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DRAMATURGIAS:
Estudos sobre teoria e hist—ria do teatro e artes
em contato
MARCUS MOTA
2011
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#
Apresenta•‹o
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Nesse sentido, os textos aqui disponibilizados dialogam com o seguinte
contexto: com a consolida•‹o de cursos superiores e programas de pesquisa em teatro,
tem havido, desde o in’cio deste sŽculo uma crescente demanda por publica•›es que
tanto ampliem discuss›es te—ricas estŽticas em curso, quanto revisem pressupostos de
estudo e an‡lise de eventos cnicos2. A velha estrutura dos cursos - que se baseava
em mŽtodos de periodiza•‹o liter‡ria Ð cede lugar para orienta•›es mais
interdisciplinares e interart’sticas, na conscincia de que a atividade cnica integra
saberes e habilidades v‡rios em uma realidade multitarefa e complexa.
Parte dessa atualidade inovadora parece contemplada em trabalhos
acadmicos de mestrado e doutorado, mas com publica•‹o limitada ou inexistente.
Em raz‹o da escassez de publica•›es, amplia-se o fosso entre gradua•‹o e p—s-
gradua•‹o, o que provoca uma inusitada situa•‹o: de um lado, as pesquisas em p—s-
gradua•‹o tendem a ficar ensimesmadas, inventando um ponto zero, um novo in’cio
constantemente, ao reperpeturar o fasc’nio com imediatos desejos e par‡frase de
1 A dramaturgia musical de ƒsquilo: investiga•›es sobre composi•‹o, realiza•‹o erecep•‹o de fic•›es audiovisuais, Bras’lia, Departamento de Hist—ria- UnB, 2002.Publicado pela Editora da UnB com o mesmo t’tulo em 2009,recebendo o 2o. lugar noPrmio Nacional de Ensaios Mario de Andrade, da Biblioteca Nacional.2 ƒ o que se pode constatar pela leitura da colet‰nea Metodologias de Pesquisa em
Artes Cnicas (Rio de Janeiro: 7Letras:2006), organizada por A. Carreira.
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bibliografias e tendncias mais prestigiadas por seus orientadores; de outro, nos
cursos de gradua•‹o, abriga-se uma resistncia ˆ especula•‹o e debate te—rico,
expressa seja por meio da nfase na dimens‹o Ôpr‡ticaÕ, operativa do teatro, seja pela
leitura dos mesmos textos ainda acess’veis aos estudantes.
Os textos aqui disponibilizados procuram enfrentar esse fosso, procurando
renovar o encontro com a tradi•‹o bimelenar que v em eventos teatrais um desafio
para o pensamento, como forma de se estimular um encontro mais diversificado e
revigorante com idŽias e experincias n‹o circunscritas ˆ pontuais injun•›es. Os
textos foram elaborados a partir de questionamentos evidenciados em sala de aula ao
longo de 15 anos de docncia e debates em diversos congressos acadmicos nacionais
e internacionais. A necessidade de fundamentar e problematizar v‡rias das discuss›es
e an‡lises que se deram no processo de ensino-aprendizagem motivaram as p‡ginas
aqui escritas.
9)-/&' 3)%%,< o livro organiza-se em trs se•›es. Na primeira, temos o estudo
e an‡lise de aspectos das chamadas poŽticas hist—ricas. Aqui abre-se o espa•o para
obras, autores e idŽias que n‹o se reduzem a uma par‡frase das repetidas observa•›es
sobre A poŽtica, Arist—teles. Com isso, ao apresentar reflex›es presentes em
Natyasastra, atribu’do ao s‡bio Bharata, e nos ensaios de Zeami tanto subsidiamos a
compreens‹o de debates contempor‰neos sobre as rela•›es entre teatro e antropologia,
quanto fornecemos aos estudantes um contato com as idŽias desse autores,as quais
podem ser apropriadas e transformadas a partir de seu conhecimento. Sempre lembrar
que o contato com o passado se faz em fun•‹o de quest›es e pontos de partida do
presente. Nesse caso ao se propor a leitura e reflex‹o das poŽticas hist—ricas, objetiva-
se ampliar a conscincia hist—rica do estudante, inserindo-o em uma longa tradi•‹o,
que conecta o seu saber ˆ constru•‹o de sua identidade.
Na segunda parte, procedemos a 42- +'(')&4+- 3' .'/%-3,+'% '
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imposs’vel apresenta•‹o de teorias teatrais no œltimo sŽculo ou de um panorama
superficial dos mesmo, optamos por coment‡rios de partes das contribui•›es desses
autores.
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V
Ou seja, no sŽculo XX os artistas passaram a expor mais enfatidamente suas
idŽias e analisar suas realiza•›es em textos em ensaios, notas e entrevistas. Este
desdobramento entre a reflex‹o e processos criativos pode ser enfrentado pelos
estudantes a partir do momento em que eles participam de situa•›es de debate e
an‡lise dos materiais publicados desses artistas, vendo nos textos lidos a correla•‹o
entre modos de agir e questionar atividades orientadas para a cena em todos as suas
dimens›es.
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Enfim, espero que a presente publica•‹o sej‡ œtil para consolidar a amplia•‹o
de interesses nos estudos teatrais, por meio do provimento de est’mulos intelectuais e
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argumentos formativos para a reflex‹o e realiza•‹o de processos criativos em artes
cnicas.
Bras’lia, 15 de Setembro de 2011
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SUMçRIO
PRIMEIRA PARTE
1-Sobre o conceito de Teoria
2- Natyasastra:Teoria Teatral e a Amplitude da Cena
3- Catarse, rasa, flor: contextualizando a produ•‹o de emo•›es a partir da
compara•‹o de tradi•›es performativo-musicais
4- Genealogias da dan•a
SEGUNDA PARTE
1- Preliminares
2- A.Appia: a encena•‹o como renova•‹o da pr‡tica teatral
3- C. Stanisl‡vski: a cincia do ator e a estŽtica do espet‡culo
4- V. Meyerhold: A materialidade do evento cnico
5-Erwin Piscator e o fim da ilus‹o da ilus‹o teatral
6- B. Brecht A dramaturgia como teoria da a•‹o
TERCEIRA PARTE
1-Arte e Subjetiva•‹o
2- As raz›es do jogo segundo H.G. Gadamer
3- O drama como metaestŽtica
4-- Luigi Pareyson e a an‡lise da experincia estŽtica
5- Raz‹o, fic•‹o e Hist—ria
6- Hist—ria cultural e teatralidade: Roger Chartier e a textualidade de obras
performativas 7- Tradi•‹o e raz‹o : modernidade e mito em Rumble Fish
8- Aproxima•›es a uma dramaturgia f’lmica a partir do caso Eisenstein
9- Cinema e teatralidade: O beb (santo) de M‰con, de Peter Greenaway
10- As implica•›es performativas da escrita fugal: Uma leitura de A arte da
fuga, de J.S. Bach
11- Notas sobre o drama musical de Claudio Monteverdi
12- Do —pera Studio de C. Stanislavski aos musicais de Brecht: notas por umanova historiografia do teatro.
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n
13- Dire•‹o cnica de obras dram‡tico-musicais:O trabalho de Matthew Lata
no Florida State Opera
14- A realiza•‹o de —peras como campo interart’stico: dramaturgia,
performance e interpreta•‹o de fic•›es audiovisuais.
15- Dramaturgia musical: notas sobre o conceito
16- An American in Paris: cinema, mœsica e teatro
17- Dramaturgia, colabora•‹o e aprendizagem
18-Todos os teatros de Hugo Rodas
19- Dramaturgia Musical e Cultura Popular
20- A discuss‹o da idŽia de espa•o em Kant e seu contraponto na teatralidade
de Hugo Rodas
21-Todos os teatros de Hugo Rodas
22- Dramaturgia e Comididade: notas de pesquisa em curso
23- Teatro e Conceitos: um debate em aberto
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PRIMEIRA PARTE
1- SOBRE O CONCEITO DE TEORIA
A aproxima•‹o entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos teatrais tem acarretado a
redefini•‹o de diversos conceitos e experincias. Entre eles temos o de Theoria.
Recentes pesquisas contextualizam mais efetivamente a atividade que na maioria das
vezes se viu relacionada ao campo da especula•‹o filos—fica pura.
Segundo Andrea Nightgale ÒNo per’odo cl‡ssico , theoria adotou a forma de
peregrina•›es rumo a or‡culos e festivais religiosos. Em diversas situa•›es, o
theoros/espectador foi enviado por sua cidade como um embaixador oficial: esse
theoros c’vico viajava para um centro de or‡culos e festivais, observava os eventos e
espet‡culo que l‡ ocorria, e retornava para casa trazendo um relato oficial de
testemunha presente aos acontecimentos. Um indiv’duo poderia tambŽm emprender
uma viagem te—rica por meios privados; entretanto, o theoros ÔparticularÕprestava
contas somente a si mesmo, e n‹o tinha necessidade de tornar pœblicas as suas
descobertas quando do retorno ˆ cidade. Seja c’vica ou particular, a pr‡tica da theoria
abrangia a viagem em sua totalidade, incluindo o afastamento do lar, a experincia de
observar e o retorno. Mas no seu centro estava o ator de ver, geralmente focado em
um objeto sagrado ou espet‡culo. De fato, o theoros em um festival religioso ou
santu‡rio testemulhava objetos e eventos que eram sacralizados por meio de rituais: o
observador adentrava em uma zona de Ôvisualidade ritualizadaÕ na qual modoscoditianos de observar eram revistos por pr‡ticas e ritos religiosos. Este modo
sacralizado de platŽia era um elementos central da theoria tradicional, e oferecia um
poderoso modelo para a no•‹o filos—fica de ÔverÕ as verdades divinas ( NIGHTGALE
2004:3).3Ó
3 No original : ÒIn the classical period, theoria took the form of pilgrimages tooracles and religious festivals. In many cases, the theoros was sent by his city as anofficial ambassador: this ÒcivicÓ theoros journeyed to an oracular center or festival,viewed the events and spectacles there, and returned home with an official eyewitness
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O longo texto acima supracitado nos ajudar a melhor contextualizar a
atividade da teoria, aproximando-a da atividade cnica.
Ou seja, em termos tŽcnicos, podemos identificar que, antes de sua
codifica•‹o filos—fica, o exerc’cio da THEORIA desdobrava-se em atividades
privadas ou publicamente comissionadas de indiv’duo ou grupo de indiv’duos para
participar, observar e transformar em relato um programa de eventos religiosos.
Como se pode observar, a defini•‹o de THEORIA n‹o Ž pontual: h‡ um
conjunto heterogneo de atos, saberes e deslocamentos, que projetam a complexidade
de uma pr‡tica cultural espec’fica, cuja matriz Ž religiosa, mas que se espraia como
institui•‹o c’vica.
Partido dessa heterogeneidade de base, podemos come•ar a detectar alguns de
seus aspectos mais relevantes. O exerc’cio da THEORIA demanda inicialmente uma
Òdramaturgia da jornadaÓ, com suas etapas de partida e retorno como marcos bem
caracter’sticos. Ao se colocar em movimento, em transcurso, em participe da jornada,
o agente da THEORIA inicia o processo cujo limites s‹o ao mesmo tempo as
expectativas e os par‰metros que contextualizam a atividade: ir para ter de voltar Ž o
que especifica o agente da THEORIA.
A dramaturgia da jornada efetiva-se apenas pelo transcurso, pelo cumprimento
do circuito de partida e retorno. H‡ uma experincia na amplitude da jornada que
somente a consuma•‹o de todo o transcurso atesta que a THEORIA foi realizada.
Assim, h‡ uma homologia entre a experincia da THEORIA e a amplitude da jornada.
Logo a amplitude da jornada e, consequentemente, a da THEORIA, explicita-
se pela diferen•a radical entre os momentos iniciais e finais do transcurso. ƒ pela
impossibilidade de haver a completa identidade entre a partida e a chegada que o
sujeito da THEORIA precisa por-se em caminho, para, alŽm de seu lugar, porque,
onde ele est‡, a THEORIA n‹o se realiza, e no espa•o de emergncia da observa•‹o l‡
report. An individual could also make a theoric journey in a private capacity: theÒprivateÓ theoros, however, was answerable only to himself and did not need to
publicize his findings when he returned to the city. Whether civic or private, the practice of theoria encompassed the entire journey, including the detachment fromhome, the spectating, and the final reentry. But at its center was the act of seeing,generally focused on a sacred object or spectacle. Indeed, the theoros at a religiousfestival or sanctuary witnessed objects and events that were sacralized by way ofrituals: the viewer entered into a Òritualized visualityÓ in which secular modes ofviewing were screened out by religious rites and practices. This sacralized mode ofspectating was a central element of traditional theoria, and offered a powerful modelfor the philosophic notion of ÒseeingÓ divine truthsÓ.
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mesmo a jornada n‹o se completa. H‡ uma paradoxal din‰mica na configura•‹o das
partes da THEORIA: tudo se encaminha para a incompletude de cada etapa, com a
n‹o identidade entre agente e local. Em um primeiro momento, o agente da
THEORIA precisa dirigir-se para um outro espa•o-tempo a fim de dar in’cio ao
processo. Chegando a este outro espa•o-tempo, ele ainda n‹o atingiu todo o percurso.
Dessa maneira, para o exerc’cio da teoria em sua amplitude o agente exercita-
se em um conhecimento que o envolve totalmente, que o leva para um outro tempo e
lugar. O deslocamento f’sico do agente da THEORIA Ž a imagem da mudan•a, da
transposi•‹o necess‡ria que tal conhecimento reivindica. Para que o conhecimento
te—rico se efetive Ž necess‡rio que o sujeito participe de algo que n‹o est‡ relacionado
ou reduzido ao seu universo familiar e cotidiano. H‡ pois um intr’nseco la•o entre a
THEORIA e seu exerc’cio: participar da THEORIA Ž tanto conhec-la quanto
conhecer-se.
O segundo momento Ž o da participa•‹o nos rituais. Ap—s a jornada, o agente
da THEORIA integralmente deslocado figura um novo desdobramento: entre aquele
que toma parte do intenso e variado programa das celebra•›es rituais e aquele que as
observa, descreve, analisa, assimila. Sons e imagens dos cultuantes em suas can•›es,
dan•as e palavras povoam a mente. Trata-se de um saber testemunhal que articula
diversas competncias. Alem disso tal saber est‡ submetido ˆ atualidade da co-
presen•a dos rituantes e do observador. Pois, do contr‡rio, a jornada seria irrelevante.
Existe a jornada porque o tipo de conhecimento que se adquire na THEORIA Ž algo
que n‹o pode ser realizado completamente ˆ distancia, na ausncia. O agente da
THEORIA deve deixar seu lugar pois n‹o est‡ em si e nem onde mora aquilo que vai
conhecer.
Dessa forma, a atualidade da performance dos cultuantes promove um
contexto experiencial œnico, irrepet’vel, que se transforma no horizonte dosdesdobramentos do peregrino.
PorŽm, no prosseguir do tempo de contato com os eventos observados, ocorre
uma redefini•‹o do Òestranhamento te—ricoÓ: aquilo que antes era extraordin‡rio e
inusual, que acarreta tamanho esfor•o da jornada, torna-se ent‹o o cotidiano, o
habitual. A intensa carga de eventos do programa das festividades religiosas lan•a o
agente da THEORIA de um padr‹o anterior deixado na cidade de outrora para o
padr‹o constru’do a partir das celebra•›es de agora.Se se observar bem h‡ v’nculos estreitos entre os conhecimentos e
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experincias do agente da THEORIA nas etapas do transcurso e da participa•‹o nos
rituais: em ambos os momentos h‡ um desdobramento de a•›es e habilidades, que
demandam uma amplia•‹o da percep•‹o que o agente venha a ter de si ao se ver
diante de eventos que o colocam nos limites de sua mundividncia. Ao partir e ao
chegar nos festivais, o agente da THEORIA confronta-se com a abertura provocada
pela simultaneidade de expectativas e padr›es, do entrechoque entre experincias
prŽvias e novas situa•›es.
O terceiro momento Ž o do retorno. Tudo que viu e ouviu deve caber em um
relato. O relato contŽm o registro dos eventos e sua aprecia•‹o. Aqui temos duas
perspectivas, a do peregrino e a de sua comunidade de origem. Para o peregrino h‡
um intervalo radical entre o relato e os rituais: tudo o que ele disser n‹o vai englobar o
que aconteceu. Mas o que for selecionado para ser apresentado Ž o que ele traz
consigo. A constru•‹o do relato explicita tanto as experincias observadas com a
transforma•‹o destas em um conjunto organizado de referncias. As habilidades em
compor esse conjunto conjugam-se com a amplitude dos eventos observados. Da’ a
segunda perspectiva: o que importa Ž mostrar para aqueles que n‹o foram aos rituais
que eles foram bem representados, que, mesmo que n‹o empreenderam o transcurso
para alŽm dos muros da cidade, ainda s‹o capazes de experimentar e dar completude a
uma experincia de certa maneira a eles vinculada. O relato Ž uma experincia de
correla•‹o, n‹o se esgotando no conteœdo de sua mensagem, nem na atividade de seu
realizador: h‡ algo para alŽm do circuito observado-observador, uma modalidade de
saber que parte da unicidade do intŽrprete mas se encaminha para a comunidade.
Com isso, a jornada do agente da THEORIA Ž o percurso de atualiza•‹o de
uma sŽrie de contradi•›es que definem um conhecimento em performance. Tal saber
processual e peregrino projeta-se como uma via de acesso para muitas das quest›es
que envolvem artistas inseridos na inteligibilidade de seus processos criativos. Arealiza•‹o de pesquisas em artes aproxima-se da produ•‹o de conhecimento em
processos criativos.
REFERæNCIAS BIBLIOGRçFICAS
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2- NATYASASTRA: TEORIA TEATRAL E A AMPLITUDE DA CENA
ƒ antes do —pio que a minh'alma Ž doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao —pio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
Fernando Pessoa, Opi‡rio
O Natyasastra Ž um tratado sanscr’tico sobre as rela•›es entre palavra,
mœsica e movimento. Um estudo mais detido de suas estratŽgias de constru•‹o de
objetos observacionais pode possibilitar uma melhor compreens‹o da amplitude da
cena, ou seja, uma compreens‹o da concretude material de obras audiovisuais.
O estudo do tratado Natyasastra se constitui como uma provoca•‹o contra
nossos h‡bitos de teorizar as artes da cena4.
Inicialmente, a op•‹o por uma outra tradi•‹o, diferente da chamada ocidental
europŽia, coloca-nos diante de uma oportunidade rara de acompanhar tanto as formas
4 O Ocidente entrou em contato com o tratado Natyasastra, que possui mais dedois milnios de existncia, apenas a partir da segunda metade do sŽculo XIX. Mesmoem pleno sŽculo XX, ainda o conhecimento da obra se encontrava extremamentelimitado, como se pode ler nessa breve nota de C. Lanman ao Journal of AmericanOriental Society, em 1920: ÒAlguns membros de nossas associa•‹o querem inteirar-sesobre o conteœdo de cartas escritas pelo professor Belvalker, de Poona, êndia. ƒ queele possui uma edi•‹o e uma vers‹o anotada desse antigo e important’ssimo
(exceedingly important ) tratado. Tais obras manifestam claramente as enormesvantagens que os nativos Indianistas tem sobre n—s, Indianistas do Ocidente.Ó Naedi•‹o do professor Belvalker, alŽm da cr’tica textual de manuscritos do tratado, h‡referncias Òa 93 admir‡veis ilustra•›es pintadas nas paredes internas de um templodo sŽculo XIII, que apresentam v‡rias das coreografias descritas no cap’tulo 4 dotratado. (...)Tais ilustra•›es nos habilitam a compreender Bharata claramente.ÓLANMAN,C. Bharata's Treatise on Dramaturgy. Journal of American OrientalSociety, 40:359-360,1920. Mesmo na pr—pria historiografia moderna do teatro indianoh‡ dificuldades em se localizar teoricamente o Natyasastra. Para a modernahistoriografia do teatro indiano e o inst‡vel lugar de o Natyasastra v. SOLOMON,R.H. From Orientalist to Postcolonial Representations: A Critique of Indian TheatreHistoriography from 1827 to the Present. Theatre Research International , 29: 111-127, 2004.
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de constru•‹o e organiza•‹o do dom’nio da an‡lise (objetos), quanto o conseqŸente
reflexo dessa diversa constitui•‹o de objetos em nossas tradicionais categorias e
mŽtodos de an‡lise.
Por exemplo. Diferentemente de nossos padr›es escol‡sticos de investiga•‹o,
que procuram submeter objetos de pesquisa a um rigoroso tratamento racional-
descritivo (prescritivo, muitas vezes), estabelecendo ordens e subordina•›es, o
Natyasastra se apresenta como uma compila•‹o de diversas fontes, uma edi•‹o
fundamentada na acumula•‹o e sobreposi•‹o de excursos, digress›es de mitologia,
ensino, norma, conselho, valendo-se tanto de met‡foras e conceitos, quanto de
pr‡ticas de classifica•‹o e enumera•‹o de distin•›es5.
Essas fontes, pertencendo a tempos e regi›es diversos, promovem uma
sucess‹o de cap’tulos topicalizados nos quais a acumula•‹o de interesses mœltiplos Ž
o que predomina.
Tal emaranhado imediatamente ca—tico e disperso, sem um identific‡vel
centro de orienta•‹o expl’cito, seja na macroestrutura do texto, seja em comando de
uma voz autoral, reveste-se, contudo, com o transcurso da leitura, de uma espec’fica
coerncia: o da experincia cnica em sua amplitude.
Do come•o do tratado, temos a inser•‹o da atividade do performer em uma
ambincia m’tica e c—smica6. Segundo o relato, em um passado primordial, o povo
deste mundo, imerso em profunda selvageria, suplicou aos deuses algo que n‹o s—
trouxesse sabedoria como tambŽm deleite tanto aos olhos quanto aos ouvidos.
Brahma os atendeu e integrou, em um espet‡culo s—, todas as artes e cincias,
5 Tal aspecto comulativo e dispersivo do texto de Natyasastra Ž interpretadode forma negativa e redutora por G.Ley, que v a obra como um compndio de regrasque imp›e certo controle sobre as performance individuais, escrito sob a perspectivade um diretor de companhia e Òbem distante de um manual de performance e de umdramaturgoÓ A forte presen•a do mito e da religi‹o refor•aria uma autoridade distanteda pr‡tica, ocasionado o tratado ser mais um discurso entre discursos sobre o fazerteatral, como A PoŽtica de Arist—teles, e os textos de Zeami. Igualando teoria ediscurso, Ley acaba por invalidar a materialidade presente nos tratados que comenta.O forte modelo aristotŽlico seleciona seus coment‡rios sobre Natyasastra e Zeami. V.LEY, G. AristotleÕs Poetics,BharatamuniÕs Natyasastra, and ZeamiÕsTreatises:Theory as discourse. Asian Theatre Journal 17:(191-204),2000.
6 Para cita•›es do texto do Natyasastra, seguimos RANGACHARYA,Adya. Natyasastra, Munshiram Manoharlal Publishers, 1996.
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formando um espet‡culo de palavras, mœsica, movimentos, atua•‹o e cenotŽcnica que
requer para sua efetiva•‹o pessoas inteligentes, s‡bias, diligentes e com autocontrole7.
