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AMIN MAALOUF

AS IDENTIDADES

ASSASSINAS

Traducao

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SUSANA SERRAS PEREIRA

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Uma vida de escrita ensinou-me a desconfiar das pala-

vras. As que parecem mais limpidas sao muitas vezes as mais

traidoras. Urn destes falsos amigos e precisamente a palavra

«identidade». Acreditamos saber tudo 0 que ela quer dizer,

e continuamos a confiar nela mesmo quando, insidiosamente,

ela se poe a dizer 0 contrario.

Longe de mim a ideia de redefinir mais uma vez a nocao

de identidade. Esta e a questao primordial da filosofia desde 0

«Conhece-te a ti mesmo» de Socrates ate Freud, passando por

tantos outros mestres; aborda-Ia de novo nos nossos dias,

exigiria muito maior competencia e coragem do que as que

possuo. A tarefa a que me proponho e infinitamente mais

modesta: tentar compreender a razao que leva hoje tantas pes-

soas a cometerem crimes em nome da sua identidade religiosa,

etnica, nacional ou outra. Tera sido sempre assim desde 0

dealbar dos tempos, ou existem realidades especfficas ao nosso

tempo? Os meus raciocfnios parecerao por vezes demasiado

elementares. Isto acontece porque desejaria conduzir a minha

reflexao 0mais serena, 0mais paciente, 0mais lealmente pos-

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AMIN MAALOUF

sfvel, sem recorrer a nenhuma especie de jargao nem a

nenhum atalho enganador.

Naquilo a que se convencionou chamar «urn documento

de identidade» encontramos 0 nome proprio, 0 apelido, a data

e lugar de nascimento, a fotografia, a enumeracao de certos

traces ffsicos, a assinatura, por vezes tambern a impressao

digital - toda uma panoplia de indices para demonstrar, sem

confusao possfvel, que 0 portador deste documento e Fulano,

e que nao existe, entre os milh6es de seres humanos, uma so

pessoa com quem ele possa ser confundido, seja ela 0 seu

sosia ou 0 seu irmao gerneo.

A minha identidade e aquilo que faz com que eu nao seja

identico a qualquer outra pessoa.

Definida deste modo, a palavra identidade e uma nocao

relativamente precisa e que nao deveria prestar-se a confusao.

Serao verdadeiramente necessarias longas dernonstracoes para

estabelecer que nao existem, nem poderao existir dois seres

identicos? Mesmo se, amanha, se chegasse, como se teme,

a «clonar» seres humanos, os proprios clones nao seriam iden-tieos, rigorosamente, senao no instante do seu «nascimento»: ,

desde os seus primeiros passos na vida, tornar-se-iam dife-

rentes.

A identidade de cada pessoa e constituida por uma multi-

tude de elementos, que nao se limitam evidentemente aos que

figuram nos registos oficiais. Existe, claro, para a maior parte

das pessoas, a pertenca a uma tradicao religiosa; a uma nacio-

nalidade, por vezes a duas; a urn grupo etnico ou lingufstico;

a uma familia mais ou menos alargada; a uma profissao; a uma

instituicao; a urn determinado meio social... Mas a lista e bern

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AS IDENTIDADES ASSASSINAS

mais extensa, virtualmente ilimitada; pode sentir-se uma pertenc

mais ou menos forte a uma provincia, a uma aldeia, a urn bairr

a urn cla, a uma equipa desportiva ou profissional, a urn grup

de amigos, a uma empresa, a urn partido, a uma associacao

a uma comunidade de pessoas que partilham as mesmas pa

x6es, as mesmas preferencias sexuais, as mesmas diminuicoe

ffsicas, ou que se acham confrontadas com os mesmos proble

mas.

Estas pertencas nao tern, evidentemente, todas a mesm

importancia, pelo menos, nao ao mesmo tempo. Mas nenhum

delas e totalmente desprovida de importancia. Elas sao os el

mentos constitutivos da personalidade, poder-se-ia quase diz

«os genes da alma», na condicao de precisarmos que na su

maior parte nao sao inatos.

