradução, procuramos seguir mais de perto, embora de modo sucinto, o
pensamento de alguns intelectuais que de algum modo mantém um diálogo com o
pensamento machadiano. Então nos aproximamos da proposta de escritura
antropofágica de Oswald de Andrade, consideramos a tarefa do tradutor segundo
Walter Benjamin, a transculturação e a plagiotropia de Haroldo de Campos, a
tradução-deglutição de Augusto de Campos e a tese do tradutor como autor da
67
diferença de Rosemary Arrojo a fim de entabularmos um diálogo com Machado de
Assis para comprovar o quanto esse “escritor de seu tempo e de seu país”
antecipa questões tratadas quase um século depois.
Comecemos por 1923, ano no qual Walter Benjamin publica o ensaio “ Die
Aufgabe des Übersetzers” (A Tarefa do Tradutor) em Heidelberg, Alemanha, como
prefácio de seu tradução dos Tableaux Parisiens de Baudelaire, que agrupa-se a
outros textos em que o autor trabalha com a linguagem como Sobre a Linguagem
em Geral e sobre a Linguagem dos Homens (1916); a Doutrina do Semelhante e
Sobre a Faculdade Mimética (1933) e Problemas da Sociologia da Linguagem
(1935).
Em “A Tarefa do Tradutor”, Benjamin define tradução como “forma”,
esclarecendo-a também frente a outras definições negativas: tradução não é
recepção, não é comunicação, não é imitação.
Tradução não é recepção, e para comprovar isso Benjamin parte da
afirmação de que uma obra de arte ou uma forma de arte ou as reflexões teóricas
sobre uma obra de arte não dependem de sua relação com um receptor e que
elas apenas implicam “a existência e a essência do homem em geral”. Na
verdade, Benjamin já começa seu ensaio afirmando que em lugar algum a
importância do receptor revela-se imprescindível para o conhecimento da obra de
arte. E que é um “desvio” a concepção de um “receptor ideal”. Assim, pois, como
a arte não tem como objetivo um receptor também a tradução não o deve ter, pois
que esta tem por finalidade somente traduzir aquela.
De acordo com Benjamin
68
Se ela (a tradução) for destinada ao leitor,
também o original o deveria ser. Se o original não
existe em função do leitor, como poderíamos
compreender a tradução a partir de uma relação
dessa espécie? ( BENJAMIN,1987, p. 191)
Esta teoria de Walter Benjamin desencadeou a ira de muitos teóricos,
principalmente os da Estética da Recepção, que encerra no leitor/receptor o ponto
de partida para suas apreciações artísticas e literárias.
Tradução não é comunicação. Depois de desconsiderar o receptor,
Benjamin teoriza que “a arte é muito mais do que comunicação, é comunhão”,
porque uma obra de arte não comunica o seu essencial, que reside no indizível,
no “intangível, misterioso, poético”. Uma vez que o objetivo da obra de arte não é
comunicar, por que o deveria fazer a tradução de tal obra ? A
comunicação não é essencial também na tradução, e se a pretensão desta for
comunicar e servir ao leitor então ela é uma má tradução.
Tradução não é imitação, porque a tarefa do tradutor é “resgatar em sua
própria língua a língua pura”, que se complementa na língua estrangeira. É sua
tarefa liberar, pela repoetização ( Umdichtung), a língua pura, cativa na obra (
Dichtung). Desta maneira, o tradutor só pode restituir o poético ao tornar-se ele
mesmo um poeta, pois a obra do poeta ( Dichter) é fruto do poetizar (dichten). O
tradutor (Überzetzer) deve re-poetizar (umdichten) para re-criar aquela obra
(Umdichtung), deve tornar-se, pois, re-poetizador (Umdichter). Não pode haver
tradução se esta pretende essencialmente imitar o original, diante do que
69
conceitos como fidelidade X liberdade, suas definições e possibilidades aparecem
como secundários, porque ao criar uma obra de arte literária, o poeta já define e
imprime um sentido, tornando a tradução isenta do papel de criação deste sentido,
já instaurado no original; a tarefa do tradutor não é criar, mas re-criar a criação.
Nesse ponto, o ensaísta alemão se aproxima do nosso Machado de Assis
que em uma crônica datada de 17 de outubro de 1864 se refere à tradução da
Morte de Sócrates assim:
Não li toda a tradução da Morte de Sócrates,
nem a comparei ao original; mas as páginas
que cheguei a ler pareceram-me dignas do
poema de Lamartine. O próprio tradutor
declara que empregou imenso cuidado em
conservar a frescura original e os toques
ligeiros e transparentes do poema. Essa
deveria ser, sem dúvida, uma parte da
tarefa; para traduzir Lamartine é preciso
saber suspirar versos como ele. (ASSIS, In:
JACKSON, v.23, p.192) ( grifo nosso).
A tradução advém do original. A tradução é uma manifestação da vida, “da
sobrevida” (Überlen) deste original e enquanto manifestação de vida tem por
finalidade a expressão da essência da vida ( do original).
Novamente citando Benjamin,
70
Da mesma forma com que as manifestações
vitais estão intimamente ligadas ao ser vivo, sem
significarem nada para ele, a tradução provém do
original. Na verdade, ela não deriva tanto de sua
vida quanto de sua sobrevivência. Pois a
tradução é posterior ao original e assinala, no
caso de obras importantes, que jamais
encontraram à época de sua criação seu tradutor
de eleição, o estágio de continuação de sua vida.
A idéia da vida e da continuação da vida das
obras de arte deve ser entendida em sentido
inteiramente objetivo, não metafórico. (Idem, p.
193).
A finalidade da tradução, segundo Benjamin, é a observação da essência,
revelada pela língua da verdade, que seria a língua pura, a qual nunca é
plenamente resgatada, mas que pode ser concebida a partir da
“complementaridade de sentido” possibilitado na reprodução das formas e
dos significantes das línguas entre si, e que só pode ser expressa por
aproximações e analogias, conseguida pelo poético. “A tarefa do tradutor é
provocar o amadurecimento, na tradução, da semente da língua pura”.
O texto está fundamentado sobre uma concepção de linguagem, uma teoria
da linguagem, que Benjamin constrói ao longo de sua obra, na qual os textos vão
se interligando, dialogando, se traduzindo. “Tradução é uma forma”. A partir desta
tese central, reconceitua a tarefa do tradutor: trans-pôr, trans-formar na língua da
tradução a arte do original, trazendo para a sua língua a maneira de significar do
original. A complementaridade surge do confronto entre duas línguas, e possibilita,
71
muitas vezes, a revelação de um sentido antes despercebido na língua do original.
Ou seja, um determinado significado, encoberto nos originais, se demonstra
na sua traduzibilidade. Se essa tarefa é possível, a tradução também é possível.
Benjamim também se opõe à tese central da teoria tradicional da tradução
que trabalhava sobre a relação entre “fidelidade à palavra e liberdade de
reprodução do sentido do original”.
Nesse sentido assim coloca Benjamin
Se é a afinidade entre as línguas o que
deve se verificar nas traduções, como poderiam
elas fazê-lo, senão pela transposição mais exata
possível da forma e do sentido do original?
Naturalmente, a teoria em questão (teoria
tradicional da tradução) não saberia manifestar-
se a respeito de como tal exatidão seria
concebida e, finalmente, não poderia dar conta
daquilo que é essencial em traduções. [...] Para
compreender a autêntica relação entre o original
e tradução deve-se realizar uma reflexão, cujo
propósito é absolutamente análogo ao dos
argumentos por meio dos quais a crítica
epistemológica precisa comprovar a
impossibilidade de uma teoria da imitação. [...]
Pode-se comprovar não ser possível existir uma
tradução, caso ela, em sua essência última,
ambicione alcançar alguma semelhança com o
original. Pois na continuação de sua vida ( que
não mereceria tal nome, se não se constituísse
em transformação e renovação de tudo aquilo
que vive), o original se modifica (BENJAMIN, p.
195-7) grifos nossos.
72
De acordo com Mauri Furlan, especialmente dedicado aos estudos sobre
Benjamin
A tradução possui uma tarefa grandiosa,
messiânica, redentora; ela deve, em última
instância, expressar a realidade da ‘língua pura’
que se reflete nas línguas do original e da
tradução, da obra de arte e sua ‘reprodução’.[...]
Seu papel é, como o do profeta, de instrumento,
de trans-positor, trans-formador, re-formador, re-
poetizador da poesia, do modo de significar do
original. (FURLAN, 1996, p.11-2)
Cabe ao tradutor, então, uma missão profética: “reconduzir a linguagem
babélica à linguagem edênica”.
Devido à sua ousadia, Die Aufgabe des Übersetzers é um texto que, desde
sua publicação , tem motivado inúmeras discussões e mesmo leituras
controversas. Um bom exemplo disso é a leitura que Paul de Mann faz do ensaio
de Benjamin. Ele afirma que “o texto de Benjamin diz que é impossível traduzir” e
que “qualquer tradução é sempre inferior em relação ao original, e o tradutor está,
como tal, perdido logo à partida”. Já o argentino Jorge Luis Borges discorda e diz
que na tradução a recombinação de elementos não é obrigatoriamente inferior ao
original. A crença na inferioridade das traduções procede da experiência da
repetição do original”.
Por que para Benjamin
O maior elogio a uma tradução, sobretudo na
época de seu aparecimento, não é poder ser lida
73
como um original em sua língua. [...] a verdadeira
tradução é transparente, não encobre o original,
não o tira da luz; ela faz com que a pura língua,
como que fortalecida por seu próprio meio, recaia
ainda mais inteiramente sobre o original.
(BENJAMIN, 1987, p. 209)
Para Cristina Monteiro de Castro Pereira , em “A Tarefa do Tradutor”,
Benjamim se inspira numa passagem bíblica para falar sobre tradução. De acordo
com a ensaísta, para Benjamim “a multiplicação dos idiomas afasta os homens de
sua origem divina”. Deste modo, a tradução, nos moldes mais tradicionais, estaria
contaminada por uma enorme carga de melancolia, “advinda da impossibilidade
de recuperação total do texto original em uma outra língua”.
Eis a passagem citada por Pereira
Temendo um novo dilúvio, os homens
constroem uma torre de medidas transgressoras:
queriam alcançar o céu. A hybris, ancestral
tentação trágica do homem de ultrapassar seus
limites, está presente na história da Torre de
Babel do Antigo Testamento e provoca a ira não
mais dos deuses gregos, mas de um onipotente e
único Deus. Indignado com a pretensão dos
homens, o Todo-Poderoso faz a torre
desmoronar e os priva da língua universal: cria e
dissemina entre eles diferentes idiomas,
dificultando o entendimento entre os povos.
(PEREIRA, 2006, p. 1)
74
Quando lidamos com textos estéticos, cuja significação ultrapassa sua
mensagem conteudística e se torna parte de um processo de interação entre o
leitor e a obra, torna-se ainda mais difícil abarcar toda a riqueza de significados e
transpô-la para uma outra língua.
Diante do impasse e de sentenças taxativas quanto à impossibilidade da
tradução de textos literários, chega-se a uma saída possível: assumir a falta e
transformá-la em trampolim para a criação. Esta é a solução apontada por teóricos
como Haroldo de Campos e Walter Benjamin. O “impossível de se dizer” do
original se transforma em espaço para criação artística. Opondo-se à visão
tradicionalista, que colocava o tradutor e seu texto numa posição secundária e
subserviente em relação ao autor e ao original, Campos e Benjamin conquistam,
para a tradução, sua autonomia.
As lacunas não têm mais, neste caso, uma conotação negativa: a falta que
antes provocava melancolia transforma-se agora num impulso criativo para o
tradutor.
Como metaforiza Benjamin
Da mesma forma com que a tangente toca a
circunferência de maneira fugidia e em um ponto
apenas, sendo esse contato, e não o ponto, que
determina a lei segundo a qual ela continua sua
via reta para o infinito, a tradução toca
fugazmente e apenas no ponto infinitamente
pequeno do sentido do original, para perseguir,
segundo a lei da fidelidade, sua própria via no
interior da liberdade do movimento da língua.
(BENJAMIN, 1987, p. 211)
75
Avancemos ao ano de 1928, e atentemos para a Revista de Antropofagia,
a qual publica, assinado por Oswald de Andrade ‘em Piratininga, ano 374 da
deglutição do Bispo Sardinha’, a idéia base do Manifesto Antropófago que traz em
si a intenção insidiosa de ‘alimentar-se de tudo o que o estrangeiro traz para o
Brasil, sugar-lhe todas as idéias e uni-las às brasileiras, realizando assim uma
produção artística e cultural rica, criativa, única e própria. Era urgente desvincular-
se de laços passados – reforça o Manifesto, que é uma resposta às questões
colocadas pela Semana de Arte Moderna de 22 e propõe a renovação da arte
brasileira que nasceria da absorção da cultura externa: o europeu devia ser
devorado.
Haroldo de Campos crê que com a “antropofagia” oswaldiana, tivemos um
sentido mais agudo de pensar o nacional em relacionamento dialógico com o
universal. A proposta de Oswald de Andrade é o pensamento de uma devoração
crítica do legado cultural universal eliminando a participação do “bom selvagem”
romântico, mas através do “mau selvagem” antropófago, devorador daqueles que
podem contribuir para o “robustecimento” e a “renovação” de suas próprias forças.
Machado antecipa em muitos de seus textos a proposta oswaldiana. Em
Memórias Póstumas de Brás Cubas, especialmente no capítulo do ‘delírio’, sugere
uma devoração próxima da visão antropofágica de Oswald de Andrade que
alargou as fronteiras da imitação, adaptação, assimilação e originalidade.
76
No capítulo em questão, Brás Cubas relata seu próprio delírio e depois de
tomar a forma de um barbeiro chinês, de ser transformado na Suma Teológica de
S. Tomás, foi restituído à forma humana e arrebatado por um hipopótamo que o
levou a origem dos séculos onde dialogou com a Natureza ou Pandora pedindo
mais alguns anos de vida
Para que queres tu mais alguns instantes de
vida? Para devorar e seres devorado depois?
Não estás farto do espetáculo e da luta? [...] a
onça mata o novilho porque o raciocínio da onça
é que ela deve viver, e se o novilho é tenro
melhor: eis o estatuto universal. (ASSIS, 1992, p.
522).
Desse modo todas as informações advindas de diferentes contribuições,
depois de emaranhadas, preparam-se para “nova mastigação”, numa digestão, da
qual não é mais possível apontar o “organismo assimilador” ( a onça) da “matéria
assimilada” ( o novilho).
Depois de ser citado várias vezes neste trabalho, chegou a vez de nos
atermos mais detidamente em Haroldo de Campos, poeta, crítico e tradutor, cuja
ação regula-se pela conjugação da tradução com a antropofagia, decorrente da
associação com a intertextualidade. Por esse caminho, “retoma-se o projeto
artístico modernista de Oswald de Andrade e se recoloca a questão da nossa
literatura e das literaturas do chamado Terceiro Mundo como ‘tradutoras’ da
cultura do Outro” (SOUZA, 1993, p. 39). A necessidade de congregar a produção
77
artística dentro de um movimento universal provoca a conscientização da nossa
dívida para com as culturas dominantes, mas, por outro lado, insinua que a
superação desse débito se dá por meio da devoração antropofágica da herança
cultural estrangeira e a devolução de um texto modificado por uma digestão
oswaldiana que torna impossível distinguir o assimilador do assimilado. De seu
artigo “Da razão antropofágica: A Europa sob o signo da devoração”, de 1981,
originalmente publicado na Revista Colóquio/Letras, Lisboa, podemos destacar a
opinião de Campos com relação a essa prática
A um certo momento, com Borges pelo
menos, o europeu descobriu que não podia mais
escrever a sua prosa do mundo sem o contributo
cada vez mais avassalador da diferença aportada
pelos vorazes bárbaros alexandrinos. Os livros
que lia já não podiam ser os mesmos, depois de
manducados e digeridos pelo cego homeríada de
Buenos Aires, que ousara até mesmo reescrever
o Quijote, sob o pseudônimo de Pierre Menard...
Que haveria de novo, sem Borges, no nouveau
roman de Robbe-Grillet? Quem poderá agora ler
Proust sem admitir Lezama Lima? Ler Mallarmé,
hoje, sem considerar as hipóteses intertextuais
de Trilce de Vallejo e Blanco de Octavio Paz?
(CAMPOS, 1991, p. 23)
A opinião generalizada veicula que traduzir é trair, mas para Haroldo de
Campos é uma traição que gera virtudes. Desafiando as reservas contra a
tradução, ele praticou-a durante anos, sistematicamente. Porém, ao contrário de
78
muitos, raramente traduziu obras inteiras, apenas o que lhe agradava e acreditava
que traduzir é transcriar.
Transcriação é um neologismo cunhado por Haroldo de Campos para
nomear um tipo de tradução que ultrapassa os limites do significado e se propõe à
fazer funcionar o próprio processo de significação original numa outra língua. Essa
proposta retoma criativamente o “modo de intencionar” do original e o recria de
modo artístico, através de sutilezas da forma e da linguagem em português. Mas
isto ocorre de tal forma que acaba por tornar-se o que o escritor brasileiro chama
de “transluciferação mefistofáustica”.
O texto “Transluciferação Mefistofáustica”, está presente no livro Deus e o
Diabo no Fausto de Goethe (1981), no qual Haroldo de Campos comenta o seu
método de trabalho a respeito de sua tradução da segunda parte do Fausto. Já a
partir do título do livro podemos observar o processo de criação de Campos, o
qual faz referência ao filme de Glauber Rocha, Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1963) e a um clássico do Romantismo Alemão. A justaposição dos títulos do filme
e do romance na composição do título da obra de Campos remete à
aproximação de uma obra artística oriunda de um contexto periférico
irreverentemente associada a um romance canônico.
Já o termo “transluciferação mefistofáustica” deve ser olhado também
através do processo de composição e também representa o viés da teorização
tradutória de Haroldo de Campos. A palavra “transluciferação” é formada pelo
prefixo “trans-” que significa “movimento através de” e pelo vocábulo “luciferação”
que por sua vez é derivado da colocação de um sufixo à palavra Lúcifer,
79
expressando que a tradução se dá através de um processo e de uma atitude
luciferina. Nesse ponto, Campos de afasta da teoria de Benjamin que apresenta
uma concepção angelical, segunda a qual a tradução “libera a língua pura cativa
no original”. A segunda palavra do termo retoma dois personagens do Fausto, de
Goethe: Fausto e Mefistófeles. O primeiro é um velho cientista que se sente
insatisfeito com o que realizou, já que pensa ter sacrificado sua juventude, além
de nunca ter encontrado um grande amor. Diante disso, o segundo, oferece a ele
a mocidade perdida, dinheiro e o amor de uma mulher. Em troca, Fausto teria que
lhe oferecer sua alma. Numa relação simbólica Mefistófeles seria a tradução,
possuidora de um poder luciferino, satânico e Fausto, o original, que num pacto
com a tradução se doaria, mas receberia de volta a própria vida renovada. De
acordo com alguns estudiosos, até o posicionamento dos termos na palavra
“mefistofáustico” parece sugerir que é a tradução é que deve se mover em direção
ao original, na intenção de, num pacto, oferecer-lhe nutrimento em troca da sua
forma, pois o termo Mefisto vem antecedendo Fausto.