A promo•‹o desta integra•‹o de habilidades e conhecimentos, deste campo
interart’stico e realizacional Ž a meta de Natyasastra. Note-se como tal impulso
integrativo difere de empresas intelectuais como as de Arist—teles. N‹o h‡ em
Natyasastra a sobrevaloriza•‹o de um elemento n‹o performativo, de um material que
ser‡ transformado em performance8. Ao contr‡rio, sem uma perspectiva unificadora, o
Natyasastra aplica a cada uma das atividades de composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e
produ•‹o de espet‡culo tanto uma incessante enumera•‹o de seus tipos e formas,
conhecidos a partir de tradi•›es de performance, quanto interconex›es, junturas,
sobreposi•›es. O labirinto em que se torna o texto de Natyasastra advŽm deste
excesso de nexos e pluralidade de aspectos pelos quais cada evento significativo Ž
apresentado.
Para mentalidade educadas no aristotelismo, o quase-cap’tulo sobre rasa
revela-se atrativo9. Mas reduzir a contribui•‹o do Natyasastra a uma teoria do efeito
emocional (rasa) Ž algo temer‡rio. Mesmo na tradi•‹o indiana, a partir do sŽculo IX
iniciou-se uma abstra•‹o do conceito. Rasa, associado ˆ experincia concreta de
7 Ravi Chaturvedi enfatiza a ÔinterdisciplinaridadeÕ do Natyasastra.PorŽm, usa o termo como sin™nimo dos aspectos interart’sticos do teatro s‰nscrito - avelha no•‹o de diferentes artes reunidas e somadas. A partir dessa abstra•‹o, n‹o levaem conta o contexto efetivo para a realiza•‹o - a produ•‹o do espet‡culo. Assim, as’ntese das artes tomada como interdisciplinaridade revela um tru’smo acadmico,uma peti•‹o de princ’pio. Conf. CHATURVEDI,Ravi. Interdisciplinarity: ATradicional Aspect of Indian Theatre. Theatre Research International,26:164-171,2001.
8 Arist—teles, por exemplo, enumera os elementos da tragŽdia, mas
centra-se no eixo trama-efeito emocional. Para os descompassos entre a abordagemaristotŽlica e a realidade efetiva do teatro em Atenas v. WILES, David. GreekTheatre Performance. Cambridge University Press, 2000. Para uma investiga•‹o maisdetalhada da performance da tragŽdia grega v. MOTA, Marcus. A dramaturgiamusical de ƒsquilo. Tese de Doutorado, Universidade de Bras’lia, 2002.
9 Cf. THAKKAR, B.K. On the Structuring of Sanskrit Drama:Structure of Drama in Bharata and Aristotle. Ahmedabad, Saraswati Pustak Bhnadar,1984, e GUPT, G. Dramatic Concepts Greek and Indian: A Study of The Poetics andThe Natyasastra. Nova Deli, D.K.Printworld, 1994. M. Heath, em sua resenha desteœltimo livro, afirma que, em virtude da negligncia de Arist—teles em rela•‹o ˆ
performance, Ò a tradi•‹o grega de fato n‹o oferece nada remotamente compar‡vel ˆdetalhada an‡lise do gesto e atua•‹o que existe no Natyasastra.ÓV. HEATH, M.Resenha de GUPT 1994. Journal of Hellenic Studies, 115: 195-196, 1995.
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sorver um l’quido, e disto o prazer dessa experincia, o gosto, torna-se depois a
essncia da poesia, a essncia de tudo, do universo10.
Mas no contexto de Natyasastra, rasa n‹o Ž um conceito isolado. A met‡fora
do fruto e de seu suco e do suco sorvido e do prazer do suco sorvido procura
apresentar a globalidade de atos envolvidos na efetiva•‹o multidimensional da
performance. ƒ para a situa•‹o de performance que a met‡fora aponta. Ao invŽs do
aspecto pontual e un’voco que um modelo comunicacional-afetivo conduz,
pressupondo uma l—gica de causa efeitos (est’mulo-resposta) para clarificar o
processo representacional, em Natyasastra temos um encadeamento de distin•›es
cada vez mais detalhado.
Ainda ao se definir rasa, no Natyasastra encontramos outra imagem:
pessoas comendo comida preparada com diversos condimentos e molhos
misturados, se elas tm sentidos apurados, apreciam diferentes gostos e sentem prazer
(satisfa•‹o) com isso. Semelhantemente, espectadores de sentido apurado, ap—s
apreciarem as v‡rias emo•›es expressas pelos atores em suas palavras, gestos e
emo•›es, estes espectadores sentem tambŽm prazer nisso. Esta (final) emo•‹o sentida
pelos espectadores Ž aqui explicada como as v‡rias rasa.
A analogia entre comensais e espectadores procura apresentar o fluxo, a
continuidade entre agentes e materiais envolvidos em um mesmo processo. O nexo
entre a comida preparada com v‡rias misturas e o espectador capaz de saborear essa
refei•‹o n‹o Ž baseado em uma dicotomia entre a forma fechada do drama e a
passividade do audit—rio. ƒ para os atos, Ž para a participa•‹o total dos agentes na
atividade representacional que os conceitos se direcionam.
Logo Rasa ent‹o entende-se como um circuito de est’mulos, rea•›es e a•›es
dentro de uma situa•‹o performativa. Ao mesmo tempo que sua produ•‹o Žsegmentada, sua composi•‹o mesma Ž pluralizada. ƒ necess‡ria a interpenetra•‹o de
mœltiplos atos e agentes para que o rasa se efetive. Logo, n‹o se pode simplificar rasa
como a emo•‹o estŽtica. Natyasastra trabalha n‹o com conceitos como resumos de
10 V. MARTINEZ, J.L. Semiosis in Hindustani Music. InternationalSemiotic Institute, 1997, CHAUDHURY, P.J. The Theory of Rasa. Journal of
Aesthetics and Art Criticism, 24: 145-149,1965, e THAMPI, G.B. Rasa as AestheticExperience. Journal of Aesthetics and Art Criticism, 24:75-80, 1965.
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uma experincia intelectual e sim com conceitos operat—rios, que interligam
atividades representacionais a processos interativos.
A posterior anal’tica das fontes, est’mulos e atos f’sicos para se produzir rasa
constitui uma das impressionantes contribui•›es para a teoria teatral. Este imenso
repert—rio de distin•›es apresenta-se um mapeamento e investiga•‹o do corpo e da
psicologia humanos articulados a partir de acumulada observa•‹o tradicional. Tanto
que esse imenso cat‡logo refere-se constantemente a tipos e estilos interpretativos11.
Para n—s, muitas vezes acostumados ˆ generalidade da teoria dos gneros
liter‡rios, o contato com essa enumera•‹o de tradi•›es performativas e procedimentos
e habilidades corporais conexas, essa selva selvagem de nomes, esse contato Ž
perturbador. Mas, se bem compreendido, tal contato esclarece o mŽtodo de
organiza•‹o do Natyasastra.
Natyasastra n‹o privilegia nossas conhecidas estratŽgias aprior’sticas, de
estabelecer previamente distin•›es, hierarquias e defini•›es para depois aplicar tais
esquemas aos fatos. Diferentemente, Natyasastra reœne e integra feitos da tradi•‹o, de
uma tradi•‹o multissecular, composta de dramaturgias e estilos interpretativos
diferenciados. Cada uma dessas dramaturgias e estilos interpretativos Ž descrita a
partir dos recursos, procedimentos, habilidades e efeitos recepcionais que, em
situa•‹o de performance, a especificam. ƒ a observa•‹o das op•›es, das escolhas
performativas que determina a classifica•‹o. ƒ o conhecimento da amplitude e
materialidade da performance que fundamenta os atos cognitivos de estabelecimento
de distin•›es e tipos. A diferen•a est‡ no ponto de partida. Natyasastra pratica uma
teoria baseada na observa•‹o e na experincia da materialidade da performance. N‹o
Ž um pensamento contra a performance ou que substitui a performance por um
suplemento ideativo.
Por isso, a atividade mesma do Natyasastra, sua produ•‹o dessa rede decat‡logos e sobreposi•›es revela-se intimamente relacionada com o conhecimento
daquilo que investiga. O tratado Natyasastra Ž ele mesmo uma imagem da
multidimensionalidade da performance, em sua constante busca de interconex›es e
nexos variados. A escrita do Natyasastra Ž a performance de um saber performativo.
11 Conf. BROWN,J.R. Shakespeare, the Natyasastra, and DiscoveringRasa for Performance. NTQ, 21:.3-12, 2005. Neste artigo, seu autor relata aexperincia de valer-se dos conceitos do Natyasastra para prepara•‹o de atores pararepresentar Shakespeare, usando o rasa como est’mulo para a coerncia interpretativa
baseada na percep•‹o e recria•‹o de gestos e rea•›es cotidianos.
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O objeto de conhecimento determina a l—gica de sua investiga•‹o. Afinal, catalogar Ž
apresentar a coisa, Ž um modo de vincular o objeto apresentado ˆ sua apreens‹o em
um contexto de uma oralizada transmiss‹o de conhecimentos. O detalhamento
descritivo Ž a oferta da posse de algo que se define audiovisualmente.
N‹o admira que na abertura do texto temos o estatuto figurativo da obra:
alguns s‡bios vm ao encontro de Bharata, um grande conhecedor e especialista em
natya, integra•‹o entre dan•a, drama e mœsica. Forma-se uma roda em torno de
Bharata e seguem-se perguntas sobre natya. O Natyasastra apresenta em versos as
perguntas e respostas deste encontro, o jogo de roda entre o audit—rio e Bharata. A
sabedoria performada ( sastra) por Bharata a respeito da integra•‹o entre drama,
mœsica e dan•a Ž o que estrutura o Natyasastra. E essa sabedoria advinda n‹o da idŽia
da arte mas do contato com a tradi•‹o Ž passada pelo contato com os s‡bios.
A amplitude das atividades descritas por Bharata, desse modo, fundamenta-se
no vinculo entre conhecimento e tradi•‹o. As raz›es da performance encontram sua
medida no nexo cont’nuo e intenso com a situa•‹o efetiva da cena, em sua
composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o.
Uma an‡lise atenta de Natyasatra pode nos ajudar a estabelecer horizontes
mais eficazes para as rela•›es entre teoria e teatro.
Tanto que recentemente a apropria•‹o de conceitos do Natyasastra tem
passado por um grande debate cr’tico dentro da teoria da performance. R.Schechner,
em reedi•‹o de seu cl‡ssico Performance Theory, insere o artigo ÒRasaestheticsÓ
como œltimo cap’tulo, como se o contato com o Natysastra culminasse todo o projeto
te—rico-cr’tico do autor.
A apropria•‹o que Schechner faz do Natyasastra Ž seletiva12. Primeiro,
Natyasastra Ž usado para exemplificar como um chamado Ocidente se distingue de
um imaginado Oriente em termos de rela•‹o mente-corpo e, disto, temos asimplica•›es para a performance. Assim, o pressuposto racionalismo ocidental reduziu
certa abordagem mais hol’stica das artes da cena, enquanto que o pressuposto
sensualismo oriental incrementou tal abordagem.
Partindo dessa dicotomia baseada em estere—tipos culturais, Schechner advoga
um contato mais estreito com o Oriente- Natyasastra como forma de supera•‹o das
12 Sigo, nesse ponto, os lœcidos coment‡rios de MASON, D. Rasa,ÔRasaestheticsÕ and Dramatic Theory. Theatre Research International ,31:69-83,2006.
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dicotomias do Ocidente-Arist—teles e, desse modo, disponibilizar os intŽrpretes para
uma ampla dimens‹o da performance.
Para tanto, Schechner prop›e uma sŽrie de exerc’cios Ð chamados
Rasaboxes- para que tal supera•‹o se concretize e seja explorada pelos atores. Os
exerc’cios objetivam liberar o intŽrprete do dispositivo de vincular sua sensibilidade a
qualquer justificativa e motiva•‹o t’picas de um sistema de treinamento como o de
Stanislaviski: ao invŽs de se seguir uma Ôpsico-logiaÕ, o intŽrprete deve buscar as
partes menos l—gicas da emo•‹o, a emo•‹o por ela mesma.
Concretamente, os exerc’cios s‹o assim produzidos: os v‡rios membros do
treinamento desenham ou marcam para si uma ‡rea retangular no ch‹o. Cada
ret‰ngulo Ž dividido em nove partes. A parte central fica vazia. Nas outras escreve-se
o nome de emo•›es, de Rasas. Ap—s, cada pessoa mostra como materializa cada um
dos rasas para as outras, atravŽs do ato de associar sentimentos e idŽias ao nome da
emo•‹o. Depois, todos se movem entre os ret‰ngulos dos outros e v‹o se apropriando
fisicamente das express›es dos demais membros do treinamento. Para completar toda
a ronda o exerc’cio leva horas13.
Tal espacializa•‹o da emo•‹o se manifesta pela express‹o do corpo todo Ð
gestos, vocaliza•›es, movimentos. Os ret‰ngulos s‹o ‡reas de improvisa•‹o das
indica•›es emocionais e ‡reas de troca, de contato entre os demais agentes envolvidos
nessa experincia. O movimento entre os ret‰ngulos favorece a dupla perspectiva de
conhecer e expressar atos atravŽs de sentimentos e de participar do grupo e, com isso,
re-situar tais emo•›es sob uma perspectiva supra-individual.
Da’, temos a segunda face dessa apropria•‹o: o direcionamento para uma
experincia comunal se constitui em uma clara recusa de outra dicotomia presente no
teatro ocidental: a dicotomia entre recep•‹o e produ•‹o, entre atores e platŽia. Essa
arte total, plena residiria na idŽia de comunh‹o, que perpassa a estrutura•‹o dassess›es de exerc’cios dos Rasaboxes.
Contudo, tais elementos potencialmente cr’ticos atribu’dos ao Natyasastra
est‹o completamente ausentes no texto sanscr’tico. O Natyasastra n‹o se dirige
exclusivamente para treinamento e forma•‹o de intŽrpretes, n‹o se funda na
sobrevaloriza•‹o da sensibilidade, nem muito menos vale-se de uma unifica•‹o
pœblico-atores. O car‡ter enciclopŽdico do Natyasastra explicita a diversidade de
13 SCHECHNER, R. Rasaesthetics. Theater Drama Review, 45:27-50,2001.
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‰ngulos concomitantes pelos quais atos performativos s‹o produzidos e avaliados. A
met‡fora do banquete n‹o se reduz ao consumo sensorial. Antes, procura incluir
diferentes perspectivas de um mesmo e espec’fico processo.
Assim, n‹o h‡ a dicotomia emo•‹o-intelecto ou um corpo desmembrado ou
ainda o privilŽgio de um componente l—gico sobre outro f’sico porque o Natyasastra
n‹o parte da dicotomia prŽ-dada, como Schechner. A amplitude do saber performativo
que o Natyasastra pratica n‹o se confunde com a amplia•‹o de uma l—gica dual e
exclusivista que Schechner tanto defende, quanto ataca. A nega•‹o do Ocidente em
prol do Oriente operada pela Rasaesthetics Ž autista: se confina ao circuito restrito do
global mercado de exotismos.
A componente mercadol—gico de teorias interculturalistas nos mostram que
elas tambŽm legitimam certas pr‡ticas e valores, apesar de muitas vezes
propagandearam algo bem maior que seus produtos14.
Isso fica bem claro na pretens‹o de supress‹o da individualidade, do
comunitarismo objetivado pelos Rasaboxes. Na verdade, temos uma cr’tica ao
individualismo e n‹o ascens‹o a esferas alŽm da raz‹o. Ao se identificar
individualismo, racionalismo, dicotomia performer-platŽia como obst‡culos para uma
arte mais genu’na, profunda, total a op•‹o por inverter os referentes n‹o nos coloca
em um outro mundo nem, muito menos, torna justific‡vel a equa•‹o entre elementos
identificados e limita•›es ˆ liberdade criadora. Porque ali, na mesma letra, onde est‡
escrito aquilo que se nega,registra-se tambŽm aquilo que Ž reafirmado nesse mesma
nega•‹o: os Rasaboxes acabam por efetivar um espa•o teraputico o qual, para cada
indiv’duo, Ž uma oportunidade de regenera•‹o ps’quica15.
Assim, a disparidade entre a proposta de Schechner e o Natyasastra nos
mostra o qu‹o autoreferenciais podem ser as teorias. Trabalhando com um dom’nio
limitado de objetos e de conhecimentos, cada teoria corresponde, pois, a um conjuntolimitado de estratŽgias discursivas16. Logo, toda teoria explicita sua pr—pria
14 Cf. MASON, D. Rasa, ÔRasaestheticsÕ and Dramatic Theory. Theatre Research International, 31:12,2006.
15 M. Mininck,colaboradora de R. Shechner, afirma que ÒQuando as pessoas experimentaram os Rasaboxes, comentam com frequncia os aspectosteraputicos dos exerc’cios. Realmente, eles s‹o teraputicos.Ó in SCHECHNER, R.Rasaesthetics. Theater Drama Review, 45:15,2001.
16 GEROW,E .Rasa and Katharsis: A Comparative Study, aided bySeveral FilmsÓ Journal of The American Oriental Society,122:264-277,2002.
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metalinguagem. A amplitude de Natyasastra relaciona-se com a amplitude da
tradi•‹o catalogada, com a diversidade de pr‡ticas que parecem ser unificadas por um
texto que durante sŽculos foi escrito e reescrito.
Sem um centro tem‡tico, Natyasastra se espraia na obsessiva compila•‹o e
estabelecimento de conex›es entre pr‡ticas e estilos que seriam can™nicos, tudo isso
em fun•‹o de tradi•›es milenares mœltiplas e dispersas. Tanto que o alvo cr’tico das
postula•›es de Natyasastra desapareceu: o tratado se dirige a performances que s—
existem como cita•‹o.
Ironicamente, R.B. Patankar, comentando a relev‰ncia de Rasa em nossos,
dias, afirma que a teoria presente em Natyasastra tem sido mal trabalhada por dois
tipos de cr’ticos: aqueles que n‹o levam em considera•‹o contextos espec’ficos do
pensamento art’stico na êndia prŽ-brit‰nica e ignoram ou adaptam as proposi•›es
sanscr’ticas; e os pr—prios especialistas em s‰nscrito, que vem nos textos do passado
uma rel’quia e rejeitam toda e qualquer aplica•‹o da teoria do Rasa a obras e situa•›es
modernas17.
Tais pontos extremos apontados por Patankar imp›e que lidemos com
pressupostos que ostensivamente tenham conscincia de sua situa•‹o interpretativa.
Pois as tentativas de se escapar do paroquialismo cultural encontram no estudo das
teorias e do teatro sanscr’tico um impulso renovador 18. Na verdade mais que conhecer
realmente Natyasastra, Natyasastra, por seu estranhamento e situa•‹o-limite, Ž que
faz com que n—s conhe•amos melhor a n—s mesmos.
.
17 PATANKAR, R.B Does Rasa Theory Have any Modern Relevance? Philosophy East and West , 30,293-303,1980.
18 TILIS, S. East, West and the World TheatreÓ Asian Theatre Journal , 20:71-87,2003. V. BHARUCHA,R. A Collision of Cultures:Some WesternInterpretations of the Indian. Theater Asian Theatre Journal 1:1-20,1984.
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3- CATARSE, RASA, FLOR: CONTEXTUALIZANDO A PRODU‚ÌO
DE EMO‚ÍES A PARTIR DA COMPARA‚ÌO DE TRADI‚ÍES
PERFORMATIVO-MUSICAIS
A perspectiva deste trabalho Ž a contribui•‹o dos estudos teatrais - no caso, de
performances comparadas - para o esclarecimento do procedimento de produ•‹o de
afetividade em obras multidimensionais, ou seja, eventos interart’sticos que
demandam uma heterogeneidade de habilidades para sua elabora•‹o, realiza•‹o e
recep•‹o. Estamos, pois, falando de emo•›es suscitadas in situ, em um acontecimento
intersubjetivo orientado e definido pela explora•‹o de materiais e procedimentos
disponibilizados para uma audincia.
A limitada discuss‹o esbo•ada sobre os efeitos da tragŽdia em a PoŽtica
aristotŽlica amplia-se na compara•‹o com outros escritos sobre obras dram‡tico-
musicais, como o Natyasastra,de Bharata, e aos tratados de Zeami19.
ƒ importante observar que tais textos conjugam fatos de composi•‹o (formas
de encadeamento dos eventos representados) a efeitos de recep•‹o, demonstrando
como eventos performativos s‹o multidimensionais.
Por outro lado, Ž no detalhamento dos processos de composi•‹o, ausente em
A poŽtica, que se verifica, nos tratados sanscr’tico e japons, a inteligibilidade dos
efeitos por meio de procedimentos dram‡tico-musicais bem especificados.
Por meio desse jogo de aproxima•›es e contrastes, podemos melhor
contextualizar a amplitude e a complexidade do ato de se propor eventos impactantes
efetivados por meio de uma marca•‹o sonora das respostas emocionais. ƒ o que
pretendemos discutir neste trabalho.
Inicialmente apresento a conceptualiza•‹o aristotŽlica dos efeitos da tragŽdia,
na PoŽtica , conectando-as com o trecho do livro VIII de a Pol’tica (1342a). Emseguida, as propostas de Bharata e Zeami.
Arist—teles
A conhecida e sucinta passagem aristotŽlica sobre os efeitos emocionais da
tragŽdia vincula produ•‹o da afetividade com o arranjo das a•›es: ÒA tragŽdia Ž a
19 LEY 2000 tambŽm vale-se dos mesmo textos e autores que s‹o foco destacomunica•‹o, mas os concebe apenas com ÔdiscursosÕ, com pouca aplica•‹o ˆsatividades que descrevem.
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#V
m’mese de uma a•‹o em que a virtude est‡ implicada, a•‹o que Ž completa, de certa
extens‹o, em linguagem ornamentada, com cada uma das espŽcies de ornamento
diversamente distribu’da entre as partes, m’mese realizada por personagens em cena, e
n‹o por meio de uma narra•‹o, e que, por meio da piedade e do temor, realiza a
catarse de tais emo•›es20Ó
Em A pol’tica, Arist—teles havia afirmado que a mœsica n‹o s— como pr‡tica
educativa e sim como Ôcatarse, o que seria desenvolvido, aproximando a quest‹o da
catarse de seu horizonte audiofocal21. No conhecido trecho, ap—s discorrer sobre uma
interven•‹o na MousikŽ para a forma•‹o dos cidad‹os e da cidade, Arist—teles afirma
que,alŽm dessa uso dos objetos musicais h‡ outros: Òentendemos que a mœsica n‹o
deve ser apreendida apenas porque promove uma disposi•‹o benŽfica, mas sim
muitas; na verdade, o seu uso refere-se n‹o s— ˆ pr‡tica educativa como ˆ catarse;
quando tratarmos da PoŽtica explicaremos com mais clareza o que entendemos por
catarse que aqui empregamos de modo simplesÓ22.
