Inesc
BraslIa, 2011
cleomar manhas(org.)
UnIversalIzar o QUanto cUsta
Conselho editorialJacques Veloso Professor titular (FE/UnB)Mrio Volpi UnicefIara Pietricovsky InescJos Antnio Moroni Inesctila Roque Inesc
Organizadora Cleomar ManhasReviso Paulo Henrique de CastroProjeto grfico Ars Ventura Imagem & ComunicaoImpresso Teixeira Grfica e EditoraTiragem 500 exemplares
Conselho diretorMrcia Anita Sprandel, Eva Teresinha Silveira Faleiros, Fernando Oliveira Paulino, Jurema Pinto Werneck, Luiz Gonzaga de Arajo.
Colegiado de gestoIara Pietricovsky de Oliveira e Jos Antnio Moroni.
assessoriaAlessandra Cardoso, Alexandre Ciconello, Cleomar Manhas, Edlcio Vigna, Eliana Magalhes, Lucdio Barbosa, Mrcia Acioli, Ricardo Verdum.
Assistente de direoAna Paula Soares Felipe
assessoria administrativo-FinanCeiraAdalberto Vieira dos Santos, Eugnia Christina A. Santana, Isabela Mara dos S. da Silva, Ivone Maria da Silva Melo, Josemar Vieira dos Santos, Maria Jos de Morais, Maria Lcia Jaime, Miria Thereza B. Consiglio, Ricardo Santana da Silva, Rosa Din G. Ferreira.
apoio instituCionalActionAid, Charles Stewart Mott Fundation, Christian Aid, Climate Works Foundation membro do Climate and Land Use Alliance (CLUA), Department for International Development (Dfid), Evangelischer Entwicklungsdienst (EED), Fastenopfer, Fundao Avina, Fundao Banco do Brasil, Fundao Ford, Fundo das Naes Unidas para Infncia (Unicef), Instituto Heinrich Bll, International Budget Partnership, KinderNotHilfe (KNH), Norwegian Church Aid, Oxfam Novib, Oxfam, Unio Europia, ONU Mulheres.
Quanto Custa Universalizar o Direito Edu cao?/ Organizadora: Cleomar ManhasBraslia: Instituto de Estudos Socioeconmicos, 2011
Vrios autoresBibliografia212 pginasISBN 978-85-87386-22-9
Educao Direitos Humanos Plano Nacional de Educao Poltica de Educao
publiCao do instituto de estudos soCioeConmiCos (inesC)
SCS Qd. 01, Ed. Mrcia, 13 Andar CoberturaCEP: 70307-900 Braslia (DF), Brasil Fone: (61) 3212-0200 Fax: (61) 3212-0216E-mail: [email protected] Site: www.inesc.org.br
Copyright Inesc Impresso no Brasil. Distribuio gratuita.
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IntroduoCleomar manhas
o que educao de qualidade?alpio Casali
Poltica de Direitos humanos e Poltica de educao: anlise de interdies e ausncias com base na proposta do Pne
paulo Csar Carbonari
o financiamento da educao no Pne IIdaniel Caraluiz arajo
o novo Pne, a amaznia e o desafio da educao como direito humano
alberto damascenomina santos
educao infantil: a falsa dicotomia quantidade vs. qualidademarisa vasconcelos Ferreira
creche: do direito da criana de 0 a 3 anos de idade aos desafios atuais
Comit diretivo do mieib
o que significa educao de qualidade no cotidiano escolar?Cristiana almeida magela Costa
educao de qualidade: escolas para o encantamentoisabel amorimmrcia acioli
a educao de Jovens e adultos e os desafios do Plano nacional de educao 2011-2020
maria margarida machado
a atualidade do pensamento de Paulo Freire no contexto educacional brasileiro
pedro pontual
Uma experincia de enfrentamento ao analfabetismope. virglio leite ucha
sobre os autores e as autoras
SUMRIO
Cleomar Manhas
5IntroduoCleomar Manhas
Introduo
Cleomar manhasAssessora Poltica do Inesc
O Instituto de Estudos Socioeconmicos (Inesc), em parceria com o
Fundo das Naes Unidas para a Infncia (Unicef), aproveitando o mo-
mento de tramitao do Plano Nacional de Educao (PNE) no Congresso
Nacional, organizou a publicao Quanto Custa Universalizar o Direito
Educao?. A publicao representa um esforo de tais entidades no
sentido de dialogar acerca dos diversos temas relativos educao, desde
a educao infantil at a educao superior, passando pela educao de jo-
vens e adultos, pela alfabetizao e pelo financiamento da educao.
Ao lanarmos o questionamento acerca do custo de universalizar o
direito educao, o fazemos com base na metodologia Oramento e Di-
reitos, formulada pelo Inesc, que parte do pressuposto que o oramento
pblico deve alocar suficiente (o mximo de recursos disponveis para a
promoo dos direitos) e de forma progressiva para a realizao dos direi-
tos, conforme expresso no compromisso assumido pelo Estado brasileiro
quando da ratificao do Pacto Internacional sobre Direitos Econmicos,
Sociais e Culturais (PIDESC), em 1992. Alm disso, o financiamento das
polticas pblicas deve se basear na justia tributria, evitando o aprofunda-
mento das desigualdades sociais na arrecadao e fazendo a redistribuio
de renda do ponto de vista da arrecadao tributria.
A propsito do que o professor Alpio Casali afirmou em seu artigo,
quando lhe perguntamos quanto custa universalizar o direito educao?
questionamento que, alis, viria a cair como uma luva para o ttulo do
livro , no estamos nos referindo nesta publicao apenas aos custos finan-
ceiros, at porque, de acordo com Casali, a acepo de origem de custo
nem econmica, mas antes cultural, ou seja, o que nos custoso ou
6 Cleomar Manhas
quanto de esforo temos de empregar para conseguir algo. Esta a proposta
aqui fundamentada.
Em 2010, terminou a vigncia do primeiro Plano Nacional de Educao
(PNE), na acepo trazida pela Constituio de 1988 e pela Lei de Diretrizes
e Bases da Educao Nacional (LDBEN), de 1996. De acordo com este marco
legal, cabe Unio a elaborao do PNE em colaborao com os estados, o
Distrito Federal e os municpios.
O Plano Nacional de Educao, apesar de ter sido pensado pela pri-
meira vez em 1932, por um grupo de intelectuais, em documento intitulado
Manifesto dos Pioneiros da Educao, s foi formalizado a partir da
promulgao da Constituio de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Edu-
cao Nacional. Apesar disso, mesmo aps a aprovao da Carta Magna de
1988 e da LDBEN, o Poder Executivo s apresentou o PNE ao Congresso
pela primeira vez em 1998, tendo sido aprovado em 2000, com vigncia para
a dcada 2001-2010. O segundo PNE, que analisamos aqui, foi apresentado
ao Legislativo no final de 2010 e, provavelmente, ser aprovado apenas no
final de 2011.
O PNE oferecido para os prximos dez anos possui originalmente 20
metas e 170 estratgias. No entanto, falta, em vrias metas e estratgias,
o estabelecimento de etapas de realizao do proposto, o que dificulta o
monitoramento e a avaliao de sua execuo por parte da sociedade. J
percebemos, com relao ao PNE anterior, que um planejamento que no
prev seu monitoramento e sua avaliao impede que os governos e a socie-
dade visualizem o quanto se conseguiu avanar no percurso, para que sejam
previstas metas futuras mais realistas e voltadas s necessidades do Pas.
Alm disso, de acordo com Daniel Cara e Luiz Arajo, no artigo O finan-
ciamento da educao no PNE II, o projeto no estabeleceu responsabilidades
especficas aos diferentes entes federados e, portanto, deixa de atender ao disposi-
tivo constitucional, cujo texto explcito ao estabelecer que o PNE tem a funo
de [...] articular o sistema nacional de educao em regime de colaborao.
Inmeras instituies se mobilizam com vistas a melhorar o projeto e
transform-lo em um documento exequvel e, de acordo com as priorida-
des, esto buscando incorporar ao documento importantes mecanismos de
controle social.
7IntroduoCleomar Manhas
Os/as diversos/as intelectuais, profissionais da educao e ativistas que
se reuniram e contriburam com sua experincia e seus estudos para a edio
desta publicao, com o intuito de apresentar suas ideias e fazer uma reflexo
sobre o estado da arte da educao, tm em comum o desejo de que esta pol-
tica realize sua vocao, ou seja, contribua para a construo da justia social
e para um desenvolvimento nacional com equidade. E que as desigualdades
de renda, territoriais, geracionais e raciais transformem-se em elementos his-
tricos de um passado recente.
Nos ltimos tempos, mais precisamente a partir da Constituio de
1988, a poltica de educao brasileira sofreu grandes avanos. A educao
fundamental est praticamente universalizada. Hoje, temos apenas 2% de
crianas em idade escolar fora das salas de aula. A forma de organizao do
financiamento, com a criao do Fundo de Manuteno e Desenvolvimento
do Ensino Fundamental e de Valorizao do Magistrio (Fundef), foi funda-
mental para que isso ocorresse.
No entanto, o Fundef contribuiu, indiretamente, para que a educao
infantil e o ensino mdio no tivessem o mesmo desenvolvimento, pois os
entes federados (a Unio, os estados, o Distrito Federal e os municpios) no
investiram da mesma forma nas etapas que seriam de sua responsabilidade,
visto que a maior parte dos recursos era direcionada ao fundo da educao
fundamental.
Com isso, percebeu-se que seria necessrio investir em toda a educao
bsica e no apenas no ensino fundamental. Substituiu-se, desta forma, o
Fundef pelo Fundeb (Fundo de Manuteno e Desenvolvimento da Educao
Bsica e de Valorizao dos Profissionais da Educao), com o acrscimo
dessas duas etapas de ensino e das modalidades: educao de jovens e adultos
(EJA), educao especial, educao profissional e educao indgena.