De modo muito semelhante a Machado de Assis, Haroldo de Campos vai
embutindo sua teoria em toda sua produção literária, diretamente ou através de
metáforas, como a definição da tradução “como transfusão. De sangue. Com um
dente de ironia poderíamos falar em vampirização, pensando agora no nutrimento
do tradutor” (CAMPOS, 1981, p. 208).
Segundo Campos, o discurso tanto musical quanto literário, possui um
elemento que pode ser imitado, variado, transposto, modulado, por vezes
80
transformado até se tornar irreconhecível...”um outro de si mesmo” que caminha
simplesmente para se tornar um novo ente, verdadeiramente autônomo no seu
significado estético.
Atualmente parece haver um consenso de que o ato de tradução exige do
tradutor uma prática criativa e crítica capaz de recriar o texto original de modo a
respeitar-lhe a integridade estética.
O discurso tradutório torna-se relevante por propiciar uma abertura efetiva
dos escritores e leitores para a compreensão de que o contato com outras culturas
seria positivo e contribui para a criação universal, além de afirmar que
Escrever, hoje, na América Latina como na
Europa, significará, cada vez mais, reescrever,
remastigar. Os vândalos, há muito, já cruzaram
as fronteiras e tumultuavam o senado e agora,
como prenunciado no poema de Kaváfis. Que os
escritores logocêntricos, que se imaginavam
usufrutuários privilegiados de uma orgulhosa
koiné de mão única, preparem-se para a tarefa
cada vez mais urgente de reconhecer e redevorar
o tutano diferencial dos novos bárbaros da
politópica e polifônica civilização planetária. Afinal
não custa repensar a advertência atualíssima do
velho Goethe: “Eine jede Literatur ennuyiert sich
zuletzt in sich selbst, wenn sie nicht durch fremde
Teilnahme wieder aufgefrischt wird” (Toda
literatura , fechada em si mesma , acaba
por definhar no tédio , se não se deixa ,
81
renovadamente, vivificar por meio da contribuição
estrangeira). (CAMPOS, 1981, p. 23-4)
Na opinião de Campos, o grande tradutor do século XX foi Ezra Pound, pois
somente a postura resultante do lema Make it new (Transforme-o em novo)
permite ao tradutor “ser fiel ao espírito, ao clima particular da peça traduzida”
(CAMPOS, 1984, p. 37) e, ao mesmo tempo “acrescentar-lhe, como numa
contínua sedimentação de estratos criativos, efeitos novos ou variantes, que o
original autoriza em sua linha de invenção”. (Idem, p. 35). Dentro do universo
tradutório poético inglês é indiscutível a importância de Ezra Pound e é inegável a
sua influência na constituição do pensamento teórico e de tradução dos irmãos
Campos.
Como lembra Haroldo de Campos:
Para nós, tradução de textos criativos será
sempre recriação, ou criação paralela, autônoma,
porém recíproca. Quanto mais inçado de
dificuldades esse texto, mais recriável, mais
sedutor enquanto possibilidade aberta de
recriação. Numa tradução dessa natureza, não
se traduz apenas o significado, traduz-se o
próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua
materialidade mesma. O significado, o parâmetro
semântico, será apenas e tão-somente a baliza
demarcatória do lugar da empresa recriadora.
Está-se pois, no avesso da chamada tradução
literal. (CAMPOS, 1997, p. 35)
82
O transcriador, para muito além de nos proporcionar o texto traduzido, visa
transformar o passado em algo novo : “todo o passado que nos é outro merece ser
devorado. Vale dizer: merece ser comido, devorado” (CAMPOS, 1991, p. 23) e
isso também é uma forma de seletividade à moda antropofágica - assimilar o que
convém.
Assim coloca Campos com relação à Machado de Assis que para ele era
um grande devorador:
O grande e inclassificável Machado, deglutidor
de Laurence Sterne e de incontáveis outros ( é
dele a metáfora da cabeça com ‘um bucho de
ruminante’), onde, como lembra Augusto Meyer
num atilado estudo de fontes, “todas as
sugestões, depois de misturadas e trituradas,
preparam-se para nova mastigação, complicado
quimismo em que já não é possível distinguir o
organismo assimilador das matérias assimiladas”.
(CAMPOS, 1981. p.13).
Já o conceito de plagiotropia formulado por Haroldo de Campos confirma a
“reproposição do passado através de várias etapas de sincronia, ao longo da
história, de uma memória não linear, mas muitas vezes oblíqua ou deformada”
(CAMPOS, 1976, p. 62) .
83
Seria uma tradução da tradição numa proposta de re-apresentação
transformadora que em vez de destruir o original prolongaria sua vida através da
nova apresentação.
Nessa tarefa, a voz do tradutor antes afônica ganha timbre novo e
autonomia dentro do texto em oposição a uma tentativa de transparência frustrada
por que nunca conseguida.
O nosso Machado de Assis, em todas as traduções que fez, “se permitiu
algumas licenças”, as quais demonstram que, para ele, o traduzir não deveria ser
um ofício de menor valor que qualquer outro na carreira de um escritor, embora
assim continue a ser considerado e, respeitando o original, sem servilismo,
exerceu essa atividade durante toda a sua carreira literária contribuindo para
tornar-se um exemplo da teoria da plagiotropia mais tarde defendida por Campos.
Aproximando-se ou afastando-se do original, tanto Campos como Machado
não abrem mão do diálogo: é a partir dele que fazem suas escolhas, recriando o
passado mas não negando uma ruptura com a origem.
De acordo com Esteves
Se Haroldo de Campos tem razão, a maior
criação que Machado de Assis legou para a
estética do nosso romance foi o seu capítulo.
Segundo o autor, a originalidade do capítulo
machadiano reside justamente em sua
tartamudez, que se constitui numa forma de dizer
o outro e de dizer outra coisa abrindo lacunas [...]
84
por onde se insinua o distanciamento irônico da
diferença. (ESTEVES, 1996, p. 150)
Para um outro Campos, Augusto, a tradução mostra-se essencial por que
é um desafio, um prazer, um modo de conversar com os poetas que ele mais
admira, uma crítica do fazer poético e uma disciplina do Ego. Através dessa
justificativa do fazer tradutório percebemos uma desmistificação da concepção da
tradução como simples repetição do “original”. Para ele, a tradução é uma forma
de aprendizado e é ainda, nas palavras do próprio Augusto de Campos
Uma forma de devolver à coletividade os
conhecimentos que adquiri, tornando acessíveis
realizações afastadas do convívio da maioria,
pelo idioma e pela dificuldade do texto, mas a
meu ver constituem alimento básico para a
renovação da experiência humana (CAMPOS,
1982, p.94).
Nesse sentido, a tradução para Augusto de Campos propõe um olhar crítico
sobre o texto estrangeiro para que sua versão para a língua materna supere a
idéia de cópia e venha a se tornar um produto que traga algo de acréscimo. E
esse aspecto não norteia apenas a teoria proposta por Campos, como também a
sua prática.
Um de seus argumentos teórico-tradutórios está expresso em citações
como esta
85
Tradução para mim é persona. Quase
heterônimo. Entrar dentro da pele do fingidor
para refingir tudo de novo, dor por dor, som por
som, cor por cor. Por isso nunca me propus a
traduzir tudo. Só aquilo que minto. Ou que minto
que sinto, como diria, ainda uma vez, Pessoa em
sua própria persona (CAMPOS, 1988, p. 7).
Augusto de Campos se apropria de Fernando Pessoa para relacioná-lo à
tradução, criando, por exemplo o neologismo “refingir” e fazendo alusão à dor “que
deveras sente”.
Retomando uma de suas justificativas para se praticar a tradução - um
modo de conversar com os poetas que ele mais adm ira – Augusto de Campos se
refere ao modo de se aproximar dos poetas que ama e traduz desta maneira:
A minha maneira de amá-los é traduzi-los.
Ou degluti-los, segundo a Lei Antropofágica de
Oswald de Andrade: só me interessa o que não é
meu. (CAMPOS, 1988, p. 7).
Partindo da concepção do tradutor como autor da diferença encontramos
Rosemary Arrojo, que toma uma posição frente à tradução que é contrária
àquela que mantém os clichês tradicionais, que sempre empobreceram e
limitaram qualquer reflexão ou discussão teórica sobre a tradução. Partindo
basicamente de alguns pressupostos, a teórica faz reflexões sobre a tradução,
86
levantando questões sobre a relação entre a linguagem humana e o ser humano
de maneira inovadora. Ao afirmar que o papel do tradutor é o de produtor e
transformador de significados, reafirma sua posição defendida em oficina de
Tradução – Teoria na Prática (1986), O Signo Desconstruído – Implicações para a
Tradução, a Leitura e o Ensino (1992) e Tradução, Desconstrução e Psicanálise
(1993). Nesses e em outros textos, não só valoriza a tradução enquanto prática,
como ilustra e confirma a teoria de Jacques Derrida de que um texto original está
em débito com a tradução, ou seja: “a tradução é uma forma de escritura produtiva
exigida pelo original”. Não só junto a esta postura da tradução-escritura, a autora
aborda também a tradução como uma atividade profissional na qual o tradutor tem
um papel decisivo na produção de significados. Partindo desta proposta Arrojo
denomina todo o seu empreendimento teórico de pós-estruturalista.
Segundo Rosemary Arrojo, dedicada especialmente aos estudos da
tradução, em seu texto onde discute implicações para a tradução, a leitura e o
ensino
Qualquer tradução, por mais simples e
despretensiosa que seja, traz consigo as marcas
de sua realização: o tempo, a história, as
circunstâncias, os objetivos e a perspectiva de
seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua
origem numa interpretação, ainda que seu
realizador não a assuma como tal. Nenhuma
tradução será, portanto, ‘neutra’ ou ‘literal’, será
sempre e inescapavelmente, uma leitura.
(ARROJO, 1992, p. 78)
87
A mesma Rosemary Arrojo, em seu texto “ A que são fiéis tradutores e
críticos de tradução?” (ARROJO, 1993, p. 15-26) discute resenha publicada na
Folha de São Paulo em 1985 e assinada por Nelson Ascher sobre John Donne
que agora citaremos para ilustrar, de certa maneira, os comentários que aqui
fazemos sobre tradução. Em sua resenha, diz Arrojo, Ascher inicia os comentários
sobre as traduções de Paulo Vizioli, tomando como paralelo as traduções do poeta
e ensaísta Augusto de Campos. Depois de réplicas e tréplicas, em meio a
afirmações de que a tradução de Vizioli é “útil e muito necessária”, porém
“conservadora e com uma dicção poética ultrapassada” e a de Augusto de
Campos é “obra criativa” e que criou para Donne uma “linguagem própria e uma
dicção poética condizente”, descobrimos que o critério que leva Ascher a
considerar “um lance realmente inventivo” de Augusto de Campos é a
incorporação de um verso de Lupicínio Rodrigues ao poema “A Aparição”. Ao
afirmar que o que distingue “de fato” as duas traduções é “a concepção de
tradução que as norteia”, continua Arrojo, Ascher parece estar se referindo às
duas concepções opostas de tradução tradicionalmente citadas: uma, atribuída a
Vizioli, é a tradução “literal”, que “se contenta com uma linguagem conservadora e
com uma dicção poeticamente ultrapassada”, “ valioso subsídio para o estudo e a
apreciação do autor, correta e esclarecedora”; a outra, atribuída a Augusto de
Campos, é a tradução supostamente “criativa”, com “lances inventivos”. Quanto a
Augusto de Campos, um dos teóricos da tradução citados nesta tese, por sua vez
88
acredita que os textos de um poeta do passado só terão valor numa tradução se
puderem ser “absorvidos” por poetas do presente. Citado por Arrojo, Augusto de
Campos escreve no seu prefácio de Verso Reverso Controverso, que será
novamente citado nesta tese para novas considerações:
A minha maneira de amá-los [ aos poetas que
admira] é traduzi-los. Ou degluti-los, segundo a
lei Antropofágica de Oswald de Andrade; só me
interessa o que não é meu. Tradução para mim é
persona. Quase heterônimo. Entrar dentro da
pele do fingidor para refingir tudo de novo, dor
por dor, som por som, cor por cor. Por isso nunca
me propus traduzir tudo. Só aquilo que sinto. Só
aquilo que minto. Ou que minto que sinto, como
diria, ainda uma vez, Pessoa em sua própria
persona.(ARROJO, 1993, p. 25)
Ao acreditarmos que existe um “outro” autor permeando e permeado no
texto traduzido, desmistificamos a ingenuidade da tradução bem-intencionada que
se esforça pela fidelidade cega ao original. A visibilidade do tradutor como autor
da diferença e da possibilidade de sobrevivência do modelo também torna visível
o anseio de captação e de assimilação implícito em qualquer ato tradutório.
Se esse encontro acontece dentro de uma rede de fascínio e adoração, dá-
se também a partir de uma ação de devoração e combate. Deste modo, o contato
com o texto sempre submerge um anseio de ter um conhecimento que se atribui
inicialmente ao outro e é, a partir dessa vontade, que surgem não apenas a leitura
e a tradução, mas também, a escritura.
89
Voltando ao texto de Rosemary Arrojo, “A tradução e o flagrante da
transferência”(ARROJO, 1993. p.151-176), onde a crítica discute “algumas
aventuras textuais com Dom Quixote e Pierre Menard” , encontramos a mesma
discussão em torno da escritura. Afirma a autora que
Se a escritura tem sua origem numa leitura, ou
seja, no desejo de também ocupar o lugar autoral
daquele que considero um “sujeito suposto
saber”, a leitura já se realiza sob o signo de um
desejo de apropriação. Se não há textos, mas
apenas relações entre textos, a relação de
influência, nos termos descritos por Harold
Bloom, ‘ governa a leitura da mesma forma que
governa a escritura, e a leitura é, portanto, uma
desescritura da mesma forma que a escritura é
uma desleitura’.(ARROJO, 1993, p. 161-2)
Pelo que retomamos aqui, conclui-se que já no século XIX, o crítico
Machado antecipou questões com as quais hoje se deparam diversos críticos no
estudo da tradução, e nesse momento, que é o da discussão sobre esse
fenômeno literário que é a tradução, muito pouco se tem alertado para a lacuna
que se instaura nos estudos machadianos pela não discussão da prática tradutória
exercida por ele. Ledo Ivo ressalta a falta de interesse dos críticos de Machado
por sua “práxis tradutória”
As atividades de Machado de Assis como
tradutor não têm sido esmiuçadas pelos seus
90
críticos e biógrafos, que se agarram ao exemplo
da tradução de “O Corvo”, de Edgar Allan Poe,
contentando-se com esse episódio afortunado e
fazendo apenas menções sumárias à parte
quase total do ofício. Registra Lúcia Miguel
Pereira que ele traduziu, entre 1860 e 1867, nada
menos que sete peças teatrais, inclusive O
Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e o
romance Os Trabalhadores do Mar, de Victor
Hugo. Não são, porém, estabelecidos os vínculos
entre autor e tradutor, como se não tivesse
havido entre ambos qualquer comunicação ou
proveito (IVO, 1976, p. 51).
Raros ensaios são publicados sobre o assunto e apenas Eliane Ferreira
(1998) tem um trabalho de maior fôlego sobre o tema e aborda as traduções
machadianas para a ribalta. Segundo a estudiosa, Machado de Assis traduziu 48
textos, abrangendo poesia, romance, teatro, ensaio. Principalmente teatro e
poesia. Eliane aponta que Machado também opinava sobre as traduções de
peças traduzidas como parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro,
como veremos em capítulo mais adiante. De acordo com ela, o velho bruxo
afirmava que “o tradutor dramático é uma espécie de criado de servir que passa,
de uma sala a outra, os pratos de uma cozinha estranha”.
CAPÍTULO 4: MACHADO DE ASSIS E A TRADUÇÃO
As idéias alheias, por isso mesmo que não
foram compradas na esquina, trazem um certo ar
comum, e é muito natural começar por elas antes
de passar aos livros emprestados, às galinhas,
aos papéis falsos, às províncias, etc. a própria
denominação de plágio é um indício de que os
homens compreendem a dificuldade de confundir
esse embrião de ladroeira com ladroeira formal.
Machado de Assis
4.1 – Machado de Assis e o fio de Ariadne:
Tal como Teseu saiu do labirinto de Creta, o qual era assombrado pelo
terrível minotauro, guiando-se pelo fio dado por Ariadne, filha do rei Minos, vamos
percorrer a produção machadiana em busca do fio condutor que permitirá construir
uma teoria acerca do pensamento de Machado de Assis relativo à tradução e
achar a saída deste labirinto, o da representação. Sabemos que o escritor
começou sua carreira literária pela tradução e foi esboçando uma teoria com
relação à mesma durante o seu trajeto. É certo também que aos poucos foi
mudando de opinião com relação a essa prática, uma vez que quando analisava
textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha que
desabonava as traduções mal-feitas, principalmente no tocante ao emprego da
92
língua portuguesa. O que não podemos afirmar com certeza é em que ponto
começou a alterar sua posição, porém em busca do tal fio pudemos observar que
Machado era rígido apenas quando analisava os textos que lhe eram entregues
para avaliação e também quando praticava traduções encomendadas, porque
quando as fazia por sua conta “permitia-se algumas liberdades”. No início algumas
e depois muitas.
Alguns críticos do trabalho machadiano ousam afirmar que essa
transformação aconteceu na mesma época em que houve a propagada mudança
na sua ficção com Memórias Póstumas de Brás Cubas, e que como tal, também
foi motivada pela crise dos quarenta anos ou detonada pelo agravamento de
alguma enfermidade, uma vez que um período de grave doença do escritor e o
repouso em Friburgo por três meses forneceram à crítica psicológica e biográfica o
enredo para a modificação e a geração de um ‘novo’ Machado. A verdade é
qualquer alteração no percurso machadiano, ou seja, a instauração do ‘novo’ no
seu trajeto é condicionado pelo ‘já existente’ e isso é justificado pela relação,
outras vezes citada, do pensamento do autor brasileiro com o Eclesiastes
O que já foi, isso será. O que já se fez isso se
fará; nada de novo debaixo do sol. Uma coisa da
qual se diz: “Eis, aqui está uma coisa nova”,
justamente esta existiu nos séculos que nos
precederam. (Eclesiastes, cap. 1, v. 9-10)
O certo é que Machado de Assis parece sempre estar consciente de sua
mudança com relação aos primeiros escritos, porém reconhece a existência de
seus pensamentos, ainda que discretos e acanhados, desde o início.
93
Para exemplificar tomemos o que diz quando se refere às duas fases de
sua obra de ficção numa carta a José Veríssimo:
O que você chama a minha segunda maneira
naturalmente me é mais aceita e cabal que a
anterior, mas é doce achar quem se lembre
desta, quem a penetre e desculpe, e até chegue
a catar nela algumas raízes dos meus arbustos
de hoje. (ASSIS, 1953, p. 145).
E deste modo podemos considerar que aconteceu desta maneira não só
com o romance machadiano como também com suas considerações teóricas e
críticas, ou seja, para os arbustos de hoje há que se considerar as raízes de
ontem.
Tudo isso retomamos com a intenção de demonstrar que também com
relação à tradução o nosso Machado de Assis começou aos poucos, traduzindo
textos quase que literalmente, para enfim “degluti-los” e devolvê-los com nova
feição.
A tradução é muito além de uma forma de multiplicar leitores, é uma escola
de invenção e descoberta. Assim sendo, um julgamento da ação tradutória na
carreira de Machado de Assis, a partir de uma visão atualizada, destaca-se como
um aspecto extraordinário na produção do escritor. Enxergadas, de um ponto de
vista limitado até então, as fontes de teorização da tradução em sua carreira
literária necessitam de uma ampliação e importância: Machado de Assis formulou
e desenvolveu desde 1857 uma teoria da tradução.