Se cada urn desses elementos se pode encontrar num

grande numero de individuos, jamais encontraremos a mesm

combinacao em duas pessoas diferentes, e e justamente iss

que produz a riqueza de cada urn, 0 seu valor proprio, aquil

que faz de cada pessoa urn ser singular e potencial ment

insu bsti tuivel.

Acontece por vezes que urn acidente, feliz ou infeliz, o

mesmo urn encontro fortuito, tenham urn maior peso no noss

sentimento de identidade do que a pertenca a uma heranc

milenar. Imaginemos 0caso de urn servio e de uma muculma

na que se tivessem conhecido, ha vinte anos arras, num cafe d

Sarajevo, que se tivessem apaixonado e casado. Nunca poderiam

ter tido da sua identidade a mesma percepcao que urn casa

inteiramente servio ou inteiramente muculmano; a sua visa

da fe, tal como da patria, nao seria a mesma. Cada urn dele

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AMIN MAALOUF AS IDENTIDADES ASSASSINAS

teria em si as pertencas que os pais lhes legaram a nascenca,

mas ja nao as entenderia do mesmo modo, nao Ihes daria 0

mesmo Iugar.

Nao abandonemos ainda Sarajevo. Deixemo-nos ficar, em

pensamento, numa investigacao imaginaria, Observemos, na

rua, urn homem de 50 anos.

Em 1980, esse homem teria proclamado: «Sou jugoslavo»,com orguIho e sem ernocao: instado a urn maior detaIhe, teria

dito que habitava a Republica Federada da Bosnia Herzegovina,

e que vinha, incidentalmente, de uma familia de tradicao

muculrnana.

o mesmo homem, reencontrado doze anos mais tarde,

quando a guerra se encontrava no auge, teria respondido

espontaneamente e com vigor: «Sou muculmano!» Talvez

tivesse tambern deixado crescer a barba regulamentar. Teria

igualmente acrescentado que era bosnio e nao teria apreciado

nada que the lembrassem que outrora se havia orgulhosamente

afirmado jugoslavo.

Hoje, 0 nosso homem, interrogado na rua, afirmaria pri-

meiro que era bosnio, e depois que era muculmano; ia de facto

a caminho da mesquita, acrescentaria; mas faria tambern ques-

tao de afirmar que 0 seu pals fazia parte da Europa e que espe-

rava ve-lo urn dia aderir a Uniao Europeia.

Este mesmo personagem, se 0 reencontrarmos no mesmo

sitio daqui a vinte anos, como querera ele definir-se? Qual das

suas pertencas pora em primeiro lugar? Europeu? Muculma-

no? Bosnio? Outra coisa qualquer? Balcanico, talvez?

Nao me arrisco a fazer urn prognostico. Todos estes ele-

mentos fazem efectivamente parte da sua identidade. Este

homem nasceu numa familia de tradicao muculmana; pertence,

pela lingua, ao eslavos do SuI que estiveram outrora reunidos

no contexto de urn mesmo Estado e que hoje ja nao 0 est

vive numa terra que ora foi otomana, ora austriaca, e que t

o seu papel nos grandes dramas da historia europeia. Em c

epoca, uma das suas pertencas inchou, se assim posso dizer

ponto de ocultar todas as outras e de se confundir com a

identidade total. Ao longo da sua vida, ter-Ihe-ao contado t

a especie de fabulas. Que era proletario e nada mais doisso. Que era jugoslavo e nada mais. E, mais recentemen

que era muculmano e so isso; ter-lhe-ao mesmo feito c

durante alguns meses dificeis, que tinha mais em comum c

os homens de Cabul do que com os de Trieste!