Alm disso, o ensino superior foi ampliado, com programas como o
Prouni, oferecendo vagas para estudantes com baixa renda em universida-
des particulares, e o Reuni, ampliando os cmpus existentes e interiorizando
novas universidades, aumentando significativamente o alcance da formao
tanto na graduao quanto na ps-graduao. A educao profissionalizante
tanto em nvel mdio quanto superior tambm cresceu, com a ampliao das
escolas tcnicas e dos institutos de educao superior.
8 Cleomar Manhas
Os avanos so inegveis; no entanto, ainda h um longo caminho a
ser trilhado para a reduo do tamanho da dvida social, visto que o pro-
cesso educacional, como um todo, est distante de ser universalizado e de
contribuir para a reduo das desigualdades. O Brasil um dos pases mais
desiguais do mundo, embora tenha atingido bons nveis de desenvolvimento
e seja considerado, ao lado de pases como China e ndia, a grande promessa,
no para um futuro distante, mas para logo ali depois da curva.
Hoje, temos o 5 maior Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, mas, en-
tre os vinte pases com maior PIB, somos o 18 em desigualdade e, na lista geral
dos pases, somos o 73 em ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), atrs
de vrios vizinhos sul-americanos, como Chile, Argentina, Uruguai e Peru. Tal
constatao nos faz crer que nosso modelo de desenvolvimento precisa ser re-
visto e que a educao um direito humano que nos permite acessar os demais
direitos e reduzir as desigualdades que afetam diretamente nosso IDH.
De acordo com Carbonari, em seu artigo Poltica de Direitos Humanos
e Poltica de Educao: Anlise de interdies e ausncias com base na pro-
posta do PNE, o modelo de desenvolvimento multiplicador de desigualdades
e de pobreza que vitimiza em maior escala a populao negra, as mulheres,
a populao jovem e outros grupos mais vulnerveis acaba transformando
a diversidade em diferenciao negativa. Para o autor, uma das formas de
se combater a violncia e a violao constante de direitos seria a incorpora-
o dos direitos humanos como componente transversal a todas as polticas
(principalmente a educao), de maneira que eles no fossem encarados de
forma restrita, como acontece hoje, quando somente se reconhece as polticas
especficas, voltadas para segmentos sociais excludos.
Ainda de acordo com Carbonari, a grande importncia de se formar
sujeitos em direitos humanos ou de se inserir a perspectiva dos direitos
humanos na educao a possibilidade de formar sujeitos sustentveis que
promovam a sustentabilidade em sentido amplo. formar para que tais
atores sociais possam participar, aparecer e dizer para o que vieram. Ou
seja, para que cada pessoa possa e deva se expressar de forma livre e com
condies adequadas para tal, levando em considerao que a participao
contedo fundamental para a efetivao dos direitos humanos e, portanto,
faz parte de uma educao tica.
9IntroduoCleomar Manhas
Ao que parece, precisamos exercer o direito participao para que
possamos cobrar a intersetorialidade das polticas e a sua realizao plena
como direito. Neste tocante, a poltica de educao, particularmente, o ca-
minho para a efetivao da participao, da busca por todos os direitos, de
uma formao que permita o controle social adequado e eficaz, da realizao
de todos e todas como sujeitos de direitos, para que, de acordo com Carbo-
nari, no busquem apenas os direitos individualmente, mas lutem por eles
coletivamente.
Ento, com a inteno de fazer a diferena no debate acerca da Polti-
ca Nacional de Educao, a presente publicao agrupa artigos de pessoas
diversas, que so referncias em suas respectivas reas e ativistas por uma
educao de qualidade, inclusiva, promotora de equidade e que tenha os di-
reitos humanos como referncia para a formao em seus diversos nveis, da
creche ps-graduao.
Como abertura da publicao est o artigo O que educao de qua-
lidade?, do professor Alpio Casali, que apresenta uma reflexo filosfica
acerca dos princpios basilares de uma educao de qualidade. Ele faz uma
anlise histrica sobre as diversas acepes da qualidade e sua aplicao es-
pecfica na rea da educao. Por fim, ele conclui que uma educao, assim
concebida, pode produzir sujeitos capazes de reconhecer seus direitos e res-
peitar os direitos e a cultura do outro. Ou seja, sujeitos [...] capazes de se
reconhecer como unidades da humanidade, em escolas constitudas como
oficinas da humanidade.
Em seguida, temos o j citado artigo de Paulo Carbonari, que dialoga
acerca da necessidade de se pensar em educao tendo como horizonte os di-
reitos humanos, para formar pessoas que respeitem a diversidade e estejam em
harmonia com o espao onde vivem e convivem. Segundo suas palavras, fazer
a luta por direitos humanos renovar o compromisso de fazer da educao e
de todas as iniciativas educacionais (em todos os nveis, modalidades, sistemas
e espaos) mediaes privilegiadas para a vivncia dos direitos humanos.
O tema do financiamento, por ser fundamental execuo da po-
ltica, transversal aos demais temas trabalhados nesta publicao. O
tambm j citado artigo de Daniel Cara e Luiz Arajo faz uma crtica
forma e ao contedo do projeto apresentado pelo Executivo ao Congresso
10 Cleomar Manhas
Nacional, sem metas intermedirias e mecanismos de monitoramento e
transparncia para a gesto da poltica. Alm disso, o projeto apresen-
ta uma proposta de financiamento subdimensionada, que no permitir,
caso tal item no seja alterado, que se alcance o que est escrito no texto
do projeto, que em muitos aspectos j est aqum do necessrio. Os au-
tores afirmam que um financiamento adequado pressuposto da poltica,
que a boa gesto um princpio e que a referncia para esta adequao
o ndice Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi), criado pela Campanha
Nacional pelo Direito Educao.
Ainda com base nos direitos humanos e no enfrentamento s desigual-
dades, com um contedo que aborda todas as suas faces perversas (ou seja,
de renda, regionais, tnicas/raciais, entre outras), temos o artigo de Alberto
Damasceno e mina Santos: O novo PNE, a Amaznia e o desafio da educa-
o como direito humano. Em seu texto so demonstradas as diversas caras
das desigualdades, tendo como foco a desigualdade regional, que afeta os di-
ferentes estados que compem a chamada Amaznia Legal. Seu contedo nos
permite perceber que um plano pensado em Braslia, voltado para o Brasil
como um todo, como se este todo fosse igual, no contempla e nem favorece o
desenvolvimento de lugares to particulares, porm gigantes e diversos, como
a Regio Amaznica.
Os direitos educao infantil, creche e pr-escola so pouco aces-
sveis populao de baixa renda. As informaes acerca desta etapa de
escolarizao muitas vezes chegam at o seu pblico-alvo como se tais direi-
tos fossem uma concesso do Estado, ou pior, no caso das creches, como se
fossem um componente da assistncia social. Embora tenhamos conseguido
traz-los para o mbito da educao, estes direitos ainda no so de fato
considerados como tal. De acordo com Marisa Vasconcelos Ferreira, em seu
artigo Educao infantil: a falsa dicotomia quantidade vs. qualidade, na
educao infantil, a questo do acesso se mostra, no mnimo, alarmante, es-
pecialmente se tomarmos o segmento creche como exemplo.
A educao infantil tambm abordada pelo Comit Diretivo do Mo-
vimento Interfruns de Educao Infantil do Brasil (Mieib), que defende uma
educao infantil pblica, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade social.
Alm disso, para o Mieib, a educao infantil, em suas modalidades creche
11IntroduoCleomar Manhas
e pr-escola, deve ser oferecida em espaos adequados, institucionais, no
domsticos, regulados e supervisionados por rgo competente do sistema de
ensino e submetidos a controle social.
J Cristiana Almeida Magela Costa, diretora de escola pblica no Distri-
to Federal, nos traz o rosto da realidade e do cotidiano da escola, discutindo
conosco o que qualidade na prtica das instituies, mostrando-nos como
fazer a diferena face a uma realidade muitas vezes adversa. De acordo com
seu ponto de vista, um dos principais desafios atuais de nossas escolas fazer
que crianas e adolescentes permaneam nelas e consigam concluir os nveis
de ensino em idade adequada, assegurando seus direitos educativos.
Isabel Amorim, jovem participante do projeto Onda: Adolescentes em
Movimento pelos Direitos, desenvolvido pelo Inesc em escolas pblicas de
Braslia, em parceria com a coordenadora do projeto, a educadora Mrcia
Acioli, escreveu o artigo Educao de qualidade: escolas para o encanta-
mento. Elas listam vrias questes relevantes como contribuies para
tornar a escola um espao realmente educador, democrtico, agregador e
inclusivo. Por fim, elas concluem dizendo que a escola no fbrica de mo
de obra [...] no depsito de gente [...] construo permanente da identi-
dade [...] na perspectiva da cidadania [...] cultura, como ato de cultivar.
A professora Maria Margarida Machado mostra o desafio enorme apre-
sentado Educao de Jovens e Adultos (EJA), considerando que o projeto
que apresenta o PNE no altera a lgica equivocada com que essa modalida-
de vista. Ou seja, com focalizao etria, apenas como correo de fluxo ou
atendimento fora da faixa etria, com certificao aligeirada, que no possibi-
lita a verdadeira incluso dos/as estudantes e o vencimento do analfabetismo
funcional. Segundo a autora do artigo, o projeto sequer identifica os sujeitos
demandantes de EJA, uma vez que no h diagnstico.
Uma publicao acerca da educao com a qual se pretende ampliar
o dilogo sobre a importncia de se ter uma educao cujo escopo inclua os
direitos humanos como princpio no poderia deixar de falar sobre a atu-
alidade do pensamento de Paulo Freire no contexto educacional brasileiro,
tema abordado por Pedro Pontual. O contedo deste artigo amplia o nosso
olhar para alm dos muros da escola, para os espaos de convivncia, de
maneira que possamos contribuir para a construo de cidades educadoras.
12 Cleomar Manhas
O Movimento de Educao de Base (MEB), ligado Conferncia Nacio-
nal dos Bispos do Brasil (CNBB), por intermdio do padre Virglio Ucha, nos
traz o relato da metodologia de alfabetizao do MEB, juntando os preceitos
da educao de jovens e adultos com a educao popular e os princpios de
emancipao dos sujeitos de direitos, unindo as pontas de nossa publicao.