20 PoŽtica 6 ,1449, b 27 ss. Cito tradu•‹o em GAZONI 2006: 51. Mais
recentemente, algumas vozes levantam veementemente em defesa do expurgo dessa passagem de referncias ˆ catarse, argumentando que a quest‹o da catarse n‹ocontribui em nada para a compreens‹o do projeto morfol—gico aristotŽlico, masrelacionado ˆ trama dos eventos que aos efeitos (SCOTT 2003,VELOSO 2007). Mas,
para uma discuss‹o ampla da dramaturgia musical, tanto no contexto ateniense quantona tradi•‹o de realiza•›es audiovisuais, Ž preciso fazer notar que temas decomposi•‹o (arranjo das partes) n‹o se desvinculam de quest›es de recep•‹o (MOTA2008). Plat‹o, em A Repœblica, discute em sucess‹o o modo de apresenta•‹o e o ethos musical, ap—s fundar a cidade ideal como recusa de tradi•›es performativas. V.MOTA 2007. A exclus‹o n‹o elimina o problema. A marca•‹o emocional Ž um
procedimento presente em obras dramatico- musicais, discutida e teorizada seja no
que se refere ˆ atua•‹o (Paradoxo do comediante,de Diderot), seja na dramaturgia( Pequeno —rganon, de Brecht). A quest‹o Ž pensar a produ•‹o de nexos e v’nculosrecepcionais em uma situa•‹o de representa•‹o, como se manipulam expectativas,referncias e materiais, sendo a marca•‹o emocional um dos procedimentosutilizados. ƒ em dire•‹o ˆ amplitude da cena que a marca•‹o emocional precisa serindexada. Se se iguala o efeito de obras multidimensionais ˆ marca•‹o emocional, sese inflaciona a afetividade dessas obras, omite-se a compreens‹o do contexto
produtivo, do processo criativo dessas obras, nas quais a marca•‹o emocional Ž maisum entre os procedimentos e recursos.
21 Pol’tica, 1341 b 38.22 Arist. Pol. 1341b Ð 1342 a . Arist—teles elenca trs tipos de usos da mœsica:
uma para fins educativos; outro para fins lœdico-representacionais; e um œltimo paradescontra•‹o e esfor•o ap—s o tempo dedicado ao trabalho.Ó
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Com a nfase na defini•‹o da tragŽdia mais na composi•‹o que na recep•‹o,
as implica•›es da musicalidade na produ•‹o dos efeitos tornam-se mais rarefeitas23.
De qualquer forma se esbo•a uma possibilidade, um argumento a ser desenvolvido em
projetos que levem em considera•‹o a rela•‹o entre produ•‹o de afetividade e
dramaturgia musical.
Natyasastra24
O tratado s‰nscrito divide-se em 36/37 cap’tulos, discorrendo sobre os
diversos aspectos que envolvem a elabora•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o de
umas obras que integram canto, dan•a, mœsica, palavra e atua•‹o. Essa dramaturgia
total Ž exposta em cap’tulos que acumulam descri•›es detalhadas e esbo•os de
discuss›es conceituais de atividades e conceitos diretamente relacionas ˆ
materialidade dos atos e efeitos dessa dramaturgia25.
Em virtude do car‡ter compilat—rio do tratado, escrito e reescrito durante
sŽculos, os cap’tulos tanto discorrem sobre um dos aspectos determinantes para
compreender obras dram‡tico-musicais quanto acumulam referncias aos demais
aspectos discutidos ou ainda a discutir. O perfil de Natyasastra Ž o de enciclopŽdica
enumera•‹o de distin•›es e detalhes relacionados a uma tipologia proposta para cada
um dos t—picos. ƒ um verdadeiro esfor•o de organizar e avaliar dados de tradi•›es
heterogneas, os quais nos remetem para uma intensa e especializada produ•‹o
dram‡tico-musical. A recolha dessas informa•›es, com o subseqŸente detalhamento
23 Entre os elementos da tragŽdia, Arist—teles afirma que o mais importante Ž atrama dos fatos,Poet. 1450 a . ELSE 1957 brada contra a elimina•‹o da mœsica da
poŽtica. SIFAKIS 2001:54-71, tenta reverter esse julgamento, apontando rastros demœsica na poŽtica a partir do conceito de imita•‹o. Mas recentemente DUPONT 2007fornece uma an‡lise mais detalhada das implica•›es dessa elimina•‹o metodol—gica
da dramaturgia musical.24 Para uma leitura mais detida do Natyasastra, v. MOTA 2006. Para o
conceito de rasa, v. MARTINEZ 1997 e 2001. Neste œltimo texto, Martinez traduznatya sastra como ÔdramaturgiaÕ.
25 Veja-se ordem dos cap’tulos: 1-4 origens m’ticas do drama musical erela•›es entre o drama e rituais propiciat—rios;5-programa das performances.;6-Rasa;7-Bhava;8-13 corpo em performance;14-tipologia do repert—rio e mapeamentode estilos regionais;15-19- verbalidade: mŽtrica,vocalidade, linguagem; 20-22tipologia do repert—rio(no Ocidente, t—pico associado ˆ teoria dos gneros); 23-23Caracteriza•‹o: figurinos, movimentos e gestos das figuras do repert—rio;27-
produ•‹o e recep•‹o;28-33 Instrumenta•‹o musical, tipologia das can•›es; 34-tipologia das personagens e distribui•‹o dos papŽis;35 excurso m’tico que finaliza otratado, retomando o in’cio.
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da fisicidade e das diversas implica•›es dos atos representacionais demonstra a
sofistica•‹o dessas tradi•›es n‹o reduzidas a um lugar, a um estilo de interpreta•‹o e
a um modelo compositivo.
O dois cap’tulos sobre a afetividade dessa dramaturgia musical inserem-se
nesse projeto de pensar e mapear distin•›es observadas nessas tradi•›es. Ou seja, Ž a
partir das performances, do contato com um repert—rio de obras e com sua
materializa•‹o Ž que a quest‹o da afetividade,tanto quanto as da caracteriza•‹o ou da
dramaturgia, s‹o expressas.
Nesses dois cap’tulos sobre a afetividade do espet‡culo dram‡tico musical
estudado em Natyasastra h‡ uma complementaridade entre o detatalhamento das
emo•›es em situa•‹o de performance, suscitadas pela atividade dos agentes cnicos, e
afetividade n‹o representacional, presente no cotidiano. Este passo Ž fundamental na
proposta de Bharata. Pois as emo•›es produzidas em cena n‹o uniformes: elas s‹o
heterogneas, em fun•‹o de suas fontes e de suas combina•›es. A complexidade da
marca•‹o afetiva nas obras multidimensionais investigadas no Natyasastra manifesta-
se na mœtua implica•‹o entre o representacional e n‹o representacional. A discuss‹o e
esclarecimento da complexidade da marca•‹o emocional precedem uma seqŸncia de
cap’tulos relacionados ˆ fisicidade do ator. O amplo detalhamento dos tipos de gestos
e movimentos depende da compreens‹o prŽvia dos nexos recepcionais. O que o ator
faz Ð Rasa Ð est‡ vinculado ao que o pœblico j‡ tem Ð bhava.
No tratado, rasa Ž exposto por uma analogia com a culin‡ria, com algo fora do
mundo do palco. Assim como uma refei•‹o Ž materialmente heterognea, composta
por v‡rios condimentos e produtos, gerando um sabor, do mesmo modo, um
espet‡culo providencia uma diversidade de afetos senso o sentimento final da obra o
que Bharata denomina Rasa. Mesmo podendo-se distinguir emo•›es, rea•›es,
est’mulos que acontecem durante um espet‡culo e seus correlatos no mundo fora daobra, em termos da realiza•‹o da performance tais efeitos e afetos conectam-se t‹o
intrinsicamente que n‹o h‡ mais como distingui-los. O que pode ser separado s‹o as
v‡rias modalidades desses conœbios as emo•›es provocadas e as emo•›es constru’das.
E todo caso a atividade do agente dram‡tico direciona-se para suscitar tais efeitos que
s‹o previamente distingu’veis e materialmente produzidos.
Assim, antes de se exercitar no dom’nio de suas habilidades performativas Ð
canto, movimento e posturas - o ator precisa conhecer o mundo, os modos como oshomens reagem aos acontecimentos, para depois selecionar e combinar estas
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referncias prŽvias (bhava) em formas e efeitos (rasa) que depois s‹o materializados
(abhinaya) fisicamente.
Desse modo, a amplitude do espet‡culo apontado em Natyasastra Ž
percept’vel tanto em sua realidade interart’stica quanto em sua multireferencialidade.
N‹o Ž ˆ-toa que nos conselhos para as pe•as sejam bem sucedidas, Bharata afirme:
Òos objetos a serem compreendidos s‹o tantos, a vida Ž t‹o curtaÓ, que cr’ticos, como
espectadores bem aplicados ao que observam, devem ser atentos, honestos e capazes
de argumentar e raciocinar ao mesmo tempo em que se alegrar quando a personagem
se alegra, ou se sentir u desgra•ado quando a personagem se sente desgra•ada. De
outro lado, o ator deve ter inteligncia, t™nus, beleza f’sica, timing , sentimentos e
emo•›es, idade apropriada para o papel, curiosidade, disposi•‹o para aprender,
lembrar e entender, para superar o pavor de estar no palco e poder se entusiasmar.Ó
Note-se a complementaridade entre as competncias exigidas entre quem faz e
que avalia os eventos encenados.
Zeami
O horizonte do projeto intelectual de Zeami difere intensamente dos dois
outros analisados. Inicialmente, temos a perspectiva de artista pertencente a uma
companhia teatral familiar, o qual se defronta com as tradi•›es art’sticas concorrentes
e com a sobrevivncia estŽtica e econ™mica.
Os 23 textos atribu’dos a Zeami abrangem 30 anos de produ•‹o monogr‡fica,
iniciada quando ele tinha 38 anos26.H‡ uma intensifica•‹o da elabora•‹o dessas obras
escritas a partir com o passar dos anos, com a retomada e amplia•‹o de quest›es
previamente apresentadas. Tal marco temporal melhor se compreende quando lemos
no cap’tulo de abertura do primeiro tratado escrito por Zeami, o Fžshikaden, que h‡,
para cada idade, uma demanda de excelncia (flor), e que um ator, que desde os seteanos Ð idade de come•o da forma•‹o das habilidades exigidas para o desempenho do
N™ Ð tenha se exercitado nessa arte, ao chegar ao limiar dos 40, deve tanto reexaminar
as experincias passadas quanto se preparar para enfrentar os efeitos da decadncia
f’sica e desenvolver as habilidades que projetem seu futuro.
Nesse sentido, o escrever nesta idade e mais e mais partir desse ponto cr’tico
manifesta a simultaneidade entre a auto-reflex‹o e um dom’nio de conhecimentos que
26 GIROUX 1981:85-103.
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ser‹o transmitidos durante um tempo em que o artista encontra em consagra•‹o
pœblica e excelncia na execu•‹o e conscincia dos atos.
Dentro desse horizonte, Zeami escreve para explicitar o dom’nio de uma
tradi•‹o interpretativa determinada. Essa fenomenologia do processo criativo para a
cena expressa-se heterogeneamente:ctemos tipologias e classifica•›es, conselhos,
exame da tradi•‹o oral, uso e discuss‹o de textos e doutrinas n‹o estŽticas, entre
outras fontes e meios de organiza•‹o de sua escrita.
A quest‹o da marca•‹o afetiva ou das emo•›es em situa•‹o de representa•‹o
n‹o Ž enfocada em um cap’tulo exclusivo em seus tratados. A afetividade n‹o Ž um
tema tratado em si mesmo, mas aparece sempre relacionada ˆ discuss‹o e
compreens‹o da atividade do performer . As emo•›es do espet‡culo apenas existem
com um subtema relacionado com a materializa•‹o do espet‡culo por meio do ator.
Essa inusitada abordagem n‹o nega a existncia de emo•›es nem muito menos
justifica uma reduzida postura intransitiva e autoexplicativa de eventos
multidimimesionais. A prevalncia do trabalho do ator sobre outros t—picos relativos ˆ
arte teatral manifesta um ancoramento dos julgamentos e reflex›es de Zeami: s— faz
sentido falar de algo performativo a partir do momento que se trabalhe com algo que
d coerncia ao processo que se investigue.
Este ancoramento, contudo, n‹o limita ou elimina a amplitude do evento.
Antes, Ž a partir da compreens‹o que tudo que se mostra precisa ser realizado de
algum modo, precisa ser organizado em sua efetiva•‹o, que a base performativa da
abordagem de Zeami n‹o se confunde com indiv’duo-ator ou sua difusa e redundante
idealiza•‹o.
Da’ a flor. Em sua ambivalncia, a imagem da flor Ž utilizada em diversos
contextos para traduzir distintos aspectos da forma•‹o do ator e da amplitude do
espet‡culo27. Como o ator Ž o espet‡culo, a diversidade de procedimentos ehabilidades que Ž apresentada por Zeami acarreta a compreens‹o dos par‰metros do
espet‡culo. A flor, hana, Ž inicialmente o aspecto da figura que se representa (o velho,
o louco) vista na sele•‹o de seus tra•os que a melhor definam28. Ou seja, a atua•‹o
articula-se com a configura•‹o. Essa configura•‹o Ž conhecida pelo ator e pelo
27 A ÔflorÕpode se referir: I- ˆ excelncia do performer ; II- ˆ pr—pria performance, como algo que aparece e se mostra em sua organiza•‹o; III- ao efeitodessa organiza•‹o sobre uma recep•‹o.
28 Sigo de perto discuss‹o em SIEFFERT 1968:70-75.
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pœblico. O ator precisa explorar o espa•o entre configura•‹o conhecida e sua
habilidade de valer-se de suas habilidades para concretizar o modelo quanto ampliar a
percep•‹o deste, enriquecendo o repert—rio ao diversificar as expectativas de recep•‹o
do tipo. Cada um dos papŽis possui sua configura•‹o, expectativas e dificuldades para
a sua realiza•‹o e amplia•‹o do interesse. Assim como a flor, aquilo que se espera do
papel, h‡ a flor no modo como este papel Ž realizado e outra flor no modo como ele Ž
recebido.
Na discuss‹o dos papŽis de possesso e dem™nio isso fica bem claro. Se o ator
se entrega a estes papŽis, que demandam uma complexidade de movimentos para sua
execu•‹o para que se produza um impacto na audincia, e vale-se predominante de
uma intensidade que apaga a percep•‹o da configura•‹o , vai fazer com que haja
perda de interesse por parte da platŽia. A dificuldade reside em reunir, no caso do
dem™nio, por exemplo, impulsos antag™nicos do horror e da atra•‹o, ou, na imagem
de Zeami, que afirma: provocar o interesse do dem™nio Ž como Òo eclodir de uma flor
sobre um recifeÓ. Tanto que se o ator apenas apresentar corretamente o dem™nio, far‡
um trabalho sem apelo algum.
Nesse ponto se entende que flor conecta-se a flor, e o uso de uma imagem em
suas v‡rias aplica•›es aponta para o dom’nio das aparncias, daquilo que se mostra
como o campo de discuss‹o e compreens‹o do ator e das emo•›es do teatro N™. A
afetividade do espet‡culo acopla-se ˆ identifica•‹o do que Ž exibido em cena, do
modo como o ator aplica sua forma•‹o e suas habilidades para, em situa•‹o de
performance, explorar as tens›es inerentes ˆs escolhas da materializa•‹o do papel. O
papel n‹o Ž a pessoa do intŽrprete, assim como a atua•‹o n‹o Ž a proje•‹o de uma
intensidade pontual dos atos. Cada figura do repert—rio, nos contextos das pe•as, e na
tradi•‹o dos modelos, apresenta uma hist—ria de apropria•›es e transforma•‹o das
referncias a partir das performances realizadas. A audincia afei•oa-se tanto ˆqualidade da configura•‹o apresentada quanto ˆ qualidade do performer em
reorientar, dentro dos par‰metros da figura, as possibilidades do papel. Da’ temos
n’veis de aprecia•‹o, prazeres multiplicados, flores, n‹o somente aqueles relacionados
o papel, mas com o evento teatral: a demonstra•‹o de habilidades in situ a partir dos
limites e possibilidades da tradi•‹o e do repert—rio.
Ora, este tipo de afetividade relacionada a uma inteligibilidade de uma atua•‹o
em configura•‹o melhor se evidencia quando observamos que o teatro N™ Ž umespet‡culo dram‡tico-musical no qual dan•a e canto determinam os atos dos
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intŽrpretes29, e, consequentemente, a participa•‹o da audincia. O estudo dos papŽis
vincula-se ao desenvolvimento de habilidades corporais e musicais. Logo, podemos
perceber uma paleta de emo•›es (desinteressante, interessante, ins—lito, maravilhoso)
vinculada ̂ qualidade da interpreta•‹o.
Caso extremo Ž o do œltimo grau: o efeito mais impactante no espectador, a
emo•‹o alŽm da emo•‹o, que dar‡ renome ˆ sua companhia, reside em uma ausncia
de forma, no desaparecimento da configura•‹o, da marca30. Mais precisamente o
efeito mais intenso que a dramaturgia musical pode desenvolver na audincia est‡ em
uma aparncia desprovida de sua tipagem, quando j‡ se realizou o correto e j‡ se
identificou a maestria do intŽrprete e, ent‹o, o foco j‡ n‹o est‡ aquilo que antes era
reconhec’vel como o material transformado pelo artista ou o trabalho do artista em
transformar tal material. Este novo sem passado, ÔpuraÕ apari•‹o, Ž a n‹o
interpreta•‹o, Ž a superemo•‹o. A negatividade Ž o absoluto provimento de algo cuja
materialidade se aprende no momento ampliado e redefinido dessa performance que
ultrapassa as suas determina•›es produtivas.
Nesse sentido, a fenomenologia que Zeami realiza de uma dramaturgia
musical, a partir do efetivo processo criativo para a cena, exibe distin•›es que, em um
momento parecem abstratas, mas que, na verdade, explicitam a especificidade dessa
atividade de propor imagin‡rios audiovisuais para uma audincia.
Ainda, segundo MILNER 1996:83, Òpodemos conceber a flor (nos escritos de
Zeami) como sendo um ideal art’stico relacionado com a performance teatral.
Surpreendentemente, Arist—teles tinha pouco a dizer sobre a performance, e nada de
aproveit‡vel sobre os atores. Como um homem de teatro em todos os sentidos, Zeami
se preocupa com o que est‡ em curso, com o que os atores dizem e cantam, como se
movem e dan•am. Em outras palavras, a flor Ž o ideal de um te—rico e teatr—logo, preocupado acima de tudo com a performanceÓ
Zeami explora quest›es da atua•‹o a partir das implica•›es da musicalidade
da performance que organiza o espet‡culo. Assim, Òquanto a saber se nossa arte Ž, em
primeiro lugar, etiqueta ou mœsica, ela Ž antes mœsica. (250)31.Ó Mais
29SIEFFERT 1968:165-166.30SIEFFERT 1968:132 e 170.31 Em parntesis nœmero das p‡ginas das cita•›es de Zeami presentes em
GIROUX 1991.
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explicitamente,Òpode-se considerar que os dois elementos, canto e dan•a constituem
seu estilo fundamental (158)Ó
A interse•‹o entre mœsica e atua•‹o promove a ÔflorÕ: Òassim, a mœsica bela e
melodiosa vem da realiza•‹o suprema. O encantamento (a flor da mœsica) n‹o existe
por si. Ap—s ter estudado cuidadosamente todas as formas e ter ascendido ao grau do
bem estar, este encantamento transparecer‡ naturalmente na melodia (208)Ó.
Explorando suas habilidades em situa•‹o de performance, o intŽrprete
manipula as expectativas da audincia e, disto, atinge a flor, o efeito da representa•‹o:
ÒSe se sentir que o pœblico inteiro espera, com a respira•‹o suspensa, que o ator se
imobilize, ent‹o deve-se parar com do•ura. Mas, se parecer que a maior parte tem
apenas um simples interesse, ent‹o que ele encontre a tens‹o de esp’rito e se imobilize
bruscamente. Caso se imobilize contra toda a expectativa do pœblico, nascer‡ o
interesse. Isso Ž enganar o esp’rito da platŽia. Eis porque Ž particularmente importante
guardar o segredo de suas inten•›es a fim de n‹o as revelar aos que o assistem
(179).Ó
Como podemos observar por meio da exposi•‹o e compara•‹o das propostas,
em obras dram‡tico-musicais, os efeitos na audincia s‹o produzidos pela
demonstra•‹o de maestria dos par‰metros musicais que organizam a atua•‹o. A
configura•‹o, a forma adotada Ž o ponto de inteligibilidade que orienta a resposta
emocional. A construtividade do espet‡culo manifesta a construtividade do efeito.
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4- GENEALOGIAS DA DAN‚A: TEORIA CORAL E A DISCUSSÌO
DE ESTUDOS SOBRE A DAN‚A NA GRƒCIA ANTIGA
O eterno retorno ˆs fontes produz assincronias e assimetrias hist—ricas que
acarretam novos modos de se pensar e fazer arte. O caso da dan•a na GrŽcia antiga Ž
sintom‡tico32. Desde o sŽculo XIX, a partir da filologia cl‡ssica, monumentos
figurados da antiguidade (‰nforas, lŽcitos, crateras,pinturas,etc) foram utilizados
como registros de movimentos dan•arinos. Assim, por exemplo, a an‡lise e
decomposi•‹o de tra•os de figuras em vasos gregos poderiam nos informar sobre
procedimentos coreogr‡ficos. Um grupo de pessoas pintado em um vaso nos
habilitaria a reconstituir um conjunto de movimentos: cada figura apresentaria um
aspecto desse conjunto. ƒ o que se pode observar nas obras de Maurice Emmanuel
(EMMANUEL 1896), Louis Sechan (SECHAN 1930), G. Prudhomeau
(PRUDHOMEAU 1965)33.
Outra abordagem Ž a de se interrogar documentos escritos: h‡ diversos textos
que apresentam referncias ˆ dan•a na antiguidade, desde textos poŽticos, que tanto se
organizam a partir de situa•›es performativas como registram informa•›es visuais
sobre tais situa•›es, atŽ coment‡rios e discuss›es em tratados filos—ficos ou textos
liter‡rios, como o fizerem Fritz Weege (WEEGE 1926), Heiz Schreckenberg
(SCHRECKENBERG 1960) e Lillian B. Lawler (LAWLER 1967 e 1974).
AlŽm dessa dicotomia entre texto e imagem, temos a proposta de Dora
Stratou(STRATOU 1966) e Alkis Raftis (RAFTIS 1987, LAZOU, A. & RAFTIS),
que correlacionam dan•as tradicionais ainda vigentes na hŽlade com dan•as gregas na
antiguidade34.Esta œltima alternativa tem tornado cada vez mais evidente a aproxima•‹o
entre discuss‹o da dan•a na antiguidade e sua recep•‹o. Ou seja, a cada nova
32 V. NAEREBOUT 1997, BUCKLAND 2006, CARDEN-COYNE 2009.33 V. HECK 1999.34 Para o teatro Dora Stratou, que abriu as portas em Atenas em 1953 , v.http://www.grdance.org/en. Para as outra obras de A.Raftis,http://www.grdance.org/raftis/index.html. Para as dicotomias texto/imagem narecep•‹o da dan•a grega,v. NAEREBOUT 1995. V. ainda SHAY 2002 e COWAN1990.