94
Neste momento de questionamentos sobre o “novo momento da tradução”
– alargamento do conceito, ampliação de disciplinas a tratá-la de modo especial –
é imperiosa a necessidade de uma ‘remexida’ nessa teoria tradutória.
Machado sempre deixou claro seus precursores, suas leituras, as quais
poderia ter lido no original ou não. Dentre essas leituras, o escritor brasileiro
também escolhia os textos que desejava traduzir e recriar.
De acordo com muitos estudiosos a biblioteca machadiana era composta
sobretudo por livros de autores românticos e filósofos que lhe deram acesso à
cultura estrangeira num contato que viabilizava sua atuação na construção de uma
literatura nacional. (vide anexo I).
Com relação a uma teoria da tradução à luz dos recentes conceitos a ela
atribuídos, podemos vislumbrar a ficção machadiana como uma das fontes
de teorização tradutória a fim de concluir que ela é uma realização daquilo que
pregou enquanto crítico e teórico.
A crítica literária, ao mencionar os precursores de Machado de Assis,
aponta as presenças de Xavier de Maistre, Shakespeare, Moliére, Goethe, Sterne,
entre outros, como expressão das “fontes machadianas” (vide anexo I). No
entanto, a citação de suas fontes acentua o mérito do escritor brasileiro e marca
um diferencial com relação a seus contemporâneos. Os empréstimos de textos
alheios num momento da tentativa de formação de uma nação suscitam um certo
conflito, pois se discute até que ponto Machado pode ser considerado um escritor
nacional como José de Alencar o foi.
95
Na atualidade, com a mudança do conceito tradicional aferido à tradução
com relação aos estudos das fontes e influências, destaca-se a importância dos
estudos da tradução como favorecedores de novas perspectivas teóricas, no
momento em que permitem “a abertura ao Outro”.
Já no início de sua carreira, no papel de crítico literário, Machado aparece
como consciente valorizador da diferença que um segundo texto pode imprimir no
original. Consideremos uma declaração sua presente no ensaio – “Instinto de
Nacionalidade” datado de 1873.
O que se deve exigir do escritor antes de tudo é
certo sentimento íntimo, que o torne homem do
seu tempo e do seu país, ainda quando trate de
assuntos remotos no tempo e no espaço.(ASSIS,
1992, p. 804)
Esse sentimento íntimo é responsável por imprimir originalidade e
possibilidade ao escritor consciente de gerar diferença em qualquer assunto do
qual se aproprie, seja este de qualquer tempo ou lugar, e marcá-lo de modo a
torná-lo seu. Notemos que o crítico Machado faz uma antecipação ao
ficcionista Machado que colocaria mais tarde em prática o que antes teorizara.
O leitor que se apaixona por um texto e resolve traduzi-lo, pretensamente
sem se permitir um envolvimento com ele, ou seja, o tradutor que como Pierre
Menard, aparentemente se impõe o impossível sacrifício de sua auto-anulação,
parece, na verdade, estar fugindo da carga de sua própria culpa. Afinal, o tradutor
96
é exatamente aquele leitor que se apropria do texto do outro e o reescreve numa
outra língua, deixando nele as marcas dessa apropriação e dessa “traição”.
Em um trabalho de crítica literária intitulado “Antônio José” e publicado em
Relíquias de Casa Velha, Machado reflete sobre o conceito de imitação,
declarando que um escritor pode permitir a si
Ir buscar a especiaria alheia, mas há de ser para
temperá-la com o molho de sua fábrica.( ASSIS,
1992. p. 727)
O crítico Machado de Assis, ainda em suas reflexões sobre “imitação”,
considera o conceito de “cópia” defendendo em seu texto “Idéias sobre o Teatro”
de 1859, que
Copiar a civilização existente e adicionar-lhe
uma partícula , é uma das forças mais
produtivas com que conta a
sociedade.(ASSIS, 1992. p. 791)
Ao “copiar” um texto escrito no e para o centro do mundo renascentista,
Machado “adicionou-lhe” não só uma “partícula”, mas muitas. No romance
machadiano, texto e contexto se entrelaçam. Copiar, nesses termos, em nada
diminui o escritor.
Em uma crônica de A Semana de 28 de julho de 1895, assim sublinha o
crítico Machado
97
A Revolução Francesa e Otelo estão feitos:
nada impede que esta ou aquela cena seja
tirada para outras peças, e assim se
cometem, literariamente falando, os plágios.1
Nesta crônica de “A Semana”, Machado deixa claro que tanto a história
oficial quanto a história fictícia podem ser “plagiadas” de maneira criativa.
Machado de Assis, sempre tão acusado de esquecer a cor local num
momento em que a Literatura Brasileira tendia a “lambuzar-se” nestas tintas,
propõe-se a fazer literatura nacional, a partir da literatura ocidental, ou seja,
“copiando”-a, traduzindo-a com criatividade.
Machado tem consciência de que os dramas e tragédias do homem
universal são os mesmos do homem local. Não podem ser as problematizações
humanas facilmente transportadas para qualquer lugar por um autor consciente?
O que difere sensivelmente o texto machadiano do de seus modelos é o peso do
tempo e do espaço onde está inserido cada um dos textos.
________________________ 1.MACHADO DE ASSIS, J.M “A Semana”. In: Gazeta de Notícias, 28 de julho de 1895. Observação: na edição utilizada não encontramos esta crônica. Ela aparece citada por GOMES, Eugênio In: Shakespeare no Brasil. Rio de Janeiro, MEC, Serviço de Documentação, 1961, p. 176 e por CALDWELL, Helen In: The Brazilian Othello of Machado de Assis – A study of Dom Casmurro. University of Califórnia Press, Berkeley ans Los Angeles, 1960, p 126.
98
Em seu já comentado ensaio intitulado “Instinto de Nacionalidade”,
Machado cita Shakespeare e demonstra sua admiração pelo escritor inglês
Perguntarei simplesmente[...] se o Hamlet, o
Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm
alguma coisa com a história inglesa nem com o
território britânico, e se, entretanto, Shakespeare
não é, além de um gênio universal, um poeta
essencialmente inglês.( ASSIS,1992, p.803-4)
Nesses termos, Machado defende que um autor consciente deve
“alimentar-se” dos assuntos de sua região, mas essa máxima não pode se fazer
tão absoluta que impossibilite recriações e empobreça a literatura “nascente”. A
suas recriações Machado, dá o nome de “plágio”. Porém, é preciso atentar para o
sentido da palavra “plágio” que assume, aqui, novo significado. Trata-se de um
exercício que possibilita à segunda versão, a originalidade da primeira. É nestes
termos que a originalidade de Machado de Assis comparece em nossas letras,
numa articulação consciente do processo de criação através da tradução que o
ficcionista Machado de Assis trabalha, confirmando na prática aquilo que pregara
enquanto crítico. Nesse sentido, o crítico se antecipa ao romancista.
Em tempos de afirmação de nacionalidade e definição do próprio sistema
literário nacional é importante destacarmos a consciência com que Machado de
Assis trabalhou a serviço da literatura local utilizando-se da universal.
De todas as declarações de Machado aqui mencionadas podemos deduzir
que ele defende, com a consciência de o estar fazendo, a contextualização
99
modificadora de influências literárias, seja através da adição de uma “partícula” ou
de um tempero extra com o “molho de sua fábrica”.
Com relação ao outro tipo de plágio, que é a apropriação indébita do texto
do outro, o próprio Machado de Assis foi acusado desse tipo de ato por um
folhetinista do Correio Paulistano: o Sr. Sílvio Sílvis.
Este foi o parecer dado pelo colunista sobre a estréia da peça de Machado
de Assis, O Caminho da Porta, em 1864:
Tivemos um dia 11 gordo a respeito de
espetáculo.
Foi todo ele novo, novíssimo. Abriu o
divertimento a comédia brasileira – Caminho
da Porta do Sr. Machado de Assis. A lhes
falar a verdade não sei lá o grande mérito que
acham nesta composição. O dono dela (dono se
dizia dos escritores quando os que roubavam se
chamavam ladrões, hoje nem todos os escritores
se podem chamar de dono... mas também não se
chamam outra coisa) o dono dessa composição
possui apenas no Caminho da Porta um estilo
elegante e delicado, o mais...
O nosso Machado sempre se defendeu das acusações de plágio embora
nunca tenha demonstrado pretensão de uma originalidade perfeita, no sentido
antes dado ao termo, antecipando desta maneira, a noção de que esta é
impossível, como hoje sabemos. Com relação ao conceito de autoria, Machado
também deixa muito clara sua concepção.
100
Assim se posiciona Machado de Assis a respeito do julgamento do Sr. Sílvis
na Carta à redação da Imprensa Acadêmica datada de 21 de agosto de 1864:
O que me obriga a tomar a pena é a insinuação
de furto literário, que me parece fazer o Sr. Sílvio-
Sílvis, censura séria que não pode ser feita sem
que se aduzam provas. Que a minha peça tenha
uma fisionomia comum a muitas outras do
mesmo gênero, e que, sob este ponto de vista,
não possa pretender uma originalidade perfeita,
isso acredito eu; mas que eu tenha copiado e
assinado uma obra alheia, eis o que eu contesto
e nego redondamente.
Se, por efeito de uma nova confusão, tão
deplorável com a outra, o Sr. Sílvio- Sílvis chama
furto à circunstância a que aludi acima, fica o dito
por não dito, sem que eu agradeça a novidade.
Quintino Bocaiúva, com a sua frase culta e
elevada, já me havia escrito: “ As tuas duas
peças, modeladas ao gosto dos provérbios
franceses, não revelam mais do que a
maravilhosa aptidão do teu espírito, a própria
riqueza do teu estilo”. (ASSIS, 1992, p. 978)
Quando afirmamos que o ficcionista Machado trabalha de acordo com o
que determina o crítico Machado transcrevendo para nosso solo através de
“plágios” grandes textos da literatura universal, é preciso esclarecer, mais uma
vez, que esse trabalho de “plágio” não é uma mera cópia, mas uma cópia
transformadora, uma tradução.
101
O termo “plágio” utilizado pelo Machado em seus textos de crítica literária
do século XIX e por alguns de seus críticos, como a americana Helen Caldwell em
seu trabalho datado de 1960, já foi renomeado pela atual crítica literária
comparatista como “apropriação transformadora”, “cópia em diferença” ou mesmo
“reescritura” mas sempre conservando a idéia “insidiosa” contida no termo
utilizado pelo escritor brasileiro e é agora utilizado nesta tese com o nome de
tradução. Como bem coloca o escritor
A literatura como Proteu, troca de formas, e nisso
está a condição de sua vitalidade.
ou
Já alguém afirmou que citar a propósito um texto
alheio equivale a tê-lo inventado. (Diálogos e
reflexões de um relojoeiro, 1856)
Nesse sentido, argumentaremos que a crença no ‘múltiplo plagiarismo’
aos olhos de Helen Caldwell, crítica norte-americana cujo texto The Brazilian
Othello of Machado de Assis (1960) é citado por diversos estudiosos do autor,
seria, na realidade, uma contribuição machadiana para a teorização e o exercício
do que a contemporaneidade chama de intertextualidade.
Ao rearticular o texto primeiro através do “plágio” transformador, já não se
mostra mais o texto matriz com o mesmo, pois esse já foi “perturbado” – para
utilizar um termo do crítico Homi Bhabha – pelo poder criador do segundo texto,
“produzindo outros espaços de significação subalterna”.(BHABHA: 1998. p.228).
102
Como nos lembra Schneider ( 1990, p. 72) um artífice da palavra, “bem que
tem o direito de reutilizar produtos acabados como matéria-prima nova” e o
conceito de intertextualidade postulado por Julia Kristeva alivia o escritor dessa
situação de compromisso com suas fontes e crise de consciência com relação ao
processo de autoria.
O termo intertextualidade designa esta
transposição de um ou vários sistemas de signos
num outro, mas já que este termo foi
freqüentemente entendido no sentido banal de
“crítica das fontes” de um texto, preferimos o de
“transposição” que tem a vantagem de precisar
que a passagem de um sistema significante a um
outro exige uma nova articulação da temática
existencial, da posição enunciativa e denotativa.
(KRISTEVA, 1974, p. 60).
Novamente lembramos aqui o cultuado Instinto de Nacionalidade de
Machado de Assis que, publicado em 1873, antecipa muitas dessas questões
porque, segundo ele, “ não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura
nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua
região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam”,
pois, de acordo com Machado, o que enriqueceria a literatura nacional seria
justamente o diálogo com outras culturas. Para ele, “copiar a civilização existente”
não estabelecia um impedimento à criação artística, e não enfraquecia a produção
local.
103
Machado de Assis consideraria em Instinto de Nacionalidade e também
em A Nova Geração a inclinação exagerada à cor local um equívoco por não
deixar enxergar outras possibilidades para o processo de constituição da literatura
nacional e, ao mesmo tempo, já revogava a estabelecida relação centro-periferia
que poderia restringir a nossa literatura a um espaço circunscrito pela
preocupação excessiva com a individualização e o nacionalismo. Desse modo, se
aproxima da crítica contemporânea por delinear, no século XIX, uma teoria que
propõe o alargamento do horizonte crítico para os intelectuais de sua época.
Assim coloca em A Nova Geração:
Do que fica dito resulta que há uma inclinação
nova nos espíritos, um sentimento diverso no dos
primeiros e segundos românticos, mas não há
ainda uma feição assaz característica e definitiva
do movimento poético. Esta conclusão não chega
a ser agravo à nossa mocidade; eu sei que ela
não pode por si mesma criar o movimento e
caracterizá-lo, mas sim receberá impulso
estranho, como aconteceu às gerações
precedentes. [...] A atual geração ,
quaisquer que sejam os seus talentos, não pode
esquivar-se às condições do meio; afirmar-se-á
104
pela inspiração pessoal, pela caracterização do
produto, mas o influxo externo é que determina a
direção do movimento; não há por ora no nosso
ambiente a força necessária à invenção de
doutrinas novas.( ASSIS, 1879, p.809)
Por isso, Machado não repele o “outro”, ele o adota carinhosamente certo
de que daí há muita contribuição para criação de um pecúlio cultural universal, que
possa “assegurar à nossa literatura o direito à universalidade das matérias”.
(SCHWARZ, 1990, p.09).
Novamente em A Nova Geração podemos vislumbrar o germe da teoria da
tradução que afirmamos nesta tese estar embutida em toda a produção intelectual
do grande e inclassificável Machado de Assis
Digo aos moços que a verdadeira ciência não é a
que se incrusta para ornato, mas a que se
assimila para nutrição; e que o modo eficaz de
mostrar que se possui um processo científico,
não é proclamá-lo a todos os instantes, mas
aplicá-lo oportunamente. Nisto o melhor exemplo
são os luminares da ciência: releiam os moços o
seu Spencer e seu Darwin. Fujam também a
outro perigo: o espírito de seita, mais próprio das
gerações feitas e das instituições petrificadas.
(ASSIS,1992, p.836 ).
105
Diante disso, pudemos perceber um Machado de Assis sugerindo aos
intelectuais brasileiros “que releiam o seu Spencer e o seu Darwin” mas que o
façam de modo a evitar a adoção do “já-estabelecido” sem um posicionamento
crítico, pois isso em nada contribuiria para a constituição da nacionalidade cultural
no Brasil.
A idéia de uma teoria da tradução construída por Machado de Assis
aparece também numa crônica de 22 de agosto de 1864, na qual vislumbramos
um dos pontos mais debatidos pelos teóricos da tradução na contemporaneidade:
se a tradução deixa de ser devedora ao texto original tendo vida própria. Assim
coloca Machado:
Os meus hóspedes são americanos, um da
América do Sul, outro da América do Norte;
ambos poetas, - cantando um na língua de
Camões, outro na de Milton, - e para que, além
de talento, houvesse neste momento um elo de
união entre ambos, - um criou uma página
poética sobre uma lenda do Amazonas, - outro
criou outra página poética, traduzindo literal, mas
inspiradamente, a página do primeiro. O primeiro
é John Greenleaf Whitter, autor de um livro de
baladas e poesias, intitulado: In War Time, Em
Tempo de Guerra; - livro, onde vem inserta a
página poética em questão. Chama-se o
segundo, na linguagem simples das musas, -
Pedro Luis, poeta fluminense, dotado de uma
imaginação ardente e de uma inspiração arrojada
e vivaz, autor da magnífica Ode à Polônia [...] A
própria tradução parece original, tão naturais, tão
106
fáceis, tão de primeira mão são os seus versos.
Não quero privar os entendedores do prazer de
compararem as duas produções, os dois
originais, deixem-me assim chamá-los. ( ASSIS,
1994, p100-1).
Ainda com relação à tradução, lembraremos uma crônica de 17 de outubro
de 1864, do Diário do Rio de Janeiro, na qual Machado de Assis comenta a
publicação de Cantos Fúnebres, de Gonçalves de Magalhães se referindo à
tradução da Morte de Sócrates, de Lamartine, deste modo:
Não li toda a tradução da Morte de Sócrates,
nem a comparei ao original; mas as páginas
que cheguei a ler pareceram-me dignas do
poema de Lamartine. O próprio tradutor
declara que empregou imenso cuidado em
conservar a frescura original e os toques
ligeiros e transparentes do poema. Essa
deveria ser, sem dúvida, uma parte da tarefa;
para traduzir Lamartine é preciso saber
suspirar versos como ele. As poucas páginas
que li dizem-me que os esforços do poeta não
foram em vão. (ASSIS, In: JACKSON, v.23,
p.192)
107
O texto “Amour dês femmes pour les sots”, (1859) de Victor Henaux (Queda
que as mulheres têm para os tolos) foi traduzido por Machado de Assis em
1861 e publicado na revista A Marmota, em cinco números sucessivos: 19, 23, 26,
30 de abril e 03 de maio, registra um erro cometido por vários estudiosos de sua
obra: o texto em questão foi considerado por muito tempo como original do autor,
até que Jean-Michel Massa declarou que se tratava na verdade de uma tradução.
Através da comparação entre o tratado em francês e sua tradução em português
é possível avaliar a fidelidade de Machado ao texto original.
Outro exemplo é a tradução feita por Machado de Assis, no Folhetim do
jornal Diário do Rio de Janeiro, de 15 de março de 1866 até 29 de julho de 1866,
da obra de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar, que apareceu sem a assinatura
do tradutor. A ausência do nome não causa espanto no caso dos textos traduzidos
nos jornais brasileiros no século XIX porque ressalta a invisibilidade do mesmo.
De acordo com Ledo Ivo a tradução de Os trabalhadores do mar
Posto diante do gênio torrencial e de
imaginação desbragada, que não hesitava diante
das mais crispantes ostentações do romanesco,
o jovem Machado se permitiu algumas licenças.
Como se em sua oficina de tradutor quisesse
amortecer as ruidosas antíteses hugoanas. [...]
Em Victor Hugo o mar estendia-se completo,
minucioso, com as iras e calmarias, habitantes e
leis cósmicas. Em Machado de Assis, tudo isso
poderia resumir-se, um dia, ao rastilho de uma
ressaca: a dos olhos da dissimulada Capitu. (IVO,
1976: 55).