Cleomar Manhas
Alpio Casali
15O que educao de qualidade?Alpio Casali
o que educao de qualidade?
alpio Casali
preliminares
O exame do tema qualidade da educao, como o intento da pre-
sente publicao, pretende contribuir para o debate acerca do novo Plano
Nacional de Educao, tendo como parmetro principal a afirmao da edu-
cao de qualidade como um direito universal, especialmente na educao
bsica. A pergunta-ttulo da coletnea (quanto custa universalizar o direito
educao?) de imediato traz pauta a noo de custo. Os leitores mais
acostumados linguagem econmica dominante podero, diante dessa per-
gunta, enquadrar sua ateno imediatamente no tema do financiamento da
educao. No seria a primeira vez em que tal reducionismo empobreceria o
debate sobre temas importantes. Uma das explicaes para tal empobrecimen-
to est relacionada ao esquecimento histrico de que a noo originria de
custo nem econmica, e sim, antes, subjetiva e cultural: refere-se ao esfor-
o empregado para se obter algo. A palavra custo deriva do verbo latino
constare, que tambm a origem etimolgica de constncia, semanticamen-
te associada tambm a perseverana. Todo esforo constante e perseverante
sinal de compromisso com o objetivo que se almeja, pois ningum se esfora
em prol do que no valoriza. J nos encontramos, assim, situados no campo da
qualidade, e o nosso tema j se apresenta associado a compromisso.
De partida temos uma questo, talvez a maior do nosso tema. Os custos
econmicos so facilmente mensurveis; mas os custos intangveis, em que
medida o sero? A noo de valor requer, ento, uma elucidao preliminar.
Convm atentar para a distino entre valores intrnsecos e valores instrumen-
tais (ROLSTON III, 2003). A recente preocupao do empresariado nacional
com a elevao das taxas de escolaridade dos trabalhadores, assim como com
a elevao da qualidade de sua educao, manifesta o seu reconhecimento,
16 Alpio Casali
ainda que tardio, do valor econmico da educao (SCHULTZ, 1971). Mas o
valor econmico da educao, para o empresariado, um valor estritamente
instrumental: trabalhadores mais bem formados aumentam a probabilida-
de de maior produtividade e rendimento dos negcios. De nossa parte, em
contraste, sem menosprezar o valor instrumental da educao, enfatizaremos
sobretudo seu valor intrnseco: um direito universal (do qual decorrem para
ns obrigaes).
O tema da qualidade nos remete questo do valor intrnseco da vida
humana. Isso exige ser elucidado e deve s-lo com qualidade. Enfrentaremos
essa responsabilidade adotando os critrios convencionais do pensamento
crtico, que resumem o principal dos empreendimentos histricos da filoso-
fia, a saber: de buscar uma abordagem radical (de ir raiz histrica do que
se est pensando), uma abordagem universal (de pensar o tema dentro de
seus parmetros maximamente abrangentes e, portanto, universalmente vali-
dveis), uma abordagem rigorosa (coerente, congruente, consequente) e uma
abordagem prtica (que resulte em novas referncias, mais consistentes e mais
crticas, para a ao). Isso significa dar conta da incomum amplitude desse
conceito, em sua profundidade e sua densidade.
Educao vital: difcil a sobrevivncia e impossvel o desenvolvimento
da vida sem educao. a educao que garante uma certa qualidade vida. A
recproca , evidentemente, tambm verdadeira: qualidade de vida tende a con-
ferir qualidade educao. Essa pista nos permite elucidar uma boa parte de
nossa questo: a explicitao das qualidades possveis da vida pode nos dar um
bom rol de indicadores de qualidade da educao. No obstante, sabemos, uma
parte do que possamos considerar qualidade de vida no cabe inteiramente em
indicadores objetivos e materiais: intangvel. Qualidade da educao tam-
bm: em parte intangvel. No se mede, no se controla; entretanto, factvel.
No se deve confundir o factvel com o controlvel. H muitas experincias na
vida que so factveis, mesmo no sendo mensurveis, tangveis, controlveis.
A intangibilidade da qualidade traz o risco de esvaziar o discurso acerca da
qualidade, alegando-se a impossibilidade de resolver definitivamente a ques-
to. fato: impossvel resolver definitivamente essa questo, porque ela
interminvel. Mas assim tambm so a cincia, a arte, a sabedoria, o amor, o
desenvolvimento dos talentos etc. e nem por isso deixamos de almej-los.
17O que educao de qualidade?Alpio Casali
o conceito de qualidade
Falar de qualidade implica o risco de se entrar numa retrica exacer-
bada, pelo fato de que o melhor dela nunca pode ser dito de modo direto e
objetivo: ela costuma estar justamente no que mais escapa da objetividade e
da materialidade. Sua intangibilidade exige contornos, linguagem metafrica,
sinuosidades e insinuaes do discurso. No limite, a essncia da qualidade
, alm de intangvel, indizvel; e isso tambm explica por que o tema no
se esgota jamais. Cada formulao apresentada restar insatisfatria, e este
presente texto que agora escrevo tampouco escapar dessa contingncia.
Entretanto, seguiremos pronunciando essa palavra, como seguiremos pro-
nunciando a existncia humana, a arte, o desejo, sem que seja possvel seu
esgotamento semntico.
A longa e larga tradio filosfica nos ensina que seria equivocado
afirmar a existncia de conflito entre quantidade e qualidade. Ao contrrio,
ambas dimenses se implicam reciprocamente, constituindo uma distoro
ontolgica a sua separao. O senso comum, na cultura moderna (cultura
do mercado, da acumulao material, do hiperconsumo), tende a sobrevalo-
rizar a quantidade. O filsofo Kant foi irnico diante dessa cultura, quando
afirmou: D a um homem tudo o que ele deseja, e ele, apesar disso, naquele
mesmo momento, sentir que esse tudo no tudo. Nossa pergunta : o que
h alm de toda a quantidade? Temos a noo clara de que quantidade refere-
-se extenso e a qualidade refere-se ao modo. E mais: no h qualidade sem
quantidade, nem vice-versa. Cotidianamente lidamos com ambos os concei-
tos e, quase sempre, de modo articulado: de tudo o que bom (qualidade)
desejamos mais (quantidade) e melhor (qualidade). No campo da educao,
particularmente, ambos os conceitos so indissociveis, mas a quantidade ,
ela prpria, sempre, parte da substncia da qualidade, porque a educao
um direito universal, que deve ser estendido (extenso = quantidade) a to-
dos. O filsofo italiano Antonio Gramsci demarcou com notvel clareza essa
questo: Dado que no pode existir quantidade sem qualidade e qualidade
sem quantidade (economia sem cultura, atividade prtica sem inteligncia e
vice-versa), toda contraposio dos dois termos , racionalmente, um contras-
senso (GRAMSCI, 1978, p. 50). Gramsci concluiu:
18 Alpio Casali
Afirmar, portanto, que se quer trabalhar sobre a quantidade, que se quer
desenvolver o aspecto corpreo do real, no significa que se pretenda
esquecer a qualidade, mas, ao contrrio, que se deseja colocar o pro-
blema qualitativo da maneira mais concreta e realista, isto , deseja-se
desenvolver a qualidade pelo nico modo no qual tal desenvolvimento
controlvel e mensurvel (GRAMSCI, 1978, p. 50).
Todo educador tem na cabea algumas referncias pelas quais pode afir-
mar o que seja uma boa educao e uma m educao. As opinies podem
variar e se contrapor, mas a possibilidade dessa distino existe. A distino
diz respeito a qualidades: qualidade boa, qualidade m. As qualidades dos
seres, afirmava Aristteles, so categorias objetivas pelas quais os identifica-
mos, independentemente do valor que essas identificaes signifiquem para
ns. Se isso mais fcil ser afirmado a respeito das coisas da natureza (o cu
azul, esta paisagem plana etc.), porque podem nos ser indiferentes, o mesmo
no ocorre com os fatos da cultura, da sociedade, da histria. Estes costumam
dizer respeito aos nossos interesses mais fundamentais (a sobrevivncia, a
convivncia, a segurana, o bem-estar, o prazer): aquele lder um tirano, a
democracia est sendo ameaada, falta trabalho, essa religio est enganando
as pessoas humildes, h insegurana nas ruas, a escola no est funcionando
etc. Por outro lado, h escolas que podem funcionar bem e ainda assim no
ser consideradas de boa qualidade para ns. Por exemplo, as escolas nazistas
(ou as organizaes da juventude nazista) funcionavam muito bem dentro
de seus objetivos, mas seus processos e resultados para ns hoje so inacei-
tveis. Isso porque temos como valores sociais, culturais e polticos o Estado
de direito, a democracia, o respeito dignidade inerente a todo ser humano,
a equidade, o valor inviolvel da liberdade, entre outros.
As qualidades dos fenmenos sociais, culturais e polticos so o resul-
tado de construes histricas. Por exemplo: reconhecemos, a posteriori,
os grandes valores que mobilizaram o pensamento crtico e as lutas sociais,
culturais e polticas da chamada Modernidade, desde o sculo XVI, aproxi-
madamente, na Europa. Foram eles: a liberdade (hoje a reconhecemos como
reduzida ao liberalismo), a igualdade (mas hoje a reconhecemos como inca-
paz de ter percebido a equidade), a individualidade (que hoje reconhecemos
como reduzida ao individualismo), a democracia (que hoje percebemos como
19O que educao de qualidade?Alpio Casali
era meramente formal) e a propriedade (tida na poca como direito natu-
ral, mas que hoje reconhecemos como uma construo histrica reduzida ao
direito de propriedade privada, apenas). Os dispositivos predominantes nos
processos educacionais encarregados de fazerem a transmisso desses valores
eram a vigilncia e a punio (FOUCAULT, 1987).