Em todas as epocas, encontrou pessoas que 0 levar

a considerar que possuia uma so pertenca maior, tao supe

as outras em todas as circunstancias que se poderia legitim

mente chamar «identidade». Para uns, a nacao, para outro

religiao ou a classe social. Mas bastaria passear 0 seu o

sobre os diferentes conflitos que se desenrolam no mundo p

se dar conta de que nenhuma pertenca prevalece de m

absoluto. Onde as pessoas se sentem ameacadas na sua fe

pertenca religiosa que parece resumir toda a sua identida

Mas se e a sua lfngua materna e 0 seu grupo etnico qu

encontram ameacados, as pessoas bater-se-ao ferozmente c

tra os seus proprios correligionarios, Os turcos e os curdos

ambos muculmanos, mas tern uma lfngua diferente; sera 0

conflito menos sangrento? Os hutus, tal como os tutsis,

catolicos e falam a mesma lingua, te-los-a isso impedido d

massacrarem? Os checos e os eslovacos sao ambos catoli

tera isso favorecido a vida em comum?

Todos estes exemplos para insistir no facto de que se e

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tir, em qualquer momento, entre os elementos que constituem

a identidade de alguern, uma certa hierarquia, esta nao e imu-

tavel, muda com 0 tempo e modifica profundamente os com-

portamentos.

As pertencas que contam na vida de cada um nem sempre

sao aquelas, consideradas primarias, que advern da lfngua, da

pele, da nacionalidade, da cIasse social ou da religiao. Tome-

mos 0caso de um homos sexual italiano na altura do fascismo.

Para eJe, este aspecto especffico da sua personalidade tinha a

sua importancia, imagino, mas nao mais do que a sua activida-

de profissional, as suas escolhas polfticas ou as suas crencas

religiosas. De subito, a repressao estatal abate-se sobre ele,

sente-se ameacado pela humilhacao, pela deportacao, peJa

morte - ao escolher este exemplo, apelo evidentemente a cer-

tas reminiscencias literarias e cinernatograficas. Este homem,

pois, que tinha sido, alguns anos antes, um patriota e talvez um

nacionalista, ja nao conseguiria regozijar-se ao ver desfilar as

tropas italianas, sem diivida tera mesmo chegado a desejar a

sua derrota. Por causa da perseguicao, as suas preferencias

sexuais iriam dominar as outras pertencas, eclipsando ate a

pertenca nacional que atingia, a epoca, 0 seu paroxismo. Ape-nas depois da guerra, numa Italia mais tolerante, 0 nosso

homem se sentiria de novo plenamente italiano.

Muitas vezes, a identidade que proclamamos, decalca-se

- pela negativa - da do adversario. Um irlandes cat61ico

diferencia-se dos ingleses primeiro pela religiao, mas afirrnar-

-se-a, face a monarquia, republicano, e se nao conhece suficien-temente 0gaelico, falara pelo menos 0 ingles ao seu modo; um

dirigente cat6Iico que se exprimisse com 0 sotaque de Oxford

apareceria quase como um renegado.

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AS IDENTIDADES ASSASSINAS

Haveria ainda dezenas de exemplos para ilustrar a c

plexidade - por vezes sorridente, muitas vezes tragic a

dos mecanismos da identidade. Citarei varies ao longo das

ginas que se seguem, uns de modo sucinto, outros em m

detalhe; sobretudo os que dizem respeito a regiao de o

venho - 0Pr6ximo Oriente, 0Mediterraneo, 0mundo ar

e, em primeiro lugar, 0 Libano. Um pals onde somos leva

constantemente a interrogarmo-nos sobre as nossas perten

as suas origens, as nossas relacoes com os outros eo luga

sol ou a sombra que estas nos permitem ocupar.

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Acontece-me fazer algumas vezes aquilo a que chamaria

«0 meu exame de identidade», como outros fazem 0 seu exame

de consciencia. 0meu objectivo nao e - te-lo-ao compreen-

dido - reencontrar em mim mesmo uma qualquer pertenca

«essencial» em que me possa reconhecer. A atitude que adopto

e precisamente a contraria: remexo a minha memoria para

encontrar 0 maior mimero possfvel de elementos da minha

identidade, reiino-os, alinho-os e nao renego nenhum deles.