108
Ivo observou que Machado de Assis, ao traduzir o texto de Victor Hugo,
alterou o tempo da narrativa pela substituição dos verbos utilizados no mais-que-
perfeito no texto “original” pelo pretérito perfeito.
Decerto que a crítica também observa contribuições que a tradução de Os
trabalhadores do mar deu ao jovem tradutor. Todas as passagens que denotam
“ecos do pessimismo” poderiam ser assinadas pelo romancista maduro de alguns
anos mais tarde, como se tivessem influenciado no amadurecimento de nosso
escritor, como, por exemplo: “ Toda natureza devora ou é devorada. As presas
mastigam-se umas às outras. Podridão é alimentação. Assustadoras limpeza do
globo. O homem carnívoro é também coveiro. A nossa vida é feita de
morte”.(HUGO, Victor, parteIII, l. 4)
Num capítulo posterior veremos que a tradução também visita a prosa de
ficção machadiana, algumas vezes como fonte de teorização, outras como
processo de criação literária. Analisaremos dois de seus romances que
exemplificam seu trabalho com a tradução já no seu sentido amplo que abrange
os conceitos de cópia, plágio e imitação, constituindo, além do mais, um apêndice
à teorização da tradução através de símbolos.
Para exemplificar a postura de Machado de Assis, utilizaremos a “teoria do
molho” exposta por Afrânio Coutinho que se baseou nas utilizações metafóricas
criadas pelo escritor oitocentista com relação à apropriação de textos alheios.
Esses princípios listados por Coutinho trazem à tona os juízos de valor
concebidos por Machado e que vem a ser o segredo de sua genialidade. Coutinho
inicia seu ensaio lembrando que o nosso escritor afirmara que
109
“O discípulo embebe-se na lição do mestre,
assimila ao seu espírito o espírito do modelo”
(ASSIS, 1992, v.1, p.32)
ou faz confissões como
“tiro de cada coisa uma parte e faço o meu ideal
de arte, que abraço e defendo” (idem, p. 32)
em outro lugar declara
“Que a evolução natural das coisas modifique
as feições, a parte externa, ninguém jamais o
negará; mas há alguma coisa que liga, através
dos séculos, Homero e Lord Byron, alguma coisa
inalterável, universal e comum, que fala a todos
os homens e a todos os tempos”. (idem, p. 32)
Para Machado de Assis não importava o material, mas o tratamento dado a
ele, assim, jamais usava as contribuições alheias como estavam na origem. De
acordo com Mário Casassanta, lembrado por Coutinho
“O certo é que [Machado], apesar de haver
pilhado alimento em muito timo e muita
manjerona, deu-nos um mel de seu fabrico que
não sabe a timo nem a manjerona.” (idem, p.33)
Essa é a teoria do molho que explica o fazer literário machadiano e também
sua brasilidade.
Além da “teoria do molho” introduz-se ainda, nesta tese, o estudo do texto
machadiano através das noções contemporâneas, como as de intertextualidade e
plagiotropia para a elaboração do conceito de tradução enquanto citação/
110
/reinterpretação/recontextualização no processo criativo machadiano.
É de fácil reconhecimento e apontado freqüentemente pela crítica brasileira
o fato de Machado fazer uso sistemático de citações em seus textos, mas não
citações simplesmente, e sim, citações truncadas, ou sejam, que não
correspondem fielmente aos textos citados. Explicações vieram de toda a parte e
de toda a sorte, inclusive de falhas na memória do escritor. O certo é que por meio
da citação, o escritor exercita o ato de apropriação e é dessa forma que Machado
mostra-se como tradutor e elabora uma teoria sobre tradução. Ao apropriar-se de
textos de outrem, estabelecia simultaneamente uma teoria sobre o traduzir.
O uso de citação de autores estrangeiros, no original ou em tradução,
suplementava o assunto das crônicas, dos contos, dos diversos gêneros literários
em que os textos foram produzidos. Depois de percorrer boa parte do seu
labirinto, percebemos que diante do paradoxo tradição X inovação, Machado
optou por uma solução criadora que, ao mesmo tempo que transformava a
tradição, adaptava-a às necessidades culturais e artísticas de seu tempo.
Um dos escritores que mais acompanhou Machado pelos labirintos de suas
criações foi o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare. Ele soube recriar
com engenho e arte a obra shakespeariana, adaptando-a aos seus propósitos
narrativos. Podemos afirmar que Hamlet, Otelo, Romeu e Julieta e Macbeth
representam seus textos prediletos. Citações de falas desses personagens
aparecem em suas crônicas, contos, romances. Porém, as referências adquirem
uma roupagem machadiana com novos significados: irônicos, galhofeiros,
111
perversos ou satânicos. Machado sempre se valia de citações de Shakespeare,
ora para invertê-las, ora para questioná-las.
A crítica norte-americana Helen Caldwell registra a presença de Otelo como
argumento de vinte e oito histórias e artigos de Machado de Assis. Segundo
ela, sete dos nove romances do autor trazem a marca do ciúme, que é também
enredo de outras dez pequenas histórias. Romeu e Julieta serviu de tema para um
romance e dois contos. Hamlet é o texto que mais aparece em referência nos
textos machadianos.
De acordo com a maioria dos críticos do textos machadianos, a tradução do
texto A Queda que as mulheres têm para os tolos produziu o romance
Ressurreição, como este é, segundo Helen Caldwell, o “germe” de Dom
Casmurro, considerado uma tradução de Otelo. Atentemos para o “mosaico de
citações” (KRISTEVA, 1974) que constitui a produção machadiana.
Uma outra prática encontrada no puxar dos fios comparece no conto A
Cartomante. Já nas primeiras linhas nos deparamos com a frase célebre da
tragédia Hamlet “ há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a nossa
filosofia”.
De acordo com Garcez
Machado de Assis situa o seu diálogo com a
tradição literária européia em vários níveis de sua
construção discursiva a começar pelo gênero. A
reescritura de Hamlet no Brasil oitocentista se dá
112
a partir de uma transposição de gênero: a um
gênero considerado maior como o trágico,
Machado contrapõe um gênero moderno como o
conto realizando uma travessia considerada
pelas instituições convencionais como qualitativa.
Essa dessacralização da tragédia e também da
própria obra Hamlet estende-se ainda pelo texto
através de inversões, de dissonâncias, de
deslocamentos que marcam o viés contrapontual
sob o qual se apresentam, no conto, as
personagens, a linguagem, as marcações sociais
e espaciais e aspectos da realidade brasileira.
(GARCEZ, , p. 115-6)
A intertextualidade constatada nesse caso se manifesta pela tradução que
destaca a irreverência na apropriação, na desierarquização e mesmo na
transcriação do escritor brasileiro que traz para a periferia do oitocentos o texto do
dramaturgo inglês. Pode-se sublinhar que o Reino da Dinamarca foi transformado
ao chegar ao Rio de Janeiro articulando a identidade nacional através da forma
criativa e irreverente.
No Brasil, as personagens shakespearianas são travestidas de marcas do
cotidiano, chegando bem próximas do popular, misturando aspectos da realidade
brasileira com discussões de caráter universal.
E, concluindo, não poderíamos deixar de citar mais uma vez Garcez de que
esta é
113
Mais uma percepção aguda do mestre a que a
crítica literária atual deve estar mais atenta se
não quiser passar de um extremo a outro: de
uma postura eurocêntrica a um fechamento
nacionalista da periferia, incapaz de dar conta da
verdadeira situação política, econômica e cultural
dos países marginalizados pelo centro Estados
Unidos-Europa. ( idem, p. 117)
Perscrutando mais um pouco o labirinto machadiano encontramos, no conto
Um Homem Célebre, mais uma demonstração das conjecturas do nosso tradutor
abordando o tema da impotência criativa do personagem Pestana. Neste conto,
Machado acaba por colocar em discussão o tema da imitação e da originalidade.
Pestana, o personagem principal, tem um talento admirável para compor
polcas que logo caíam no gosto do público que pedia, sempre que tinha
oportunidade, que o exímio compositor tocasse uma de suas modinhas. Ao
contrário do que se poderia supor, Pestana sempre o faz a contragosto e sem
entusiasmo, não por pudores ou modéstia, mas porque se sentia aborrecido e
vexado cada vez que precisava relembrar suas composições e certificar-se de que
não passavam de imitações. Sempre que chegava em casa, irritado consigo por
uma dessas lembranças, metia-se no pijama e sentava-se ao piano para tocar
seus compositores preferidos : Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach,
Schumann. No dia seguinte, ao levantar, era tomado de súbito por uma onda de
inspiração, corria ao piano e de lá saía, como que fluindo, uma nova composição,
a qual era imediatamente levada ao editor e daí para o sucesso era só um átimo
114
de tempo. Logo depois vinha outra decepção, e era sempre assim. Cada vez que
imaginava ter criado uma peça musical de qualidade, descobre ser mera imitação.
O ponto alto de sua frustração ocorre quando pensa ter finalmente criado um
noturno e, ao executá-lo para a mulher, sem avisar-lhe do que se tratava, ouviu
em resposta: “Não é um Chopin?”
Diante da constatação, Pestana
“empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um
ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se
ao piano, e, depois de algum esforço de
memória, executou a peça de Chopin. A idéia, o
motivo eram os mesmos; Pestana achara-o
em algum daqueles becos escuros da
memória, velha cidade de traições.” (ASSIS,
1994, p. 502). grifo nosso
Na verdade o contato com os clássicos na noite anterior dava o gás que
faltava a inventividade do compositor. O conto de Machado de Assis traz à baila
um conceito considerado importante para a criação artística: a originalidade. O
compositor Pestana não conseguia lidar com a angústia que a influência que os
clássicos exerciam sobre sua atividade criadora e concebia o original como aquilo
que nunca tinha sido feito antes. Machado mais uma vez teoriza sobre o processo
criativo através de sua ficção.
3.2. “O CORVO” visita o Brasil
115
Machado de Assis principiou sua atividade tradutória escrevendo duas
imitações: Minha Mãe ( imitação de Willian Cowper) – poesia, em 1856 e Hoje
Avental, Amanhã Luva ( La chasse au Lion, de Vattier et De Najac) – teatro, em
1860. Recebeu críticas com relação ao primeiro texto por não tê-lo lido no original
mas, através de uma tradução para o francês que o fez alterar o texto original.
Críticas como essas, na contemporaneidade, perdem qualquer valor pois, o
conceito de tradução foi ampliado incluindo nele as versões, adaptações e
paráfrases.
Esses rastreamentos nos espantam às vezes por já estarmos acostumados
apenas com o comentário sobre a tradução de O Corvo, poema de Poe escrito em
1845, traduzido por Machado de Assis em 1883 e sem dúvida sua mais famosa
tradução. Torna-se necessário tomarmos, neste momento, tanto o “original” de
Poe quanto O Corvo de Machado a fim de melhor exemplificarmos as alterações
criativas na tradução do escritor brasileiro:
The Raven
Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,
Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,
While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,
As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.
“ ‘Tis some visitor,” I muttered, “tapping at my chamber door-
Only this, and nothing more.”
116
O Corvo
Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”
No texto de Edgar Allan Poe podemos observar já na primeira estrofe um
denso cruzamento de rimas finais e internas, completado por abundantes
aliterações e todo tipo de assonâncias, constituindo um absorvente desafio a sua
tradução.
O nosso Machado traduziu com perfeita transposição do sentido e do clima,
além de algumas artimanhas sonoras, como por exemplo retomar o som “or” de
“more” e “Lenore” de Poe nas rimas “morta”/ “porta”.
Ah, distinctly I remember it was the bleak December,
And each separate dying ember wrought its ghost upon the floor.
Eagerly I wished the morrow; - vainly I had sought to borrow
Form my books surcease of sorrow – sorrow for the lost Lenore –
For the rare and radiant maiden whom the angels name Lenore –
Nameless here for everymore.
Ah! Bem me lembro! Bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
117
Cada brasa do lar sobre o colchão refletia
A sua última agonia.
Eu ansioso pelo Sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará mais.
Quanto à metrificação, verificamos que Poe utiliza versos de 16 sílabas,
enquanto Machado de Assis alterna entre versos de 8, 10 e 12 sílabas.
And the sliken sad uncertain rustling of each purple curtain
Thrilled me- filled me with fantastic terrors never felt before;
So that now, to still the beating of my heart. I stood repeating,
‘Tis some visitor entreating entrance at my chamber door-
Some later visitor entreating entrance at my chamber door;-
This it is, and nothing more.”
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui, no peito,
Levantei-me de pronto, e “Com efeito,
(Disse), é visita amiga e retardada
“Que bate a estas horas tais.
“É visita que pede à minha porta entrada:
“Há de ser isso e nada mais”.
Presently my soul grew stronger; hesitating then no longer,
118
“Sir,” said I, “or Madam, truly your forgiveness I implore;
but the fact is I was napping, and so gently you came rapping,
and so faintly you came tapping, tapping at my chamber door,
that I scarce was sure I heard you”-here I opened wide the door;-
Darkness there, and nothing more.
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo, e desta sorte
Falo: “Imploro de vós – ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
“Mas como eu, precisando de descanso
“Já cochilava, e tão de manso e manso,
“Batestes, não fui logo, prestemente,
“Certificar-me que aí estais”.
Disse; a porta escancar, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.
Deep into that darkness peering, long I stood there wondering, fearing,
Doubting, dreamind dreams no mortals ever dared to dream before;
But the silence was unbroken, and the stillness gave no token,
And the only word there spoken was whispered word, “Lenore!”
This I whispered, and an echo murmured back the word, “Lenore!” –
Merely this, and nothing more.
Com longo olhar escruto a sombra
Que me amedronta, que me assombra.
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu, com um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
119
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Back into the chamber turning, all my soul within me burning,
Soon again I heard a tapping somewhat louder than before.
“Surely,” said I, “surely that is something at my window lattice:
Let me see, then, what thereat is, and this mystery explore-
Let my heart be stiil a moment and this mystery explore;-
‘Tis the wind and nothing more.”
Entro co’a alma incendiada,
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos,
“Eia, fora o temor, eia, vejamos
“ A explicação do caso misterioso
dessas duas pancadas tais,
“Devolvamos a paz ao coração medroso,
“Obra do vento, e nada mais”.
Open here I flung the shutter, when, with many a flirt and flutter,
In there stepped a stately raven of the saintly days of yore;
Not the least obeisance mede he; not a minute stopped or stayed he;
But, with mien of lord or lady, perched above my chamber door –
Perched upon a bust of Pallas just above my chamber door –
Perched, and sat, and nothing more.
Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
120
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta em um busto de Palas:
Trepado fica, e nada mais.
Then this ebony bird beguiling my sad fancy into smiling,
By the grave and stern decorum of the countenance it wore.
“Though thy crest be shorn and shaven, thou, “I said, “art sure no craven,
Ghastly grim and ancient raven wandering from the Nightly shore –
Tell me what thy lordly name is on the Night’s Plutonian shore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gosto severo, - o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas
“Vens, embora a cabeça nua tragas,
“Sem topete, não és ave medrosa,
“Dize os teus nomes senhoriais;
“Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
Aqui, Poe atribui a origem do corvo ao submundo infernal relacionando-o
com a figura mitológica de Plutão; já Machado não cita tal figura mas em
contrapartida acrescenta a expressão “noite umbrosa” ao seu texto.
Much I marvelled this ungainly fowl to hear discourse so plainly,
Though its answer little meaning – little relevancy bore;
For we cannot help agreeing that no living human being
Ever yet was blest with seeing bird above his chamber door –
121
Bird or beast upon the sculptured bust above his chamber door,
With such name as “Nevermore.”
Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que eu lhe fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta a dizer em resposta
Que este é seu nome: “Nunca mais”.
But the raven, sitting lonely on the placid bust, spoke only
That one word, as if his soul in that one word he did outpour.
Nothing further then he uttered – not a feather then he fluttered-
Till I sacracely more than muttered, “other friends have flown before.”
Then the bird said, “Nevermore.”
No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário.
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse,
Nenhuma outra proferiu, nenhuma.
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
“Tantos amigos tão leais!
“Perderei também este em regressando a aurora”
E o corvo disse: “Nunca mais!”
Startled at the stillness broken by reply so aptly spoken,
122
“Doubtless,” said I, “what it utters is its only stock and store,
caught from some unhappy master whom unmerciful Disaster
followed fast and followed faster till his songs one burden bore-
till the dirges of his Hope that melancholy burden bore
Of ‘Never – nevermore’.”
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! É tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
“Que ele trouxe da convivência
“De algum mestre infeliz e acabrunhado
“Que o implacável destino há castigado
“Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
“Que dos seus cantos usuais
“Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
“Esse estribilho: “Nunca mais”.
But the Raven still beguiling all my fancy into smiling,
Straight I wheeled a cushioned seat in front of bird, and bust and door;-
Then upon the velvet sinking, I bettok myself to linking
Fancy unto fancy, thinking what this ominous bird of yore-
What this grim, ungainly, ghastly, gaunt and ominous bird of yore
Meant in croaking “Nevermore.”
Segunda vez nesse momento
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E, mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera,
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais”.
123
Na citada estrofe, constatamos que Poe emprega uma intensa e freqüente
adjetivação, enquanto Machado apresenta uma tendência à concisão de idéias e
formas na tradução da mesma estrofe e diz apenas : “ave do medo”.
This I sat engaged in guessing, but no syllable expressing
To the fowl whose fiery eyes now burned into my bosom’s core;
This and more I sat divining, with my head at ease reclining
On the cushion’s velvet lining that the lamplight gloated o’er,
But whose velvet violet linig with the lamplight gloating o’er,
She shall prees, ah, nevermore!
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam
E agora não se esparzem mais.
Then methought the air grew denser, perfumed from an unseen censer
Swung by Seraphim whose footfalls tinkled on the tufted floor.
“Wretch, “I cried, “Thy God hath lent thee- by these angels the hath sent sent thee
respite – respite and nepenthem from thy memories of Lenore!
Quaff, oh quaff this kind nepenthe and forget this lost Lenore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estava, meneando
Um ligeiro turíbulo invisível:
“Manda repouso à dor que te devora
124
“Destas saudades imortais.
“Eia, esquece, eia olvida essa extinta Lenora”.
E o corvo disse: “Nunca mais”.
Aqui averiguamos que Poe menciona uma antiga droga dos gregos utilizada
para curar a tristeza: o nepente. Esta droga ajudaria a esquecer a amada Lenore.
Já Machado apenas reforça o fato de esquecer a amada e não cita droga
alguma.
“Prophet!” said I, “thing of evil! – prophet still, if bird or devil!-
Whether Tempter sent, or whether tempest tossed thee here ashore,
Desolate yet all undaunted, on this desert land enchanted-
On this home by horror haunted – tell me truly, I implore!
Is there – is there balm in Gilead? – tell me – tell me, I implore!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
“Onde reside o mal eterno,
“Ou simplesmente náufrago escapado
“Venhas do temporal que te há lançado
“Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
“Tem os seus lares triunfais,
“Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
“Prophet!” said I, “thing of evil – prophet still, if bird or devil!
By that Heaven that bends above us – by that God we both adore-
Tell this soul with sorrow laden if, within the distant Aidenn,
It shall clasp a sainted maiden whom the angels name Lenore-
Clasp a rare and radiant maiden whom the angels name Lenore.”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
125
“Profeta, ou o que quer que sejas!
“Ave ou demônio que negrejas!
“Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
“Por esse céu que além se estende,
“Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
“Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
“No Éden celeste a virgem que ela chora
“Nestes retiros sepulcrais,
“Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o corvo disse: “Nunca mais!”