O desenvolvimento histrico, em todas as suas dinmicas (econmica, so-
cial, cultural, poltica), produziu, desde ento, ao longo dos aproximadamente
cinco sculos da economia de mercado, das polticas liberais, da sociedade bur-
guesa, da cultura moderna, novos problemas e novas demandas de soluo. A
conscincia desses problemas e a formulao de novas solues se fazem pela
identificao de novos valores, direitos e obrigaes emergentes (novas quali-
dades da vida social), que podem ser arrolados aproximadamente em termos
de: (1) diversidade biolgica e sociocultural; (2) dignidade da vida em todas
as suas formas e manifestaes; (3) liberdade, responsabilidade, consequncia;
(4) justia e equidade: direito pleno da vida para todos; (5) igualdade, diferen-
a, diversidade; (6) solidariedade intra e intergneros, idades, etnias, povos,
grupos de identidade etc.; (7) intersubjetividade, interculturalidade, interna-
cionalidade; (8) direito e funo social da propriedade; (9) democracia real,
representativa e participativa: cidadania plena para todos; (10) sustentabilida-
de: direito das geraes presentes e futuras vida plena.
Afirmamos que, nos processos educacionais atuais, o principal dis-
positivo apto para fazer a transmisso dessas qualidades sociais, de modo
construtivo, recriativo e efetivo, superando-se os modos modernos da vi-
gilncia e punio, deve ser a afirmao da dignidade pessoal (que gera o
sentimento de honra, que cumpre e cobra respeito) e da conscincia moral e
cognitiva acerca das responsabilidades comuns.
os equvocos e os ganhos da Qualidade total
Sustentar o projeto de uma educao de qualidade, hoje, exige uma
preliminar desconstruo do mau uso recente desse conceito, que se pro-
cessou no movimento da chamada Qualidade Total, cujo epicentro foi a
economia japonesa, principalmente a partir da dcada de 1970, que se disse-
minou pelo mundo corporativo com notvel rapidez e abrangncia, chegando
20 Alpio Casali
posteriormente educao. O foco originrio era o de uma completa reen-
genharia dos processos de produo, que seriam doravante flexibilizados. O
primeiro requerimento para a estratgia funcionar era o da qualidade dos
recursos humanos. A chave era a capacitao da fora de trabalho para a
aquisio de um certo elenco de competncias cognitivas e operativas (en-
tendidas como capacidades tcnicas focadas), porm flexveis e adaptveis.
Os processos produtivos, monitorados minuciosamente, resultariam em pro-
dutos e servios de excelncia. A qualidade poderia ser considerada total,
assim sem escrpulos semnticos, porque, supostamente, uma melhor pro-
dutividade geraria mais competitividade, permitindo mais rentabilidade. O
novo clima organizacional garantiria aos trabalhadores, ademais, o prazer
de trabalhar.
Convenhamos que o argumento continha fortes apelos de razoabilida-
de, quando tomado em sua generalidade abstrata. Afinal, a ideia filosfica de
busca da perfeio, da excelncia, mais do que uma ideia apenas metafsica,
sempre foi um imperativo tico inquestionvel. claro que faltou ao modelo
japons colocar a qualidade numa perspectiva da universalidade efetiva. Mas
isso jamais poderia ter sido postulado pelo mercado, como sabemos histo-
ricamente: aquele era um processo de interesse de uma classe. O agravante
ideolgico da retrica da qualidade estava no desvio da ateno dos estrutu-
ralmente desempregados e miserveis da humanidade para, em troca, se focar
nos clientes e consumidores. Era uma questo de interesses, e no de direitos.
A era da qualidade apresentou-se com uma retrica ideologicamente
to exaltada como a de Francis Fukuyama ao proclamar o fim da histria e o
ltimo homem (1992). Afirmava-se que, por meio dela, os conflitos decorren-
tes do acirramento da competitividade seriam harmonicamente resolvidos
pela soluo da Qualidade Total impressa nos processos e produtos: soluo
limpa para a guerra dos mercados, que impulsionaria, no limite, uma nova
etapa no desenvolvimento civilizatrio. A retrica do conceito ia mais longe:
afirmava, conclusivamente, que o resultado dessa reengenharia econmica
seria o alcance da desejada qualidade de vida, naturalmente orientada para
o mais-consumo, gerenciada pelo marketing. Por um misto de ingenuidade
e cinismo, supunha-se que todos os seres humanos pudessem vir a participar
desse processo. Os programas de Qualidade Total atribuam-se a si mesmos
21O que educao de qualidade?Alpio Casali
ares messinicos. No exagero falar que estivemos diante de um gigantesco
sequestro do conceito de qualidade (ASSMANN, 1996, p. 160 e 178).
No tardaram a surgir arautos da qualidade total no campo da edu-
cao. Sob um discurso irrecusvel no seu aspecto formal e abstrato, muitos
educadores (e no menos, claro, empresrios da educao) passaram a defen-
der tambm uma reengenharia da escola. Pensando a educao a partir da
mesma lgica do mercado, sustentaram o mote da pedagogia da qualidade
total (RAMOS, 1994). Um marco histrico desse movimento no Brasil foi o
seminrio promovido pela Confederao Nacional da Indstria (CNI) e pelo
Instituto Euvaldo Lodi (IEL), em maro de 1992, intitulado Construindo a Pe-
dagogia da Qualidade. Encontro Nacional Indstria-Universidade. A partir
desse seminrio, o referido instituto lanou o Programa Educao pela Qua-
lidade (PEQ), formalizado por um Protocolo de Ao Institucional assinado
por cerca de 40 instituies, entre elas nada menos do que 14 ministrios, a
Secretaria de Desenvolvimento Regional da Presidncia da Repblica, o Sesi,
o Senai, a Sudene, a Sudam, a Suframa e a Finep, alm de vrias instituies
pblicas e entidades, como o Crub, o Sebrae e, inclusive, o Unicef e a Unesco
(INSTITUTO EUVALDO LODI, 2009:45). Ou seja: era um programa com
patrocnios oficiais e de relevante peso econmico e poltico!
evidente a linha de continuidade existente entre esse programa e a
clssica Teoria do Capital Humano, dos anos 1960 (SCHULTZ, 1971). Para
a CNI e o IEL, igualmente, o que sempre esteve (e est) em questo o valor
estratgico (instrumental) da qualidade como funo de mais competitividade
e, em consequncia, de mais rentabilidade.
No obstante todas as limitaes e vieses ideolgicos dos projetos de
Qualidade Total, imperativo reconhecer que o movimento colaborou para
alguns avanos sociais. Quando menos, por exemplo, ajudou a pautar a edu-
cao bsica como prioridade das polticas pblicas. No foram poucos os
lderes empresariais que, ainda que por preocupao com o gargalo da falta
de mo de obra qualificada para garantir o ritmo de crescimento de seus
negcios, vieram a pblico para cobrar dos governos polticas educacionais
mais efetivas e mais universais. No que se refere ao nvel superior de capaci-
tao, as grandes empresas resolveram a demanda do seu modo: instituram
suas prprias universidades corporativas. Tudo isso representou, sem dvida,
22 Alpio Casali
mais efetividade do direito ao conhecimento. Na medida em que as crticas
ao conceito de qualidade total se generalizavam, as organizaes passaram a
adotar outro conceito, menos arrogante: o da busca da excelncia. Alm des-
ses aspectos, uma outra marca desse empreendimento em prol da qualidade
permaneceu nos mercados, naquelas corporaes que, diante da agudez da
crise ambiental e em ambiente de hipercompetitividade, passaram a investir
em um padro de conduta empresarial mais confivel, no raro chama-
do de tica, supostamente mais comprometido com um desenvolvimento
sustentvel. A crise no mundo corporativo nos anos 2000 imps uma nova
agenda ambiental, social e cultural, a qual, desta vez, se no deixou de ser van-
tajosa para as prprias corporaes, no tem deixado de atenuar malefcios
para os trabalhadores, fornecedores, clientes, consumidores, as comunidades
ao redor e a sociedade em geral.
O movimento da Qualidade Total logrou imprimir alguns referenciais
de competncias (qualidades) pelos quais os trabalhadores passaram a ser
efetivamente avaliados em seus processos de recrutamento e admisso, as-
sim como posteriormente de ascenso em suas hierarquias profissionais. Por
isso, ainda que com o vis que registramos, a escola no pode desconhecer
esses requerimentos de competncias estabelecidos pelo mercado, sob pena
de comprometer um dos resultados indispensveis do processo escolar, que
preparar o indivduo para o mundo do trabalho, o que implica no mnimo
no ignorar as demandas do mercado de trabalho, at para poder posicionar-
-se criticamente diante delas.
um marco histrico preliminar: a declarao universal dos direitos humanos, da onu (1948)
A construo de parmetros para o que hoje podemos chamar de qua-
lidade da educao tem no ano de 1948, data de assinatura da Declarao
Universal dos Direitos Humanos, da Organizao das Naes Unidas (ONU),
um marco histrico.
A Declarao representou uma tomada de conscincia civilizatria das
naes do mundo, no sentido de se evitar, da para a frente, a repetio das
experincias trgicas anteriores do nazi-fascismo e de duas guerras mundiais.
23O que educao de qualidade?Alpio Casali
Seu valor mais importante, porm, ultrapassa esse sentido de arrependimento
e de preveno. Trata-se de um documento cujo vigor est no valor universal
de suas afirmaes, o que o mantm atual e positivamente direcionado para o
futuro. Sua lgica a do desenvolvimento da conscincia e da responsabilida-
de da humanidade diante dos direitos humanos. Seus interlocutores primrios
so Estados e Governos, mas no se excluem as instituies (religies, fam-
lias, escolas etc.) e organizaes (empresariais e da sociedade civil) do rol de
seus destinatrios. Neste mesmo sentido, a Declarao Universal dos Direi-
tos Humanos uma convocao feita tambm escola e aos educadores e
representa um conjunto de referncias indispensveis a isso que chamamos
educao de qualidade. O seu artigo 1 faz a marcao fundamental de nosso
tema: Todos os seres humanos nascem livres e iguais, em dignidade e direi-
tos. So dotados de razo e conscincia e devem comportar-se fraternalmente
uns com os outros (ONU, 1948).