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apropria•‹o do que teria sido a dan•a grega manifesta-se um ato singular, criativo,
transformador. A retomada do passado, mesmo motivada pela perspectiva mais
reprodutora poss’vel, acarreta no plano do presente modifica•›es, reinterpreta•›es. E
quanto mais a apropria•‹o de um material hist—rico se faz em um contexto
performativo mais e mais essa modifica•›es se tornam patentes. Ao se transladar para
o corpo dos intŽrpretes e para a intera•‹o com a audincia, o esfor•o de reconstitui•‹o
se transforma em uma pr‡tica configuradora35. Este paradoxo hist—rico-expressivo
das artes performativas nos coloca diante da interpenetra•‹o entre arte e pesquisa, ou
do diferencial do trabalho do artista pesquisador que em seu processo criativo se vale
de materiais outros que os imediatamente dispon’veis.
Nesse sentido, temos o estreitamento entre pesquisa acadmica e art’stica
como exemplo recente na figura de Marie-HŽlne Delavaud-Roux. Em conjunto com
sua atividade de 'Ma”tre de conferences ˆ la facultŽ Victor-Segalen, Brest', por meio
da qual ela publicou diversos livros sobre dan•a na antiguidade (DELAVAUD-
ROUX,M.-H. 1996,2000,2000 a ), Marie-HŽlne Delavaud-Roux se dedica tanto a
coreografar, quanto a dan•ar performances instru’das a partir de estudos da dan•a na
antiguidade36. Denomino Ôperformances instru’dasÕa pr‡tica de se atualizar na
situa•‹o de apresenta•‹o tanto uma expressividade que implica mutuamente uma
enciclopŽdia de conhecimentos de intelectuais sobre determinado t—pico, quanto um
repert—rio de tŽcnicas e saberes corporais. Isso s— Ž poss’vel,pelo menos, em dois
casos: ou em um processo coletivo, no qual profissionais de diversas ‡reas reœnem
suas v‡rias especialidades em fun•‹o de uma meta comum, ou como no caso de
Marie-HŽlne Delavaud-Roux que tem forma•‹o em dan•a e em filologia. De
qualquer forma, note-se o desdobramento em diversos campos de conhecimento e
habilidades. O estudo da dan•a mais produtivo passa pela intera•‹o entre diversas
disciplinas e tŽcnicas, formando um intercampo de diversas artes e saberes.ƒ o que se pode observar em duas recentes publica•›es em torno da dan•a
grega.
1- Em 2006, no Archive of performances of Greek and Roman Drama, na
Universidade de Oxford, teve lugar um simp—sio internacional, ÔGreek drama and
35 KARAYANNI 2004, ZAFIRI 2007, SCHERECKEMBERG 1960.36 Veja no link blogs.univ-brest.fr/ledenominateurcommun/parlons-danse-antique-avec-marie-helene-delavaud-roux/, demonstra•›es de dan•a grega por M-H.Delavaud-Roux.
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Modern DanceÕ, que enfocou a rela•‹o entre performers e core—grafos modernos e
contempor‰neos com a recep•‹o de temas da cultura cl‡ssica37. O car‡ter
interdisciplinar e interart’stico do evento era motivado pelo questionamento da
sinuosa presen•a da ideia de coro e de sua contrapartida menos compreendida: a
dan•a.
Esse apagamento do coro na transmiss‹o e recep•‹o da cultura cl‡ssica
promoveu tanto a uma redu•‹o de seu impacto, quanto solu•›es que muitas vezes
dialogam mais com seus pr—prios contextos criativos. Em suma, a busca de se
atualizar uma pr‡tica considerada modelar apena prolonga o intervalo entre Žpocas
diversas, hiato imposs’vel de ser transpostos Ð o da dist‰ncia hist—rica. Dessa forma,
tornou-imperativo a presen•a e discuss‹o do coro(e da’ da dan•a) a partir de
montagens realizadas ap—s os anos 80 do sŽculo passado.
As comunica•›es ao simp—sio foram publicada em forma de livro: The
Ancient Dancer in the Modern World: Responses to Greek and Roman Dance
( MACINTOSH 2010). Nele, observa-se a diversidade de abordagens e perspectiva em
torno de um objeto flu’do, que se rematerializa das mais diversas formas: ora Ž o
fil—logo interrogando textos e imagens para capturar algum detalhe esclarecedor que
possibilite fundamentar melhor o entendimento do passado, ora temos historiadores
da dan•a e performers rompendo com os limites das fontes para nos conduzir para as
pr‡ticas e suas l—gicas dispersivas. Em todo caso, projeta-se para o leitor uma
enciclopŽdica acumula•‹o de resultados ainda em progresso, uma imagem n‹o
fechada daquilo que se procurou investigar. Pois, se Ž recente uma virada em dire•‹o
de atos performativos nas cincias da vida, a dan•a se converte em campo estratŽgico
para essa demanda38.
ƒ o que se pode notar em esfor•os como o do simp—sio ÔGreek drama and
Modern DanceÓ. H‡ tanta coisa para se discutir, tanto sobre o que se falar, que o t’tulodo simp—sio n‹o abarca o que de fato foi debatido. Pois, para se discorrer sobre a
dan•a, h‡ tanta dificuldade, tantos caminhos indiretos que o pr—prio evento, que se
toma um enorme espa•o para se atualizar velhos protocolos de interpreta•‹o. A dan•a
Ž discutida como texto, como palavra, como ideia, como rito, como arte, entre tantas
coisas. Isso se deve ao fato que historicamente a dan•a sempre ocupou esse lugar
nenhum, essa dimens‹o de outorga, subsidi‡ria e marginal. Tivemos ÔŽpocasÕ em
37 www.apgrd.ox.ac.uk.38 BIAL 2007,CARLSON 2003.
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torno da literatura, da pintura, da mœsica. Mas a dan•a, mesmo que elogiada ou
distinta, permaneceu nisso, como algo que em si mesma j‡ n‹o Ž: sempre depende de
uma outra inst‰ncia, superior ou inferior. Dentro de uma escala de valores e atributos,
rea•›es para valorize-la, ora tendiam para real•ar seu formalismo e autonomia, ora
para index‡-la a qualquer outra pr‡tica ou discurso.
Na verdade, diante de uma longa tradi•‹o de apagamento e controle, o
discorrer sobre a dan•a vai se deparar com o fragmentarismo de sua recep•‹o. Sempre
em peda•os, em alus›es, em empregos derivativos, a dan•a aparece destinada a uma
sobreposi•‹o de referents: para se reconstruir Ž preciso correlacionar informa•›es
d’spares de diversos espa•os-tempo. Essa epistemologia do retalho, da indefini•‹o,
do perfume, frequentemente se exibe como auto-elogio, mas logo, logo sossobra na
nostalgia de uma ordem, de um fundamento.
ƒ extremamente perturbador folhear as p‡ginas de The Ancient Dancer in the
Modern World: Responses to Greek and Roman Dance e perceber que, por mais que
seja premente estudar e compreender a dan•a, o empenho investigativo ali expresso
ainda n‹o enfrentou seu espelho: os obst‡culos mesmos presentes em tradi•›es
intelectuais que, por suas pr—prias estratŽgias adotadas, entravam o acesso ao objeto.
ƒ como querer ca•ar coelho com uma enxada: o alvo se afasta, e o equipamento n‹o
serve. Fala-se de dan•a, mas n‹o de movimento.
Pesa sobre esta convergncia metodol—gica uma longa tradi•‹o de exclus‹o
sobre corpo e coro na recep•‹o da cultura cl‡ssica. ƒ extremamente dif’cil colocar no
centro de discuss›es algo que foi sempre tratado nas margens da palavra falada. Os
casos emblem‡ticos de Isadora Duncam e Martha Graham que partiram de referncias
da cultura grega antiga para realizar suas dan•as fundadoras ainda s‹o tratadas como
"classical influences upon modern dance.39"
2- Em meio ao incremento de estudos sobre a dan•a grega, um livro parece
apontar em outra dire•‹o. Trata-se de The dance of muses, de A. David (DAVID
2006)40. Come•o n‹o pelo livro, mais pelos videos que A.P. David disponibiliza em
seu site. A proposta de A.P. David Ž n‹o o de uma reconstru•‹o original da dan•a
grega, e sim de questionar o modo como lemos a cultura helnica apenas como tema e
39 Para uma outra perspectiva, v. NAEREBOUT 1998.40 Analiso mais detalhadamente a quest‹o mŽtrica da proposta de A.P.David emMOTA 2010.
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ideia. Seu ponto de partida Ž o dos metros. Grande parte dos textos gregos cl‡ssicos
se organizava em torno de padr›es r’tmicos baseados na distribui•‹o de dura•›es das
s’labas e o jogo dessas dura•›es com acentos de intensidade. Assim, Homero e as
tragŽdias e as comŽdias eram elaboradas em fun•‹o da distribui•‹o de tempos e
acentos.
A.P. David articula esses padr›es mŽtricos, chamados de 'pŽs', a movimentos
f’sicos, a passos. No caso de Homero, o metro recorrente presente no texto (d‡tilo) se
correlaciona a uma coreografia. Veja-se o video ÔHomer greek danceÕ41 . Nele temos
uma performance de 2001 que demonstra a proposta de A.P. David. Em colabora•‹o
com a core—grafa Miriam Rother, assistimos a um jogo cnico entre a leitura de
trechos de A OdissŽia, de Homero ( Cat‡logo das naus, dan•a na corte de Alcinoo) e
as movimenta•›es de um grupo de estudantes. O grupo entra apresentando o ritmo
b‡sico e depois circunda o recitador de poemas (A.P.David). Enquanto a leitura do
texto prossegue, o grupo de m‹os dadas e em c’rculo performa os passos do padr‹o
mŽtrico.
A composi•‹o da performance parece simples. Dentro da sala, contra o ch‹o
de madeira, a movimenta•‹o recorrente dos passos dos membros do grupo ecoa um
som firme contra a est‡tica posi•‹o central do recitador. PorŽm, uma an‡lise mais
detida explicita alguns procedimentos que enriquecem a percep•‹o do que se mostra
no video. Em primeiro lugar, as oposi•›es entre o coro e o recitador se d‹o dentro do
continuum da performance: durante o tempo da apresenta•‹o e naquele espa•o
definido as diferen•as expressivas entre entre eles ser‹o colocadas em sobreposi•‹o,
provocando tanto entrechoques quando junturas. Aparentemente, a oposi•‹o entre a
estaticidade do recitador e a din‰mica do coro parece absoluta. Mas, por meio da
sobreposi•‹o, nota-se que o ritmo recorrente dos passos marca um ritmo que se
aproxima da fala proferida em padr‹o mŽtrico. Assim, o movimento dos pŽs sevincula ao movimento que a fala aduz, provocando novas assincronias e sincronias.
Pois o ritmo em estacatto dos pŽs n‹o se ajusta perfeitamente ao legato da voz. NO
entanto, mesmo assim, essa conjuga•‹o de pontos em uma linha do tempo d‡
profundidade ao evento: a repercuss‹o das batidas nos pŽs vai formando um ru’do
branco que unifica a performance, descentrando o primazia da voz como guia da cena
ou fonte de informa•‹o privilegiada a respeito do que est‡ acontecendo.
41www.web.mac.com/homerist/Dance_of_the_Muses/Homer_Dance_Video.html.
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Assim, com o prosseguir dos atos, novos efeitos e fun•›es s‹o agregadas. A
vincula•‹o do som ao movimento por meio de recorrentes batidas dos pŽs e dos
tra•ados proporciona um contexto de participa•‹o tanto para os membros do grupo
quanto para a audincia encerrada na sala. O jogo entre interrup•‹o e retomada do
movimento presente em cada cŽlula r’tmica da cena vai sendo expandido, ampliando a
imagem daquilo que se recebe a cada momento. A dan•a circular ao fim, nesse
esfor•o constru•‹o de um pulso e nfase nas recorrncias, acaba por atrair para si para
sua pr—pria configura•‹o as atividades dos intŽrpretes e audincia. Por meio da dan•a,
tudo vai sendo reunido e constraposto, para, enfim, integrar-se em conjuntura
ampliada. O grupo coral produz ent‹o pelo itera•‹o um minimalismo explorat—rio em
que um mesmo ritmo Ž redefinido a cada instante, rompendo com sua inteireza e
autofechamento para estar presente nas mais diversas formas de referncia ( passos,
palavra, sons, visualidade).
Em outra dire•‹o, o video exibe as implica•›es da metodologia de A.P.David:
em vez de s— se dizer o texto, o ritmo que havia nas palavras ultrapassa a p‡gina
impressa e vem habitar o mundo da vida como dan•a. Esse movimento que implode o
textualismo e se revigora em movimento, a partir de algo tido como circunscrito ao
seu raio de a•‹o, Ž a maior contribui•‹o de A.P.David. N‹o se trata de ilustrar as
palavras por meio da dan•a. A expl’cita pol’tica de interpreta•‹o presente na proposta
de A.P.David pode assim ser formulada: se Homero, que Ž o modelo de literatura do
Ocidente, foi elaborado a partir de ritmos presentes no mundo da vida, ent‹o dan•ar
Homero Ž atualizar que h‡ todo um conjunto de modos de produ•‹o de referentes e
participa•‹o que n‹o se encontram delimitados por protocolos de interpreta•‹o
textualistas. Dan•a n‹o Ž texto, n‹o Ž linguagem, n‹o Ž imagem. Em sua dimens‹o
integrativa, a dan•a se apresenta como uma pr‡tica de articula•‹o de diversos modos
de express‹o e referncia. Assim, no menos Ôdan•avelÕ modo de express‹o Ð a ŽpicahomŽrica - podemos encontrar a dan•a mesma. No lugar da oposi•‹o dan•a /n‹o-
dan•a, o lugar da dan•a Ž o de uma presen•a absoluta, que Ž a do corpo e suas
medidas e express‹o. Apagar a dan•a em prol da fala, do texto escrito, foi
contraditoriamente tentar excluir a corporeidade como fundamento e impulso dos atos
expressivos. A contradi•‹o se resolve facilmente quando se pensa a dan•a como
dan•a e n‹o a partir da n‹o-dan•a. Foi o que A.P.David fez: inseriu a dan•a onde ela
parecia n‹o existir, para que se revelasse como dan•a. Na composi•‹o da performance, o que Ž dan•a, sua orienta•‹o integrativa, transparece. E a c—pula se
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efetiva por meio de um movimento de cont’nuo e coletivo de, em situa•‹o de
performance, dispor para audincia a simultaneidade do heterogneo: ao mesmo
tempo o movimento corporal, os sons e as palavras se reajustam no jogo entre si,
promovendo aproxima•›es e afastamentos percept’veis dentro de escalas diversas de
fen™menos psicof’sicos.
Ali, diante de todos n—s, os membros do coro dan•a e fazem mais que dan•ar:
tudo em volta e tudo o que fazem Ž transformado por seus passos. H‡ alguŽm falando.
Mas quando se dan•a na sala, quem fala passa a ser alguŽm que fala dan•ando, que
dan•a com as palavras, as palavras agora em movimento. A fala Ž o outro da dan•a, Ž
uma outra dan•a. A dan•a abarca em sua amplitude todos os atos. Por isso, sempre
foi ocultada, por sempre estar em todos e em tudo. Ainda: o coro dan•a. Mas tambŽm
emite sons, agrega outras atividades. O dan•arinos performam em situa•‹o
multitarefa. Logo, a partir disso, se quando alguŽm fala, na verdade dan•a, e quando
alguŽm dan•a tambŽm faz outra coisa, temos que o car‡ter absoluto da dan•a e do
movimento se percebe n‹o como um discurso abstrato de auto-elogio e sim na
concretude de atividades interligadas. O ritmo mesmo, que atravessa toda a
apresenta•‹o, Ž consequncia, Ž produto justamente dessa contextura de atos
correlativos. O espec’fico na dan•a Ž ser o entre-lugar das mais diversas atividades.
Sua heterogeneidade se manifesta em fun•‹o de seu horizonte de integra•‹o.
O coro no video disponibilizado por A.P.David, em sua arcaica exibi•‹o de
uma dan•a circular, foi elaborado a partir de estudos de mŽtrica e teoria coral gregas,
valendo-se de uma dan•a tradicional ainda performada na GrŽcia: o sirt—s (syrtos).
Temos novamente o caso de uma performance instru’da, na conjuga•‹o entre uma
erudi•‹o acadmica e repert—rio de habilidades corporais. No caso, temos o de uma
equipe interdisciplinar que trabalha com alunos em dois n’veis: o da mŽtrica textual e
da coreografia de uma dan•a tradicional.A provocativa proposta de A.P.David reside no fato de avan•ar por sobre os
limites da reconstru•‹o acadmica da dan•a na Antiguidade e propor uma correla•‹o
entre a mŽtrica de um texto escrito h‡ mais de dois mil e quinhentos anos e os passos
de uma dan•a atual. Estes limites da reconstru•‹o acadmica se tornam poss’veis
quando adentramos no contexto de um processo criativo. A criatividade aqui Ž tanto
inven•‹o das formas, quanto de produ•‹o de conhecimento. Na verdade, A.P.David
acaba por enfatizar fatos b‡sicos de eventos performativos: toda performance Ž unica,mesmo contando com prepara•‹o e elementos prŽvios. A criatividade na
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reperformance de dan•as da antiguidade n‹o pode ser vista como um desajuste em
rela•‹o a um poss’vel original, pois n‹o h‡ esse original. A reperformance de
materiais hist—ricos historiciza quem dela participa: para os integrantes do processo
criativo fica a aprendizagem de quem cada nova performance Ž um novo original 42;
para os estudiosos e historiadores, a criatividade do processo criativo da
reperformance de dan•as da antiguidade exibe a necessidade de um pluralismo
metododol—gico que saiba lidar com as descontinuidades tanto das fontes, quanto das
express›es. Desse modo, a coerncia das performances instru’das reside na revis‹o
das estratŽgias interpretativas dos pesquisadores e/ou artistas.
Vamos por partes: os artistas podem achar que est‹o perigosamente fazendo
algo sem fundamenta•‹o, sem adequa•‹o ao que teria sido aquilo que est‹o
procurando realizar. Este questionamento Ž bem incompleto. Primeiro, em um
processo criativo temos a experincia de transforma•‹o dos intŽrpretes e de suas
fontes: nada vai permanecer como era43. Tal pressuposto choca-se com a vis‹o de que
o ato criativo Ž a reprodu•‹o de algo j‡ prŽ dado, da transposi•‹o sem altera•›es desse
prŽ dado para os corpos e para a cena. O sentimento de que n‹o h‡ adequa•‹o entre
os atos de agora e o modelo de outra, esse intervalo e angœstia criativos, Ž algo
constitutivo do processo criativo, na presen•a mesma da tens‹o entre o impulso
configurador e a modifica•‹o de tudo que previamente se disp›e nos atos
transformativos. Na verdade, o fato de se trabalhar com materiais hist—ricos apenas
evidencia a atividade mesma do intŽprete. Em outras palavras, a reperformance de
dan•as hist—ricas Ž um subcaso caso da situa•‹o mesma de intŽrpretes em um
processos criativo. No momento est‹o operando sobre um material hist—rico, noutro
poderiam estar trabalhando sobre referncia da cotidianeidade. Mas em um e outro
caso eles se defrontam com o mesmo problema: uma metodologia do processo
criativo que leva em conta as dificuldades e obst‡culos inenrentes a atividades de umatransforma•‹o generalizada dos intŽrpretes e de seus materiais. No caso de se
reperformar dan•a grega antiga, por mais instru’dos e eruditos que sejam os
intŽrpretes, aquilo que eles v‹o apresentar em cena n‹o Ž mais dan•a grega antiga. E
ent‹o por que se propor a fazer algo que n‹o Ž o que pensam ser? Por que o esfor•o
de reperformar algo que j‡ n‹o Ž?
42 LORD 2000:100-102.43 V. PAREYSON 2005, PAREYSON 2003, MOTA 2004.
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V"
Toda a problem‡tica reside na ideia de se aplicar ˆ express‹o "dan•a grega
antiga" uma identidade fechada, uma defini•‹o total de seus atributos, como se ela
fosse est‡vel e reconhec’vel em imagens e textos sobre sua pr—pria caracteriza•‹o.
Para tornar essa ideia mais suscet’vel ˆ sua argumenta•‹o, troque-se o referente: no
lugar da express‹o 'dan•a grega antiga' coloque-se 'dan•a grega tradicional'. Para n‹o
gregos, para os estudantes que se apresentam no v’deo temos uma mesma dificuldade:
ainda Ž aquilo que n‹o dominam, aquilo que v‹o ter de aprender, aquilo que vai se
apropriado e transformado no processo criativo. A dist‰ncia no tempo apenas amplia
a atualidade das dificuldades. E quanto mais pare•a dif’cil, imposs’vel de ser
realizada a meta, mais a compreens‹o da amplitude do processo criativo se faz
presente. Pois a reperformance de dan•as hist—ricas surge causando um duplo frenesi:
a atualidade do mais remoto Ž um impulso dirigido ao tempo de hoje, seja na busca de
algo que parece n‹o haver aqui e agora, seja no ceticismo diante de empreendimentos
arqueol—gicos - "o que eu tenho a ver com esses gregos?44"
Aqueles jovens do v’deo devem ter enfrentado esse duplo frenesi, vivendo a
tens‹o entre o abandono de si e o medo de ser perder gratuitamente. Em todo caso, a
reperformance de dan•as hist—ricas se apresenta primeiro como uma utopia, uma meta
que n‹o ser‡ cumprida, mas desde j‡ acarreta dr‡sticas e radicais rea•›es dos
intŽrpretes quando de seu engajamento a tal projeto: o risco permeia todos os atos,
vindo tanto da comunidade art’stica, quanto da comunidade acadmica. Pois ambos os
lados ainda se debru•am nos males do corporativismo, em premissas que se baseiam
em manter uma ideal unidade de seus campos. O risco est‡ nas fronteiras, em n‹o
poder nunca satisfazer premissas corporativas. Mas o risco Ž o tra•ado da dan•a, que
atravessa e justap›e aquilo que parece exclusivo e separado. Assim, a meta de
reperformance de dan•as do passado transforma-se em uma situa•‹o de atualizar a
heterogeneidade da dan•a, sua l—gica plural interat’stica e multidisciplinar. O risco Žestar fazendo coisas que simultaneamente articulam ordens diversas.
Tal risco coloca uma outra pergunta ao intŽrprete: o que eu dan•o na minha
dan•a? As aporias de perspectivas redutoras, seja no abandono de si, seja na nega•‹o
do outro, n‹o conseguem responder a quest‹o. No caso, a dan•a grega antiga nem Ž
algo para o eu possa me evadir desse mundo, nem Ž algo que eu possa refutar como
sem efeitos sobre meu presente. O que eu dan•o em minha dan•a nem Ž algo que j‡
44 ƒ o que a personagem Rusty James questiona em Rumble Fish (O selvagem damotocicleta), de F. F. Coppola. V. as implica•›es dessa quest‹o em MOTA 1996.