Neste ponto, enquanto Poe menciona o Éden como o lar de Lenora,
Machado apenas o chama de “Éden celeste”.
“Be that word our sign in parting, bird or fiend, “I shrieked, upstarting-
“Get thee back into the tempest and the Night’s Plutonian shore!
Leave no black plume as a token of that lie thy soul hath spoken!
Leave my loneliness unbroken!-quit the bust above my door!
Take thy beak from out my heart, and take thy form from off my door!”
Quoth the Raven, “Nevermore.”
“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
“Cessa, ai, cessa! (clamei, levantando-me) cessa!
“Regressando ao temporal, regressa
“À tua noite, deixa-me comigo...
“Vai-te, não fique no meu casto abrigo
“Pluma que lembre essa mentira tua.
“Tira-me ao peito essas fatais
“Garras que abrindo vão a minha dor já crua”
E o corvo disse: “Nunca mais”.
126
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s that is dreaming,
And the lamplight o’er him streaming throws his shadow on the floor
Shall be lofted –nevermore!
E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
Pudemos verificar através do cotejo dos dois textos que o “original” de Poe
é mais enxuto porque a estrutura é diferente ( cada estrofe de Poe tem 5 versos
longos e um curto, enquanto Machado aumentou para 10 versos curtos).
E mesmo sendo a mais famosa de suas traduções, há opiniões
controvertidas com relação à tradução feita por Machado.
De acordo com Barroso e Masini (2002), The Raven (1845), é um clássico
da poesia inglesa que desafia tradutores – mais de trinta versões já foram feitas só
em português e quase nenhuma consegue o efeito conseguido no inglês que
coaduna os efeitos de som da rima em – ore ( never more e nothing more ) com
Lenore, o nome da morta por quem o poeta sofre.
127
Para esses especialistas em tradução, manter “nunca mais” em português
dá “suadouro em tradutores de vários calibres” e não pouparam a tradução de
Machado do texto de Edgar Allan Poe afirmando que ela é um “equívoco”.
Em seus trabalhos, Barroso e Masini fazem excelentes compilações e
avaliam as poesias que melhor resgataram a força do original, mas se esquivaram
de dizer que cada uma delas serve de medida exata para mostrar que toda
tradução, ainda mais em poesia, é pura recriação e esta tese procura reforçar isso
mostrando que Machado de Assis entende por originalidade o efeito da
apropriação modificadora da forma de origem, portanto já não se pode considerar
sua tradução de O Corvo um equívoco.
Do mesmo modo que tudo que se põe em discussão gera opiniões
divergentes, com a tradução não poderia deixar de ser assim, ainda mais de um
texto célebre como O Corvo. Então para Bellei (1992), por exemplo, “Machado
universaliza o que Poe reduz a uma percepção mais limitada da dor da perda no
ser humano” (1992, p. 87) , ou seja, produz originalmente na repetição, porque
“enquanto Poe escreve um poema sobre um
amante aflito pela perda da mulher amada e usa
o corvo como emblema dessa situação, Machado
reescreve o poema original dando ênfase ao
corvo como centro de atenção e à mensagem
secreta que ele tem para oferecer à humanidade”
(1992, p. 83).
Sem a ambição dar a lista completa podemos garantir que há pelo menos
120 autores de traduções de O Corvo nas principais línguas neolatinas da Europa
ocidental. As traduções brasileiras são consideradas muito livres do ponto de vista
128
formal; são versões em sonetos, em oitavas, em décimas e ainda versões em
prosa, cordel e mesmo poesia visual.
Analistas da tradução feita por Machado de Assis avaliam desde seu
comedimento na descrição física do ambiente, considerado por muitos como fuga
do “compromisso com a realidade”, à consideração de que este mesmo fato tem
justificativa nas características estilísticas ligadas a sua prosa de segunda fase
que valoriza o plano psicológico do amante, perturbado e melancólico com a morte
da amada.
O que podemos constatar é que certas escolhas lingüísticas e literárias
assinalam para maneiras distintas que diferentes tradutores lidaram com o texto
de Poe, ou seja, apropriaram-se dele com intenção de construir novas
possibilidades de significação. Em conseqüência disso, alertamos para o fato de
que um texto nunca permanece intacto e intocável diante de novos indivíduos e
contextos, mas ao contrário, é lido e avaliado de modo diverso a cada olhar,
traduzido para uma realidade que jamais se coliga com o mesmo e a estagnação.
Com estes exemplos, pretendemos demonstrar o uso da citação como
parte integrante da formação intelectual e literária do escritor-tradutor. A tradução
de fragmentos de textos estrangeiros evidencia o importante papel que a tarefa
tradutória exerceu não apenas em sua carreira literária, mas também no contexto
cultural da sociedade brasileira oitocentista.
CAPÍTULO 5:
A TRADUÇÃO MACHADIANA E O TEATRO NACIONAL
Nuestra tradición es toda la cultura
occidental...los sudamericanos en general
podemos manejar todos los temas europeos,
manejarlos sin supersticiones, con una
irreverencia que puede tener, y ya tiene,
consecuencias afortunadas.
Jorge Luis Borges
5.1 – Machado de Assis Parecerista do Conservatório Dramático Brasileiro
Machado de Assis se associou ao Conservatório Dramático Brasileiro aos
23 anos. Fazia, nesse tempo, carreira como crítico teatral e escreveu, ao todo, 16
pareceres para o Conservatório entre 1862 e 1864.
Neste capítulo procuraremos destacar a importância do Conservatório
Dramático Brasileiro tendo como mote a atuação de Machado de Assis naquele
órgão.
De acordo com José Luís Jobim (2001) em seu artigo “ Machado de Assis,
membro do Conservatório Dramático Brasileiro e leitor do Teatro Francês”
Se quiséssemos definir o que foi o
Conservatório Dramático Brasileiro, talvez
pudéssemos afirmar que foi a instituição
responsável pela censura durante grande parte
130
do século XIX. No entanto, esta afirmação não
seria de todo correta, pois o Conservatório
pretendia também ser uma agência formadora
e propagadora do bom gosto estético, como
demonstram seus artigos orgânicos, aprovados
em 24 de abril de 1843.
Machado de Assis tornou-se censor do Conservatório Dramático em 1862,
porém o mesmo já existia desde 1843 e tinha autoridade de permitir ou proibir as
encenações das peças colocadas sob sua observação e análise através dos
pareceres de seus membros. Eram duas as principais disposições que serviam de
instrução para os censores:
1ª - Em um aviso de 10 de novembro de 1843: “Não devem aparecer em cena
assuntos, nem expressões menos conformes com o decoro, os costumes, e as
atenções que em todas as ocasiões se devem guardar, maiormente naquelas em
que a Imperial Família honrar com a Sua Presença o espetáculo”.
2ª - Em uma Resolução Imperial de 28 de agosto de 1845: “ O julgamento do
Conservatório é obrigatório quando as obras censuradas pecarem contra a
veneração à Nossa Santa Religião, contra o respeito devido aos Poderes Políticos
da Nação e às Autoridades constituídas, e contra a guarda da moral e decência
pública. Nos casos, porém, em que as obras pecarem contra a castidade da
língua, e aquela parte que é relativa à Ortoépia, deve-se notar os defeitos, mas
não negar a licença.” (FARIA, 2004).
Lançando um olhar mais atilado sobre os pareceres machadianos notamos
131
que a preocupação com o conteúdo moral das peças prevalece sobre as
observações de caráter estritamente estético. Em seu artigo, José Luís Jobim
lembra que em 16 de dezembro de 1861, Machado de Assis responde uma
provocação de Antônio Joaquim de Macedo Soares e deixa claro quais seriam
suas idéias sobre o teatro e sua finalidade:
Cumpre que o povo não saia do teatro sem
levar consigo alguma moralidade austera e
profunda. A arte só, a arte pura, a arte
propriamente dita, não exige tudo isso do
poeta; mas no teatro não basta preencher as
condições da arte. ( MAGALHÃES JÚNIOR,
1981, p.169)
De acordo com João Roberto Faria “ Machado aceitou fazer parte do
Conservatório, embora achasse, desde 1859, que a autoridade dos censores era
muito limitada” e, segundo o estudioso em um folhetim intitulado O Espelho, com o
título de “Idéias Teatrais”, Machado comenta as disposições lançadas aos
censores e critica principalmente o último parágrafo da segunda disposição.
Afirma Faria que todo o artigo machadiano “ é uma crítica a essa limitação imposta
ao censor, que na sua opinião devia julgar também o mérito literário das peças e,
quando necessário, proibi-las de subir à cena com base nesse julgamento”.
(FARIA, 2004, p. 18).
Como já dissemos Machado emitiu dezesseis pareceres sobre o julgamento
de dezessete peças:
132
1º - Clermont ou a mulher do artista – não continha nome do autor e do tradutor.
Segundo Machado era uma tradução mal feita do francês. Dizia o censor:
Clermont ou a mulher do artista é uma dessas
banalidades literárias que constituem por si o
repertório quase exclusivo dos nossos teatros[...]
pena é que os nossos teatros se alimentem de
composições tais, sem a menor sombra de mérito,
destinadas a perverter o gosto e a contrariar a
verdadeira missão do teatro. Compunge deveras
um tal estado de cousas a que o governo podia e
devia pôr termo iniciando uma reforma que
assinalasse ao teatro o seu verdadeiro lugar.
(SOUZA, 1956, p. 178-9).
2º - A caixa do marido e a charuteira da mulher, de J.P.B. – de acordo com o
censor Machado era uma tradução de alguma farsa francesa, e mereceu
comentário semelhante ao primeiro:
A comédia em um ato A caixa do marido e
a charuteira da mulher, assinada modestamente
por três iniciais, parece obra de obscura
paternidade, que não quer aparecer e recolhe-se
no mistério. Quem lê a comédia vê logo que ela é
uma péssima tradução de francês, deturpada
evidentemente, sem forma portuguesa nem de
língua nenhuma.
Disse comédia, quando ela é farsa, pela
indicação do frontispício e pelo contexto. É farsa
grotesca, sem graça, lutando a grosseria com o
aborrecimento. Se estivesse nas minhas
obrigações a censura literária com certeza lhe
133
negaria o meu voto; mas não sendo assim, julgo
que pode ser representada em qualquer teatro.
Rio, 12 de janeiro de 1862.
Machado de Assis (SOUZA, 1956, p. 188-
9)
3º - O filho do erro, de José Ricardo Pires de Almeida – aprovou não sem antes
considerá-la má literatura:
Quanto ao filho do erro, se é defeituoso
literariamente falando, não me parece fora das
condições legais e morais. Acho que se pode
representar.(SOUZA, 1956, p. 192)
4º - Finalmente, Antônio Moutinho de Sousa – comédia que recebeu restrições do
censor, mas foi aprovada.
5º - Um casamento da época, Constantino do Amaral Tavares - aprovada.
6º - Mistérios Sociais, Augusto César de Lacerda – aprovada.
7º - O anel de ferro, Arcires – aprovada:
Li o drama O Anel de Ferro, por Arcires. É mais
um esforço de nossa nascente literatura
dramática. Se não é uma obra completa em
absoluto acusa boas qualidades da parte do
autor, revela um talento a quem não falta senão o
estudo dos mestres e a reflexão precisa para a
reprodução dos caracteres. [...] estas
observações têm por fim indicar de passagem no
autor os escolhos a evitar erro no futuro, e se as
134
faço com liberdade, faço-as também com a
convicção de que o talento do autor pode sem
dúvida triunfar dos defeitos de hoje e tomar
conscienciosamente o caminho do progresso.
(SOUZA, 1956, p. 189)
8º - As mulheres do palco, sem nome do autor – aprovada.
9º - Ao entrar na sociedade, Luís Guimarães Júnior – aprovada.
De acordo com Faria, as seis últimas peças listadas acima “mereceram
restrições que são, em geral, observações sobre defeitos nos diálogos ou na
armação das cenas, incongruências no enredo, má caracterização dos
personagens, algum pequeno deslize em relação à moral.” ( FARIA, 2004, p. 21)
10º - Os descarados, Emile Augier – aprovada
11º - As leoas pobres, Emile Augier – aprovada.
12º - Os íntimos, Victorien Sardou – aprovada.
13º - As garatujas, Victorien Sardou – aprovada.
As últimas quatro peças foram aprovadas sem reservas e receberam
elogios.
14º - A mulher que o mundo respeita, Veridiano Henrique dos Santos Carvalho –
reprovada, considerada imoral.
15º - As conveniências, Quintino Francisco da Costa – reprovada. De acordo com
o parecerista “um feixe de incongruências”.
16º - Os espinhos de uma flor, José Ricardo Pires de Almeida – reprovada,
considerada imoral:
135
Apesar de toda a simpatia que me inspiram os
moços laboriosos não posso conceder a licença
que se pede para este drama cujo autor procura
adquirir um nome na literatura dramática. Louvo-
lhe os esforços, aplaudo-lhe os conseguimentos,
mas não me é dado sacrificar os princípios e o
dever.
Ora o dever manda arredar da cena dramática
todas aquelas concepções que possam perverter
os bons sentimentos e falsear as leis da moral.
(SOUZA, 1956, p. 191)
Se tomarmos como exemplo três textos publicados em 1859, em que
alinhava uma série de ideais sobre teatro e sobre o Conservatório Dramático
Brasileiro, talvez possamos entender melhor como Machado já expressava
opiniões assemelhadas às que emitirá no futuro, entre 1862 e 1864, na condição
de membro daquela instituição. Para começar, ele assinala que “basta a boa
vontade de um exame ligeiro sobre a nossa situação artística para reconhecer que
estamos na infância da moral” , e que a iniciativa em arte dramática deve ter um
objetivo:
A iniciativa, pois, deve ter uma mira: a
educação. Demonstrar aos iniciados as
verdades e as concepções da arte; e conduzir
os espíritos flutuantes e contraídos da platéia à
esfera dessas concepções e dessas verdades
(ASSIS, 1979, p. 790)
Como já foi mostrado, Machado de Assis também lançava apreciações
sobre a qualidade da tradução das peças que lhe eram apresentadas. De acordo
136
com Faria (2004, p. 21), esse dado ratifica o conceito de um escritor que “viveu
intensamente o movimento teatral nos seus anos de formação”, mostra o quanto
era antenado com as cenas estrangeiras e brasileiras, discutindo com capricho as
iniciativas sérias no teatro nacional e condenando a profusão de traduções por
retardarem o surgimento de talentos nacionais que oferecessem uma arte que
realmente nos representasse.
Por isso preocupava-se com o tradutor dramático que muitas vezes não
fazia uma tradução bem cuidada e, por vezes, transplantava a cultura francesa
para os palcos tropicais sem adaptá-la ao contexto brasileiro.
Ao avaliarmos o problema da tradução no século XIX brasileiro, em uma
sociedade pós-independência premida pela urgente modernização, podemos
afirmar que tal funcionou como um meio de transferência cultural e se mostrou
como componente da formação de identidade cultural da nação porque ao traduzir
o outro, provocava o encontro do próprio. Machado de Assis, percebendo isso
alertou para os perigos de uma assimilação estrangeira sem um posicionamento
crítico.
Eliane F. C. Ferreira(1998) em seu bem elaborado trabalho comenta:
Se, num primeiro momento, Machado em
seu ensaio “ O Passado, o Presente e o Futuro
da Literatura Brasileira” (1858) e a definição que
emitiu para o tradutor dramático em “Idéias Sobre
Teatro” (1859), se aproxima da posição de que
as traduções funcionam como um entrave ao
surgimento dos talentos genuinamente nacionais,
sua prática contradiz sua postura crítica, já
137
que, ao longo de sua carreira, vai demonstrar que
a tradução é um dos elementos formadores da
nacionalidade literária brasileira e que propicia
seu desenvolvimento intelectual. (FERREIRA,
1998, p.57) grifo nosso
É preciso dizer mais uma vez que Machado de Assis preocupava-se com o
transplante de textos sem uma posição crítica da cultura estrangeira que uma
tradução não cuidada podia oferecer. Por isso podemos afirmar que sua prática
não contradiz sua postura crítica. Machado avaliava as traduções dentro do que
postula o sentido tradicional do termo: preocupação com transferência lexical,
porém nunca manifestou-se contra as aclimatações dos modelos tomados
criticamente de outras plagas.
Um exemplo disso se deu quando José de Alencar
confessou candidamente que havia procurado
um modelo de alta comédia na dramaturgia
brasileira para escrever O demônio familiar e que,
não o encontrando, buscou-o na França,
especificamente em Dumas Filho e em sua peça
La question d’argent. Em seu entendimento, esse
escritor ( por sua vez) havia “aperfeiçoado” a
comédia de costumes de Molière, adicionando-
lhe um traço novo, a “naturalidade”, e construindo
assim a comédia moderna. (FARIA, 2004,p. 5)
Alencar foi buscar seu modelo em Dumas Filho, que o foi buscar em
Molière não sem antes “aperfeiçoá-lo” , dando-lhe nova feição. E tanto Machado
de Assis admirava o talento de Alencar chamado por ele de “chefe” quanto a
138
recíproca também é verdadeira. Machado por volta de seus vintes anos já era
considerado uma peça importante como o maior crítico literário e teatral da década
de 1860, por suas intervenções críticas corajosas alcançando um grande prestígio
entre os intelectuais de seu tempo bem antes de dedicar à atividade literária que o
consagrou – a ficção. Alencar lançou em uma carta pública todo seu apreço a
Machado de Assis:
O senhor foi o único de nossos modernos
escritores, que se dedicou sinceramente à cultura
dessa difícil ciência que se chama crítica. Uma
porção de talento que recebeu da natureza, em
vez de aproveita-lo em criações próprias, teve a
abnegação de aplica-lo a formar o gosto e
desenvolver a literatura pátria. Do senhor, pois,
do primeiro crítico brasileiro, confio a brilhante
vocação literária, que se revelou com tanto vigor.
( ALENCAR, citado por FARIA, 2004, p. 2)
Por isso acreditamos que o Machado crítico antecipa questões que o
Machado ficcionista colocou em pauta. E como já bem destaca a crítica: a
propagada mudança que ocorre em sua obra de ficção, no romance com o
surgimento de Memórias Póstumas de Brás Cubas e nos contos a partir de Papéis
Avulsos pode ser um indício da mudança gradativa que ocorre no seu papel de
crítico e teórico: primeiro um censor preocupado com traduções mal feitas, depois
um tradutor com as mesmas preocupações e por fim, um ficcionista que desafia a
dependência cultural em nossas letras sendo irreverente a ponto de traduzir a
139
produção intelectual existente para abaixo da linha do Equador.
Enquanto nossa cultura não atendia a todo tipo de produção, modelos
estrangeiros ocupavam esse espaço vazio. Porém, nem sempre esses modelos
eram conservados inalterados e muitas vezes sofriam imitações, versões e
adaptações alargando o sentido anterior dado à tradução.
Como exemplo citaremos o texto teatral La chasse au Lion que desde a
tradução do título – Hoje avental, amanhã luva – confirma que o trabalho do
tradutor pode ser criativo e livre, baseado em teorias que vêm sendo retomadas
por teóricos de tradução na contemporaneidade. Machado de Assis troca os
nomes de personagens para outros mais condizentes com o território brasileiro
evidenciando, inclusive, “acomodações” ao contexto carioca:
Durval: (sentando-se) – como o Corcovado,
enraizado como ele. Já me doíam saudades desta
boa cidade. A roça, não há coisa pior! Passei lá
dois anos bem insípidos – em uma vida uniforme e
matemática como um ponteiro do relógio: jogava
gamão, colhia café e plantava batatas. Nem teatro
Lírico, nem rua do Ouvidor, nem Petalógica:
Solidão e mais nada. (Citado por MASSA, 1965, p
137).