Todos os demais itens e temas da Declarao podem ser considerados
derivados desse princpio fundamental de todos os direitos: a afirmao da
liberdade, igualdade, dignidade, razo, conscincia e da fraternidade. Uma
educao que se paute por esses conceitos tem as condies preliminares para
garantir o principal de uma educao de qualidade. Mas isso requer dar novo
passo de elucidao nessa trajetria da construo histrica do conceito.
o relatrio delors (1996)
No meio da dcada que precedia o novo milnio, a Unesco constituiu
uma comisso internacional, coordenada por Jacques Delors, com o fim de
projetar referncias para a educao no sculo XXI. O relatrio final dessa
comisso, depois de descortinar os horizontes da educao no sculo XXI
(a complexidade da sociedade mundial, a democracia como imperativo po-
ltico, o desenvolvimento humano como ltimo fim), detm-se na exposio
dos princpios da educao no novo milnio: os quatro pilares da educao e
a exigncia e o direito de uma educao ao longo de toda a vida.
A nomeao de quatro pilares uma insistncia na metfora dos fun-
damentos, de uso universal na literatura pedaggica, epistemolgica e tica:
aprender a conhecer, a fazer, a viver juntos, a ser (DELORS, 2006:89-102).
24 Alpio Casali
O grande passo conceitual dado pelo Relatrio Delors, no que se refe-
re ao nosso tema, est no fato de ter superado os reducionismos das vises
cognitivista, utilitarista, sociopsicologista e moralista da educao, incorpo-
rando o melhor dessas abordagens numa nova perspectiva de integralidade e
complexidade.
O relatrio enftico ao identificar uma das mais decisivas vulnerabili-
dades da qualidade da educao no sculo XXI: a qualidade dos professores.
Identificando o descompasso entre o crescimento da demanda de professores
e a falta de financiamento, de infraestrutura fsica e de meios pedaggicos,
reconhece que estamos diante de uma profunda degradao das condies
de trabalho dos professores (Ibid.:158) e que a soluo do problema passa
pela priorizao da melhoria da sua qualidade (Ibid.:157).
Esse documento, lamentavelmente, no foi valorizado como merecia
por muitos governos: no foi tomado como referncia forte para polticas
pblicas, inclusive por ter sido, antes, atropelado pela literatura pedaggica
das competncias, como desdobramento do movimento da Qualidade Total.
as metas do milnio (2000) e o pacto global (2002), da onu
Outro passo importante na configurao histrica do conceito con-
temporneo de qualidade foi a Cpula dos Chefes de Estado e de Governo,
convocada pela ONU, em 2000, com forte apelo do carisma de seu secretrio-
-geral, o ganense Kofi Annan, que identificou os pontos mais vulnerveis do
processo de desenvolvimento mundial presente e futuro: a pobreza e as desi-
gualdades. Manejando o conceito de desenvolvimento sustentvel e centrada
nos direitos humanos, a Cpula definiu os oito Objetivos do Milnio (2000):
1. Erradicar a pobreza extrema e a fome; 2. Alcanar o ensino fundamental
universal; 3. Promover a igualdade entre os gneros e a autonomia da mulher;
4. Reduzir a mortalidade infantil; 5. Melhorar a sade materna; 6. Combater
o HIV/Aids, a malria e outras doenas; 7. Garantir a sustentabilidade do
meio ambiente; 8. Criar uma associao mundial para o desenvolvimento
(ONU, 2000). Os governos que se comprometessem com uma educao de
qualidade passaram a dispor de novas referncias como fundamentos para
suas polticas.
25O que educao de qualidade?Alpio Casali
Parecia que a ONU tinha suficiente clareza do quanto as polticas pbli-
cas encontravam-se fragilizadas diante do crescimento exponencial do poder
econmico e poltico das grandes corporaes de mercado. Por isso, seu
secretrio-geral, Kofi Annan, convocou pessoalmente, em seguida, a comuni-
dade empresarial internacional para a adoo, em suas prticas de negcios,
de valores fundamentais e internacionalmente aceitveis nas reas de direi-
tos humanos, relaes de trabalho, meio ambiente e combate corrupo,
expressos nos 10 princpios do chamado Pacto Global (ONU, 2002). Essa
iniciativa foi considerada como uma importante inflexo no posicionamento
da ONU e de seus organismos frente aos novos desafios do desenvolvimen-
to. O impacto desejado dessa inflexo sobre as polticas pblicas e sobre o
mercado era evidente e retraava um sentido ainda mais concreto para uma
educao de qualidade.
a unesco e a educao de qualidade
Em 2007, a Unesco, em sua diviso do Projeto Regional de Educao
para a Amrica Latina e o Caribe (Prelac), em consonncia com o que vi-
nha sendo conceituado nos Objetivos do Milnio (2000) e no Pacto Global
(2002), elaborou um vigoroso documento de apoio Segunda Reunio In-
tergovernamental de Ministros de Educao da Amrica Latina e Caribe,
realizada em Buenos Aires, em maro de 2007, tendo como perspectiva a
questo da qualidade da educao.
O documento estabelece, inicialmente, algumas premissas para uma
educao de qualidade para todos ao longo da vida, na regio: que o cres-
cimento econmico seja um fator-chave que afete o bem-estar das pessoas;
que se reduzam as desigualdades sociais e se promova a mobilidade social;
que se combata a discriminao cultural, a excluso social e se previnam a
violncia e a corrupo; que se promova a maior coeso social e o fortaleci-
mento dos valores democrticos; que se ampliem as opes para se viver com
dignidade, valorizando-se a diversidade e respeitando-se os direitos humanos
(UNESCO, OREALC, 2008:11).
Nos itens subsequentes, o documento demarca algumas das condies
para essa educao de qualidade para todos ao longo da vida, na regio.
26 Alpio Casali
Comea com ateno sobre os indivduos mais vulnerveis, que se encontram
em situao de desigualdade no que se refere ao acesso, continuidade dos
estudos e aos resultados do aprendizado. Como se pode observar, trata-se de
uma forte guinada ideolgica com relao ao anterior foco sobre o incremento
da qualidade para os indivduos j escolarizados, nos projetos da qualidade
total. O documento destaca as novas dimenses em que o tema da qualida-
de da educao deve ser posto: respeito aos direitos, relevncia, pertinncia,
equidade, eficincia e eficcia (Ibid.: 12). As condies e os critrios para tal
qualidade vo sendo delineados e explicitados, implicando, entre outros: (a)
a extenso da educao obrigatria; (b) a gratuidade, de forma a abranger
tambm os transportes e a alimentao; (c) a no discriminao por origem
ou condio, ao mesmo tempo considerando-se os direitos diferenciados e
garantindo-se os direitos para os indivduos e os grupos em situao de mais
vulnerabilidade; (d) a seleo dos processos de aprendizagem mais significati-
vos para os indivduos e para os grupos sociais e culturais; (e) a pertinncia do
currculo s diferentes capacidades e aos interesses dos indivduos, para que
se construam como sujeitos, desenvolvendo sua autonomia, seu autogoverno
e sua prpria identidade; (f) o desenvolvimento do currculo, de modo a se
alcanar o equilbrio entre o mundial e o local, o universal e o singular, as de-
mandas do mercado de trabalho e as demandas de desenvolvimento pessoal,
o comum e o diverso, o disciplinar e o interdisciplinar (Ibid.: 11-14).
A valorizao dos docentes, neste processo, relacionada garantia
do direito educao, aos fatores decisivos que explicam os resultados de
aprendizagens dos alunos (Ibid.: 14) e possibilidade de se transformar a cul-
tura da instituio escolar (Ibid.: 15). Para isso, requerido dos docentes que
apresentem as competncias profissionais e ticas adequadas, o que requer
programas macios de capacitao em servio (Ibid.). Para isso, igualmente,
so decisivos trs fatores: um sistema articulado de formao e desenvolvimen-
to profissional permanente; um sistema transparente e motivador de carreira
profissional e avaliao docente; um sistema adequado de condies trabalhis-
tas e de bem-estar (Ibid.). Nada disso se consegue sem polticas pblicas de
Estado, integrais, de carter sistmico e intersetoriais (Ibid.).
A questo do financiamento da educao culmina o documento, em
item especial, no qual o Estado afirmado como o fiador do direito de
27O que educao de qualidade?Alpio Casali
todos a uma educao de qualidade (Ibid.: 15), o que requer, mediante acor-
dos sociais, o incremento do financiamento pblico da educao, a melhoria na
eficincia do sistema e a gesto de tais recursos pelo enfoque dos direitos e dos
marcos regulatrios, de forma que no prejudiquem a flexibilidade (Ibid.: 16).
a organizao mundial da sade (oms) e a qualidade de vida
O sculo XX trouxe Histria importantes xitos da cincia e da tecno-
logia, mas igualmente exps uma srie de sintomas da crise civilizacional em
que a humanidade se meteu. Sigmund Freud no havia visto ainda a ascenso
do nazismo, nem os horrores da Segunda Guerra Mundial, mas j detectara,
em 1929, em sua magistral obra, o mal-estar na civilizao. A partir dessa
condio, uma parte do funcionamento essencial dos processos vitais poderia
vir a ser severamente comprometida, a depender dos rumos a serem tomados
pela chamada civilizao. Com efeito, nas ltimas dcadas do sculo XX, a
qualidade da vida humana em geral, no apenas da educao, entrou em es-
tgio de alerta. A OMS passou a associar a preocupao com a qualidade de
vida com o movimento dentro das cincias humanas e biolgicas no sentido
de valorizar parmetros mais amplos que o controle de sintomas, a diminuio
da mortalidade ou o aumento da expectativa de vida (ONU / OMS, 2010).
Buscando um instrumento que permitisse uma avaliao da qualidade de
vida o mais vlida possvel, internacionalmente, a OMS chegou a um conjunto
de 100 itens, classificados em seis domnios e em 24 temas, assim distribudos:
domnio i Fsico:
1. Dor e desconforto; 2. Energia e fadiga; 3. Sono e repouso.
domnio ii psicolgico:
4. Sentimentos positivos; 5. Pensar, aprender, memria e concentrao;
6. Autoestima; 7. Imagem corporal e aparncia; 8. Sentimentos negativos.
domnio iii nvel de independncia:
9. Mobilidade; 10. Atividades da vida cotidiana; 11. Dependncia de
medicao ou de tratamentos; 12. Capacidade de trabalho.