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foi, nem Ž algo que n‹o pode completamente n‹o ser. ƒ como media•‹o hist—rica e
atualidade do heterogneo da dan•a que a reperformance de dan•as do passado se
efetiva positivamente para o intŽrprete. Se tenho que dan•ar algo, que eu dance isso,
que manifeste minhas op•›es art’sticas e referenciais. O encontro com as dan•as do
passado n‹o v‹o me transladar para uma outra era; antes, vai me fazer melhor
compreender onde estou e quem eu sou. Vai me mostrar que assim como este passado
Ž atualizado por meio de constru•›es bem determinadas, aquilo que julgo ser meu
presente tambŽm est‡ dentro de um processo de reconstru•‹o. Eu estou dentro dos
xtases do tempo por meio da dan•a, me arremessando para a apropria•‹o
transformadora dos referentes45. Nessa artesania, torno-me cada vez mais um melhor
artista pesquisador, conciente do procedimentos de redefini•‹o de meus atos criativos.
Assim, aquilo que aparententemente n‹o tem nada a ver comigo, aquilo que Ž
completamente alheio ao meu mundo, acarreta o questionamento do que Ž esse 'nada a
ver' ou desse 'meu mundo'. A meta de se reperformar dan•as do passado, de se dan•ar
o passado Ž a de se romper com um pretenso isolamento do intŽrprete, de seu apego ˆ
enfadonha tagalelice sobre si mesmo. A dan•a do passado n‹o Ž o que j‡ foi, o que j‡
passou, o que se esgotou. N‹o Ž a dan•a da GrŽcia antiga o que importa, e sim levar o
intŽrprete ˆ vivncia de alteridades adormecidades pelo reiterado recurso ao seu
autismo.
De fato o individualismo estŽtico, ou a distin•‹o estŽtica aparece como
contraponto ˆ utopia das reperformances de dan•as do passado. Segundo Gadamer, a
disti•‹o estŽtica Ž a proje•‹o ideal de um mundo arte como algo em si mesmo, fora do
tempo e do espa•o, proje•‹o essa de uma conscincia que tambŽm se pensa como algo
em si mesma, aut‡rquica46. Ao negar a utopia da dan•a do passado, ao precaver de
dan•ar o que n‹o se Ž, o intŽrprete procura reafirmar essa distin•‹o estŽtica, vendo na
dan•a algo justific‡vel somente como puro movimento, pautando a si pr—prio comofonte e meta dos atos expressivos.
De qualquer forma, ao abrir-se ao que n‹o Ž e ao que n‹o pertence ao seu
tempo, o intŽrprete que enfrente a utopia de dan•ar as dan•as do passado vai perceber
que essa negatividavidade na identidade e na hist—ria s‹o aparentes. Mesmo sendo de
outra cultura e Žpoca, dan•as antigas se efetivam em contextos performativos. N‹o
s‹o coisas sobre as quais a gente fala e elas passam a existir. O processo criativo
45 HEIDEGGER 1997.46 GADAMER 1999:135
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como media•‹o hist—rica e estŽtica proporciona a inser•‹o do intŽrprete em um
conjunto de atividades que se tornam o horizonte da identidade e da criatividade.
Disso, o medo de estar fazendo a coisa certa ao se reperformar uma dan•a do
passado ou o receio de que tal ato venha a ser impeditivo para uma cria•‹o original se
exibem como varia•›es de modos de conceber o processo criativo e o lugar do
intŽrprete neste processo. As demandas por autenticidade e originalidade posicionam-
se como situa•›es opostas e excludentes, como procedimentos de exclus‹o da
heterogeneidade que justamente processos criativos da dan•a apontam. ƒ uma bizarra
situa•‹o trabalhar com pressupostos que v‹o diretamente contra o pr—prio contexto
multidimensioanal no qual se expressam os dan•arinos.
Como se v ent‹o, n‹o Ž para a dan•a grega que a quest‹o se remete. Ao
atribuir para a dan•a grega valoriza•›es extremas como origem de toda arte ou
exotismo artificioso, o foco do endere•amento se move Ž para os pressupostos dos
intŽrprete, para os conceitos que tm daquilo que fazem.
Voltando ao v’deo, A.P.David poderia simplesmente tentar a partir do texto ou
das imagens referentes ˆs dan•as gregas na antiguidade produzir um efeito de
realidade no qual houvesse a sugest‹o de que, quanto mais se demonstrasse o dom’nio
das fontes de pesquisa, mais o contexto original seria conhecido e transformado em
cena. O caminho de A.P.David foi de ir alŽm do texto escrito, de ver nas marcas
r’tmicas presentes no texto (mŽtrica, recorrncia de conteœdo, referncia a atos
performativos) estabelecer a rela•‹o do registro escrito com algo fora do mundo da
linguagem. Esse alŽm do texto mas com o texto proporcionou uma descri•‹o formal
da Žpica que em seus par‰metro performativo-sonoros se aproximava de um registro
coreogr‡fico. Em outras palavras, ao explicitar a organiza•‹o do texto como sele•‹o
de padr›es de dura•‹o, intensidade e altura, A.P.David obteve escalas dos evento
registrados parcialmente no texto, os quais se completariam em eventos performativosglobais. Assim, o texto de Homero Ž uma tablatura, uma nota•‹o que, em sua
parcialidade, n‹o objetivava substituir aquilo que registra, e sim indicar alguns de
seus procedimentos.
Observando isso, A.P.David partiu para o tipo de evento que os par‰metros
psicoacœsticos registravam. Logo entendeu que este evento em sua amplitude n‹o era
o de uma simples elocu•‹o verbal. Nem muito menos era apenas mœsica. A
sonoridade era a pista para o salto do verbal para o n‹o verbal. Como se v no v’deo,a dan•a n‹o se separa do som. Os par‰metros psicoacœsticos n‹o se circunscrevem a
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eventos exclusivamente sonoros. O que se torna aud’vel Ž mais que a fonte sonora. O
passo seguinte, o de atualizar este evento que tem palavra mas n‹o Ž ato verbal, que
tem som, mas n‹o Ž ato aural, residiria em manisfetar esses par‰metros
tridimensionalmente por intŽrpretes.
Fundamental para A.P.David foi o fato de perceber que a tablatura presente no
texto escrito em seu algoritmo se identificava com a descri•‹o da dan•a grega
tradicional sirt—s. Abaixo temos a f—rmula da frase coreogr‡fica encontrada no texto
de Homero47.
Traduzindo, temos seis grupos de d‡tilos, que s‹o pŽs mŽtricos compostos por
um tempo inteiro e dois meio tempos, na propor•‹o ent‹o de 1:1. Essa isocronia
produz varia•›es temporais, j‡ que h‡ convers›es e reconvers›es das dura•›es: um
tempo inteiro pode ser substitu’do por dois meio tempos, e vice-versa. O œltimo pŽ
mŽtrico Ž abreviado (catalŽtico), marcando o fim da frase. Ent‹o, essa mesma frase se
repete indefinidamente com a mesma sucess‹o de seis conjuntos de pŽs mŽtricos, o
que forma uma repeti•‹o interna, espelhada. Hipoteticamente ter’amos o mesmo
movimento sendo repetido cinco vezes atŽ ser alterado, interrompido na œltima e sexta
posi•‹o mŽtrica. Mas nem tudo Ž mesmice: no seio do mesmo, o outro: h‡ cesuras, ou
cortes, ou marca•›es de altera•›es. Ou seja, em certas posi•›es ou lugares mŽtricos,
h‡ altera•›es outras que a identificada na parte final na frase. Essas cesuras ou pontos
de mudan•a foram compreendidas inicialmente a partir de reitera•›es linguisticas: em
47 http://web.mac.com/homerist/Dance_of_the_Muses/Epic_Movement.html.
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algumas posi•›es ou lugares na frase, havia uma alta propor•‹o de quebras sint‡tico-
sem‰nticas. O mŽrito de A.P.David foi o de correlacionar esses fatos lingu’sticos a
feitos extralingu’sticos, a eventos fora do mundo verbal. O texto escrito registraria
uma din‰mica referencial que n‹o se traduziria em palavras somente.
Em descri•›es dos passos de dan•a do sirt—s, h‡ passos marcados para a
direita e esquerda, seguindo o caminho do c’rculo, e h‡ passos em que se cruzam os
pŽs para tr‡s e para frente, marcando uma virada na movimenta•‹o48. Estes passos de
mudan•a da dan•a do sirt—s correspondem aos mesmos lugares mŽtricos marcados na
frase dat’lica como cesuras. A.P.David pode comprovar que foi o material lingu’stico
que se modificou para traduzir um referente n‹o verbal, a partir do momento que este
referente n‹o verbal pode ser identificado. Dessa forma, o que se conclui n‹o Ž que
Homero fosse dan•ado, mas sim que todo seu texto, toda a sua forma de express‹o
define-se em fun•‹o de um modelo coreogr‡fico. Dentro de uma cultura coral, na qual
a dan•a ocupa o horizonte dos atos cognivos, afetivos e volitivos, compor um poema
Ž se apropriar daquilo permeia todas atividades - o movimento coletivo.
Entre as possibilidades que se oferecem ap—s a contribui•‹o de A.P.David,
temos: assim como ele se valeu de dan•a outra que a imposs’vel dan•a original, n—s
podemos a partir de temas cl‡ssicos buscar correlativos r’tmicos em nossa pr—pria
cultura para reinterpretar e redimensionar a recep•‹o dos motivos cl‡ssicos. O metro
recorrente do d‡tilo associa-se ˆ uma situa•‹o de improvisa•‹o: a continuidade
r’tmica favorece o estado de intensifica•‹o dos atos criativos. Um caso similar em
nossa cultura Ž o dos cocos49. Sendo "um gnero poŽtico-musical-coreogr‡fico"50, os
cocos integram canto, dan•a, mœsica instrumental e dramatiza•‹o, aproximando-se,
em sua dramaturgia audiovisual e interativa, de situa•›es presentes na apropria•‹o de
um modelo coral, como o foi a tragŽdia grega.Dessa forma, por meio dos cocos, encontramos uma media•‹o art’stica e
temporal que nos coloca em um processo criativo no qual nos defrontamos com
demandas e obst‡culos assemelhados aos de um modelo coral. O que se prop›e n‹o Ž
usar o coro como uma tragŽdia grega, e sim, ao compreender que a Žpica, a l’rica e o
48 http://www.greekfolkmusicanddance.com/bookdance.php.49 MOTA&NEPOMUCENO 2010.50 CAVALCANTI 1996:20.
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drama grego(tragŽdia e comŽdia) estavam diretamente relacionados com uma cultura
coral, pensar o processo criativo a partir da amplitude que essa cultura reivindica.
Outra possibilidade Ž a vem do estudo e da compreens‹o das matrizes
r’tmicas. Uma tragŽdia, a partir da cultura coral, organiza-se como um conjunto de
movimentos ritmizados51. A transcri•‹o desses ritmos em arquivos de ‡udio fornece
referncias audiofocais que podem ser reintepretadas coreograficamente52.
Ainda, sem a media•‹o de uma dan•a tradicional ou de reconstru•‹o de
ritmos, pode-se a partir do debate de fontes escritas sobre algum motivo m’tico
produzir processos criativos que articulem novas imagens e sons, como os
apresentados durante a 50.a. mostra teatral Cometa Cenas, a partir de semin‡rio de
P—s-Gradua•‹o Produ•‹o e cria•‹o Art’stica no PPG-Arte, em 201053.
Enfim, se a dan•a tem buscado sua identidade, atribuindo muitas vezes ao
'momento grego' sua origem e/ou sua libera•‹o criativa, talvez esteja na hora de
pensar melhor essa ascendncia afortunada, essa recorrente genealogia. Muta•›es na
dan•a e nos estudos cl‡ssicos tm impelido artistas e pesquisadores em outra dire•‹o
que o topos da origem como uma nostalgia de algo que se perdeu. O eixo do tempo se
desloca n‹o mais um ponto privilegiado no passado ou no futuro54. O foco no
processo criativo, no artista criador e pesquisador faz com que cada vez mais se
desconfie de posturas essencialistas e idealizadoras.
APæNDICE: A RENOVADA PRESEN‚A DO CORO
1- A contribui•‹o dos Estudos Cl‡ssicos
Os v‡rios encontros entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos
performativos historicamente tm promovido c’clicas renova•›es
51 MOTA 2009.52 MOTA 2011.53 Para a programa•‹o, v. www.unb.br/noticias/downloads/cometa _ cenas.pdf. A
partir desse semin‡rio, o Barisah, com dire•‹o de Giselle Rodrigues, apresentou Danaides.54 BUCKLAND 2006.
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art’sticas. Nesses encontros destaca-se a ÒidŽia do teatro gregoÓ, t‹o
movente quanto diversas foram suas materializa•›es, proporcionando
revolu•›es estŽticas tais como a îpera Florentina ou o Drama musical
Wagneriano, entre outros exemplos.
Mas a partir de 1970, com o solidifica•‹o de Programas de P—s-
gradua•‹o em Artes Cnicas na Europa e nos Estados Unidos, seguindo o
impacto do conceito e experincia da Performance em suas mais diversas
modalidades, novas abordagens sobre o teatro grego come•aram a se
desenvolver, fazendo com que a historiografia do teatro grego se
modificasse drasticamente. Novos objetos foram propostos, ampliando-se
nosso conhecimento sobre o contexto das realiza•›es dram‡tico-musicais
da Antiguidade.
Essa revolu•‹o epistemol—gica ainda est‡ em curso. Vemos que
houve uma invers‹o: na medida em que a transmiss‹o e interpreta•‹o dos
textos greco-latinos nos proveram uma imagem dos Festivais Teatrais
helnicos, procurando uma l—gica abrangente em restos parciais de uma
cultura dispersa e fragment‡ria, artistas se apropriaram dessa reconstru•‹o
ideal como ponto de partida para realiza•›es as mais intensas e
diversificadas.
De outro lado, com a mudan•a do modo de se fazer teatro desde
1960, helenistas e historiadores do teatro come•aram a rever como as
tragŽdias gregas eram elaboradas, realizadas e recebidas. Assim como
inovadores da linguagem tiveram de, no transcurso do sŽculo XX,
enfrentar uma abstrata oposi•‹o entre texto e espet‡culo para se focar em
seus processos criativos, tambŽm os estudiosos se viram compelidos a
aproximar os textos restantes da cultura teatral na Antiguidade de
contextos performativos.
Nesse novo encontro entre Estudos Cl‡ssicos e Estudos Teatrais,
temos produ•›es como LÕAtrides, do ThŽ‰tre du Soleil, entre 1990-1992,
que incorpora v‡rios dos conceitos presentes na renova•‹o historiogr‡fica
da tragŽdia grega, enfatizando seus aspectos culturalistas e uma estŽtica
coral no seu sentido mais amplo, desde o processo criativo coletivista atŽ
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Vn
a din‰mica coreogr‡fica das contracena•›es e da montagem das partes do
espet‡culo, bem como na integra•‹o entre mœsica, atua•‹o e visualidade55.
Uma an‡lise mais atenta na mais recente bibliografia acadmica
sobre tragŽdia grega ratifica os dividendos desse intercampo entreconhecimento da tradi•‹o helen’stica e modelos corais de realiza•‹o
teatral.
De in’cio, destaca-se obra The Athenian Institution of Khoregia.
The Chorus,The City, and The Stage, escrita por P. Wilson (WILSON
2000). Esta pesquisa de f™lego apresenta um aspecto pouco abordado
quando se fala de tragŽdia grega (e mesmo das Artes Cnicas): a
produ•‹o. P.Wilson reinsere as obras dos Festivais Helnicos em uma
cultura competitiva na qual n‹o somente autores, atores e pœblico se
entregavam a intensas trocas emocionais: para que houvesse o show, era
preciso uma organiza•‹o que se ocupava de todos as etapas de prŽ-
produ•‹o e realiza•‹o dos eventos. Era a institui•‹o da Coregia, ou
permiss‹o para que um grupo de cidad‹os atenienses cada ano fosse
respons‡vel por todos os aspectos econ™micos de preparar e manter as
pessoas envolvidas em compor e performar as palavras, a melodias e as
dan•as. Tal institui•‹o n‹o somente possibilitava a existncia dos festivais
como tambŽm regulamentava a participa•‹o dessa elite no espa•o pœblico
da cidade, multiplicando v’nculos entre artistas, comunidade e
democracia. Enquanto Atenas possu’a uma vitalidade pol’tico-econ™mica,
a Coregia esteve presente. A vit—ria do grupo que performava nas
competi•›es era a vit—ria tambŽm do Corego, do produtor. A arena em
que se convertia o Teatro de Dioniso era tambŽm o lugar de luta entre os
produtores. O espet‡culo mobilizava tens›es pol’ticas. As figuras da
mitologia interpretadas em cena acenavam para a demanda por prest’gio
na cidade. Tudo convergia para o lugar das dan•as e cantos no teatro, para
‡rea da orquestra. Para influir era preciso afluir para a cena. A
composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o e produ•‹o de obras audiovisuais
integrava interesses e valores os mais diversos e conflituosos. Como os
55 Site oficial do ThŽ‰tre du Soleil, www.theatre-du-soleil.fr . Blog de A.Mnouchkine: www.mnouchkine.blogs.liberation.fr/le_fil_da. V. WILLIAMS 1998.
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V:
festivais estavam inseridos dentro do calend‡rio de eventos civis, a tens‹o
pol’tico-estŽtica se enfatizava, fornecendo um horizonte de expectativas
para a cidade: todo ano Ž preciso outra vez defrontar-se com o outro para
continuar a existir. Vencer, sobressair, pelo menos atŽ o ano que vem.
Khoregia.
Desse modo,o teatro grego se definia a partir de uma rela•‹o com
vocabul‡rio da atividade coral, atŽ mesmo onde n‹o se suspeita haver 56.
Tome-se, por exemplo, os nomes das partes da tragŽdia, como
encontramos na PoŽtica, de Arist—teles: ÒPr—logo, epis—dio,xodo, coral Ð
dividido este em p‡rodo e est‡simo57.Ó O termo Ôepis—dioÕregistra aquilo
que fica entre (duas) odes corais, epei(s) Ð ode. Ou seja, as partes faladas
que caracterizam os Ôepis—diosÕ se encontram nas margens do centro que
s‹o as partes corais. O espet‡culo tr‡gico se organiza na altern‰ncia entre
partes faladas e partes cantadas. Mas h‡ um privilŽgio das partes corais:
pois o nome para aquilo que n‹o Ž coral Ð Òepis—dioÓ Ð Ž baseado no que Ž
coral. Quem tem a marca, quem distingue Ž o coro58.
Continuando: as partes corais propriamente ditas s‹o duas:
Òp‡rodoÓ, que marca a entrada do coro, e Òest‡simosÓ, que s‹o as
performances corais isoladas. A entrada do coro Ž uma aguardada se•‹o
de toda a tragŽdia, tanto que Ž nomeado. E ainda mais: grande parte das
tragŽdias restantes tem por t’tulo o coro: Os persas, As suplicantes,
Eumnides, CoŽforas, das seis restantes de ƒsquilo; As Traqu’nias, das
sete de S—focles; Her‡clidas, Suplicantes, As Troianas, As Fen’cias, As
Bacantes, das 16 restantes de Eur’pides. A situa•‹o se amplia levando em
conta os t’tulos das pe•as restantes de Arist—fanes, que articulava tambŽm
uma dramaturgia musical a partir do coro: Os Acarnenses, Os cavaleiros,
As aves, As Tesmoforiantes, As r‹s, As vespas, As nuvens, AssemblŽia de
mulheres, das 11 restantes. Como se v o pœblico ia ao teatro atra’do pela
diversidade performativa atualizada em cena, cujo ’ndice estava no
desempenho do grupo de cidad‹os mascarados que cantava e dan•ava.
56 Para o vocabul‡rio tŽcnico sobre dan•a e atividade coral, consultar NAEREBOUT 1997.57 PoŽtica, XII,65. Trad. Eudoro de Sousa.58 MOTA 2009.
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Logo, o critŽrio para discernir as partes do espet‡culo da tragŽdia n‹o
reside em evento de baixa textura e densidade performativa como uma ou
duas pessoas trocando falas entre si e sim na complexa intera•‹o de
membros de um grupo de agentes que se apresenta valendo-se de diversas
habilidades expressivas.
A din‰mica coral orientava a organiza•‹o do espet‡culo e sua
recep•‹o. Recentes estudos da dramaturgia cl‡ssica tm refutado a
pressuposta linha desenvolvimento presente no texto da PoŽtica de
Arist—teles, que delinearia a o progresso hist—rico do espet‡culo tr‡gico de
um momento mais primitivo dan•ado para a plenitude da fala59. Antes, os
dramaturgos mesmos eram identificados como chorodid‡skalos,
treinadores dos coros, core—grafos. A ‡rea principal de atua•‹o e foco da
cena era a orchestra, espa•o do coro. Ao invŽs do desaparecimento do
progressivo do coro durante o percurso que vai de ƒsquilo a Eur’pides,
podemos ver um compartilhamento das habilidades e atividades do coro
por parte dos agentes n‹o corais: a performance dos atores se define pelos
movimentos corais e os pr—prios atores agem como coro:cantam e dan•am
em v‡rios momentos. Aquela vis‹o est‡tica da dramaturgia cl‡ssica Ž
superada quando se analisa os textos restantes como roteiros baseados em
procedimentos corais de composi•‹o de falas, movimentos e ritmos.
Mesmo os agentes n‹o corais dan•avam60.
Tal centralidade do coro no espet‡culo mais representativo da
Antiguidade Cl‡ssica possui seus desdobramentos estŽticos e culturais. Se
antes da palavra e alŽm dela h‡ o corpo em movimento, a desconstru•‹o
de nosso logocentrismo acarreta novas posturas e pressupostos. Nesse
sentido a renova•‹o bibliogr‡fica nos Estudos Cl‡ssicos, e sua
convergncia para a Cultura performativo-coral, aproxima-se das tensas e
intensas lutas dos Estudos Teatrais no sŽculo XX em busca de sua
especificidade, a partir da ruptura com tradi•›es metaf’sicas que
privilegiavam uma concep•‹o do texto como princ’pio e fim dos
processos criativos. Em seu mapeamento dessa transforma•‹o em curso,
59 V. WILES 1997 E WILES 2000.60 LEY 2007
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Lehmann sinaliza que a emancipa•‹o e destaque que a dan•a atinge
resulta no fato de que ela n‹o mais Òformula sentido, mas articula
energia;n‹o representa ilustra•‹o, mas a•‹o. Tudo nela Ž gesto.(...)
compartilhamento de impulsos com os espectadores nas situa•›es de
comunica•‹o do teatroÓ61.