Podemos vislumbrar através de seu percurso como tradutor que Machado
de Assis praticava a tradução no sentido tradicional do termo quando fazia
traduções por encomenda ou ainda quando criticava as traduções que lhe eram
140
encaminhadas no Conservatório Dramático, porém quando exercia a prática
tradutória por livre vontade usava os modelos para sua “criação”. No caso da
peça Hoje avental, amanhã luva poderíamos dizer que se trata de uma recriação e
não uma imitação ou adaptação.
CAPÍTULO 6: A TRADUÇÃO NO ROMANCE MACHADIANO
Há frases assim felizes. Nascem
modestamente como a gente pobre; quando
menos pensam estão governando o mundo,
à semelhança das idéias. As próprias idéias
nem sempre conservam o nome do pai;
muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e
de ninguém. Cada um pega delas, verte-as
como pode, e vai levá-las à feira, onde todos
as têm por suas.
Machado de Assis
6.1 - Dom Casmurro e o novo conceito de “plágio”
“Oh, flor do céu! Oh, flor cândida e pura!”*
De pura maravilha inexistente!
Tua beleza, sensual e renitente,
Rasga-me a carne, expondo-me a fratura!
Oh, fogo do inferno! Diz-me: és impura!
Diz com as letras, ainda que aparente!
Não me deixes a dor, cruel, persistente,
Diz-me logo: és a última da incura?!
Não, não podes ser, de resto, canalha!
142
Foste apenas menina enamorada
E do bardo a mais forte inspiração...
Foste a lâmina fria da madrugada,
Que expôs, que na aventura da criação,
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!” *
Iverson Carneiro
* Versos de Bento Santiago em Dom Casmurro
Iniciaremos esta parte do presente estudo lembrando de um capítulo de
Dom Casmurro, o de número LV, intitulado “Um Soneto”. Nele o protagonista
Bento Santiago comenta a história de um soneto que nunca concluiu. Estando
deitado, solitário, saiu de sua cabeça “como uma exclamação solta” o primeiro
verso.
Assim na cama, envolvido no lençol, tratei
de poetar. Tinha o alvoroço da mãe que sente o
filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta, ia competir
com aquele monge da Bahia, pouco antes
revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria
em verso as minhas tristezas, como ele dissera
as suas no claustro. Decorei bem o verso, e
repetia-o em voz baixa, aos lençóis; francamente,
achava-o bonito, e ainda agora não me parece
mau:
Oh! flor do céu! flor cândida e pura!
(ASSIS, 1994, p. 866)
143
Depois de uma longa hora ou duas, de virar para todos os lados, Bento
ainda não havia conseguido elaborar os treze restantes que faltavam para o
soneto, concluiu ser necessário fazer o último verso para que os demais
surgissem um a um, deveria ser uma “chave de ouro” porque “os sonetos mais
gabados eram os que assim concluíam”, e depois de suar bastante conseguiu o
seu intento:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”
Tendo o início e o fim do soneto prontos, era de se esperar que ficasse
mais fácil da tarefa de encher o centro com os doze que faltavam. Mas não. Bento
trabalhou em vão e não vieram os versos esperados. É o próprio narrador quem
aponta a solução para esse soneto inacabado:
Pois, senhores, nada me consola daquele
soneto que não fiz. Mas, como creio que os
sonetos existem feitos, como as odes e os
dramas, e as demais obras de arte, por uma
razão de ordem metafísica, dou esses dous
versos ao primeiro desocupado que os quiser. Ao
domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em
qualquer ocasião de lazer, pode tentar ver se o
soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o
centro que falta. (ASSIS, p. 867).
Deste modo, o poeta Iverson Carneiro aceitou o oferecimento e completou
a empreitada iniciada por Bento Santiago, traduzindo a idéia “casmurra” para os
144
tempos atuais. E como o assunto principal desta tese é o aproveitamento do já
estabelecido, fica essa alegoria a marcar o início do estudo de Dom Casmurro,
romance que reconceitua o “plágio” machadiano do texto de Shakespeare: Otelo.
A crítica norte-americana Helen Caldwell em seu trabalho intitulado The
Brazilian Othello of Machado de Assis: a study of Dom Casmurro (1960), elabora
exaustivas comparações entre o Otelo de Shakespeare e o de Machado. Assim, a
ensaísta contribui para teoria tradutória na contemporaneidade na medida em que
demonstra o remanejamento que Machado fez da tradição tanto como tradutor
literário quanto como tradutor lexical. Mais incisivamente, Haroldo de Campos
declara:
“se se deve entender por tradição o processo
histórico da práxis artística, então cabe
compreendê-la como um movimento do pensar
que se constitui na consciência receptora,
apropria-se do passado, o traz até ela e ilumina o
que ela assim traduziu ou tra-ditou em presente,
à nova luz de um significado atual” (CAMPOS,
1984, p. 58).
Ao atualizar o trabalho da crítica norte-americana inclui-se uma questão não
tratada por ela e de grande importância para a nossa discussão acerca do tema
desta tese: a tradução de gênero que Machado de Assis no romance Dom
Casmurro impõe à tragédia Otelo de Shakespeare.
145
Note-se que esta questão já foi esboçada, mas não desenvolvida, por
Enylton de Sá Rego no texto de 1989 O Calundu e a Panacéia: Machado de Assis,
a sátira menipéia e a tradução luciânica, mais especificamente no capítulo no qual
o autor trata de Dom Casmurro e a reescritura da tragédia. É verdade que o
objetivo de Enylton é fazer uma relação dessa reescritura com a questão luciânica
– o que não nos interessa aqui. Em seu bom trabalho, Enylton reconhece uma
importante diferença na tradução da tragédia para o romance: com a mudança de
gêneros, a certeza de um texto transforma-se na ambigüidade do outro.
No caso do romance Dom Casmurro verificamos o quanto na tradução de
Otelo realizada por Machado de Assis e identificada por seus críticos existe um
“sentimento íntimo” a tornar o escritor um homem do seu tempo e do seu país.
Note-se que a tradução da tragédia feita por este “homem de seu tempo e
de seu país” acontece quando ele se põe a “temperar” a “especiaria alheia” com o
“molho de sua fábrica”, fábrica esta, digamos, brasileira. A “especiaria alheia”,
neste caso, a tragédia shakespeariana Otelo, foi buscada por este “homem do seu
tempo e do seu país” nos palcos renascentistas e trazida com novo “molho” para
um contexto periférico do oitocentos.
O que importa é que a tragédia Otelo da qual Machado se apropria é
traduzida, transformada, contextualizada, aclimatada, modificada, ou seja, já é
outra no romance Dom Casmurro, tanto em termos de gênero quanto de tempo e
espaço.
146
Ao traduzir um texto escrito no e para o centro do mundo renascentista,
Machado “adicionou-lhe” não só uma “partícula”, mas muitas. Lembremos que o
escritor oferece-nos um Otelo diferenciado em Dom Casmurro pela combinação
no protagonista Bento Santiago, de duas personagens da tragédia shakesperiana:
o bom Otelo e o malévolo Iago.
Lembremos também que Otelo foi adaptado aos padrões sociais e cristãos
de um país periférico do oitocentos. Em Dom Casmurro não observamos mais a
raiva impulsiva do guerreiro mouro dando cabo da vida da amada que
possivelmente o atraiçoara mas a raiva comedida e disfarçada de um civilizado
e aburguesado ex-seminarista que deixa a suposta esposa traidora no “exílio”,
sem derramar uma gota sequer de sangue, como convém a um cristão católico, e
passa a viver remoendo suas dúvidas casmurras. Afinal, num moderno contexto
brasileiro em fins do século XIX, onde circulam cavalheiros e damas
aburguesados, a vingança não precisava ser tão trágica. No contexto prosaico de
Dom Casmurro também não temos a possibilidade de ver as reações heróicas do
guerreiro Otelo que encanta a amada Desdêmona com a narrativa movimentada
de suas aventuras nos campos de batalha, o que vemos é um advogado
aburguesado movimentando-se com elegância sobre a escritura de suas
memórias de modo a não levantar suspeitas para os leitores quanto às suas
próprias dúvidas.
Consideremos agora os gêneros literários onde estão inseridas as duas
obras para melhor compreendermos as significativas mudanças impetradas no
147
original.
A primeira vista as relações entre o teatro e o romance parecem-nos
“tranqüilas” por se tratarem ambos de expressões artísticas, uma vez que o teatro,
enquanto texto impresso, participa do plano literário. Contudo, há que se duvidar
dessa aparente tranqüilidade. Se existem muitos pontos de contato entre as duas
espécies literárias, há outros tantos que divergem. Essas diferenças tomam feição
monumental quando encaramos o texto como passível de ser encenado em um
palco, diante de um público e não apenas como texto.
O romance pertence ao gênero conhecido como narrativo, onde há um
narrador contando uma história. O aspecto que dá conta de que é uma história
contada é fator diferenciador importante entre romance e teatro. Ao teatro
pertence a ação: enquanto os leitores de romance imaginam todas as ações entre
as personagens, aquele que assiste a apresentação teatral vê as ações
serem desenvolvidas; enquanto no teatro o dramaturgo desaparece em
favor das ações no tablado, no romance, o narrador, direto ou não, está sempre
em evidência comunicando-nos a ação.
Ao colocar Bento Santiago contando a sua tragédia em primeira pessoa, o
romance machadiano se permite a ambigüidade não admitida à tragédia de
Shakespeare. Como chama atenção Roberto Schwarz (1997). Machado empresta
a Otelo o papel do narrador, deixando-o contar a história, o que muda tudo. O
leitor/espectador não tem mais acesso direto aos fatos que estão sendo agora
filtrados pela subjetividade do novo Otelo. Machado traduz o diálogo do texto
shakespeariano num relato de memórias de uma personagem que oferece a nós
148
leitores unicamente a sua palavra e a sua versão dos fatos enquanto que dos
outros personagens não nos é dado ouvir diretamente a voz.
Notemos que se na tragédia de Shakespeare a personagem enganada é
Otelo, a quem se engana na sua tradução em Dom Casmurro? Segundo os
trabalhos de Roberto Schwarz (1997), Silviano Santiago (1978) e John Gledson
(1991), quem está sendo enganado no romance machadiano é o leitor – por um
narrador não- confiável.
Lembre-se, como Caldwell sublinha, que Bento Santiago na construção
machadiana corresponde não só à personagem Otelo mas a um Otelo incorporado
por Iago. Nesse sentido, pode-se considerar que este narrador Iago pode estar
utilizando a própria narrativa memoralística como um “lenço” para despistar,
enganar e convencer os leitores “Otelos” quanto ao seu ponto de vista. Portanto,
nesta tradução da tragédia shakespeariana o leitor participa sim – no papel de
Otelo.
Tanto parece ser assim que o leitor-Otelo ao deparar-se com o José Dias-
Iago apresentado pelo narrador a princípio dá-se por satisfeito e não percebe que
existe um outro Iago. A correspondência Otelo/Bento, Desdêmona/Capitu e
Iago/José Dias parece confortável dispensando maiores e mais intrincadas
considerações.
Mas como também sublinha Caldwell, o papel de Iago não cabe com
perfeição em José Dias, que diferentemente do modelo, é um tipo “pobre” de Iago,
daí a necessidade de um outro Iago em Dom Casmurro.
149
Lembremos que José Dias é um agregado da família Santiago. Na tradução
contextualizadora que Machado faz da tragédia de Shakespeare, o agregado
funciona como um diferencial típico da sociedade brasileira do oitocentos. O
termo agregado designa aquele que vive na dependência de um chefe de família
abastado da época do Segundo Reinado, a quem presta todo tipo de serviços.
Muitas vezes são pessoas sem vínculo de parentesco com a família, podendo
perder o “posto” a qualquer tempo.
Machado de Assis constrói a personagem do agregado José Dias sempre
pronto a agradar, a dizer palavras certas nas horas propícias, a “exagerar” com
seus superlativos quando se faz necessário um elogio. O medo de perder a
posição dentro da família Santiago faz com que o agregado veja como ameaça o
possível romance entre Bento e Capitu. A esse agregado medroso, que vive de
favor dentro de uma família aburguesada em fins do século XIX, não cabe com
perfeição o figurino ardiloso de Iago, ele não tem “força” para ser o antagonista à
felicidade de um Otelo/Bento.
De acordo com John Gledson
Esse agregado aparentemente descartável é a
expressão perfeita de uma sociedade que, em
geral, é incapaz de se exprimir, inconsciente
como é da própria natureza política, social e
econômica. (GLEDSON, 1991, p. 174).
A esse agregado a quem não cabe o figurino de Iago, cabe perfeitamente o
papel da diferença na tradução feita por Machado. José Dias é a “expressão
perfeita” da sociedade brasileira em fins do século XIX.
150
Eis um registro machadiano de nossa identidade cultural, uma diferença
impressa na tradução cultural de um texto clássico de Shakespeare. Nestes
termos é que a prática tradutória literária de Machado de Assis comparece em
nossas letras, numa articulação consciente do processo de criação que o
ficcionista trabalha, confirmando na prática aquilo que pregara enquanto crítico.
Machado defende que um autor consciente deve “alimentar-se” dos
assuntos de sua região mas essa máxima não se pode fazer tão absoluta que
impossibilite recriações e empobreça a literatura “nascente”.
Em tempos de afirmação de nacionalidade e definição do sistema literário
nacional é importante destacar a consciência com que Machado de Assis
trabalhou a serviço da literatura local utilizando-se da universal.
As comparações entre os textos permite-nos a identificação das
apropriações e possibilita que a proposta da metrópole, no caso Otelo, possa
ser avaliada dentro da sua universalidade e a periférica, Dom Casmurro, na
diferença que a tradução imprime ao primeiro.
Conclui-se que já no século XIX, o crítico Machado antecipa questões com
as quais se deparam hoje os comparatistas e tradutores. Quando afirmamos que o
ficcionista Machado trabalha de acordo com o que determina o crítico
transcrevendo, traduzindo para nosso solo grandes textos da literatura universal, é
preciso esclarecer mais uma vez o redimensionamento que depois o termo
tradução obteve. A palavra tradução passou a conter mais significativamente uma
idéia “insidiosa” de transformação.
151
Em Dom Casmurro, nos deparamos com um escritor criterioso, atento e
profundo conhecedor do contexto no qual está inserido. O romance machadiano
incorpora elementos que renovam e exploram as múltiplas possibilidades que a
leitura de um clássico Otelo pode produzir.
Portanto, Machado de Assis entabula um diálogo com a literatura da
metrópole – a Europa – em uma tradução literária de um corpus pertencente ao
cânone literário ocidental. Neste diálogo, Machado trabalha a contextualização
numa forma de desierarquizar o texto matriz, tirá-lo de uma posição segura e
intocável dentro do contexto europeu e adaptá-lo aos padrões e realidade de um
país periférico, substituindo um gênero literário por outro, como marca da sua
irreverência, desafiando assim a dependência cultural.
Agora que já tomamos as comparações com Otelo de modo a mostrar a
tradução machadiana do clássico inglês, vamos nos voltar ao capítulo do texto
Dom Casmurro intitulado É tempo. Neste capítulo, o narrador declara que agora é
que vai começar a sua história, e esta começa a representar-se como num
espetáculo de ópera. “Agora é que eu ia começar a minha ópera” declara o
narrador. “A vida é uma ópera”, disse a ele um velho tenor italiano de nome
Marcolini. (ASSIS, 1992, p. 817). Logo em seguida começa o capítulo A ópera, no
qual o velho tenor que explica que a vida é uma grande ópera onde
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem
maestro de muito futuro, que aprendeu no
conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e
Gabriel, não tolerava a precedência que eles
152
tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser
também que a música em demasia doce e
mística daqueles condiscípulos fosse aborrecível
ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou
uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele
expulso do conservatório. Tudo se teria passado
sem mais nada, se Deus não houvesse escrito
um libreto de ópera, do qual abrira mão, por
entender que tal gênero de recreio era impróprio
da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito
consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que
valia mais que os outros – e acaso para
reconciliar-se com o céu, - compôs a partitura, e
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
(ASSIS, 1992, p. 818).
Instituindo a vida como representação, o nosso Casmurro a compara a uma
ópera, uma versão demoníaca da Sagrada Escritura. A partitura que Satanás
compõe é um suplemento acrescentado ao manuscrito original escrito por Deus
com o propósito de tornar-se co-autor da criação divina. Deus acaba consentindo
que a tal ópera fosse encenada contanto que fora do céu e, para isto, criou a terra,
para servir de palco, e esse descuido divino seria o responsável por todos os
desconcertos da história do homem.
O resultado de tal parceria encontrou opiniões desencontradas e até
divergentes. Os parceiros de Satanás elogiam a empreitada e os de Deus afirmam
que o original foi adulterado
Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura
corrompeu o sentido da letra, e, posto seja bonita
153
em alguns lugares, e trabalhada com arte em
outros, é absolutamente diversa e até contrária
ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no
texto do poeta; é uma excrescência para imitar as
Mulheres Patuscas de Windsor. Este ponto é
contestado pelos satanistas com alguma
aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo
em que o jovem Satanás compôs a grande
ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram
nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês
não teve outro gênio senão transcrever a letra
da ópera, com tal arte e fidelidade, que parece
ele próprio o autor da composição; mas,
evidentemente, é um plagiário. (ASSIS, 1992, p.
818-9) grifo nosso
Neste ponto observamos ainda mais uma vez observações machadianas
com relação a questões como original e tradução, fidelidade e traição, repetição e
diferença. O texto satânico se afigura como um suplemento ao texto divino na
composição da ópera da vida, Shakespeare aparece como um plagiário ao
reescrever a letra da ópera, e o próprio casmurro na escritura de suas memórias
que aparecem como um suplemento da verdade, pois quando se põe a escrever-
se a si mesmo sua memória viola, adultera o original “ à medida que (me) vai
lembrando e convindo à construção ou reconstrução de mim mesmo” .
De acordo com Scarpelli
Dessa forma, o narrador de Dom Casmurro não
apenas aceita, mas ainda adota a teoria da vida
enquanto uma versão satânica da Sagrada
Escritura , primeiro , por encontrar nela
154
explicações para sua própria vida; segundo,
porque se trata de uma forma transgressora de
tradução, precisamente a que lhe servirá de
modelo operatório para a criação de sua própria
escritura (nada benta, diga-se de passagem).
(SCARPELLI, 1994, p. 23)
Mais uma vez Machado de Assis traz à tona temas caros à teoria literária
da contemporaneidade: original/originalidade, mesmo/diferente e por conseguinte,
a tradução. Schneider afirma que quanto à originalidade “em todo escritor
esconde-se aquele velho sonho de ser original, o que, no limite extremo, quer
dizer não ter origem, ser sua própria origem”. (SCHNEIDER , 1990, p. 346).
6.2 – Esaú e Jacó no labirinto da tradução:
Esaú e Jacó é o penúltimo romance de Machado de Assis e revela-se, de
acordo com a tese defendida neste trabalho, como o auge dos contatos que o
escritor estabelecera com a literatura universal.