Venho de uma famflia originaria do SuI daArabia, implan-

tada nas montanhas libanesas desde ha seculos, e que se espa-

lhou depois, por migracoes sucessivas, pelos diversos cantos

do globo, do Egipto ao Brasil, e de Cuba a Australia. A minha

famflia orgulhou-se sempre de ter sido tanto arabe como crista,

provavelmente desde 0 seculo II ou III, quer isto dizer, muito

antes da ernergencia do Islao e antes mesmo do Ocidente se ter

convertido ao cristianismo,

o facto de ser cristae e de ter por lingua materna 0 arabe,a lfngua sagrada do Islao, constitui urn dos paradoxos funda-

mentais que forjaram a minha identidade. Falar esta lfngua

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AMIN MAALOUF

tece, para mim, Iacos com todos os que a utilizam todos

os dias nas suas oracoes e que, na sua grande maioria, a conhe-

cern bern menos do que eu; quando nos encontramos na

Asia Central e deparamos com urn velho erudito a entrada deuma medersa' timurida, basta dir igirmo-nos a ele em arabe

para nos sentirmos em terra amiga, e para que ele fale com 0

coracao, como nunca se atreveria a fazer em russo ou em

ingles.Esta lingua e-nos comum, a ele, a mim, e a varies milhoes

de outras pessoas. Por outro lado, a minha pertenca ao cris-

tianismo - seja ela profundamente religiosa ou apenas

sociol6gica, essa nao e a questao - cria tambem eIa urn laco

significativo entre mim e os varies milhoes de cristaos no

mundo. Muitas coisas me separam de cada cristae, como

de cada arabe e de cada muculmano, mas existe tambem entre

mim e cada urn deles urn parentesco inegavel, num caso, reli-

gioso e intelectual, no outro, linguistico e cultural.

Dito isto, 0 facto de ser por urn lade arabe e por outro cris-

tao e uma situacao muito especff ica, muito minoritaria e nem

sempre facil de assumir; essa situacao marca profunda e dura-

douramente uma pessoa; tratando-se de mim, nao poderei

negar que ela foi determinante na maior parte das decisoes que

tive de tomar ao longo da vida, incluindo a de escrever estelivro.

Assim, ao considerar separadamente estes dois elementos

da minha identidade, sinto-rne pr6ximo, quer pela lingua quer

pela religiao, de uma boa metade da humanidade; ao conside-

rar estes dois criterios simultaneamente, vejo-me confrontado

com a minha especificidade.

IEscola coranica, (N. da T.)

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AS IDENTIDADES ASSASSINAS

Poderia retomar esta mesma observacao em relacao a

outras pertencas: 0 facto de ser frances, partilho-o com cerca

de 60 milhoes de pessoas; 0 facto de ser libanes, partilho-o

com oito a dez milhoes de pessoas, se tivermos em conta a

diaspora; mas 0 facto de ser por urn lado frances e p~r outro

Iibanes, com quantas pessoas 0 partilho? Alguns milhares,

quando muito.

Cada uma das minhas pertencas me liga a urn vasto mime-ro de pessoas; entretanto, quanta mais numerosas as pertencas

que tenho em conta, mais especif ica se revela a minha identi-

dade.Se me alargasse urn pouco sobre as minhas origens, deve-

ria esclarecer que nasci no seio da comunidade dita greco-

-catolica, ou melquita, que reconhece a autoridade do papa,

continuando, no entanto, fiel a certos ritos bizantinos. Vista de

longe, esta pertenca e apenas urn pormenor, uma c.urios.idad~;

vista de perto, eIa e urn aspecto determinante da minha identi-

dade: num pais como 0Lfbano, onde as comunidades mais po-

derosas se bateram durante seculos pelo seu territ6r io e pelo

seu quinhao de poder, os membros de comunidades muito

minoritarias como a minha raramente pegaram em armas e

foram sempre os primeiros a exilar-se. Pela minha parte, sem-

pre recusei envolver-me numa guerra que considerava absurdae suicida; mas este juizo, este olhar distante, esta recusa em

pegar nas armas, nao deixam de estar relacionados com a

minha pertenca a uma comunidade marginalizada.