2-Problematizando a atividade coral
A convergncia entre propostas estŽticas mais atuais e antigas
formas de espet‡culo em torno de uma estŽtica coral, antes de curiosidade
museol—gica ou superficial sincronismo, motiva-nos a pensar sobre os
modos como produzimos e validamos as artes da cena.O passado sempre
o Ž em raz‹o de nosso presente62. Acima de tudo, o que se busca da
imagem coral como fundamento para um processo criativo Ž certa nfase
em algo que aparentemente n‹o Ž muito focalizado na forma•‹o de atores
e na constitui•‹o do repert—rio, como, por exemplo, um trabalho de grupo
a partir n‹o apenas da Žtica coletiva, e sim da integra•‹o de habilidades
diversas, como canto, mœsica e dan•a. Essa dimens‹o interart’stica do
trabalho criativo revela-se na montagem de obras que enfrentam as
implica•›es de se mover entre fronteiras, nos limites das pr‡ticas e
tradi•›es estŽticas que, mesmo refutados por realiza•›es as mais
diversificadas, permanecem como restri•›es ou pontos de partida inscritos
na estrutura curricular dos cursos superiores de Artes Cnicas.
Ao se aprofundar essa dimens‹o interart’stica, percebemos que n‹o
se trata apenas de conjugar pessoas com forma•›es ou habilidades
diferentes. A obra multidimensional Ž um desafio estŽtico-cognitivo, ao
propor para a audincia a tens‹o entre referncias produzidas a partir de
contextos tŽcnicos diversos e muitas vezes em colis‹o. Com isso temos
um entrechoque entre visualidade e sonoridade. A assincronia entre as
bandas visuais e sonoras manifesta a heterogeneidade dos materiais e
referncias efetivados em cena. O dom’nio das assincronia, das
61 LEHMANN 2007:339.62 GADAMER 1999.
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sobreposi•›es, das tens›es entre materiais heterogneos avulta em uma
Žpoca p—s-harm™nica, na qual a meta j‡ n‹o mais Ž produzir equil’brios
redutores entre d’spares elementos. A idŽia do coro avulta ent‹o, como
media•‹o para uma poss’vel l—gica de um universo plural. Pelo coro essa
l—gica que n‹o prescinde da dispers‹o e do assimŽtrico se manifesta n‹o
mais como meta e sim efetivada na a•‹o de seus integrantes. O coro seria
justamente essa l—gica em execu•‹o, performada, manifesta durante a
performance, in situ. Da’ o potencial atrator da atividade coral: Ž ao
mesmo tempo um modelo, um esquema, e uma atualiza•‹o que suplanta
sua idŽia prŽvia. O coro Ž a fogueira de todos os a priori. Entre a forma e
a performance, o coro medeia e supera a tens‹o entre idŽia e a•‹o.
Essa media•‹o acontece em um espa•o que Ž o evento mesmo do
coro e sua organizada explora•‹o de limites e tangncias. A atividade
coral Ž uma espacializada demonstra•‹o de como tais limites e
perspectivas s‹o enfrentados. N‹o h‡ como trabalhar com a idŽia de coro
sem se referir a uma experincia do espa•o. A coreografia mesma Ž a
explicita•‹o de como a atividade coral se inscreve no espa•o, de como o
espa•o abre-se e passa a existir atravŽs da interven•‹o do coro.
Disso, a associa•‹o do coro ao movimento e ˆ mœsica adquire uma
melhor compreens‹o. Ao se agregar caracter’sticas ou ao se identificar
tra•os da idŽia de coro muitas vezes h‡ uma simples constata•‹o do que j‡
Ž, do que j‡ existe em um arranjo de heterogneos elementos.
Mas se aprofundamos nossa observa•‹o para procurar entender
melhor os nexos entre aquilo que elencamos como elementos integrantes
da atividade coral, passamos a perceber que Ž justamente nessa efetiva•‹o
de nexos, de co-presen•a de diversos e mœltiplos elementos que reside a
atividade coral. Pensar o coro Ž realizar essa constru•‹o heterodoxa que
suplanta atŽ a motiva•‹o de sua efetiva•‹o. A pr‡tica coral bem
compreendida Ž como uma œtil medicina contra nossas abstra•›es
discursivas que rondam discuss›es sobre processos criativos em Artes
Cnicas. Pois a amplitude da cena coral, com suas necess‡rias e
decorrentes atividades de se enfrentar com a integra•‹o de elementos
plurais sem o recurso de uma redu•‹o de heterogeneidade material,
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coloca-se absurdamente como utopia e fundamento de um fazer mais
comprometido com a conscincia de suas possibilidades.
Assim, a atividade coral Ž ao mesmo tempo irrealiz‡vel quanto
motivadora das mais extremas realiza•›es. A idŽia do coro comparececomo metalinguagem das artes da cena, como sua caixa-preta: muito se
sabe sobre ela, sempre nos referimos ao coro consciente ou inconsciente
durantes nossos processos criativos, mas ainda assim o coro n‹o se esgota,
n‹o se completa em nenhuma de nossas concretiza•›es dessa idŽia. Talvez
essa inexauribilidade do coro fulgure como apelo irresist’vel para a
cont’nua renova•‹o das artes da cena. O coro, pois, cifra esses quadrantes
de um territ—rio em perpŽtua transforma•‹o, pronto para ser apropriado e
modificado por processos criativos e que se manifesta em tens›es entre
todo e parte, indiv’duo e grupo, som e imagem, presen•a e ausncia,
movimento e pausa, canto e fala, entre outros. N—s que procuramos
habitar esses territ—rios nos movemos em oposi•›es, contrapostos ao
ritmo oscilat—rio e dispersivo da din‰mica do espa•o que nos arregimenta.
3-Proje•›es
Entre adapta•›es e vers›es das obras dram‡tico-gregas, a
atualiza•‹o do coro sempre Ž um grande problema. O conhecido exemplo
de Poderosa Afrodite, de Woody Allen, Ž uma sedutora simplifica•‹o do
processo: um jogral que materializa debates sobre a conscincia dos
personagens. Uma coisa que Ž preciso ter em mente Ž que a encena•‹o do
repert—rio da tragŽdia grega n‹o cessou na Antiguidade. Estes textos tm
sido continuamente representados. A tragŽdia grega n‹o se esgotou em
Atenas. Dramas antigos em performances contempor‰neas Ž um campo de
experincias em expans‹o63. O entrechoque entre a defini•‹o de
espet‡culo presente nesses textos, sua materialidade performativa, e
nossos pressupostos recepcionais e estŽticas e estilos cnicos possibilita
um jogo de apropria•›es e transforma•›es que se explicita mais nas
escolhas que um processo criativo espec’fico vai fazer em fun•‹o das
informa•›es que possui dos contextos expressivos da antiguidade e dos
63 V. www.didaskalia.net/journal., www.apgrd.ox.ac.uk/links.
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objetivos e dos limites desse mesmo processo. S‹o as condi•›es de
realiza•‹o atuais que vai determinaram a imagem dessa apropria•‹o do
drama antigo.
Nesse caso o grupo que vai empreender uma vers‹o ou adapta•‹ode uma tragŽdia grega ou uma utiliza•‹o de procedimentos e tŽcnicas
desse repert—rio, como o coro, necessariamente vai expor em seu trabalho
os pressupostos de sua empreitada: informa•›es e que tipo de conceito do
espet‡culo ateniense foi utilizado. Ao mesmo tempo, esses pressupostos
v‹o ser redefinidos pela proposta do grupo e pelas habilidades de seus
integrantes.
Com isso Ž preciso ter em mente que a ÔidŽia do coroÕ Ž
concretizada das mais variadas formas, frente ao processo atual de se
transformar referncias em atos. Uma conscincia das motiva•›es que nos
motivam a porque nos valer da idŽia de Ôcoro gregoÕ relacionada com uma
atualiza•‹o bibliogr‡fica das pesquisas sobre as modalidades corais na
tragŽdia faculta-nos um di‡logo mais eficiente entre passado e presente.
Em todo caso, h‡ uma reflexibilidade nesse impulso de Ôretorno ˆs
origensÕ: a busca por solu•›es contempor‰neas para atividade coral
explicita muita mais o teatro que n—s queremos fazer que o teatro j‡
realizado h‡ sŽculos.
Talvez nessa reflexibilidade, nesse conhecimento n‹o da coisa,
mas do sujeito operante, Ž que o desafio de atualizar o coro se torna
fulcral: queremos muitas vezes dominar o intervalo, a descontinuidade
temporal por mitologemas que vem em uma Žpoca de ouro do passado
alguma op•‹o para o que n‹o conseguimos identificar em nossa Žpoca.
AlŽm das habilidades em contato, do car‡ter interart’stico dessa atividade,
revigora o fasc’nio pelo corpo social que o coro repercutiria, por aquela
estranha manifesta•‹o de uma forma animada em cena que Ž tanto
indiv’duo como coletividade, que transita entre a pessoalidade e a n‹o
pessoalidade. Em Žpocas atuais quando o fetiche do indiv’duo vagueia na
ditadura do assujeitado consumidor, o social esvazia-se na falncia de
pol’ticas pœblicas paliativas, o hiperrealismo midi‡tico satura a tela com a
explora•‹o das misŽrias privadas, a poderosa idŽia de um tr‰nsito
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intersubjetivo potencialmente cr’tico e refor•ador dos la•os comunais
aparece como imperativo estŽtico.
O artista pesquisador cada vez mais se cumula de conscincia de
conscincias. Seu saber fazer para melhor realizar o catapulta para umaarena belicosa entre projetos e justificativas. Quem sabe a dimens‹o
plurivocal e interart’stica da atividade coral n‹o o insira mais nos
contextos de sua pr‡tica questionadora e representacional. Subjetividade Ž
sub jectus, movimento para baixo, para o fundamento. A pergunta pela
subjetividade Ž a convers‹o do olhar para o que determina aquilo que est‡
sendo feito. Subjetividade n‹o Ž pessoa, mas o que determina os atos. N‹o
se para de pensar no mundo quando se apela para o sujeito. A
interroga•‹o sobre o sujeito Ž a explicita•‹o das raz›es de estar no mundo.
Coro Ð a dan•a do aqui e agora, o mundo girando em volta, mostrando-se,
exibindo seus variados aspectos, chamando todos para o festival de todas
as misŽrias a superar.
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SEGUNDA PARTE
ÒA cena Ž um espa•o vazio mais ou menos iluminado de arbitr‡rias
dimens›esÓ
Adolphe Appia
1-Preliminares
Em virtude de nossos h‡bitos acadmicos, os quais ou dissociam arte e teoria -
ou associam arte a uma teoria prŽvia - muita vezes Ž esquecido que historicamente
ÔteoriaÕ e experincia teatral n‹o s‹o referncias que se anulam64. Tanto o vazio
historiogr‡fico quanto a dependncia marginal ilustram bem as dif’ceis rela•›es entre
arte e pensamento em nossa tradi•‹o Ocidental, o que nos incita a suspeitar que algo
de irredut’vel ˆ discursividade permeia o fazer art’stico.
No caso da arte dram‡tica isso se torna mais patente. Paira ainda sobre ela a
sombra do ambivalente Ôveto plat™nico Plat‹oÕ que, ocupando-se do impacto
emocional das artes de performance de seu tempo, procurou tomar, da cr’tica ˆ
teatralidade, a valora•‹o da atividade filos—fica.
Seguindo-lhe, temos a tentativa aristotŽlica de formular uma defini•‹o de
literatura recorrendo ˆ tragŽdia como material modelar, o que legou-nos n‹o s— a
PoŽtica como tambŽm a persistente pr‡tica de se legitimar intelectualmente um fazer
que articula a integra•‹o de outras capacidades e atos para sua realiza•‹o65.
Desde a AntigŸidade, pois, a teatralidade provoca e se constitui em um
horizonte para o pensamento. Ainda que, com o passar do tempo, a situa•‹o seinverta, e a representa•‹o dram‡tica se torne tema e aplica•‹o para teorias n‹o
comprometidas com o contexto produtivo da cena.
De fato, a defasagem entre a apreens‹o intelectualizada do drama e sua
experincia encontrou na segunda metade do sŽculo XIX seu ponto cr’tico. O
64Como vimos no in’cio da primeira parte, deste livro, na discuss‹o sobreTheoria.
65 Para uma recente descontru•‹o do aristotelismo aplicado ˆs Artes Cnicas,ver DUPONT 2007.
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programa naturalista, ao defender a moderniza•‹o das artes, utilizou-se da cena como
aparato para investigar as mazelas sociais com o m‡ximo poss’vel de
verossimilhan•a.
Tal urgncia tem‡tica, porŽm, n‹o levou em conta a contextura expressiva
concreta que possibilitasse tamanho empreendimento. Foi preciso, pois, reduzir as
dimens›es da teatralidade para viabilizar a expans‹o do tem‡tico66. O recurso da cena
naturalista foi incrementar a atividade verbal do ator, que representava as idŽias de
uma voz autoral avessa a qualquer diferencia•‹o entre as contingncias f’sico-
expressivas de um palco ou de uma tribuna. Como bem afirmou Gerd Borheim Òo
palco deve ser um substituto exato da realidade. No teatro o espectador deve esquecer
o teatro67Ó. ƒ o que chamamos de Òpressuposto de transparncia da cena68Ó.
Com isso, a realidade de palco bruscamente se reduziu ˆ palavra da
personagem69. A palavra tornou-se ao mesmo tempo o meio primeiro de acesso ao
que acontece em cena bem como œnico ve’culo de intera•‹o entre as personagens.
Sendo a cena um reflexo do mundo extracena providenciado pelo autor, a personagem
Ž a unidade de seu car‡ter e de sua a•‹o. Ao falar, torna intelig’vel para o pœblico os
problemas deste mundo. Essa sobrecarga na palavra transformou os atores em
verdadeiras cabe•as falantes, desprovendo-os de corporeidade e campo maior de a•‹o.
E o mundo representado restringiu-se ˆ veicular e refor•ar as causalidades que a voz
autoral propunha.
A recusa do programa naturalista ao fim do sŽculo XIX vai impulsionar o
agudo criticismo do sŽculo posterior. Temos, pois, para melhor compreender o sŽculo
XX, a interdependncia entre a refuta•‹o de toda qualquer injun•‹o program‡tico-
intelectual ˆ obra dram‡tica e a busca incessante das motiva•›es da pr—pria linguagem
teatral. Trata-se da forma•‹o de um contexto reativo no qual a defini•‹o do que se
quer passa pela oposi•‹o ao que se nega. A reteatraliza•‹o da experincia dram‡ticase faz ˆs expensas do cad‡ver de seu anti-modelo. Desse modo, n‹o ser‹o
surpreendentes as sobreposi•›es, repeti•›es e os radicalismos que sobrevierem bem
como uma altissonante desconfian•a de uma abordagem racionalizada da cena por
66 Neste sentido, as proposi•›es de Meyehold procurar reverter esta redu•‹oda teatralidade.
67 BORHEIM 1969:13.68 Adapto aqui a discuss‹o de DIXON 1998 e sua cr’tica ao Ôpolimento das
imagensÕ na era da comunica•‹o digital.69 MOTA 1998.
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muitos praticantes das Artes Cnicas. Da recusa da idŽia vai-se para a abstra•‹o de
um fazer puro, sagrado.
Este contexto reativo determina uma tradi•‹o nova que se forma sob a Žgide
da ruptura e que pouco a pouco vai sendo hegem™nica. Mais propriamente, a crise da
cultura contemplativa ocidental, marcada pelo arrefecimento da exposi•‹o do desejo
em situa•›es concretas, Ž agora refutada pelo culto dessa crise e por alternativas a ser
experimentadas. Ent‹o temos a sobrevivncia de formas cr’ticas antigas e a
indefini•‹o e abertura pontual para novas express›es.
Da busca de alternativas delineadas temos a turbulncia criadora e destrutiva
que sacudiu o sŽculo XX. A iconoclastia desfraldada n‹o lan•ava ao ch‹o somente
valores: colocava em cheque nossas estratŽgias de inteligibilidade. A negatividade
rep›e as raz›es de uma insatisfa•‹o anterior ao que se recusa. Pouco a pouco todos os
setores da cultura ‡vidos em modificar suas posturas interpretativas e seus focos de
referncia v‹o se valer do drama.
Da’ pode-se dizer que o sŽculo XX foi a Idade de Ouro da teatralidade. Para
ele convergiram condi•›es tŽcnicas e ousadas propostas e realiza•›es estŽticas que
efetivaram seculares sonhos de representa•‹o. O extensivo e cultivado senso de
ruptura com a tradi•‹o que a modernidade teatral empreendeu determinou a
explora•‹o de diversas possibilidades expressivas bem como a altera•‹o de regras e
modelos de execu•‹o e recep•‹o.
Tal expans‹o da teatralidade tem proporcionado aquilo que podemos
denominar paradigma dram‡tico. Ou seja, frente ˆ inumer‡vel sucess‹o de
diferencia•›es que o teatro moderno p™s em circula•‹o atravŽs de seus experimentos
e esc‰ndalos e decorrente e intermitente debate nos diversos meios de apropria•‹o e
divulga•‹o do conhecimento, as chamadas Cincias Sociais foram procurar modelos
heur’sticos para reorientar suas t‡ticas e pr‡ticas interpretativistas. O emblem‡ticotopos Òo mundo como teatroÓ (teatro mundi) parece aqui ter encontrado sua
aplica•‹o70. A pressuposta evidncia imediata do drama e suas implica•›es
emergiram como horizonte explicativo privilegiado, um novo bom senso
observacional. Contradi•‹o das contradi•›es talvez, pois Ž quando o teatro se torna
mais diversificado e muitas vezes abstrato que ele Ž naturalizado
epistemol—gicamente pelas Cincias Sociais.
70 CURTIUS POSTLEWAIT,T. e DAVIES 2003,
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Mais que o elogio desse vitorioso paradigma, procuraremos apresentar
momentos te—ricos fundamentais para a compreens‹o da hora e da vez da teatralidade.
Escolhemos autores que souberam transformar a insatisfa•‹o com a heran•a
intelectualista naturalista em uma busca de fundamentos mais seguros para a atividade
representacional cnica. Tal busca aproximou processos criativos para a cena e
explicita•‹o compreensiva das rela•›es entre composi•‹o e performance. O contexto
reativo contra o qual se situam n‹o permanece como alvo cr’tico e foco da
representa•‹o. Ou seja, a rea•‹o n‹o Ž a representa•‹o, como em certos modelos
perform‡ticos negativos posteriores.
Por isso vamos nos deter em pensadores-realizadores do pr—prio campo
estŽtico-reflexivo das artes para a cena, com o objetivo de tornar compreens’veis
quais as quest›es que eles discutiram a partir dos problemas enfrentados em suas
pr‡ticas. Os autores escolhidos (A. Appia, C. Stanislavski V.Meyerhold, E. Piscator,
B. Brecht) desenvolveram em suas ‡reas de interesse tentativas de sistematizar
quest›es fundamentais da representa•‹o para a cena. Possuem uma vis‹o integradora,
ao apresentar suas conclus›es a partir das reflex›es do que observavam:
procedimentos fundamentais tanto f’sicos como expressivos para obten•‹o de um
espet‡culo. Ao internalizarem uma atividade reflexiva no processo criativo, eles se
colocam como te—ricos da representa•‹o. Posionam-se em um campo de experincias
e conceptualiza•›es das possibilidades de realiza•‹o dram‡tica. As etapas prŽ-
representacionais e representacionais se interpenetram. Os conceitos aprimorados
durante as reflex›es sobre o que observam e experimentam s‹o conceitos
operacionais.
Assim, o momento hist—rico da teoria teatral do sŽculo XX ao mesmo tempo
em que faz irromper uma prolifera•‹o de formas como recusa ao fechamento da
representa•‹o ocasionado pela esquematiza•‹o da cena naturalista, tambŽmmovimenta a busca da autonomia do processo art’stico cnico, efetivando a teoriza•‹o
de sua pr‡tica.
No entanto, frente ˆ diversidade de manifesta•›es cnicas (dan•a, teatro,
performances), vamos nos acercar mais do teatro. Creio que muitas das situa•›es
encontradas nesta atividade particular acarretam o entendimento mais amplo da
problem‡tica da cena em seu contexto expressivo/operacional.
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E ainda, mesmo n‹o citando realiza•›es, obras concretas, quero frisar que as
reflex›es e as teorias aqui comentadas est‹o intimamente relacionadas com pr‡ticas e
pesquisas de express‹o.
Enfim, escolhi me centrar em um autor em cada t—pico fundamental abordado
para, ao acompanhar mais detidamente sua argumenta•‹o, explicitar o horizonte de
quest›es e a conceptualiza•‹o que emergem na abordagem explorat—ria da teoria e
pr‡tica cnicas. A comum busca da autonomia do campo expressivo das artes de
espet‡culo que os autores modernos enfocados aqui assinalam fornece os
pressupostos das opera•›es de sua especificidade. A autonomia Ž uma bandeira em
prol da singularidade.
Tais preocupa•›es metodol—gicas limitam o escopo deste trabalho, bem como
definem seus pressupostos. A realiza•‹o para a cena mobiliza a constitui•‹o estŽtica
para a efetiva•‹o de sua compreens‹o. Pois um fazer para a cena reivindica suportes
materiais e operacionais concretos. H‡ um hiato entre a idŽia e sua realiza•‹o. A
resistncia da realiza•‹o ˆ composi•‹o determina a performance, corrigindo o
processo global. Procuramos, em nossa an‡lise, deixar claro essa produtiva intera•‹o
entre teoria e representa•‹o.
Seguindo tais preocupa•›es metodol—gicas, os autores lidos n‹o se
transformam em dados para uma sistematiza•‹o te—rica a posteriori. Ao contr‡rio, a
leitura encaminha-se para explicitar o horizonte te—rico visado e o campo te—rico-
pr‡tico em constru•‹o que os autores escolhidos efetivam.
2- A. Appia: A encena•‹o como renova•‹o da pr‡tica teatral
O vision‡rio Adophe Appia (1862-1928) bem caracteriza a emergncia da
figura do encenador como fator basilar para a teoria e pr‡tica do teatro do sŽculo XX.Com a crise do espa•o de representa•‹o baseado no chamado palco italiano,
que preconizava uma rela•‹o frontal, unidirecional, est‡tica e apassivadora entre
palco e platŽia em um lugar fechado, todo o processo de se conceber e fazer
espet‡culos entra em crise. O espa•o de representa•‹o necessita ser reestruturado,
levando em conta a constitui•‹o do espet‡culo e sua realiza•‹o. Um espet‡culo n‹o
tem de se amoldar a um espa•o fixo. A pluralidade de formas de representa•‹o Ž
correlativa ̂ diversidade de espa•os de exibi•‹o.
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A contradi•‹o entre a din‰mica representacional da cena e a press‹o por
normalidade da forma de apresenta•‹o abre a possibilidade de n‹o restringir o
representado aos ditames extracompositivos, mas de se determinar a representa•‹o
por fatores de composi•‹o e performance. N‹o Ž o espet‡culo que tem de encontrar
um espa•o no teatro, mas Ž o teatro que tem de estar contido no espet‡culo.
Para resolver esta contradi•‹o (ou mesmo torn‡-la represent‡vel), Ž preciso
uma media•‹o entre a fisicidade do espet‡culo e a constitui•‹o de uma situa•‹o
integrada de observ‰ncia, que possibilite a realidade da fic•‹o como algo fact’vel de
ser assenhorado pela recep•‹o. O encenador Ž o agente desta media•‹o. Uma outra
criatividade, diferente da criatividade do autor, co-opera na realiza•‹o do espet‡culo.
E, com ele, todo o mundo extramental da fun•‹o autoral Ž positivado.