De acordo com Eugênio Gomes no seu texto O Testamento Estético de
Machado de Assis, de 1958, a respeito do título a ser dado para o romance foram
pensados vários nomes, entre eles “Ab ovo” ( do ovo, desde o ovo, desde o início)
parecia talhado para o assunto, por fim escolheu-se Esaú e Jacó, embora o outro
título também remetesse à rivalidade antiga de dois irmãos desde o ovo,
lembrando a história bíblica.
155
São inúmeras as citações e alusões que surgem no desenrolar da narrativa.
Podemos citar, à primeira vista, Homero, Ésquilo, Xenofonte, Dante, Shakespeare
e Goethe, e ainda a Bíblia. Há, de acordo com Eugênio Gomes (1958), “fontes
subterrâneas que não se deixam descobrir senão a custo de prolongada
investigação”. Em seu “Testamento Estético de Machado de Assis”, Gomes ainda
afirma que
Como quer que seja, pode-se perceber que, em
maior ou menor grau, aquelas constelações de
primeira grandeza (os autores citados acima)
influíram sobre o ‘pensamento interior e único’,
que presidiu à elaboração de Esaú e Jacó.
(GOMES - 1958, In: ASSIS, 1992, p. 1.099)
Grifo nosso.
Dentre as presenças certificadas no texto machadiano encontramos a Ilíada
cuja narrativa apresenta a disputa entre dois homens violentos traduzida em Esaú
e Jacó pela disputa sempre acirrada e frenética entre os irmãos Pedro e Paulo.
A presença bíblica se comprova para muito além do que observou Eugênio
Gomes quando afirma,
Embora o Gênese é que tenha dado a sugestão
decisiva para os nomes que finalmente
receberam os gêmeos, Aires recorre, também, a
duas citações de Homero.(idem, p. 1.099)
156
Ao observarmos a passagem em que uma dama, de nome Natividade,
acompanhada de sua irmã Perpétua, sai da sua casa no elegante bairro de
Botafogo e sobe, magoando os pés na íngreme, desigual e mal calçada ladeira,
do suburbano Morro do Castelo a fim de consultar uma adivinha sobre o destino
de seus filhos gêmeos nascidos há pouco mais de um ano podemos
comprovar o que Eugênio Gomes chamou de “influências às avessas” (p.1.100) e,
que hoje renomeamos como “apropriação em diferença”, mais condizente com
uma tradução que aclimata os textos aos padrões nacionais. Para reforçar essa
posição vejamos que, além de ouvir da adivinha sobre “cousas futuras”,
Natividade ouviu também sobre as “cousas passadas”, soube então que os seus
gêmeos brigaram no ventre e que cá fora também brigariam. A preocupada
Natividade, que de fato não tivera gestação sossegada, só ficou aliviada quando
também ouviu da adivinha que seus filhos seriam grandes e gloriosos.
É preciso observar que este início é uma referência às páginas bíblicas do
Antigo Testamento que narram a profecia sobre dois irmãos gêmeos destinados a
brigar desde o útero materno.
No entanto Gomes declara que quanto à Bíblia
“já não pode subsistir nenhuma dúvida de que
Machado de Assis só se utilizava de seus textos
com finalidade simplesmente literária”. (idem,
p.1.099).
O que Gomes não considera é, que as referências bíblicas explícitas ou
implícitas no texto, são um incentivo para que aproximemos as duas histórias, e
157
ao fazê-lo, estaremos considerando não o conceito de influência e sim o de
reescritura e tradução. Uma tradução da tradição bíblica que aclimata a história de
Esaú e Jacó ao contexto mundano.
Lembremos a história original dos gêmeos Esaú e Jacó, destacando os
seguintes fatos: Isaque, tendo orado a Deus por sua mulher estéril, teve suas
preces atendidas e Rebeca deu então à luz os gêmeos Esaú e Jacó. Durante a
gravidez, ao sentir que os filhos lutavam em seu ventre, a futura mãe decidiu
consultar ao Senhor que a esclareceu com uma profecia a respeito de dois povos
rivais que dela iam nascer e que desde o ventre já brigavam pelo direito à
primogenitura.
Na tradução desta história para o contexto brasileiro do oitocentos algumas
modificações das mais significativas se estabeleceram: primeiro, Rebeca pode
consultar o próprio Senhor sobre o futuro de seus filhos, enquanto
Natividade teve que recorrer a uma adivinha. Machado de Assis parece ter
considerado que diferentemente dos tempos bíblicos, nos tempos modernos,
Deus já não se comunica mais diretamente ao seu povo, tornando-se necessário,
portanto, oferecer à Natividade uma intermediação pouco bíblica e muito mais
pagã. Esta “aclimatação” em relação ao texto original está em perfeito acordo
com a religiosidade sincrética do povo brasileiro e de sobra, possibilita a
aproximação machadiana com a tradição oracular na forma de uma adivinha
cabocla relacionada pelo narrador à Pítia grega. Desta forma, verificamos a
presença de Ésquilo numa alusão sobre a consulta às sacerdotisas gregas nas
158
Eumênides, traduzida nas páginas iniciais de Esaú e Jacó para a consulta de uma
dama da alta sociedade fluminense do segundo oitocentos a uma popular
adivinha.
Em segundo lugar, notemos ainda, as modificações a que a própria profecia
veio a ser então submetida. Pudemos constatar que, em Esaú e Jacó, Natividade
só conseguiu tirar da adivinha palavras vagas relativas a “cousas futuras”, tais
como:
Serão grandes, oh! grandes! Deus há de dar-lhes
muitos benefícios. Eles há de subir, subir,
subir...Brigaram no ventre de sua mãe, quem
tem? Cá fora também se briga. Seus filhos serão
gloriosos. É só o que lhes digo. Quanto à
qualidade da glória, cousas futuras! (ASSIS,
1992, p. 950)
Já o Senhor foi bem mais preciso em sua profecia. Tanto que quando
diretamente consultado por Rebeca, respondeu Ele:
Duas nações há em seu ventre
Dois povos nascidos de ti se dividirão:
um povo será mais forte que o outro, e o mais
velho servirá ao mais moço. ( GÊNESIS 25, v.
23)
A mãe dos tempos bíblicos preocupava-se em saber qual dos filhos gêmeos
seria grande e glorioso, isto é, receberia a benção do pai e a primogenitura,
159
ajudando, inclusive, o mais novo a se fazer passar pelo mais velho e assim
conseguir a benção do pai.
Machado em sua tradução da história bíblica para o contexto brasileiro,
considerou que o costume da primogenitura estava praticamente abandonado e
tornou ambos os filhos de Natividade grandes e gloriosos.
Com relação à presença grega em Esaú e Jacó, é preciso considerar que,
no século XIX, citar os helenos era “timbre de glória” e que a Grécia era uma
presença constante nas referências dos escritores brasileiros premidos pela
necessidade de fortalecer a literatura nacional.
No caso de Esaú e Jacó, a presença da intertextualidade se dá na
apropriação modificadora e irreverente que Machado de Assis faz traduzindo a
influência grega e estabelecendo um diálogo com o texto de Xenofonte que
Eugênio Gomes percebe, anota, porém, não desenvolve. Nesse sentido é isso que
passaremos a fazer.
Gomes certifica que a presença grega se faz logo no primeiro capítulo onde
o narrador aconselha a seus leitores:
Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá
verás a Pítia, chamando os que iam à consulta:
“Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se,
segundo o uso, na ordem marcada pela sorte”...
A sorte outrora, a numeração agora, tudo é que a
verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca
a sua vez de audiência.” (ASSIS, 1992, p. 948).
160
Ao aproximarmos as duas histórias, como quer Machado, observamos que
na tradução do texto grego para a periferia do oitocentos, a sacerdotisa é
substituída por uma cabocla com o sugestivo nome de Bárbara e faz o uso de
cartões numerados. Coube a Natividade o número 1.012, que o narrador se
apressa em justificar como sendo necessário a fim de atender a “uma freguesia
numerosa e de muitos meses.”
Gomes ainda anota a presença grega no capítulo intitulado “Lendo
Xenofonte” , no qual o conselheiro aparece lendo uma narrativa do autor grego.
Xenofonte, considerado um dos maiores prosadores da Antigüidade,
nasceu em 427 a C. e morreu em 355 a. C. e no século XIX os seus livros mais
lidos eram Anabasis e Cyropaedia, e, como era de se esperar, constam na
biblioteca de Machado de Assis ( vide anexo I ). Além de estar presente em Esaú
e Jacó, o escritor grego é citado pelo brasileiro numa crônica de “A Semana” , do
dia 01 de fevereiro de 1894:
Não consultemos Xenofonte, que, ao ver as
trocas de governo nas repúblicas, monarquias e
oligarquias, concluía que o homem era o animal
mais difícil de reger, mas, ao mesmo tempo,
mirando o seu herói e a numerosa gente que lhe
obedecia, concluía que o animal de mais fácil
governo era o homem. Se já por essa noite dos
tempos fosse conhecido o anarquismo, é
provável que a opinião do historiador fosse essa:
que, embora péssimo, era um governo ótimo. A
variedade dos pareceres , a sua própria
161
contradição, tem a vantagem de chamar leitores,
visto que a maior parte deles só lê os livros da
sua opinião. É assim que eu explico a
universalidade de Xenofonte. (ASSIS, 1992, p.
596).
Gomes não desenvolve comparações entre os textos de Machado e
Xenofonte que parecem ser sugeridas pelo próprio narrador, no entanto, a já antes
mencionada crítica norte-americana, Helen Caldwell, aceita a sugestão para
aproximar as duas histórias em seu trabalho de 1970, The Brasilian Master and
His Novels, observando que os narradores das duas histórias mantém muitos
pontos em comum e que ambos tecem um elogio a sua pessoa no decorrer da
narrativa. Observemos como se dá essa aproximação: no Anabasis, o escritor
grego conta como depois da morte do jovem persa Cyrus, recebeu sob seu
comando as tropas gregas e de modo hábil e brilhante obteve sucesso na retirada
de volta à Grécia e isto apesar dos incontáveis desafios que tiveram que enfrentar.
Segundo Caldwell, concomitantemente à sua narrativa, Xenofonte vai construindo
um elogio a si mesmo. Ao aproximarmos as duas histórias nos deparamos com o
Conselheiro Aires escrevendo o seu Memorial.
O narrador de Anabasis, estando exilado, por ter se aliado aos espartanos,
rememora sua vida através da narrativa de modo a parecer um herói como
estrategista militar. Já o nosso Conselheiro é um diplomata aposentado que
escreve o último volume de seu memorial que vem a imortalizá-lo a partir da
publicação: O Memorial de Aires.
162
Ao cotejar Esaú e Jacó e Anabasis, Caldwell identifica a seguinte
semelhança: Aires e Xenofonte se colocam em um plano superior aos outros
personagens. Cada um dos memorialistas representa um papel de grande
importância em seus respectivos “mundos”. Nos heróicos tempos da Grécia
antiga, o do épico cavaleiro e nos burgueses oitocentos brasileiros, o fino
cavalheiro. Uma diferença a ser sublinhada na tradução machadiana, e não
tratada por Caldwell, se observa ao constatarmos que se o heróico narrador grego
é um homem de guerra que sabe movimentar-se em campos de batalha, o
aburguesado Aires é um homem de sociedade que sabe comportar-se
elegantemente nos salões sociais.
A apropriação machadiana do auto-elogio de Xenofonte, no seu clássico
Anabasis, veio a se dar, em diferentes termos, no aburguesado romance do
elegante Aires.
Assim, da possibilidade de estudarmos Machado de Assis como um sujeito
influenciado, copiador em débito com o original, passamos à perspectiva de
estudar um sujeito ativo, apropriador, copista em diferença do original, colocando
em prática um conceito que se aproxima da teoria da tradução examinada nesta
tese. Ao substituirmos a idéia negativa de passividade, contida no conceito de
influência, pela idéia positiva de atividade contida no conceito de apropriação e
tradução, ambicionamos estar nos colocando de um melhor viés para
estudarmos a tradução machadiana de Xenofonte.
163
A nossa proposta é apontar que o brasileiro Machado de Assis, além de
“copiar” esta “especiaria alheia” que é o clássico Anabasis do grego Xenofonte,
como apontamos antes neste trabalho, atreveu-se ainda, “adicionar-lhe uma
partícula” na sua tradução. É nossa proposta também mostrar que esta
consciência, explicitada nos seus textos de crítica, compareceria na prática nos
seus textos de ficção.
Outro ponto de contato com o texto do escritor grego se dá no tema da
discórdia entre irmãos. Com relação a esse ponto assim se manifesta Terezinha Z.
da Silva (1995):
Consideremos que tanto Aires quanto
Xenofonte escreveram as suas memórias sobre a
discórdia fraterna pelo poder político. No seu
Anabasis, narra o exilado ateniense a história da
trágica e sangrenta discórdia que testemunhara
entre dois irmãos reais Cirus e Ataxerxes pelo
imponente trono da pérsia no mundo antigo. Já
o brasileiro aposentado Aires narra em seu
memorial a discórdia dos gêmeos Pedro e Paulo,
filhos da “burguesia crioula” que vieram com as
comedidas armas dos tempos modernos – a
retórica parlamentar – a disputar o poder político
na periferia oitocentista. Estas semelhanças e
diferenças possibilitam interpretarmos o caso
como mais uma tradução machadiana. (Notemos
que do centro da antiguidade clássica, o tema da
discórdia entre irmãos é redimensionado para o
contexto aburguesado da modernidade clássica,
o tema da discórdia dos irmãos reais, tão
somente o desacordo comedido entre civilizados
164
brasileiros europeizados.) (SILVA, 1995, p. 29)
E a tradução machadiana de Esaú e Jacó não fica apenas em Xenofonte: a
presença de Dante se faz explícita na epígrafe do livro e no Capítulo XII, com a
citação de um verso do Canto V do Inferno : Dico, Che quando l’anima mal nata...e
no Capítulo CXIII, intitulado “Uma Beatriz para dois”. Acerca disso assim comenta
Gomes:
Vê-se, portanto, que não se pode deixar de
associar Flora e Beatriz, doce paradigma da
Esperança, da Piedade e da Perfeição, em forma
de mulher, que encarnando efemeramente na
terra o Eterno Feminino, corresponde a diferentes
e mesmo ambíguas expressões de idealidade. A
verdade é que, no pensamento de Machado de
Assis, Flora representa a quinta-essência de suas
criações desse caráter e, como Beatriz simboliza
um ideal indefinível, adaptando-se por isso
mesmo às mais várias interpretações. (GOMES,
in ASSIS, 1992, p. 1.111-2).
E, de acordo com Gomes, há muito mais no subterrâneo de uma narrativa
que traduz para o solo brasileiro verdadeiras maravilhas da literatura universal.
6.3 -Memorial de Aires e a Tradução Literária de Machado de
Assis.
165
Como já afirmamos Machado de Assis atuou com rigor com relação às
traduções que lhe eram apresentadas para aprovação na época do Conservatório
Dramático Brasileiro e conforme fomos demonstrando no decorrer da análise de
dois de seus romances da chamada segunda fase, a postura outrora austera com
relação às traduções foi-se modificando tanto na sua apreciação teórica quanto
na sua prática ficcionista.
No último romance, publicado em 1908 - dois meses antes de sua morte,
tomamos conhecimento através do diário do Conselheiro Aires, ainda que de
forma “oblíqua”, de conceitos sobre a teoria da tradução que estão em debate até
os dias de hoje: a apropriação, a liberdade do tradutor/escritor, a relação de
autoria e originalidade enquanto transformação de um texto alheio.
No Memorial de Aires, é o personagem Aires quem relata, sob a forma de
diário, os fatos ao seu derredor, objetivando a vida de terceiras pessoas.
Iniciemos por considerar que Aires viveu mais de trinta anos na Europa. O
simples fato de o Conselheiro ser diplomata nos remete ao fato de que ele é
conhecedor de outras culturas e outros idiomas e o coloca em posição favorável
enquanto transeunte cultural e manipulador de textos escritos em diferentes
línguas. No acervo de citações do diplomata encontramos Shelley, Shakespeare,
Goethe, Mozart, Dante, que traduzem tanto a leitura quanto a vida clássicas do
“diplomata” criador Machado de Assis.
O Conselheiro, inventariando suas referências literárias e culturais, desvela-
nos através de seu diário, as suas leituras, seus conhecimentos, suas impressões
da vida e das pessoas.
166
Destaca-se, nesse manancial literário, a preferência por Shelley, que visita
o seu diário várias vezes. A primeira, onze dias após o começo da escritura do
diário, mais precisamente no dia 20 de janeiro de 1888, no qual o Conselheiro
relata:
Gastei o dia a folhear livros, e reli especialmente
alguma coisa de Shelley e também de
Thackeray. Um consolou-me do outro, este
desenganou-me daquele; é assim que o engenho
completa o engenho, e o espírito aprende as
línguas do espírito. ( MACHADO, 1994, p,1.102)
De Shelley, o Conselheiro resgata o verso retirado de seu poema To,
escrito em 1821:
I can give not what men call love
Aires empresta os versos do autor inglês, verte-os como quer, devolvendo-
os com um acréscimo todo seu:
“Assim disse comigo em inglês, mas
logo depois repeti em prosa nossa confissão do
poeta, com um fecho da minha composição: ‘ Eu
não posso dar o que os homens chamam
amor...e é pena!’. (Idem, p.1.104)
O destaque para o comentário acrescentado pelo escritor Aires “e é pena”
ao verso inglês transforma-o em um novo verso, já travestido de “novo molho” e
traz de novo à baila o conceito de tradução que enviesadamente percorre a
produção machadiana, que avalia a liberdade de criação do tradutor-autor, que na
167
sua irreverência, e pelo acréscimo, transforma o “já dito” no “novo” sem a angústia
da inferioridade.
Se um leitor arguto encher-se de curiosidade e for à fonte procurar pela
poesia completa de Shelley vai encontrar os seguintes versos:
One word is too often profaned
For me to profane it;
One feeling too falsely disdain’d
For thee to disdain it;
One hope is too like despair
For prudence to smother;
And pity from thee more dear
Than that from another.
I can give not what men call love:
But well thou accept not
The workship the heart lifts above
And the heavens reject not,
The desire of the moth for the star,
Of the nigth for the morrow,
The devotion to something afar
From the sphere of our sorrow?
Embora o narrador Aires só se aposse do primeiro verso da segunda parte
do poema, os dois primeiros versos do poema inglês que, com certeza, eram de
conhecimento do narrador Aires, que se declara um admirador de Shelley, e que
ele propositalmente omitiu, podem revelar uma prática muito exercida por ele. Pelo
narrador do memorial, o conselheiro Aires e pelo seu autor, Machado de Assis.
Eis os versos:
168
One word is too often profaned
For me to profane it;
“Profanar” já na primeira acepção do dicionário significa “ tratar com
irreverência”; e não é isso que faz o conselheiro, acrescentando um registro seu
ao verso do poeta inglês? E não é exatamente isso que Machado faz, “
temperando com o “molho de sua fábrica” a especiaria alheia? Shelley afirma nos
dois primeiros versos de seu poema que “uma palavra é muito freqüentemente
profanada para que eu a profane”. Irreverentemente o nosso autor dos oitocentos
pensa diferente. Ela a profana, a modifica, a retempera e a devolve diferente.