28 Alpio Casali
domnio iv relaes sociais:
13. Relaes pessoais; 14. Suporte (apoio) social; 15. Atividade sexual.
domnio v ambiente:
16. Segurana fsica e proteo; 17. Ambiente no lar; 18. Recursos
financeiros; 19. Cuidados de sade e sociais: disponibilidade e quali-
dade; 20. Oportunidades de adquirir novas informaes e habilidades;
21. Participao em e oportunidades de recreao/lazer; 22. Ambiente
fsico: (poluio/rudo/trnsito/clima); 23. Transporte.
domnio vi aspectos espirituais/religio/crenas pessoais:
24. Espiritualidade/religio/crenas pessoais (ONU / OMS, 2011).
flagrante a abrangncia dos temas. Pode parecer impertinente rela-
cionar a qualidade da educao com a qualidade da sade. Mas o conceito
convencional de sade limitado ao biolgico h dcadas tambm j no se
sustenta, e as qualidades descritas nos Domnios II e IV so indicadores dessa
mudana. Por isso tambm convm a todo/a educador/a observar as suti-
lezas de algumas das condies de qualidade de vida definidas em diversos
domnios tais como: dor e desconforto, energia e fadiga, sentimentos
positivos e negativos, relaes pessoais, suporte (apoio) social, am-
biente no lar, espiritualidade/religio/crenas pessoais e projet-las sobre
o ambiente escolar, se quiser ter referncias concretas, corporais e saudveis
para o que se quer chamar de educao de qualidade.
o ndice de desenvolvimento humano e a Felicidade interna bruta
Mas a construo de referncias internacionais para a qualidade de
vida, com consequncias sobre o conceito de qualidade na educao, veio
sendo ainda mais refinada historicamente e chegou aos conceitos do ndice
de Desenvolvimento Humano (IDH) e do indicador de Felicidade Interna
Bruta (FIB).
Idealizado pelo economista paquistans Mahbub ul Haq, em colabora-
o com o economista indiano Amartya Sen, e publicado pela primeira vez
29O que educao de qualidade?Alpio Casali
em 1990, o IDH, a cargo do Programa das Naes Unidas para o Desenvol-
vimento (Pnud), teve como finalidade oferecer um contraponto ao indicador
estritamente econmico do Produto Interno Bruto (PIB). O IDH leva em conta
o PIB associado longevidade (esperana de vida ao nascer) da populao
e educao (alfabetizao e taxa de matrcula) (ONU / PNUD, 1990).
Por sua vez, o estranho conceito de Felicidade Interna Bruta (FIB) teve
origem no Reino de Buto, pequeno pas no meio do Himalaia, em 1972.
Trata-se de uma considerao nova e inteiramente no convencional acerca do
que seja a completa riqueza de uma sociedade, para alm dos indicadores tra-
dicionais do desenvolvimento econmico: os cuidados com o meio ambiente
e a qualidade de vida das pessoas nos seus aspectos culturais, estticos, psi-
cossociais, espirituais. A Organizao para Cooperao e Desenvolvimento
Econmico (OCDE), no seu Frum Mundial de Istambul, em 2007, adotou
esse conceito (FIB) com a expectativa de que ele venha a servir de referncia
para polticas pblicas. A V Conferncia Internacional sobre a FIB aconteceu
em Foz do Iguau (PR), Brasil, em 2009. As nove dimenses do conceito de FIB
so assim definidas: 1. Bem-estar psicolgico; 2. Sade; 3. Bom uso do tempo;
4. Vitalidade comunitria; 5. Educao; 6. Cultura; 7. Meio ambiente; 8. Go-
vernana; 9. Padro de vida (LUSTOSA e MELO, 2010:37-38). Os educadores
no tm o que estranhar no conceito de felicidade, nem nessas suas dimenses,
uma vez que h tempos essas referncias vm fazendo parte do discurso pe-
daggico, mas certamente encontram agora no ndice de FIB um importante
aliado para as reivindicaes que apresentam s polticas pblicas.
os dispositivos de avaliao de polticas pblicas tomados como indicadores de qualidade
O desenvolvimento de culturas regulatrias nas polticas sociais, no
obstante a desregulao generalizada que se observou em processo nas polti-
cas econmicas desde 1989 (Consenso de Washington), produziu nas ltimas
duas dcadas alguns importantes avanos, a despeito de seus maus usos: um
conjunto de dispositivos de avaliao de resultados da educao escolar. A
retrica desses dispositivos de avaliao internacionais e nacionais (Pisa,
Enem, Saeb, Encceja, Enade etc.) associa resultados cognitivos e instrucionais
30 Alpio Casali
(conhecimentos de lngua, matemtica, cincias, habilidades de leitura, es-
crita, conhecimentos gerais e especficos) qualidade. No se trata de uma
impropriedade, mas tampouco se pode dizer que toda a qualidade possvel
(e, portanto, tica e politicamente obrigatria) da educao esteja contida
nesse limitado rol de conhecimentos, competncias e habilidades apurados e
medidos por esses dispositivos. No obstante, tais indicadores cumprem uma
importante funo de referncia acerca do grau de desenvolvimento da qua-
lidade da educao. Os dados do Sistema de Avaliao da Educao Bsica
(Saeb), por exemplo, vm demonstrando que a qualidade nas escolas privadas
no Brasil melhor do que a observada nas escolas pblicas, mas ainda insa-
tisfatria quando comparada com os dados do Pisa acerca da qualidade das
escolas nos pases mais desenvolvidos.
Mais complexo e representativo o ndice de Desenvolvimento da Edu-
cao Bsica (Ideb), institudo pelo Decreto n 6094/07, o qual, em seu art. 3,
estabelece que o Ideb ser um indicador de qualidade da educao bsica, cal-
culado e divulgado a partir dos dados sobre rendimento escolar, combinados
com o desempenho dos alunos, constantes do censo escolar e do Saeb, com-
posto pela Avaliao Nacional da Educao Bsica (Aneb) e pela Avaliao
Nacional do Rendimento Escolar (Prova Brasil). De fato, ao reunir num s
indicador dois importantes conceitos relacionados qualidade da educao
(fluxo de aprovao escolar entre as sries/anos e mdias de desempenho nas
avaliaes do Saeb e da Prova Brasil), o Ideb permite diagnosticar e traar
metas de desenvolvimento para os sistemas. Apesar de manifestar apenas uma
parte do que podemos caracterizar como indicadores de qualidade da educa-
o, o Ideb representa um notvel avano nas polticas pblicas em direo a
uma educao de qualidade.
o conceito de qualidade na Conae-2010 e no projeto de lei n 8.035 plano nacional de educao (2010)
A ideia e o ideal da qualidade da educao no documento final da
Conferncia Nacional de Educao (Conae) de 2010 no esto presentes
explicitamente apenas nos ttulos dos dois primeiros dos seis eixos que
constituem o documento (Eixo I Papel do Estado na Garantia do Direito
31O que educao de qualidade?Alpio Casali
Educao de Qualidade: Organizao e Regulao da Educao Nacio-
nal; Eixo II Qualidade da Educao, Gesto Democrtica e Avaliao).
Um levantamento quantitativo da ocorrncia do vocbulo qualidade ao
longo do documento tambm um relevante indicador, ainda que limi-
tado, da intensa preocupao dos participantes da Conae com relao
qualidade da educao: o vocbulo qualidade , entre todos os substan-
tivos utilizados pelos redatores do documento, o que aparece em quinto
lugar, precedido apenas pelos vocbulos mais genricos de educao,
nacional, ensino, formao (MURTA, 2011). Ele pode ser conside-
rado, assim, como o termo que adjetiva estes quatro elementos bsicos: o
ensino e a formao na educao nacional.
Quando os tcnicos do governo, no Ministrio da Educao, maneja-
ram o documento final da Conae-2010 para produzir o Projeto de Lei (PL)
n 8.035, publicado em 20/12/10, menosprezaram flagrantemente o valor do
elemento qualidade: no elenco de todos os substantivos presentes no tex-
to deste PL, o vocbulo qualidade cai para o 41 lugar (MURTA, 2011).
preciso levar em conta que o PL do PNE consiste fundamentalmente de um
conjunto de metas, precedidas de diretrizes e seguidas de correspondentes es-
tratgias. Ou seja, um documento tecnicamente focado em aes concretas,
e nem poderia deixar de ser assim. Entretanto, no deixa de ser significativo
que tais aes tenham sido escassamente adjetivadas do ponto de vista da
qualidade desejada como seu resultado.
Qualidade da educao: uma construo histrica
Percebemos o carter histrico da ideia de qualidade que os setores
mais progressistas da educao vm delineando no Brasil. Trata-se de um pro-
cesso paralelo e similar ao da histria do direito e, em boa parte, coincidente.
O exame da histria da educao permite ver como as convices acerca do
que seja qualidade da educao vm mudando, alterando-se, com avanos e
retrocessos, no raro recuperando-se mais frente o que equivocadamente
foi descartado tempos atrs. O processo de definio e de efetivao da qua-
lidade da educao no linear, nem se desdobra harmoniosamente, como se
fosse resultado de um processo evolutivo natural.