Melquita, pois. Entretanto, se alguem se entretivesse a

procurar, urn dia, 0 meu nome nos registos civis oficiais

_ que, no Lfbano, receio, sao estabelecidos em funcao da per-

tenca rel igiosa - , nao seria entre os melquitas que me encon-

traria mencionado, mas antes no registo dos protestantes. Por

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AMIN MAALOUF

que razao? Levaria muito tempo a contar. Contentar-me-ei

aqui em dizer que existiram na nossa familia duas tradicoes

rivais, e que eu fui, durante toda a infancia, testemunha desses

confrontos; testemunha e, por vezes, mesmo joguete - se me

inscreveram na escola francesa dos padres jesuitas, foi porque

a minha mae, resolutamente catolica, me pretendia subtrair

a influencia protestante que entao prevalecia na minha familia

paterna, que encaminhava tradicionalmente as criancas para

escolas americanas ou inglesas. Foi em con sequencia disto

que acabei por me instalar, durante a guen·a do Lfbano, em

Paris e nao em Nova Iorque, Vancover ou Londres, e que me

pus a escrever em frances.

Valera a pena alinhar outros pormenores ainda da minha

identidade? Falar da minha avo turca, do seu marido maronita

do Egipto, e desse outro avo, morto muito antes de eu nascer, e

de que me dizem ter sido poeta, livre-pensador, franco-macae

talvez, e, em todo 0 caso, ferozmente anticlerical? Recuar ate

esse tio-tetravo que foi 0 primeiro a traduzir Moliere para 0

arabe e a leva-lo a cena, em 1848, no tabuado de urn teatro oto-

mano?Nao, e mais do que suficiente. Paro aqui, para perguntar:

. estes varies elementos diversos que moldaram a minha identi-

dade e desenharam, nas suas grandes linhas, 0meu itinerario,

quantos dos meus semelhantes os partilham comigo? Talvez

mesmo nenhum. E e precisamente sobre isto que gostaria

de insistir: gracas a cada uma das minhas pertencas, conside-

rada isoladamente, tenho urn certo parentesco com urn grande

mimero dos meus semelhantes; gracas aos mesmos criterios,

tornados em conjunto, tenho a minha identidade propria, que

nao se confunde com nenhuma outra.

Extrapolando ao limite, direi: com cada ser humano, tenho

28

AS IDENTIDADES ASSASSINAS

pertencas em comum; mas ninguern no mundo partilha t

as minhas pertencas ou sequer uma grande parte delas; em

Iacao as dezenas de criterios que poderia invocar, bastaria

simples meia-duzia para estabelecer com precisao a m

identidade especffica, diferente da de urn outro, seja ele 0

proprio filho ou 0meu pai.

Antes de me lancar na escrita das paginas preceden

hesitei durante muito tempo. Deveria alongar-me tanto, d

o comeco do livro, sobre 0meu proprio caso?

Por urn lado, era importante para mim dizer, servindo-

do exemplo que me e mais familiar, de que maneira,

alguns criterios de pertenca, se pode afirmar por urn lad

lacos que nos un em aos nossos semelhantes e por out

nossa especificidade. Por outro lado, nao ignorava que, qu

mais longe se vai na analise de urn caso particular, m

se corre 0 risco de ouvir como resposta que esse e, prec

mente, urn caso particular.

Finalmente, atirei-me a agua, persuadido que toda a

soa de boa-fe que tentasse fazer 0 seu proprio «exame de i

tidade», nao tardaria a descobrir que tambem e , tanto comourn caso particular. A humanidade inteira e feita apenascasos particulares, a vida e geradora de diferencas, e, se ex

«reproducao», os resultados nunc a sao identicos, Cada pes

sem excepcao alguma, e dotada de uma identidade cornpos

bastaria colocar a si mesma algumas questoes para rev

fracturas esquecidas, ramificacoes insuspeitadas, e para

descobrir complexa, unica, insubstituivel.