De forma que, na emergncia do encenador, a rela•‹o autor/texto/ pœblico Ž
desconstru’da, havendo a descentraliza•‹o das prerrogativas criativas e expressivas
que repousavam exclusivamente nas m‹os do autor e de seu texto. A representa•‹o
deixa de ser extens‹o das idŽias de um centro e monop—lio de sentido e o texto perde
sua fun•‹o exclusivista de fixa•‹o de um mundo homogneo e fechado.
A. Appia ficou sendo mais conhecido pelas aplica•›es tŽcnicas de sua obra,
relacionadas com a ilumina•‹o (luz m—vel, focos precisos e vari‡veis) e a
tridimensionalidade da cena (espa•o de atua•‹o em rela•›es concretas entre o corpo
do ator e os objetos de cena ), padr›es m’nimos de encena•‹o hoje largamente
adotados. Mas seus escritos revelam um horizonte de quest›es que se tornaram
fundamentais para pensar a realiza•‹o teatral.
Ele partiu de uma situa•‹o bem determinada para, a partir disso, construir suas
program‡ticas reflex›es. Repensando as limita•›es da revolu•‹o estŽtica produzida
pela obra de Richard Wagner (1813-1883), Appia soube caracterizar o contexto de
ruptura que estava se formando, fundamentando teoricamente o que o futuro iriareivindicar para ser efetivdo como inova•‹o.
A proposta de Wagner, que ia alŽm da —pera, preconizava uma concep•‹o
integrada de efeitos para a constru•‹o do drama musical. Ele via nas complexidades
inerentes ˆ realiza•‹o multim’dia da tragŽdia grega (canto, dan•a, palavra) o impulso
de reeduca•‹o estŽtica do povo alem‹o. A obra de arte do futuro deveria ser uma obra
de arte total, sendo a dramaturgia uma conscincia dos meios para se atingir essa
integra•‹o. Wagner polemiza contra o sucesso das —peras de G.Meyerbeer(1791-1864) e dos libretos de E. Scribe(1791-1861), mais preocupados em manter a platŽia
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atenta atravŽs de isolados e pontuais truques musicais e narrativos, que n‹o
aprofundam a tens‹o dram‡tica e a estrutura•‹o da obra. Wagner quer expandir o
efeito do drama e suas potencialidades representacionais atravŽs da extens‹o dos
par‰metros composicionais.
O convencionalismo dram‡tico da —pera do tempo de Wagner ent‹o Ž atacado
como forma de se diversificar as possibilidades da express‹o musical. A mœsica, antes
dependente de um enredo esquem‡tico, previs’vel e limitado, agora se oferece como
condutora do espet‡culo. A estrutura musical e seus efeitos afetivos poderiam romper
com o ilusionismo da cena convencionalizada. A•›es musicais tornadas vis’veis Ð eis
um emblema para a dramaturgia musical de Wagner.
Mas a’ onde a mœsica se torna vis’vel, em sua exterioriza•‹o, Ž que reside a
contradi•‹o de Wagner. As solu•›es pict—ricas extremamente suntuosas sonegam ao
espectador uma participa•‹o maior nessas a•›es musicais. O extremo realismo da
encena•‹o traduzia o car‡ter espetacular da encena•‹o, sem efetivar o espa•o para
uma dramatiza•‹o maior. A intensidade da mœsica era vazada em uma cena inerte e
reprodutiva. Como um quadro com legenda, a exuber‰ncia visual torna-se uma
explica•‹o e um direcionamento do que se pretende representar.
Um novo espa•o cnico Ž preciso, pois. Para as obras performativas n‹o basta
mudar os temas, as imagens ou a estrutura•‹o. N‹o basta mudar o texto sem alterar
aparato cnico. A obra nova de Wagner necessita de um novo espa•o. O alargamento
das dimens›es imaginativas proporcionados pela dramaturgia musical de Wagner
reivindica uma correlata extens‹o representacional.
Foi o que Appia viu. A emergncia do encenador est‡ diretamente relacionada
com a mudan•a de nossas concep•›es de obra de arte, sempre associadas com a
literatura, com a escrita. O efetivo modo de ser da encena•‹o ilumina o alŽm-texto, a
presen•a irrefut‡vel de um contexto de produ•‹o de sentido. A faticidade do que n‹o Žs— linguagem e estados mentais torna-se determinante. A dramaturgia defronta-se com
esse intervalo entre obra e realiza•‹o. A materialidade e suas irremedi‡veis
contingncias saltam aos olhos n‹o s— como dificuldades e apndices ˆ idŽia art’stica.
Tal descontinuidade entre texto e representa•‹o, motiva Appia a pensar as
implica•›es estŽticas de se levar em conta as especificidades de uma express‹o
cnica. O pressuposto de uma imediata transparncia da fisicidade da cena Ž refutado.
Exigncias f’sicas n‹o podem ser refutadas, mas devem ser integradas ˆrepresenta•‹o. Dispositivos tŽcnicos s‹o marcas de uma revis‹o de programas
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idealistas. A inadequa•‹o entre a fluidez musical e informa•›es visuais estritas aponta
para o desgaste da maneira como a fic•‹o audiovisual era concebida e realizada. O
provimento de um drama absoluto - nas palavras de P.Szondi, por meio do qual o
percurso narrativo de um agente Ž preenchido totalmente e o espet‡culo Ž o mundo
ordenado no qual ele qual habita - n‹o mais pode perseverar 71. A rigorosa distribui•‹o
de rela•›es entre personagens e referncias espa•o-temporais, proporcionando a
ilus‹o cnica da continuidade entre mundo e vida, chega ao seu limite. Wagner havia
tinha composto o drama musical, mas n‹o o espa•o tŽcnico e representacional deste
drama.
Chega ao limite tambŽm a narratividade do drama. Na dramatiza•‹o n‹o se
est‡ contando uma hist—ria. Procedimentos n‹o narrativos s‹o utilizados. A arte
dram‡tica n‹o se confina ˆ continuidade causal de acontecimentos pertencentes a uma
trama que transcende ˆ representa•‹o. O que acontece em cena pertence ˆ outra
ordem que a confirma•‹o e encadeamento final’sticos da narrativa. A unidade da
realiza•‹o dram‡tica reside na sustenta•‹o de sua recep•‹o e efetividade.
Podemos acompanhar melhor a argumenta•‹o de Appia seguindo seu livro La
musique et la mise en scne72 , de 1898. O livro divide-se em trs partes interligadas
como tarefas e reflex›es que devem ser executadas para a renova•‹o das artes de
cena. Respectivamente Appia critica a concep•‹o realista do teatro de seu tempo
(sŽculo XIX), rev a encena•‹o de Wagner e prop›e uma teoria da encena•‹o.
A orienta•‹o musical da dramaturgia, uma dramaturgia poŽtico-musical, como
Wagner tentou realizar, produz a reconsidera•‹o do espectador e do espet‡culo de um
drama falado - ve’culo predominante de idŽias e comportamentos no sŽculo XIX - ao
mesmo tempo que, pela partitura musical, rompe com a centralidade do texto e dos
atos verbais.
A marca•‹o partiturizada dos contextos emocionais da personagem altera ofoco da representa•‹o. Ao invŽs de se sobrecarregar a atua•‹o com as informa•›es
que comp›em e caracterizam o mundo do palco, uma poŽtica musical para a cena
interpreta e mantŽm a din‰mica que individualiza os motivos prŽ-actanciais, o debate
interno da personagem antes do agir, bem como as respostas emocionais frente aos
acontecimentos. A representa•‹o n‹o reproduz uma const‰ncia referencial, mas
produz a interpreta•‹o de sua forma atravŽs da marca•‹o emocional e cognitiva da
71 SZONDI 2001: 29-37.72APPIA 1981.
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audincia. Do projeto de reproduzir com verossimilhan•a o mundo da vida partimos
para a explora•‹o de uma ambincia extracotidiana onde a constru•‹o do espectador Ž
desenvolvida. A satisfa•‹o do olhar sustentada pelos coment‡rios do ator Ž bloqueada.
O uso da mœsica como operador dram‡tico determinante refuta os h‡bitos do
chamado teatro liter‡rio o qual, desde o Classicismo francs (sec. XVIII) atŽ os
rescaldos do Realismo-Naturalismo, propunha que o mundo representado viesse a ser
um aperfei•oamento do mundo vivido.
Rompendo com a subordina•‹o da cena a um tipo de texto que organizava os
modos de percep•‹o do mundo, o drama musical exige a coordena•‹o de esfor•os da
platŽia para uma experincia singular a ser representada. O foco passa a ser a fic•‹o
partilhada.
Em uma obra dram‡tico- musical essa partilha s— ocorre atravŽs da
continuidade da cena em suas varia•›es temporais e afetivas. Todos os heterogneos
elementos do espet‡culo (canto, dan•a, fala, luz, mœsica, pintura) precisam se
submeter ˆ dura•‹o singularizada de seus efeitos. A mœtua implica•‹o dos elementos
no espet‡culo postula novas atribui•›es e fun•›es para o material utilizado levando
em conta as particularidades f’sicas desses materiais. Para durar, o espet‡culo precisa
da integra•‹o de seus v‡rios n’veis representacionais. O momento de cena Ž a
articula•‹o dessa pluralidade convergente.
Para ficar mais claro, Appia toma o uso dos cen‡rios pintados como
contraexemplo ao que almeja. Este problema pl‡stico faculta o desenvolvimento de
uma nova arte. Por meio destes objetos bidimensionais enfatizava-se uma ilus‹o
abstrata de realidade, pressupondo no que se mostra uma generalizada vis‹o-suporte
como subs’dio ao que se representa. N‹o levando em conta a pr—pria realidade de
cena e sua configura•‹o para o espectador, ficava-se convencionado que ali existiria
algo sem que efetivametne houvesse. Limitava-se o que devia ser visto ao que Žmostrado, o que diminui o real representado. O controle do campo perceptivo da
platŽia est‡ estipulado neste acordo t‡cito. As grandezas s‹o constantes e absolutas: o
grande e o pequeno s— podem ocorrer alternadamente. A simula•‹o de terceira
dimens‹o nas est‡ticas pinturas de cen‡rios Ž facilmente destru’da pela realidade
material dos corpos, pelo movimento da luz e do corpo humano.
Para fazer valer essa —ptica redutora foi preciso arrefecer o pr—prio alcance do
espet‡culo. A continuidade da ilus‹o de um espa•o nivelador exigiu a representa•‹ode um mundo ficcional compat’vel. Tudo que Ž posto em cena leva a marca dessa
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ln
conforma•‹o. A solu•‹o visual dos cen‡rios pintados Ž decorrente de uma proposta
dram‡tica que reduz a realidade visual do espet‡culo ˆ sua imediata apresenta•‹o. Da’
os arroubos emocionais e as trucagens de enredo.
Contudo, quando se coloca algo em cena Ž preciso sustentar sua vis‹o. Para
tornar cr’vel aquele painel, verdadeiro discurso da imagem, Ž preciso que os outros
elementos de cena comunguem da mesma orienta•‹o. Appia bem explicitou que uma
descri•‹o da atividade cenogr‡fica proporciona a compreens‹o de um produto que n‹o
Ž gratuito, mas que se determina pela orienta•‹o estŽtica que o instaura. A
fenomenologia da cena nos faz reconhecer que a atividade estŽtica da recep•‹o
preconiza uma hierarquia e a coopera•‹o dos diversos elementos integrantes do
espet‡culo. A complexidade do visto Ž um fazer tornado poss’vel.
Dessa maneira, melhor que o cen‡rio pintado Ž a atividade da luz. Luz e
superf’cie pintada se anulam ao invŽs de se refor•arem mutuamente. O dramaturgo
musical pinta com a luz. A flexibilidade e a extens‹o imaginativa do espet‡culo
reverberam na plasticidade da ilumina•‹o. Em cena objetos f’sicos reais e presentes
desnudam o ilusionismo convencional dos cen‡rios pintados. Objetos n‹o podem ser
fict’cios porque a luz n‹o tem existncia fict’cia. O corpo vivo e r’tmico do ator
contradiz a massa im—vel e distante que se equilibra atr‡s dele. Os contextos
emocionais e suas seqŸncias e as propor•›es de sua visualiza•‹o entrechocam-se
com uma bidimensionalidade isolada. A um corpo vivo, a uma mœsica dramatizada,
corresponde um espa•o temporalizado. A luz, com sua capacidade de revelar nuances
multivariadas, proporciona o reconhecimento de profundidades, modifica•›es e
fus›es que a representa•‹o sugere. A luz Ž matŽria e intŽrprete do espet‡culo.
A flexibilidade da luz e as cores a ela associadas possibilitam a pluralidade
coerente do novo princ’pio cnico que Appia teoriza. A intensifica•‹o dram‡tica Ž
proporcional ˆ uma economia visual. Distribuem-se as fun•›es entre os elementos quecontracenam entre si. Os atores contracenam com a luz a qual, por sua vez, contracena
com a mœsica. A desubstancializa•‹o das formas libera a dramaturgia musical para as
particularidades do espa•o cnico. A visualidade deixa de ser uma evidncia para se
postar como problematiza•‹o de qualquer roteiro representacional. A controlada luz
no palco unifica e realiza as inten•›es expressivas
Dali em diante, o espa•o cnico Ž o espa•o de experimenta•‹o e de concretude
estŽtica do artista cnico. N‹o Ž anterior ao que realiza, mas Ž indissoci‡vel ˆrepresenta•‹o. Paradoxalmente, a fic•‹o cnica n‹o Ž uma ilus‹o, uma atividade
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mental imposta e sim a proposi•‹o de materiais bem escolhidos e correlacionados. O
espa•o cnico corrige as oposi•›es entre fic•‹o e realidade e refuta uma estŽtica
filos—fica em prol de uma estŽtica operat—ria e explorat—ria. A teatralidade emerge
como situa•‹o extrema ficcional que, no prec‡rio modo de sua existncia Ð
visualidade Ð mobiliza uma complexa atualidade material e afetiva. A unidade do
teatro n‹o est‡ mais assinalada nas inten•›es e idŽias do texto de um autor. Em torno
do espa•o cnico a visibilidade do que se objetiva n‹o ser‡ apenas um meio, mas sua
pr—pria possibilidade.
Em LÕOuvre dÕArt Vivant 73, de 1921, considerado seu testamento estŽtico,
Appia, agora mais livre do ideal wagneriano, consolida sua teoria do teatro. O contato
e a colabora•‹o com os experimentos da Euritimia de Emile Jaques Dalcroze fizeram
com que Appia coordenasse a centralidade do espa•o cnico com o corpo humano. O
ritmo do espa•o Ž interpretado pelo corpo e este modifica seus movimentos e suas
formas. Pois, como o corpo humano torna formas pintadas irrelevantes, Ž a sua
performance que cria o espet‡culo. O ator e seu treinamento e desenvolvimento
f’sico-expressivo s‹o agora o foco da reforma da encena•‹o de Appia. A mœsica cede
sua imagem para a defesa de um espa•o r’tmico a ser individualizado pelo intŽrprete.
Para chegar ao ator, Appia pergunta-se se tempo e espa•o possuem algum
denominador comum: uma forma no espa•o pode se manifestar em sucessivas
dura•›es de tempo e essas sucessivas dura•›es de tempo podem ser expressas em
termos de espa•o. Vendo que, no espa•o, unidades de tempo s‹o expressas por
sucess‹o de formas em movimento e que, no tempo, espa•o Ž expresso por sucess‹o
de palavras e sons, Appia promove o corpo vivo do ator, sujeito ˆs suas
determina•›es f’sicas reais, a intŽrprete do tempo em forma de espa•o. Diferente de
formas inanimadas, o corpo reage e real•a um paradoxo fundamental da cena: se a
mœsica prescreve os movimentos do corpo, o corpo transforma o espa•o em tempo. Avisualidade do espa•o cnico demanda que o corpo torne fact’vel a experincia de
uma temporalidade. H‡ a cena somente quando o corpo materializa essa intera•‹o. O
corpo do ator contracena com dura•›es e extens›es. Existe um momento prŽ-
representacional que atravessa a constru•‹o do espet‡culo e sobredetermina o
horizonte de tudo que vai ser encenado: a fisicidade do corpo.
73 APPIA 1997.
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O espa•o cnico Ž o espa•o r’tmico no qual o corpo vivo do ator confronta-o,
provoca, transformando constri•›es em possibilidades criativas. Segundo Appia
ent‹o, em raz‹o de o corpo ser o ponto de partida e sustenta•‹o da realiza•‹o
dram‡tica, como o corpo expressa espa•o e, para proporcionar espa•o, precisa de
tempo, sua atividade Ž express‹o de espa•o durante o tempo e tempo no espa•o. O
corpo Ž o autor dram‡tico, pois ÒN—s somos a pe•a e a cenaÓ, de acordo com Appia.
A produ•‹o de tempo e espa•o pelo corpo Ž que torna realiz‡vel o evento cnico.
Desse modo entramos no palco moderno. A voz de Appia n‹o s— ecoou nos
trabalhos e teorias dos encenadores como Gordon Craig (1872-1966), Max Reinhardt
(1873-1943), Erviw Piscator (1893-1966) como tambŽm em outras dire•›es que o
teatro foi promovendo (teoria e treinamento do ator). A abertura de perspectivas
promovida pela abordagem de Appia, ao formular sua teoria sem se valer somente de
estŽticas filos—ficas ou program‡ticas, reconsiderando a faticidade da linguagem de
cena, impulsionou a chamada autonomia da teatralidade, autonomia esta baseada no
conhecimento de suas especificidades. A materialidade da cena n‹o Ž uma ilustra•‹o
da express‹o dram‡tica, mas um pressuposto de sua realiza•‹o. A partir da
modernidade, Ž preciso corrigir as idŽias ppor meio do concreto contexto da express‹o
em cena. O processo criativo agora Ž um complexo estŽtico-f’sico.
3- C. Stanisl‡vski: a cincia do ator e a estŽtica do espet‡culo
Òƒ a extrema sensibilidade que faz os atores med’ocres: Ž a sensibilidade
med’ocre que faz a multid‹o dos maus atores; e Ž a falta absoluta de sensibilidade
que prepara os atores sublimesÓ
D. Diderot
Foi em rela•‹o a uma teoria da atua•‹o que o sŽculo XX teatral mais se
empenhou. Com a busca de sua pr—pria linguagem e conseqŸente explicita•‹o de seus
suportes e processos expressivos fundamentais, as abordagens cnicas foram buscar
na teoria da atua•‹o a concretiza•‹o de novas experincias agora poss’veis. A
libera•‹o do campo representacional do teatro, adquirido em fun•‹o de seu paradigmade ruptura, efetivou o deslocamento do ator da posi•‹o de instrumento veiculador de
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um discurso autoral para se constituir ele mesmo como centro da atividade criativa
desempenhada em situa•‹o de representa•‹o.
Fundamental para apreendermos os caminhos e descaminhos da teoria da
atua•‹o Ž a obra de Constantin Stanilaviski (1863-1938). Procurando esclarecer os
determinantes b‡sicos da interpreta•‹o para a cena e, a partir disso, proporcionar um
sistema de trabalho, Stanislavski compreensivamente forneceu uma s’ntese de
complexas de referncias que est‹o presentes na constitui•‹o da atua•‹o. Mais que
uma absoluta e regr‡tica canoniza•‹o de um estilo interpretativo, temos em
Stanislavski uma gram‡tica da interpreta•‹o que, ao pacientemente analisar e
demonstrar procedimentos intr’nsecos ˆ atua•‹o, faculta-nos padr›es para a descri•‹o
da atividade focada assim como par‰metros para sua avalia•‹o.
O contexto reativo de Stanislavski nos oferece uma primeira aproxima•‹o ˆ
sua obra. A redefini•‹o da presen•a do ator em cena Ž uma necess‡ria extens‹o
reativa ˆ estereotipa•‹o das interpreta•›es que se tornou marcante com o realismo
convencional e comercial das grandes companhias teatrais de meados para fins do
sŽculo XIX. Apropriando-se de um conjunto de clichs de atua•‹o para causar
impacto imediato sobre a platŽia, o ator centrava sua atividade nestes artif’cios. N‹o
havia singularidade de espet‡culo, pois o clich eliminava a preocupa•‹o com a
efetiva•‹o de uma fic•‹o. O espet‡culo se reduzia ao histrionismo do ator. Os
momentos isolados de sua apari•‹o funcionavam como a performance do espet‡culo.
O convencionalismo de seus artif’cios impossibilitava a versatilidade de sua
performance e, disto, de seu entendimento do processo de atua•‹o.
Esta Ž uma abordagem incorreta ou inautntica de abordar o trabalho do ator.
Stanislavski denomina os atores que se valem desses expedientes de atores de
personalidade74, que confiam inteiramente na inspira•‹o, produzindo uma
sobreatau•‹o, ou performance exagerada, amadora e ingnua. Substituem ossentimentos relacionados com a representa•‹o por emo•›es pontuais genŽricas.
Da’ o apego ˆ exterioridade da interpreta•‹o. O espa•o de representa•‹o
coincide com o cardiograma do ator. O tempo de sua atua•‹o Ž o mesmo tempo de sua
74 Como neste t—pico vamos nos concentrar mais nas obras de Stanislavki, usoas seguintes siglas: PA( A prepara•‹o do ator , Rio de Janeiro, Civiliza•‹o Brasileira,1984; CP( A cria•‹o do papel , idem, idem, 1999) e CG( A cria•‹o da personagem,Idem Idem, 1987). No caso aqui citamos PA 50-51.
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excessiva conforma•‹o emocional. Quando surge e atua, marca sua presen•a pela
sonora visualidade de sua personalidade.
Contrariamente ao fechamento da representa•‹o ˆ subjetividade ditatorial do
intŽrprete, Stanislavski faz-nos perceber a descontinuidade entre atua•‹o e
representa•‹o. A diferen•a entre o ator e o papel Ž o ponto de partida para a
integratividade dos n’veis da representa•‹o. O saber do ator ser‡ a sua reden•‹o.
Conhecendo e experimentando as implica•›es dessa descontinuidade, o ator se
exercitar‡ na compreens‹o de sua atividade.
Ent‹o entra toda a sorte de confus›es quando se come•a a ler Stanislavski. Ao
defender uma vis‹o mais integral da atua•‹o, ele introduz a dimens‹o interior da
personagem, o subconsciente, o conteœdo espiritual, todas essas express›es
ambivalentes e plurissignificativas. Mais que uma quest‹o de vocabul‡rio ou de
tentativa de filiar Stanislavski a uma ou outra corrente de pensamento, tal recurso 'ao
interior' procura situar a descontinuidade entre ator e papel atravŽs da n‹o
transparncia da representa•‹o. Ou seja, a tentativa de ampliar as dimens›es da
especifica atividade de interpretar para a cena exige uma compreens‹o aplicada a si
mesmo da impossibilidade de coincidir ator e papel. Essa impossibilidade ao invŽs de
eliminar a representa•‹o solicita por parte do intŽrprete a reorienta•‹o de sua
atividade para um horizonte que inclua nos seus atos uma transforma•‹o dessa
impossibilidade na possibilidade mesma da atua•‹o.