32 Alpio Casali
Com efeito, podemos discernir este tema, na histria da educao, tal
como procede Enrique Dussel (2007:149) com relao histria dos direitos:
a) qualidades que so perenes; b) qualidades que so novas; c) qualidades
que so descartadas como prprias de uma poca passada. Tradicionalmente,
no so poucos os educadores que, cada um a seu modo, esforam-se para
demonstrar um certo rol de qualidades tidas como naturais e inerentes
a toda a educao como por um princpio universal. Essa hiptese alimenta
fartamente a literatura, mas historicamente no a principal responsvel pelo
efetivo desenvolvimento das qualidades da educao. O que efetivamente faz
diferena na histria a emergncia prtica de novas qualidades. Emergncia
esta que pronunciada, em primeiro lugar, negativamente, por meio de diver-
sas linguagens, pelos prprios educandos que denunciam o sistema escolar, os
mtodos pedaggicos e o currculo como descabidos e insuficientes para rea-
lizar sua necessidade e seu desejo de aprender de um modo satisfatrio vista
das demandas da vida econmica, social, cultural e poltica que enfrentam
cotidianamente ou enfrentaro. Quando essas insuficincias so percebidas,
os educandos manifestam-se com rebeldia, indisciplina, repetncia, evaso,
porque sofrem no corpo a dor de estar fora do lugar, de fazer aquilo em
que no acreditam, de adiar inutilmente seus desejos. Apresentam-se como
vtimas de um sistema que os pretende aprisionar. Eventualmente, quando de
forma excepcional realizam aquilo que Paulo Freire chamou de conscienti-
zao, os educandos elaboram discursos contundentes de denncia contra
a escola. Mas quando isso ocorre, no raro so recebidos pelos educadores
como impertinentes, e so perdidas, assim, oportunidades histricas pre-
ciosas de desenvolvimento da qualidade da educao. Quando, ao contrrio,
a comunidade educativa percebe esse clamor e o reconhece como um clamor
por novos direitos, com os quais a prpria comunidade de educadores se
identifica, a qualidade da educao tem chances de avanar. Somente a par-
tir da podem se organizar movimentos sociais em prol desses direitos no
cumpridos.
Realizar a qualidade da educao apenas para poucos um flagrante
privilgio quando isso se faz mediante a excluso de outros sujeitos do direito
mesma qualidade. A ressalva importante porque, at certo ponto, justi-
ficvel a qualidade para poucos em carter laboratorial de experimentao,
33O que educao de qualidade?Alpio Casali
para inovao, como foi o caso da criao dos Centros Integrados de Educa-
o Pblica (Cieps), no Rio de Janeiro, e dos Centros de Educao Unificados
(CEUs), em So Paulo. At porque, em algum momento, as condies da qua-
lidade que se deseja devem comear a se materializar. Entretanto, uma vez
demarcada e estabelecida como exitosa uma nova reconfigurao com mais
qualidade do espao escolar e do currculo, ela se torna um novo direito a ser
reivindicado para ser acessvel a todos. Aqui a questo da qualidade mostra-
-se implicada na temporalidade (e, por isso, histrica). Existe um tempo
eticamente ideal, que aquele mnimo necessrio para que as experincias se
consolidem e para que o novo direito social se torne efetivo. Extrapolar essa
temporalidade caracteriza impedimento imposto ao direito, o que eticamente
condenvel e deveria ser politicamente regulvel mediante leis de responsabi-
lidade social (educacional) aplicveis aos governantes. O princpio tico que
est implcito neste direito imediato qualidade o princpio da factibilidade,
cuja formulao mais simples seria: o que pode ser feito para a efetivao dos
direitos deve ser imediatamente feito (DUSSEL, 2000:260-275).
pr-condies, condies, prticas e resultados de uma educao de qualidade
Essas possibilidades de qualidade na educao apresentam-se eticamente
(e, portanto, politicamente) como obrigaes. Elas podem ser classificadas em
quatro momentos estratgicos: pr-condies, condies, prticas e resultados.
So pr-condies da educao de qualidade, entre outras: a) o Estado
de direito; b) a democracia representativa e participativa em pleno funcio-
namento; c) as polticas pblicas contando com financiamento adequado,
comprometidas com a mesma democracia; d) a efetividade dessas polticas no
que se refere formao inicial e continuada dos profissionais da educao;
e) a garantia de insero adequada desses profissionais no sistema de ensino;
f) a remunerao digna dos profissionais da educao.
So condies da educao de qualidade, entre outras: a) a disponibili-
dade de infraestrutura fsica adequada de escolas, em termos de acessibilidade
a todos (proximidade fsica ou transporte gratuito), devidamente equipadas
(salas de aula, biblioteca, laboratrios, salas de uso multifuncional, refeitrio,
34 Alpio Casali
ptio, quadras e equipamentos de esporte etc.), com condies adequadas de
vesturio e de alimentao aos alunos; b) um projeto pedaggico elaborado
coletivamente e em permanente implementao, com participao da comuni-
dade; c) uma carreira docente transparente e efetiva; d) processos de avaliao
transparentes do desempenho dos profissionais da educao; e) uma gesto
democrtica representativa e participativa, eficiente, eficaz e efetiva.
So prticas da educao de qualidade, entre outras, os exerccios co-
tidianos do currculo, em tempo integral, que mobilizam todos os sujeitos e
recursos da comunidade educativa (a comunidade escolar articulada com a
comunidade do entorno), constituindo um ambiente educativo, em relaes
de ensino-aprendizagem que sejam experincias de valor vital em todas as
dimenses, para todos: cognitivas, simblicas, estticas, polticas, corporais
e intelectuais, comunicativas, criativas, responsveis, participativas, prazero-
sas. Tais prticas devem ser experincias de descoberta e construo coletiva,
integrada e interdisciplinar de conhecimentos, de forma que: a) despertem
e estimulem as potencialidades dos alunos; b) permitam que a comunidade
educativa seja tambm uma comunidade aprendente em permanente de-
senvolvimento; c) respeitem cada sujeito e cada grupo em suas identidades
de gnero, idade, raa/etnia, condies fsicas, mentais e psquicas, orientao
afetivo-sexual, formao e convices polticas e religiosas, origem regional e
nacional, preferncias estticas, linguagens etc.
Sem prejuzo das pr-condies e das condies, so as prticas cotidia-
nas do currculo que realizam efetivamente a qualidade da educao. Nessa
perspectiva, faz inteiro sentido o postulado de Freire (1983) de uma educa-
o como prtica da liberdade. Alm disso, liberdade acrescentaramos a
dignidade, o respeito, a justia, a solidariedade, a cidadania, a arte, a respon-
sabilidade, a amizade, a democracia... As prticas da qualidade podem ser
ditas como aquelas que so experincias de formao que, em certa medi-
da, ultrapassam qualquer planejamento, monitoramento e avaliao, porque
constituem experincias vitais. Com frequncia insiste-se no argumento de
que a escola deve se conectar vida l fora (supostamente para garantir o
interesse dos alunos) ou que se deva trazer a vida para dentro da escola.
Porm, talvez, sem trocadilho retrico, deva-se apenas deixar que a vida
se manifeste no cotidiano da escola, at porque ela j dispe de todos os
35O que educao de qualidade?Alpio Casali
ingredientes para isso. Afinal, ali esto profissionais da educao trabalhando
e produzindo suas existncias em comunidade por meio de uma prtica social
que consiste em guiar o percurso de vida dos seus estudantes em direo
vida adulta plena. Ali esto os pais e familiares acompanhando o processo de
crescimento e desenvolvimento de seus filhos, e bvio que faro isso tendo
como horizonte a vida adulta desses jovens. Ali est a comunidade ao redor,
que no deixar de fazer marcaes acerca de suas expectativas sobre o futu-
ro de suas crianas e jovens. Alm disso, mais distncia esto a sociedade e
as polticas pblicas, que inevitavelmente condicionam este mesmo percurso
de formao. Em um estudo minucioso sobre o que pensam sujeitos envolvi-
dos em escolas de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, Maria Malta Campos
(2002) perguntou-lhes voc acha que uma boa escola aquela (em) que... e
ofereceu 23 atributos (supostos indicadores de qualidade). O atributo menos
valorizado foi: perto de casa. Os mais valorizados foram, nesta ordem: 1.
alunos gostam de aprender; 2. alunos so bem tratados, no importando
sua condio de cor ou social; 3. prepara alunos para a cidadania (CAM-
POS, 2002:9). Os resultados dessa pesquisa mostram claramente o foco dos
sujeitos da escola sobre as prticas pedaggicas como o principal fator de
qualidade da educao. A anlise do conjunto dos dados dessa pesquisa di-
rige o nosso olhar para a cultura prpria da escola. A configurao dessa
cultura o modo de realizao de sua qualidade.
So resultados da educao de qualidade, entre outros: a) a formao
(pleno desenvolvimento das potencialidades) que cada sujeito educando
leva consigo da escola (como seu patrimnio de conhecimentos e sua cons-
tituio moral) e que possibilita que ele usufrua de suas demandas bsicas
de alimentao, sade, segurana, reconhecimento social (participao ple-
na na vida social, cultural e poltica de sua comunidade e sua sociedade),
autoestima (quanto s suas competncias e potencialidades pessoais e profis-
sionais), autorrealizao pessoal e profissional; b) a capacidade de entrar e ser
bem-sucedido no mundo do trabalho; c) a experincia local de exerccio de
cidadania, que o referencia para o pleno exerccio crtico da cidadania como
sujeito econmico e produtivo; d) a experincia de convvio social e coopera-
tivo na diversidade, que o referencia para o exerccio crtico da solidariedade
como sujeito social, cultural e poltico; e) a possibilidade de que a escola
36 Alpio Casali
siga, ela prpria, aprendendo (FURLAN, M. e HARGREAVES, 2000); f) o
fato de que os profissionais da educao nela atuantes tenham se apropriado
mais de sua identidade pessoal e profissional. Por isso, quando insistimos em
afirmar que a escola deve estar ligada vida, certo que isso inevitavelmente
acontece, como certo que, ao mesmo tempo, no se trata de fazer a escola
repetir mimeticamente os padres da vida ao seu redor, at porque h certas
caractersticas da vida ao redor da escola que absolutamente so indesejveis
que se repitam dentro dela, tais como: a acelerao do tempo em funo do
produtivismo, a voracidade da economia de mercado, o consumismo, a re-
lao predatria com o meio ambiente, as violncias cotidianas, os vcios da
poltica etc.
So resultados da educao de qualidade, enfim: g) o fato de que ela
tenha gerado sujeitos conscientes, livres, responsveis, autnomos, apropria-
dos de todo o seu processo de formao, capazes de produzir a si mesmos
e de se apropriar de si como projetos de subjetividade e de identidade ja-
mais esgotveis; h) a possibilidade de que tais sujeitos sejam capazes de se
apropriar tambm das instituies, organizaes e comunidades das quais
participam, apropriando-se das identidades que elas lhes imprimem como
parte de sua marca cultural; i) a possibilidade de que tais sujeitos sejam capa-
zes de se reconhecer como unidades da humanidade, no sentido do que j em
1657 afirmava Comenius (1985), de que as escolas devem se constituir em
oficinas da humanidade; j) a possibilidade de que, nestas relaes consigo
mesmos, com sua cultura local e com a humanidade, os sujeitos educandos se-
jam capazes de estabelecer o duplo vnculo: de aceder aos legados disponveis
culturais e universais e de deixar por sua vez o seu legado singular cultura
e universalidade.