E assim, justamente, que se caracteriza a identidade

cada urn de nos: complex a, iinica, insubstituivel, que na

confunde com qualquer outra. Se insisto neste ponto, ecausa do habito de pensamento ainda tao espalhado, e a m

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olhos extremamente pernicioso, segundo 0 qual, para afirmar

a nossa identidade, deveria simplesmente dizer-se: «eu sou

arabe»; «eu sou frances»; «eu sou negro»; «eu sou servio»;

«eu sou muculmano»; «eu sou judeu»; quem alinhe, como eu

o fiz, as suas rmiltiplas pertencas, e imediatamente acusado de

querer «dissolver» a sua identidade no caldo informe onde

todas as cores se apagariam. E , no entanto, 0 inverso que eu

procuro afirmar. Nao que todos os seres humanos sao serne-lhantes, mas que cada urn deles e diferente. Sem diivida, urn

servio e diferente de urn croata, mas cada servio e tambem

diferente de todos os outros servios e cada croata e igualmente

diferente de todos os outros croatas. E, se urn cristae libanes

e diferente de urn muculmano libanes, nao conheco dois cris-

taos libaneses identicos, nem dois muculmanos, tal como nao

existem no mundo dois franceses, dois africanos, dois arabes

ou dois judeus identicos, As pessoas nao podem ser trocadas

umas com as outras, e e frequente encontrarmos, no seio da

mesma familia ruandesa ou irlandesa, libanesa ou argelina ou

bosnia, entre dois irrnaos que viveram no mesmo ambiente,

diferencas aparentemente mfnimas, mas que os farao reagir,

em materia de politica, de religiao ou de vida quotidiana, nosantipodas urn do outro; que chegarao mesmo a fazer do pri-

meiro urn assassino e do segundo urn homem de dialogo e de

conciliacao.

Tudo 0 que acabei de dizer, poucas pessoas se atreveriam

a contestar explicitamente. Mas comportamo-nos como se nao

fosse esse 0 caso. Por facilidade, englobamos as pessoas mais

diversas no mesmo vocabulo; por facilidade tambern, atribui-

rno-lhes crimes, actos colectivos, opinioes colectivas - «os

servios massacraram ...», «os ingleses destruiram ...», «os judeus

confiscaram ...», «os negros incendiaram ...», «os arabes recusa-

30

AS IDENTIDADES ASSASSINAS

ram ...». Emitimos friamente juizos sobre esta ou aquela p

lacao que consideramos «trabalhadora», «habil» ou «pre

cosa», «susceptivel», «manhosa», «orgulhosa» ou «obst

da», juizos que terminam muitas vezes em sangue.

Sei que nao e realista esperar de todos os nossos cont

poraneos que modifiquem de urn dia para 0outro os seus h

tos de expressao, Mas parece-me importante que cada ur

nos tome consciencia do facto de que as nossas palavrassao inocentes e de que as mesmas contribuem para perpe

preconceitos que demonstraram ser, ao longo da Historia,

versos e assassmos.

Porque e 0 nosso olhar que aprisiona muitas vezes

outros nas suas pertencas mais estreitas e e tarnbern 0 n

olhar que tern 0 poder de os libertar.

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A identidade nao e algo que nos seja entregue na sua form

inteira e definitiva; ela constroi-se e transforma-se ao longo d

nossa existencia, Muitos livros ja 0 afirmaram e explicaram

copiosamente, mas nao e imitil sublinha-Io uma vez mais: o

elementos da nossa identidade que ja estao em nos ao nascer

mos nao sao muito numerosos - algumas caracterfsticas ffs

cas, 0 sexo, a cor ... E mesmo af, alem do mais, nem tud

e inato. Ainda que nao seja evidentemente 0meio social qu

determina0

sexo, e este, apesar de tudo, que determina0

sentido dessa pertenca: nascer rapariga em Cabul ou em Oslo na

tern 0mesmo significado, a jovem nao vive a sua feminilidad

(ou qualquer outro elemento da sua identidade) da mesm

maneira ...