Ainda no diário de Aires, há outros registros teóricos machadianos. Sobre o
dia 3 de setembro, Aires anota que fez um pedido musical à viúva Noronha e
solicitou que tocasse um autor francês qualquer, antigo ou moderno, e postula
teoricamente que “ a arte naturaliza a todos na mesma pátria superior.” (Idem, p.
1.144).
Mais adiante, no diário de 30 de setembro o Conselheiro desabafa
“se eu estivesse a escrever uma novela,
riscaria as páginas do dia 12 e do dia 22 deste
mês. Uma novela não permitira aquela paridade
de sucessos .[...] Riscaria os dous capítulos, ou
os faria mui diversos um de outro; em todo caso
diminuiria a verdade exata, que aqui me parece
mais útil que na obra de imaginação. [...] A vida,
entretanto, é assim mesmo, uma repetição de
atos e maneios, como nas recepções, comidas,
visitas e outros folgares; nos trabalhos é a
mesma cousa. Os sucessos, por mais que o
169
acaso os teça e devolva, saem muita vez iguais
no tempo e nas circunstâncias; assim a história,
assim o resto.” ( Idem, p. 1.154-5)
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
La extrañeza cesa de ser un extravío y se vuelve
ejemplar. Su ejemplaridad es paradójica y
reveladora: el salvaje es la nostalgia del civilizado,
su otro yo, su mitad perdida. La traducción refleja
estos cambios: ya no es una operación tendiente a
mostrar la identidad última de los hombres, sino
que es el vehículo de sus singularidades [...] por
una parte la traducción suprime las diferencias
entre una lengua y otra; por otra, las revela más
plenamente.
OCTAVIO PAZ
Para concluirmos este trabalho é necessário que retomemos por um
momento o início deste texto, mais especificamente o título: Machado de Assis
tradutor: o labirinto da representação. Esta tese procura a saída de um labirinto
criado por Machado de Assis à semelhança do labirinto de Creta, criado por Minos
e habitado pelo horrível Minotauro. Conta a mitologia que Teseu, rei de Atenas,
conseguiu derrotar a fera e sair do labirinto auxiliado por um fio de novelo dado
por Ariadne, filha do próprio Minos. Assim, buscando o fio de Ariadne para sair do
labirinto machadiano, percorremos sua produção à cata de uma teoria da tradução
171
que aparece “oblíqua” e “dissimuladamente” pelos seus pareceres e citações para,
enfim, explodir nos textos ficcionais.
A tese demonstra que o prestígio intelectual que Machado conquistou em
sua juventude literária não se deveu aos textos de sua extraordinária produção
ficcional. Antes mesmo já era conhecido como crítico teatral e literário,
comediógrafo e tradutor – sendo inclusive censor do Conservatório Dramático
Brasileiro, fato que retomamos nesta tese a fim de mostrar a importância desta
função no amadurecimento de uma teoria que já percorria de modo sublime as
suas idéias.
A tradução, ao colocar em jogo conceitos como diferença cultural, histórica,
social e até mesmo política, produz ou detecta relações de alteridade através da
língua, evidenciando os íntimos laços existentes entre literatura, história e cultura.
Essa teoria acerca da tradução tão discutida na contemporaneidade já tinha seu
esboço traçado por Machado de Assis no século XIX, e é isso que procuramos
asseverar nesta tese.
Deste modo expomos a análise de dois de seus romances para mostrar na
prática como se configurou a sua teoria da tradução já amadurecida, que
propunha todo o tipo de apropriações, citações, paráfrases, assimilações e
aclimatações.
Partindo da verificação da importância da tradução para a história cultural
da humanidade, perscrutamos, ainda que de modo superficial a atuação de
tradutores no decorrer da história, verificando a postura vanguardistas de alguns
172
deles. Percebemos que o percurso da tradução não se fez de forma linear e que
embora reconhecidamente imprescindível para a divulgação de grandes obras e
mesmo a perpetuação delas através dos tempos, a tradução percorreu quase todo
o caminho como uma tarefa menor e discriminada. Associada inúmeras vezes aos
estudos lingüísticos, a tradução se tornou sinônimo de “equivalência” até que
conseguiu sair da obscuridade e ressurgir excelsa conjugada com a produção
textual.
Nesse percurso, surgiram diversos teóricos responsáveis por delimitar o
lugar da tradução, seu campo de atuação, bem como a sua função, tirando-a da
marginalidade. Um deles foi Laurence Venuti para quem as estratégias
tradicionalmente utilizadas na escrita e leitura das traduções, ao longo dos anos,
foram responsáveis pela invisibilidade do autor da tarefa. Em contrapartida,
verificamos que as novas estratégias que sugere, marcariam a sua visibilidade,
contribuindo assim para que o mesmo viesse obter uma real valorização de seu
ofício em todos os sentidos: remuneração, regulamentação e, finalmente, o
prestígio desejado.
Os trabalhos de Venuti têm como ponto de partida a afirmação de que toda
tradução necessariamente implica a intervenção daquele que a realiza, porque
uma atividade em que se trabalha com a linguagem atua com a diferença, não se
podendo mais ter, portanto, a perspectiva de que a tradução seja uma mera
adaptação de significados e intenções.
173
Observamos que um outro teórico, André Lefevere, considera a tradução
uma reescritura, que sofre a mesma espécie de coibições que ela, mas que atua
como uma força motriz por trás da evolução literária, quando há necessidade de
estudo do fenômeno em maior profundidade, ao argumentar que a tradução não
pode estar unicamente ligada à lingüística, pois envolve fatores extralingüísticos,
tanto na análise quanto no ensino.
Perscrutando o sistema tradutório que se desenvolve “nos trópicos”,
encontramos muitos escritores que se apropriaram de outros textos para fazerem
os seus. Entre muitos encontramos Jorge Luis Borges, Mário de Andrade,
Justiniano José da Rocha e o nosso Machado de Assis.
As teorias da tradução desenvolvidas nos últimos quinze ou vinte anos se
apresentam, de um modo geral, movidas pelo interesse em tirar da marginalidade
um atividade tão antiga e tão fundamental em nossa história e, por conseguinte, o
profissional que nela atua.
Para atingirem seu objetivo, os teóricos da tradução propõem-se a minar o
que consideram o principal esteio dessa marginalização: o não reconhecimento do
traduzir como uma atividade necessariamente transformadora e,
conseqüentemente, a visão do tradutor como alguém que realiza uma escrita
neutra.
Ainda percorrendo o labirinto, acreditamos ter sido possível mostrar que a
literatura comparada e os estudos de tradução mantêm estreitas relações, no
sentido de que a primeira tem na segunda constante fonte de inspiração e um
174
riquíssimo campo de trabalho e a segunda pode se valer da primeira para ampliar
suas pesquisas. Atrás de ambas está o escriba original, o autor do texto que
resultou na tradução, tradução essa que serviu de ferramenta de trabalho para o
comparatista. Também como membro da espécie humana, o autor original
traduziu para outros homens seus anseios, sonhos e frustrações, numa cadeia
sem fim que, ao final das contas, talvez traia nosso íntimo desejo. Sendo a língua
a ferramenta maior de comunicação entre os homens, a tradução garante
progressivamente seu status, sobretudo em tempos de globalização econômico-
financeira e de individualização cultural. E com ela a literatura comparada alça
vôo, vislumbrando não só o resultado do produto final como a fonte que o originou;
da fonte para as influências e o contrário; enfim, o que o espírito e a mente
humanas criaram como forma de comunicação.
Ao pesquisador de estudos da tradução e ao comparatista muitos
questionamentos têm sido suscitados na atualidade e merecem análise profunda,
especialmente agora que muitas populações até então marginalizadas e
silenciadas começam a contar sua história às culturas hegemônicas que as
haviam dominado.
Tão importantes são os estudos da tradução atualmente que
pesquisadores da área têm expandido suas teorias sobre o assunto e têm trilhado
novos caminhos, haja vista a profusão de estudos ligando a tradução à lingüística,
aos estudos literários, à história cultural, à filosofia, à antropologia.
175
Com tantas teorias novas, outras preocupações passaram a ocupar a
mente dos tradutores; assim, literatura comparada e tradução caminham lado a
lado. Comparando obras, cotejado textos de diferentes origens e épocas e
aprendendo (e apreendendo) cultura, o comparatista está constantemente
mergindo em alteridade cultural.
Com relação a uma teoria da tradução à luz dos recentes conceitos a ela
atribuídos, podemos vislumbrar a ficção machadiana como uma das fontes de
teorização tradutória a fim de concluir que ela é uma realização daquilo que
pregou enquanto crítico e teórico.
Sendo assim, chegamos ao centro do labirinto da representação e
encontramos o “inclassificável” Machado de Assis, para quem o cérebro é como o
“bucho de um ruminante”. Depois de ter sua produção ficcional e crítica
vasculhadas pelos maiores estudiosos do Brasil, e fora dele, surge mais uma
possibilidade que consideramos nesta tese: confirmar que Machado de Assis
elaborou uma teoria da tradução e que esta comparece, ainda que obliquamente
dissimulada, em seus textos, ficcionais ou não.
Diante dessa possibilidade, acreditamos que Machado antecipou questões
teóricas acerca da tradução que estão na ordem do dia. Aproximamos suas
metáforas sobre apropriações, plágios e aclimatações de textos das teorias de
Walter Benjamin, Oswald de Andrade, Haroldo de Campos, Augusto de Campos e
Rosemary Arrojo.
176
Acreditando que a saída de um labirinto se dá virando sempre para a
esquerda, puxamos o fio a fim de desvelar o trabalho tradutório do nosso autor.
Verificamos que ele começou sua carreira literária pela tradução e que quando
analisava textos traduzidos entregues para avaliação seguia uma rígida cartilha
que desabonava as traduções mal-feitas principalmente no tocante ao emprego da
língua portuguesa, porém pudemos observar que Machado era rígido apenas
quando analisava os textos e quando praticava traduções encomendadas, quando
as fazia por sua conta “permitia-se algumas licenças”.
Através de metáforas, Machado de Assis distribuiu pela sua produção
literária máximas que pudemos observar nesta tese como
Ir buscar a especiaria alheia, mas há de
ser para temperá-la com o molho de sua fábrica
(ASSIS, 1992, p. 727)
Ou
Copiar a civilização existente e adicionar-lhe
uma partícula (ASSIS, 1992, p.791)
Ou ainda,
A literatura como Proteu, troca de formas,
e nisso está a condição de sua vitalidade.
E
Já alguém afirmou que citar a propósito
um texto alheio equivale a tê-lo inventado.
De todas as declarações de Machado mencionadas nesta tese podemos
deduzir que ele defende , com a consciência de o estar fazendo , a
177
contextualização modificadora de influências literárias, seja através da adição de
uma “partícula” ou de um tempero extra com o “molho de sua fábrica”.
Em nossos rastreamentos paramos mais detidamente sobre a tradução
mais famosa e comentada de Machado de Assis – O Corvo, de Poe – e inclusive
aqui pudemos comprovar as inúmeras alterações no original praticadas pelo
irreverente Machado em sua tradução, tornando seu o texto de outro; produzindo
originalmente na recepção.
E essa não é a discussão mais cara aos assuntos tradutórios na
contemporaneidade?
E mais, pudemos comprovar que Machado se aproxima da crítica
contemporânea por esboçar, no século XIX, um pensamento que propõe a
ampliação do horizonte crítico para os intelectuais de sua época ao não fugir da
inevitável dependência.
Como vimos
A atual geração, quaisquer que sejam os
seus talentos, não pode esquivar-se às condições
do meio; afirmar-se-á pela inspiração pessoal,
pela caracterização do produto, mas o influxo
externo é que determina a direção do movimento;
não há por ora no nosso ambiente a força
necessária à invenção de doutrinas novas.
(ASSIS, 1879, p. 809).
178
Observamos que o mesmo acontece com a tradução do texto de Victor
Hugo, Os trabalhadores do mar no qual Machado de Assis, se permitindo algumas
licenças, reduz a força da antítese do autor francês.
No caminho, percebemos ainda que a trilha percorrida pelo autor brasileiro
nos assuntos da tradução se assemelha ao seu percurso na ficção já identificado
e debatido por inúmeros críticos: Machado começa sua tarefa literária como
tradutor que se preocupa com as equivalências lexicais e no decorrer do caminho
vai alterando suas concepções até traduzir antropofagicamente. Basta cotejar o
texto Queda que as mulheres têm para os tolos e sua tradução quase equivalente
ao original, passar pelos seus pareceres rigorosos para o Conservatório Dramático
Brasileiro, averiguar O Corvo e suas aclimatações, sua peça Hoje avental,
amanhã luva e suas contextualizações, para, enfim, chegar aos romances no
quais coloca em prática mais amplamente suas teorias: transforma o destemido
Otelo, o mouro de Veneza no aburguesado narrador casmurro, empresta a
rivalidade dos irmãos bíblicos, Esaú e Jacó, ou dos irmãos persas, Cirus e
Ataxerxes, para um prosaica narrativa oitocentista, constrói um narrador à
semelhança de Xenofonte e, por fim, esse mesmo narrador comparece em seu
último trabalho como que num alter-ego com seu criador, apropriando-se na
narrativa do seu memorial da “especiaria alheia”, mas sempre temperando-a “com
o molho de sua fábrica”.
No fim do percurso, podemos vislumbrar um Machado que antecipou
questões que hoje norteiam os estudos da tradução, que não acreditam mais
179
numa leitura singular e se propõe a desvendar sempre o texto revelando suas
relações intertextuais.
De acordo com Candido
O amadurecimento promovido por
Machado de Assis foi decisivo e cheio de
conseqüências futuras, porque ele não apenas
consolidou com maestria uma escolha temática,
mas se interessou por técnicas narrativas que
eram heterodoxas e poderiam ter sido inovadoras
(e foram). Além disso, teve consciência crítica da
sua posição sem preconceitos provincianos, com
se vê no famoso e nunca assaz mencionado
artigo “Instinto de Nacionalidade”, de 1873.
(CANDIDO, 2000, p.203)
Sendo assim, longe de encerrarmos de vez a questão, descobrimos agora
mais uma faceta inesgotável do Bruxo do Cosme Velho: um tradutor que
representa ou reapresenta para nós toda a cultura universal travestida numa
nova e irreverente indumentária.
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– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
R E S U M O
Esta tese observa as relações de Machado de Assis com a tradução, que
são abundantes, e de grande impulso na constituição do escritor e de sua obra.
Será verificado tanto o Machado de Assis tradutor, através do exame de excertos
de textos traduzidos de vários escritores de diversos gêneros e idiomas, como o
Machado de Assis crítico e teórico, abordando as seguintes feições: a relação com
a tradução, que ora atua como meio de modernização, ora como obstáculo ao
aparecimento de talentos nacionais; a postura das literaturas periféricas e a
recepção de modelos externos; a releitura da dependência cultural; a diluição de
modelos exclusivos de referência; a revisão de conceitos de cópia, imitação e
plágio; a relação entre tradução e processos criativos e a migração da tradução
teatral para a ficção.
Para isso, situamos Machado de Assis no contexto teatral dos anos de
1850 e 1860 do século XIX, passamos por sua extensa produção jornalística, na
qual se notabilizou como crítico teatral e folhetinista, detendo-se também na
atividade de censor do Conservatório Dramático Brasileiro que o escritor exerceu
por algum tempo.
COSTA, Ana Lúcia Lima da. Machado de Assis tradutor: o labirinto da
representação. Rio de Janeiro, 2006. Tese ( Doutorado em Ciência da Literatura
– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
A B S T R A C T
The present thesis observes Machado de Assis’ relations with translation,
which are abundant and give impulse to the writer’s work. It seeks to analyze
Machado de Assis as a translator, by examining excerpts from texts translated by
writers of different genres and languages, and Machado de Assis as a critic and a
thoeretician addressing the following aspects: the relation with the translation that
acts either as a means of modernization or as an obstacle to the appearing of
national talents; the stand of peripheral literatures and the reception of external
models; the critical reading of cultural dependence; the dilution of exclusive models
of reference; the review of concepts of copy, imitation and plagiarism; the relation
between translation and creative processes as well as the migration of drama
translation to fiction.
Therefore, concerning the study organization, Machado de Assis is first
situated within the drama context of the 1850s and 1860s. It then permeates
Machado’s extensive journalistic, which made him an outstanding and renowned
drama critic and pamphleteer. As a last discussion, it also emphasizes the writer’s
activity as censor of the Conservatório Dramático Brasileiro ( Brazilian Drama
Conservatory), position which he carried out for some time.
COSTA, Ana Lúcia Lima da. Machado de Assis tradutor: o labirinto da
representação. Rio de Janeiro, 2006. Tese ( Doutorado em Ciência da Literatura
– Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
RÉSUMÉ
Cette thèse met en observation les rapports de Machado de Assis avec la
traduction, qui sont abondants et représentent un important essor pour la
constitution de l’écrivain et de son oeuvre. On vérifiera soit Machado de Assis en
tant que traducteur par l’examen d’extraits de textes traduits de plusieurs auteurs
des langues et des genres les plus varies, soit Machado de Assis en tant que
critique et théoricien, où l’on peut se rendre compte de l’approche des aspets
suivants: le rapport entre la traduction qui agit tantôt comme un moyen de
modernisation tantôt comme un obstacle à l’apparition de talents nationaux, la
posture des littératures péripháriques et la recéption des modeles externes; la
relecture de la dépendence culturelle; la dilution de modèles exclusifs de
référence; la révision de concpets de copie, imitation el plagiat; la relation entre
traduction et des processus créatifs et la migration de la traduction théatrale pour
la fiction. Pour ce faire, on va situer Machado de Assis dans le contexte théatral
des annés 50 et 60 du XIXème siècle, puis on va passer par son immense
production journalistique, dans laquelle il s’est rendu célèbre comme critique
théatral et feuilletoniste, en se vouant aussi à l’activité de censeur du
Conservatoire Dramatique Brésilien que l’écrivain exerça pendant un certain
temps.
199
ANEXOS
CATÁLOGO ATUALIZADO DA BIBLIOTECA DE
MACHADO DE ASSIS
A fim de conferir confiabilidade e veracidade às informações prestadas
sobre os predecessores de Machado de Assis anexei a esta tese um catálogo
atualizado por Glória Vianna que refez o inventário dos livros da biblioteca
machadiana, recuperando 15 dos que estavam dispersos em outras coleções.
Estes últimos foram incorporados aos 718 listados por Jean-Michel Massa em
1961. A pesquisadora constatou que 42 volumes da lista original de Massa estão
extraviados. Nesta listagem podemos saber, além dos títulos, quem doou com
dedicatórias a Machado de Assis, anotações à margem, objetos encontrados
dentro dos livros. A preciosíssima pesquisa conta ainda com um catálogo de
citações, utilizadas por Machado na construção de sua obra. Viana elabora um
catálogo com as citações que ela chama de diretas, aquelas nas quais o narrador
faz uma referência textual ao nome de uma pessoa ou ao nome de um livro ou
texto, as citações indiretas ela não cita explicando que estas estão incorporadas
ao texto machadiano como que “digeridas”. Tudo isso só vem a corroborar com a
teoria de uma tradução assimiladora de que tratamos nesta tese.
200
Concluindo, acrescentei este anexo a esta tese com a finalidade de
comprovar as leituras feitas pelo autor pesquisado, que de maneira direta ou
indireta incorporaram-se a sua própria obra. Por que de acordo com o que afirma
a própria pesquisadora:
“Para o leitor da obra de um escritor sua biblioteca é um verdadeiro
tesouro”.(VIANNA, 2001, p. 100).
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