Concluses: a qualidade da educao que queremos
Adotar uma atitude crtica, tal como caracterizamos na introduo deste
texto, requer que nos perguntemos: afinal, em que medida a escola, numa so-
ciedade regulada pela dinmica do mercado, como a do Brasil, tem chance de
ser uma escola de qualidade para todos? Este horizonte nem novo: os Pio-
neiros da Escola Nova, no Brasil, em seu Manifesto de 1932, j cobravam
37O que educao de qualidade?Alpio Casali
do Estado o cumprimento dos direitos de todos a uma educao pblica,
numa escola concebida como nica, laica, gratuita, obrigatria, na qual am-
bos os sexos desenvolveriam atividades em comum (AZEVEDO, 1932).
O percurso analtico que fizemos levou-nos a um mbito de referncias da
qualidade da educao que se mostra ainda utpico (no sentido prprio de to-
davia, fora de lugar). Cabe, entretanto, o movimento final de retorno prtica
cotidiana, pedaggica, cultural e poltica, na qual reencontramos os problemas
dos quais partimos para, considerando o que ainda no , pensar o que pode
vir a ser (considerando ao mesmo tempo que o que pode vir a ser deve vir a ser,
pois toda possibilidade de realizao do direito impe uma obrigao).
Neste campo das polticas pblicas, oportuno e conveniente conside-
rarmos a notvel pesquisa realizada sob a coordenao de Martin Carnoy, que
comparou os sistemas escolares de Brasil, Chile e Cuba (CARNOY, 2009), da
qual ele tirou quatro lies: 1) o Estado deve gerar capital social; 2) o docen-
te deve ser capacitado para implementar o currculo; 3) a formao docente
deve ser coordenada com o currculo existente; 4) a liderana pedaggica, a
superviso e a boa gesto so a chave para a melhoria do ensino (CARNOY,
2009, p. 191-206). No prefcio de seu livro edio brasileira, em maio de
2009, Martin Carnoy faz outras recomendaes cabveis para as polticas
pblicas brasileiras e conclui que o elemento crucial [para a qualidade da
educao] o compromisso total com a melhoria dos padres de ensino e
fazer o que for necessrio para que este padro chegue at as salas de aula do
menor vilarejo das regies mais pobres (Ibid.: 18).
Isso serve para nos alertar tambm para a questo de que as demandas
de qualidade de vida e de educao na escola (referidas como demandas, en-
tre outras, de gostar de estudar, recuperar o ldico, conviver prazerosamente,
numa expresso, ser feliz) no pretendem nem podem significar uma defesa
do (nem pretexto para o) afrouxamento da disciplina, da diminuio do es-
foro e da supresso da obedincia a normas comuns estabelecidas. Para se
alcanar a qualidade desejada na escola, indispensvel que nela se continue
a fazer (e cada vez mais e melhor) aquilo que a sua atividade essencial, ou
seja, estudar: palavra esta que significa precisamente esforar-se. E como o
que buscamos, conforme afirmou Gramsci, colocar o problema qualita-
tivo da maneira mais concreta e realista, isto , desenvolver a qualidade
38 Alpio Casali
pelo nico modo no qual tal desenvolvimento controlvel e mensurvel
(GRAMSCI, 1978:50), cabe-nos tambm, simultaneamente ao compromisso
pedaggico, levar em frente o compromisso poltico pela efetividade das pol-
ticas pblicas em todos os seus dispositivos quantitativos.
39O que educao de qualidade?Alpio Casali
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Alpio Casali
43Poltica de Direitos Humanos e Poltica de Educao
Poltica de Direitos humanos e Poltica
de educao: anlise de interdies e
ausncias com base na proposta do Pne
paulo Csar Carbonari
Somente os que forem capazes de encarnar
a utopia sero aptos para o combate deci-
sivo, o que pretende recuperar o quanto
de humanidade j tivermos perdido.
Ernesto Sbato, Antes del fin, 1998
A conjuntiva do ttulo mais expresso de um desejo do que de uma
constatao. A proposta do Plano Nacional de Educao (PNE) que tramita
no Congresso, como mostraremos, parece no trabalhar estes aspectos na
conjuntiva e sim na disjuntiva. Insistimos no desejo, orientados por referen-
ciais que nos permitem identificar interdies e ausncias que esperamos
sejam superadas.
Este pano de fundo propiciou um texto em trs partes: a primeira
mapeia as interdies; a segunda, os referenciais; e a terceira, as ausncias.
Propositalmente inicia pelas interdies e conclui com as ausncias, pondo
os referenciais entre elas como recurso metodolgico para dizer que, efetiva-
mente, ainda esto prensados ou talvez inviabilizados por umas e outras.
Esperamos que a construo aqui feita sirva de subsdio para a reflexo e
o debate e que se constitua em libelo democrtico, capaz de vir a sensibilizar
prticas e posicionamentos. Todas as observaes esperam, sinceramente, que
tanto as interdies quanto as ausncias sejam superadas historicamente, para
o que a principal confiana est na fora dos agentes populares que empunham
44 Paulo Csar Carbonari
bandeiras e fazem lutas para que os direitos humanos sejam efetivamente ca-
pazes de alimentar o desejo e, ao mesmo tempo, de concretizar realidades.
interdies
Interdies indicam aquelas situaes que mostram como os humanos
e seus direitos ou os sujeitos dos direitos humanos se encontram irrea-
lizados, gerando intransitividades, travas que impedem que novas relaes
possam ser criadas ou para que velhas relaes sejam reinventadas indicam
aqueles lugares nos quais as contradies se manifestam como exigncia de
enfrentamento.
Violaes na esperana
A leitura da situao brasileira sob o enfoque dos direitos humanos re-
vela a persistncia de uma contradio entre a violao e a esperana ou,
como expressamos no subttulo, uma violao na esperana, dado que a
expectativa pela realizao dos direitos se v facilmente interditada por viola-
es que agridem a expectativa com a realizao dos direitos humanos. Esta
contradio marca do cotidiano atual e histrico da maioria do povo
brasileiro e se traduz em inviabilizao da produo e da reproduo da vida
e da manifestao e da expresso necessrias participao, bem como em
desmoralizao e criminalizao de lideranas e movimentos sociais e no ig-
norar sujeitos (Cf. CARBONARI, 2010).
A inviabilizao da produo e da reproduo da vida se manifesta nos
altssimos graus de desigualdade e na pobreza insidiosa aos quais se subme-
tem milhes de pessoas, afetando de forma mais dura a negros, mulheres e
jovens, entre outros grupos. As desigualdades transformam a diversidade em
motivo de diferenciao negativa. O que seria fator positivo de construo
social, a diversidade, redunda em fator de submisso e de inviabilizao dos
setores e grupos historicamente submetidos, o que se soma baixa expecta-
tiva de efetivao de relaes justas em escala. A pobreza, como j declarou
a Organizao das Naes Unidas (ONU), importando que seja extrema ou
no, constitui violao sistemtica de vrios dos direitos humanos. Pobreza
45Poltica de Direitos Humanos e Poltica de Educao
e desigualdade se entrecruzam e resultam em situao na qual facilmente os
segmentos sociais mais pobres so exatamente aqueles que foram inferiori-
zados, desigualizados. Entre outros fatores que colaboram decisivamente
para isso certamente est o modelo de desenvolvimento escolhido para o Pas
e que se caracteriza por ser altamente concentrador e excludente.
A interdio da manifestao e da expresso se revela na persistncia
da violncia e em grande parte tributria da alta concentrao dos meios
de circulao da informao e da opinio. A violncia esgara o tecido social
e reproduz o medo, mantendo comunidades inteiras afastadas da convivn-
cia condio bsica para que possam propagar livremente seus anseios e
suas reivindicaes, para que os direitos sejam exercidos. A alta concentrao
dos meios de comunicao e sua reao negativa a todo tipo de medida de
socializao ou de controle resulta por instalar uma censura privada, pautada
por interesses que no colaboram para o interesse pblico. Juntas, violncia e
concentrao dos meios de comunicao geram a interdio a milhes de pes-
soas, que so impedidas de participar da vida pblica com sua opinio livre.
A desmoralizao e criminalizao de lideranas e movimentos sociais
vm sendo usadas como estratgia para conter a organizao popular e, com
isso, os avanos por ela propostos. A desmoralizao uma forma de transfor-
mar lutas e pessoas em defensores do anacronismo. A criminalizao permite
que instituies que foram criadas para proteger a sociedade e seus direitos
se tornem agentes da extino de organizaes populares. Organizaes e
lideranas populares so essenciais democracia porque so manifestaes
da rebeldia, necessria aos avanos da luta por direitos. Por isso, a desmora-
lizao e a criminalizao, alm da morte e da ameaa, transformam a luta
popular num exerccio difcil e que colabora para que os avanos na realiza-
o dos direitos sejam ainda fracos.
O ignorar sujeitos se manifesta no conservadorismo persistente, que
se caracteriza por aceitar a diversidade social, contanto que no onere privil-
gios, e por inverter posies, colocando a promoo de determinados grupos
historicamente excludos por meio de aes afirmativas como se fosse privi-
lgio. Os exemplos mais cristalinos deste tipo de postura vm se revelando
no cerceamento ao acesso a territrios por indgenas e quilombolas, na pro-
posio da inconstitucionalidade das polticas de quotas para a populao
46 Paulo Csar Carbonari
negra, na rejeio aos avanos propostos pelo movimento LGBT (lsbicas,
gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgneros), entre outros. O dis-
curso da igualdade neste caso, contraditoriamente desigualdade real e
diversidade efetiva invocado como recurso de invisibilizao, quando
no de inviabilizao, desses sujeitos sociais.
Conservadorismo refratrio
O co
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