Tratando-se da cor, poder-se-ia formular urn comentario

similar. Nascer negro em Nova Iorque, em Lagos, em Pretori

ou em Luanda, nao tern a mesma significacao, poder-se-ia

quase dizer que nao se trata da mesma cor, do ponto de vist

identitario. Para uma crianca que ve a luz na Nigeria, 0 ele

mento mais determinante para a sua identidade nao e 0 se

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negro, mas 0 ser ioruba, por exemplo, em vez de haussa. Na

Africa do SuI, ser negro ou branco continua a ser urn elemento

significativo da identidade; mas a pertenca etnica - zulu,

xhosa - e, pelo menos, igualmente importante. Nos Estados

Unidos, descender de urn antepassado ioruba em vez de urn

haussa e perfeitamente indiferente; e sobretudo entre os bran-

cos - itaIianos, ingleses, irlandeses ou outros - que a origem

etnica e determinante para a identidade. Por contraste, umapessoa que tivesse, entre os seus antepassados, brancos e

negros seria apelidada de «negra» nos Estados Unidos

enquanto na Africa do SuI seria considerada «mestica». '

Que razao leva a nocao de mesticagern a ser tida em conta

em certos paises e nao em outros? Porque sera. a pertenca

etnica determinante em certas sociedades e nao em outras?

Poderiamos avancar, para cada caso, algumas explicacoes

mais ou menos convincentes. Mas nao e isso 0 que me preo-

cupa nesta altura. Apenas mencionei estes exemplos para

insistir no facto de que mesmo a cor e 0 sexo nao sao elemen-

tos «absolutos» de identidade ... Com maior razao, todos os

outros elementos sao ainda mais relativos.

Para avaliarmos0

que e realmente inato entre os elementos. de identidade, existe urn jogo mental eminentemente revela-

dor: imagine-se urn bebe que e retirado do seu meio no momento

preciso do seu nascimento para ser colocado num meio dife-

rente; compare-se entao as «identidades» diversas que poderia

adquirir, os combates que teria de travar e aqueles a que seria

poupado ... Sera necessario lembrar que ele nao teria nenhuma

memoria da «sua» religiao de origem, nem da «sua» nacao,

nem da «sua» lfngua, e que poderia vir a achar-se a combater

encarnicadamente aqueles que deveriam ter sido os seus?

E bern verdade que 0 que determina a pertenca de uma

34

AS IDENTIDADES ASSASSINAS

pessoa num dado grupo e, essencialmente, a influencia de o

trem; a influencia dos que the sao proximos - pais, compa

nheiros, correligionarios - que tentam apropriar-se del

e a influencia dos que se encontram do outro lado, e procuram

exclui-lo. Cada urn de nos deve desbravar urn caminho ent

as vias para onde nos empurram e aquelas que nos proibem

ou cujo terreno minam sob os nossos pes; nenhum de nos e

partida urn ser iinico; nao nos contentamos em «tomar conciencia» da nossa identidade, tornamo-nos 0 que somo

adquirimos essa consciencia passo a passo.

A aprendizagem inicia-se muito cedo, desde a primeir

infancia. Voluntariamente ou nao, os nossos modelam-nos

dao-nos forma, inculcam-nos as crencas famiIiares, os ritos,

atitudes, as convencoes, a lfngua materna, e tambern as fraque

zas, as aspiracoes, os preconceitos, os rancores, assim com

os diversos sentimentos de pertenca e de nao pertenca,

E desde muito cedo tambern, em casa e na escola ou n

ruas da vizinhanca, surgem os primeiros conflitos. Os outro

fazem-nos sentir, pelas palavras, pelos olhares, que somo

pobres ou aleijados, demasiado baixos ou demasiado alto

escuros ou demasiado louros, circuncidados, nao circuncidados ou orfaos - estas inumeraveis diferencas, minimas o

significativas, que tracam os contornos de cada personalidade

forjam os comportamentos, as opinioes, os receios, as amb

coes, que se revelam muitas vezes eminentemente formativa

mas que frequentemente nos ferem para sempre.

Sao estas feridas que determinam, em cada etapa da vid

a atitude dos homens em relacao as suas pertencas e a hiera

quia entre essas atitudes. Quando se foi perseguido pela su

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AMIN MAALOUF

religiao, quando se foi humilhado ou insultado por causa

da cor da pele, ou do sotaque, ou dos habitos nao sofisticados,

nunca isso se apagara da memoria. Insisti ate aqui constan-

temente no facto de a identidade ser constituida por pertencas

rmiltiplas: mas e indispensavel insistir outro tanto no facto

de ela ser una e de a vivermos como urn todo. A identidade de

uma pessoa nao e uma justaposicao de pertencas autonornas,

nao e urnpatchwork',

e urn desenho sobre uma pele esticada;

se se tocar numa so das pertencas, e toda a pessoa que vibra.

Temos, alern disso, frequentemente, a tendencia a reco-

nhecermo-nos na pertenca que mais e atacada; por vezes,

quando nao temos forca para a defender, dissimulamo-Ia, refu-

giando-se ela entao no fundo de nos mesmos, acocorada na

sombra, a espera da vinganca; assumindo-a ou ocultando-a,

proc1amando-a discretamente ou em voz bern alta, e com ela

que nos identificamos. A pertenca que esta em causa - a cor,

a religiao, a lingua, a classe sociaL. - invade en tao toda a

identidade. Os que a partilham sentem-se solidarios, reiinem-

-se, mobilizam-se, encorajam-se reciprocamente, colocam-se

juntos contra «os do outro lado». Para eles, «afirmar a sua

identidade», torna-se forcosamente urn acto de coragem, urn

acto libertador ...No seio de cada comunidade marcada surgem naturaI-

mente os condutores. Enraivecidos ou calculistas, pronunciam

os discursos inflamados «ate as ultimas consequencias» que

sao 0balsamo sobre a ferida. Dizem que nao se deve mendigar

dos outros 0 respeito, que este e urn direito, que se deve antes

impo-lo aos outros. Prometem vitoria ou vinganca; inflamam

os espiritos e servem-se por vezes dos meios extremos que

IEm ingles no original. (N. da T.)

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AS IDENTIDADES ASSASSINAS

alguns dos seus irmaos sofredores teriam talvez sonhado em

segredo. Deste modo, 0 cenario esta montado, a guerra pode

comecat Se ela chegar, «os outros» te-la-no merecido, «nos»

temos a memoria exacta de «tudo 0 que eles nos fizeram

passar» desde 0 inicio dos tempos. Todos os crimes, todas as

vingancas, todas as humilhacoes, todas as fraquezas, os nomes,

as datas, os mimeros.

Por ter vivido num pais em guerra, num quarteirao sujeito

a bombardeamentos que vinham do quarteirao vizinho, por ter

passado uma ou duas noites numa cave transformada em abrigo,

com a minha mulher gravida e 0 meu filho de tenra idade,

ouvindo 0 ruido das explosoes do lado de fora e do lade de

dentro mil boatos sobre a iminencia de urn ataque emil his-

torias sobre farnilias assassinadas, sei perfeitamente que 0

medo pode empurrar nao importa quem para 0 crime. Se, em

vez de boatos passageiros, t ivesse havido no meu quarteirao

urn verdadeiro massacre, teria eu conservado 0 sangue-frio

durante tanto tempo? Se, em vez de passar dois dias nesse

abrigo, tivesse tido de passar ai urn mes, teria eu recusado em-

punhar a arma que me teriam posto nas maos?

Prefiro nao me colocar estas questoes com demasiada

insistencia, Tive a sorte de nao ter sido posto a prova comdureza, tive a sorte de sair muito cedo da fornalha, com os

meus incolumes, tive a sorte de poder conservar as maos lim

pas e a consciencia em paz. Mas digo «a sorte», sim, porque

as coisas poder-se-iam ter passado de modo completamente

diferente, se, no inicio da guerra do Lfbano, eu tivesse dezas-

seis anos em vez de 25, se tivesse perdido urn ente querido, s

tivesse pertencido a urn outro meio social, a uma outra comu

nidade ...Apos cada novo massacre etnico, perguntamo-nos, com

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