Ao mesmo tempo, essa mescla de modos de descri•‹o dualistas aponta a
integratividade na qual as parcialidades s‹o expostas em seu improdutivo insulamento
e encaminhadas para a interdependncia de materiais f’sicos e emocionais, ÔinternosÕ
e ÔexternosÕ na completa realiza•‹o da atua•‹o.
Parece mais dif’cil agora. ƒ preciso mudar o ponto de partida. O ficcional a ser
representado n‹o Ž um dado, mas uma provoca•‹o. O ator n‹o tem o personagemantes de estud‡-lo e torn‡-lo vis’vel. A revers‹o do ponto de vista a partir da mudan•a
do ponto de partida devolve para o ator a operacionalidade dos limites da atividade
para a qual ele se destina. O espec’fico ato de representar intervŽm na modifica•‹o do
posicionamento do ator diante de sua tarefa. O que Stanislavski faz, ou o que chama
seu sistema, Ž explicitar as atividades inerentes ao ato de representar, esclarecendo
seu horizonte estŽtico-operativo. Desse modo, a arte tem sua cincia.
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Por isso para Stanislavski Óo essencial da arte n‹o est‡ nas suas formas
exteriores, mas no seu conteœdo espiritualÓ75 . Essa afirmativa poderia patentear o que
chamamos de paradoxo de performance, pois reagindo contra a exterioriza•‹o, a
realidade como nos chega a representa•‹o, acaba por anular a pr—pria realidade da
representa•‹o. O que redundaria no refor•o do que era criticado no tipo de atua•‹o
personalista. A dicotomia exterior - interior, contrapartida cnica do dualismo
psicof’sico (oposi•‹o mente-corpo) desmaterializaria o espa•o de representa•‹o
tornando desnecess‡ria a fisicidade e o preparo para a cena.
Contudo, o paradoxo Ž aparente. O recurso ao interior Ž a compreens‹o da
dupla perten•a do ator, sua dupla natureza. "Uma Ž a perspectiva do papel, outra Ž a
do atorÓ76, onde o aprofundamento da perspetiva do ator Ž complementar ao
conhecimento da diferen•a de perspectivas dentro de sua atua•‹o. O que vai ser
representado precisa ser elaborado a partir dessa dupla perten•a ativada antes e
durante a performance. Aquilo que n‹o Ž fundamentado por desdobrada subjetividade
torna-se n‹o justificado e artificiosamente mobilizado como apoio onde carece
trabalho de base. A cena ent‹o toda Ž exterioriz‡vel em fun•‹o de seus expl’citos
fundamentos estudados e testados durante o processo de explora•‹o do papel por
parte do ator. O interior Ž a intimidade cada vez mais intensificada com o papel.
Desdobra-se o ator em observador e agente, sujeito e objeto de sua atividade de
representa•‹o, corrigindo-se, modificando-se para interpretar.
O duplo Ž a chave de acesso para um processo mais completo. Esse interior
como correlato irredut’vel ˆ reprodu•‹o/espelhamento do exterior Ž ampliado de
forma a caracterizar o conjunto de procedimentos implicados no ato de representar. A
abordagem mais correta e efetiva desse interior nos far‡ mais pr—ximos de uma
compreens‹o mais eficaz da interpreta•‹o para a cena. Por isso Stanislavski
recomenda Ônunca se permita representar exteriomente algo que voc n‹o tenhaexperimentado intimamenteÓ77. O papel n‹o Ž uma evidncia normalizada pelo meu
imediato agir. A fic•‹o a ser representada, ao mesmo tempo que Ž singular, exige do
ator a singulariza•‹o de sua interpreta•‹o. A dupla perten•a do ator Ž o diagrama que
configura a compreens‹o e interpreta•‹o da fic•‹o a ser encenada. Preconizando o
interior em uma cis‹o mais global da atua•‹o, quer-se apontar para a dupla perten•a
75 PA 6576 CG 19877 PA 56-57
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do ator, para a diferen•a ontol—gica entre a figura e o intŽrprete,diferen•a esta que
repercute na necessidade de procedimentos mais fundamentados para a atua•‹o.
Estrategicamente, o elogio do interior Ž o elogio da diferen•a entre fic•‹o e realidade
e a reivindica•‹o do trabalho do ator diretamente conectado com o conhecimento dos
meios pelos quais ele se expressa. ƒ o que chamamos de Ôhorizonte estŽtico
operativoÕ da abordagem de Stanislavski. Tal horizonte operativo esclarece o
idealismo estŽtico que muitas vezes Ž demasiadamente mais comentado e reproduzido
que o contexto de sua utiliza•‹o.
Se a representa•‹o n‹o Ž uma evidncia em sua isolada exterioridade para ator,
Ž a compreens‹o do modo de ser dessa interioridade que possibilita o acesso ao
conhecimento da atua•‹o. A explicita•‹o dos par‰metros da atividade
representacional torna-se a forma•‹o mesma do ator. Desmistifica-se a aura de
pseudo-espontaneidade e irracionalidade que cerca o fazer art’stico. Stanislavski
demonstra que a forma•‹o do ator alinha-se ao aprimoramento de sua sensibilidade e
conhecimento do que faz. Uma racionalidade estŽtica orientada para a composi•‹o e
performance, um c—gito representacional Ž experimentado e integrado aos
movimentos do ator. De forma que Òtodo invento da imagina•‹o do ator deve ser
minuciosamente elaborado e solidamente erguido sobre uma base de fatosÓ78.
Na medida em que vai justificando todo ato que realiza ao compreender
melhor a situa•‹o de representa•‹o com a qual se relaciona, o ator vai contracenando
n‹o s— com a figura que ele encena mas consigo mesmo79. A reflexibilidade da
atua•‹o Ž adquirida atravŽs da continuidade do embate com seu correlato assimŽtrico,
o papel. A dupla perten•a do ator agora ganha foros de complementaridade. A
fundamenta•‹o do papel Ž uma constitui•‹o da experincia do ator. O papel n‹o Ž um
tipo, um simulacro de realidade e sim uma abertura para a compreens‹o da
ficcionalidade a ser representada.o papel n‹o Ž a concretiza•‹o ou reprodu•‹o de umindiv’duo e sim a contextualiza•‹o de uma atividade interpretativa. Eis o diferencial
das artes para a cena: por necessidade da performance, da realiza•‹o, estas artes se
convertem em uma educa•‹o integral dos sentidos, das capacidades volitivas e
cognitivas ao exporem a integratividade de sua composi•‹o. Na performance da arte
78 PA 9679 Mais explicitamente PA 197 ÓO ator deve usar sua arte e sua tŽcnica para
descobrir, por mŽtodos naturais, os elementos que precisa desenvolver para o seu papel. Deste modo a alma da pessoa que ele interpreta ser‡ uma combina•‹o doselementos vivos do seu pr—prio serÓ. Mais adiante veremos o que Ž essa ÔalmaÕ.
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da cena exibe-se mais cabalmente sua composi•‹o. A performance Ž a estrutura•‹o da
composi•‹o. A complexidade da atua•‹o est‡ diretamente indexada ao diferencial da
linguagem para cena. In loco, o ator Ž o suporte da representa•‹o e a realiza•‹o
mesma dessa representa•‹o. Ele tem de possibilitar a representa•‹o, tem de tornar
fact’veis as condi•›es para que a representa•‹o seja compreendida. A interpreta•‹o
para a cena efetiva a compreens‹o do espet‡culo.
Dessa maneira, quando Stanislavski afirma queÓ o objetivo fundamental da
nossa psicotŽcnica Ž colocar-nos em um estado criado no qual o nosso subconsciente
funcione naturalmenteÓ80 de modo algum est‡ prescrevendo uma terapia ou uma
psicologiza•‹o do ator nem muito menos a canoniza•‹o de um estilo interpretativo. O
vocabul‡rio n‹o Ž o texto. Psicologia e Naturalismo. ƒ preciso saber o referente. A
preocupa•‹o de Stanislavski Ž tornar compreens’vel a atua•‹o revelando sua
integratividade estŽtica. A totalidade das capacidades e dos meios do ator se
movimenta na ’ntima rela•‹o entre composi•‹o e performance. Pois acima de tudo,
estamos lidando com fic•›es. A reflexibilidade do ator caracteriza o levar em conta a
subjetividade em sua reestrutura•‹o provocada pela descontinuidade entre o papel e
sua realiza•‹o. Decorrente disso, o ÔnaturalÕ , a natureza criadora, a segunda natureza
do ator, Ž a compreens‹o da situa•‹o do intŽrprete agora operacionalizada. A
composi•‹o antecede e excede ˆ performance. O que se torna natural Ž compreens‹o
da composi•‹o de performances.
N‹o Ž ˆ toa que os exerc’cios e treinamentos empregados por Stanislavski
objetivam procuram investigar e internalizar esta composi•‹o de performances. Esta
internaliza•‹o da compreens‹o do processo criativo para a cena , escandaloso
ÓinternoÓ, reverte a m’stica ilusionista do ator, transformando atos expressivos
imediatistas em precisas formas de longa dura•‹o. Contraditoriamente para alguns, o
vocabul‡rio que Stanislavski utiliza ao se referir a julgamentos dos atos decorrentesdessa internaliza•‹o reveste-se de uma moldura classicizante: Òquanto mais delicado Ž
o sentimento, mais exige precis‹o, clareza e qualidade pl‡stica para se exprimir
fisicamenteÓ; Òevitem a falsidade, evitem tudo o que for contr‡rio ˆ natureza, ˆ l—gica
e ao bom sensoÓ. A moldura classicizante, tomada de emprŽstimo do vocabul‡rio das
artes pl‡sticas, caracteriza o momento, o efeito da internaliza•‹o. Este vocabul‡rio
n‹o Ž ’ndice abstrato e genŽrico de valor, mas indica•‹o do concreto esfor•o tornado
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palp‡vel e vis’vel da mudan•a de ponto de vista do ator em rela•‹o ˆ sua atividade.
Mais ciente da estrutura•‹o de sua performance, seus atos ganhos f™lego de quem
abriu seus horizontes aplicando-os ˆ especificidade do que realiza. O natural e o
l—gico Ž a exposi•‹o da compreens‹o de sua performance. Esses termos maisÓ
racionaisÓ n‹o s‹o um ideal estŽtico, mas demarcam a inteligibilidade da
representa•‹o. E s‹o vis’veis, exteriores. Note-se como, aparentemente em
contradi•‹o Stanislaviski vale-se tanto de termos e express›es 'romantizados' quanto
classicizantes.
Aqui entramos na ultrapassagem dessas categorias substantivas e nos
concentramos nos verbos. O que realmente temos Ž uma dificuldade imensa de falar a
respeito das representa•›es dram‡ticas. Por isso essas categoriza•›es que dividem o
mundo em dois Ð externo/interno, sujeito/objeto racional/criativo. Stanislavski se
utiliza desse vocabul‡rio conhecido para outros fins. E manipula para seu pr—prio
pensar vocabul‡rios ditos cient’ficos, objetivos e idealistas. Para alŽm do ecletismo,
temos a constata•‹o n‹o s— de uma falta de linguagem para o trabalho criativo cnico
como tambŽm a persistncia nessa linguagem polarizante ‡vida de estratŽgias
contemplativas, generalizadoras do fazer estŽtico. A arte para a cena denuncia a
miopia interpretativa de se tentar hipertrofiar a fic•‹o teatral cena seja por trat‡-la
como c—pia da realidade, seja por consagr‡-la como lugar m’stico transcendente.
Incrivelmente o natural e o interno em Stanislavski n‹o retomam um mimetismo
restrito nem a m’stica egol‡trica. S‹o atos. Internaliza•‹o e naturaliza•‹o descrevem o
tempo e o modo pelos quais o ator torna o desempenho consciente de suas
especificidades.
Na medida em que internaliza e naturaliza seus atos, o ator Ódesenvolve uma
espŽcie de controle, como se fosse um observador. Esse processo de auto Ðobserva•‹o
e remo•‹o da tens‹o desnecess‡ria deve ser desenvolvido ao ponto de se transformanum h‡bito subconsciente, autom‡ticoÓ inserindo dentro de si um Òcontrolador dos
mœsculos que deve tornar-se parte da nossa conforma•‹o f’sica, uma segunda
naturezaÓ81 . A internaliza•‹o, pois, de uma escuta sens’vel ˆ composi•‹o de
performances reflexivamente atinge o ator. Ele n‹o absorve o que entende apenas por
contemplar. Ele Ž colocado em situa•‹o de compreender a realiza•‹o de
representa•›es. Assim como a fic•‹o para a cena Ž uma integra•‹o de processos
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espec’ficos que a efetivam, do mesmo modo o ator vai totalizando sua presen•a e sua
perten•a ao espet‡culo. Seus atos fisicizam esta compreens‹o do que realiza. O corpo
Ž o que movimenta essa compreens‹o. O ator corporifica seu saber, e sua performance
Ž a exibi•‹o de um corpo vivo, espet‡culo integral de sua aprendizagem. O corpo,
como o ator em rela•‹o ao papel, precisa explorar essa situa•‹o de representa•‹o.
Dessa maneira, a fisicidade n‹o Ž um absoluto. Sua abism‡tica plasticidade
precisa levar em conta a explora•‹o orientada de suas possibilidades. N‹o se trata de
uma abstra•‹o estetizante, o equ’voco estŽtico de n‹o se conhecer o corpo. Mas o
conhecer o corpo incrementa-se em virtude da perspectiva de cena, e a motiva•‹o
estŽtica se aprimora na discuss‹o de seus limites possibilitadores. De forma que Ž para
os par‰metros de composi•‹o e performance que uma estŽtica operativa converge,
suplantando um idealismo estŽtico ou uma fisicidade espontane’sta.
Stanislavski, valendo-se de vocabul‡rios de tradi•›es cindidas, bem procurar
integrar essa dicotomia psicof’sica em contexto mais produtivo para a atua•‹o. Assim
como ele propugnou a predomin‰ncia da compreens‹o da composi•‹o na
internaliza•‹o, tambŽm agora na fisicidade do papel ele atualiza a mesma
determina•‹o basilar: ÒOs mœsculos devem estar plena e diretamente subordinados
aos sentimentos82Ó A composi•‹o dos par‰metros de performance, que a composi•‹o
faz resultar, n‹o fica restrita a uma idŽia da cena. Ela estabelece par‰metros para o
corpo. A constru•‹o do espet‡culo que o ator em situa•‹o de representa•‹o deve
compreender e internalizar delimita a performance. A an‡lise e entendimento da
composi•‹o Ž uma an‡lise e entendimento da performance. O corpo n‹o Ž a
concretiza•‹o de uma representa•‹o, ilustra•‹o de uma idŽia. A performance Ž a
interpreta•‹o de uma interpreta•‹o, configurada para ser representada. De forma que o
ator Ž duplamente diferenciado em rela•‹o ao papel seja pela internaliza•‹o da
composi•‹o, seja pela performance corporal. No entanto essa diferen•a Ž o que ele vairepresentar em palco. Para tanto, precisa compreend-la para execut‡-la. O pr—prio
corpo do ator ent‹o n‹o Ž uma evidncia para ele mesmo.
Assim sendo, Òrepresentando, nenhum gesto deve ser feito apenas em fun•‹o
do pr—prio gesto. Seus movimentos devem ter sempre um prop—sito e estar sempre
relacionados com o conteœdo de seu papel. A a•‹o significativa e produtiva exclui
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automaticamente a afeta•‹o, as posesÓ83. Em situa•‹o de representa•‹o o corpo torna
vis’vel o espet‡culo e sua composi•‹o. Os atos s‹o atos representacionais que
apontam para o contexto de sua produ•‹o. A cena mobiliza o corpo para a
interpreta•‹o do que se representa. A a•‹o significativa, ao mesmo tempo em que
adquire outras fun•›es que aquelas coordenadas ˆ fisicidade, tambŽm concentra-se no
papel. Amplia-se a concretude do espet‡culo ao mesmo tempo em que se corrige a
autoevidencia•‹o do corpo. O corpo ampliado e posicionado corrige e situa o sujeito
ator em sua atividade em cena. O que se perde em generalidade de posturas se ganha
na especificidade dos movimentos. A representa•‹o realiza a visibilidade dessa
excedncia das a•›es significativas. O que se v em cena atravŽs da atua•‹o Ž essa
excedncia conduzida e possibilitada pelo ator. O que Ž exclu’do Ž o que n‹o
proporciona a integra•‹o dessa excedncia compreensivamente no espet‡culo.
Tal economia expressiva84 do movimento n‹o Ž uma assepsia movida por um
conceito de beleza sublime. Trata-se da funcionalidade representacional do ato
adquirido no entendimento da performance atravŽs da internaliza•‹o dos par‰metros
da composi•‹o. O movimento n‹o Ž autoreferente. Stanislavski esclarece bem isso ao
comentar a descontra•‹o dos mœsculos para a o treinamento do ator. A tens‹o f’sica
que impede o movimento corporal, ou a atua•‹o entulhada de mœltiplos de gestos
supŽrfluos, ambas advŽm do desconhecimento das circunst‰ncias da representa•‹o.
Temos trs momentos: Òtens‹o supŽrflua, que vem, inevitavelmente, a cada nova pose
adotada com a excita•‹o de execut‡-las em pœblico; relaxamento autom‡tico dessa
tens‹o supŽrflua, sob a a•‹o do controlador; e justifica•‹o da pose, quando por si
mesma ela n‹o convence o ator.85Ó
Note-se como a exclus‹o do supŽrfluo se relaciona com a integra•‹o da
performance ˆ composi•‹o. O isolacionismo do ato n‹o conectado ˆ compreens‹o da
representa•‹o faz com que o ator se vincule a movimentos n‹o justificados, tensos porque sobrecarregados de atos n‹o definidos em virtude de sua ausncia de
par‰metros composicionais. Da’ os apoios convencionais e os clichs da interpreta•‹o
do ator histri™nico. Preso ao tempo de sua apari•‹o tal ator esfor•a-se por garantir
esse momento atravŽs da direta negocia•‹o com seu pœblico, reduzindo a
83 CG 6884 Conf. CG 206 Óƒ preciso ser econ™mico e fazer uma estimativa justa dos
nossos poderes f’sicos e dos meios que dispomos para traduzir em termos de carne eosso a personagem que interpretamos.Ó
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representa•‹o aos artif’cios de extens‹o de seu espa•o central e nivelado de atua•‹o.
Ele configura-se como um invariante cnico que s— pode atualizar a esquematiza•‹o
de sua recep•‹o. A representa•‹o e o ator aqui brutalmente coincidem.
Os par‰metros composicionais devolvem ˆ recep•‹o um senso de espet‡culo,
de dura•‹o, de ritmo representacional que ultrapassa e integra os momentos diversos
de cena. ƒ isso que Ž internalizado pelo ator no treinamento proposto por Stanislavski.
O ator experimenta e pesquisa sua situa•‹o de intŽrprete, tornando sua fisicidade a
exibi•‹o de um saber atento e sens’vel a um senso de espet‡culo.
Dessa forma o ator pode guiar seus atos Ón‹o por uma infinidade de detalhes,
mas por aquelas unidades importantes que assinalam a trilha criadora certaÓ86. A
dupla perten•a do ator, proporcionando-lhe uma dupla perspectiva em sua atividade,
reivindica a busca de uma continuidade de atos em meio ˆ diversidade de referncias,
de modo a integrar atividades diferentes temporalmente na constitui•‹o do espet‡culo.
A performance do ator interpreta a estrutura•‹o do espet‡culo. Ao internalizar os
par‰metros da composi•‹o para melhor interpret‡-los cenicamente o ator transforma
seus atos em atos representacionais: a•›es que configuram o ritmo da realiza•‹o do
espet‡culo. A arquitet™nica do espet‡culo Ð distribui•‹o das partes e suas inter-
rela•›es de acordo com um programa de receptividade prŽvio Ð Ž efetivada e
possibilitada pelo trabalho do ator com as dimens›es estŽticas de sua atua•‹o.
De forma que o processo criador Ž uma aprendizagem e execu•‹o de
par‰metros estŽticos relacionados com a realidade composicional de um espet‡culo.
Fisicidade e internaliza•‹o s‹o os atos complementares dessa aprendizagem. Doam-
nos um tipo de saber mensur‡vel pela reelabora•‹o que o ator faz do que procura
atualizar em cena. De forma que a descontinuidade que h‡ entre fic•‹o e realidade,
entre ator e papel Ž a presen•a de uma atividade interpretativa que vai aos poucos
esclarecendo e exibindo as marcas da aprendizagem do espec’fico fazer concreto queŽ representar. Entre a representa•‹o e o ator existe a sempre renovada rela•‹o entre
performance e composi•‹o. Eis a vida f’sica do papel87, suja alma Ž a sensibilidade
esteticamente diversificada.
Ao procurar proporcionar bases mais esclarecedoras para a atividade do ator (
o que n‹o significa normas absolutas, dogm‡ticas), algumas solu•›es parecem
polmicas. Uma delas se relaciona ˆ centralidade das emo•›es do ator na
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representa•‹o e a perpetua•‹o da chamada quarta parede, ou exclus‹o da audincia.
Um dos principais baluartes da modernidade teatral foi denunciar e procurar abolir
essa violenta separa•‹o entre cena e platŽia. Influenciada pelas irreverentes
performances vanguardistas, grande parte dos espet‡culos modernos procurou colocar
a situa•‹o mesma de audincia em quest‹o. Da’ a decorrente desconfian•a para com
Stanislavski.
A recep•‹o da obra de Stanislavski nos EUA (com A prepara•‹o do ator em
1936) concentrou-se mais na internaliza•‹o, prolongando o dualismo psicof’sico e a
separa•‹o ator/platŽia. Da’ esta recep•‹o refugiar-se mais no Actors studio (Nova
York) , fornecendo um tipo de interpreta•‹o cinematogr‡fica basilar: a tela do cinema,
ampliando as dimens›es da figura humana, torna vis’vel e intelig’vel essa
internaliza•‹o88. A tela seria Ž vis‹o da perspectiva interna da personagem,
perspectiva esta aumentada , dessa forma naturalizada com um 'espelho da alma'.(Mas
alma de quem?...)
Ora, o que est‡ em jogo Ž o seguinte: como uma abordagem do trabalho do
ator n‹o leva em conta o espet‡culo? Essa pergunta s— pode partir de quem necessita
inserir a audincia em uma modalidade representacional, como o teatro, que nem
toma como pressuposta a presen•a integrante do espectador, pois Ž para alŽm de
indiscut’vel a sua presen•a. O pœblico no espet‡culo n‹o Ž um adendo discursivo. N‹o
se pode tornar compreens’vel a possibilidade do espet‡culo sem a constitui•‹o de uma
recep•‹o. A composi•‹o da arquitet™nica do espet‡culo e o tempo-ritmo (ritmo de
representa•‹o) 89 de sua efetiva•‹o fundamentam-se na proposi•‹o de uma audincia
que d‡ forma e acabamento ˆ representa•‹o. Mas esta audincia o que Ž?
Desde o in’cio de suas pesquisas, Stanislavski, procurando superar o
pragmatismo das sobreatua•›es dos atores de personalidade, confrontou-se com a
quest‹o da platŽia. A revers‹o do interior para o exterior estabelecia uma mudan•a de perspetiva em rela•‹o ao esclarecimento das rela•›es entre ator e platŽia. De uma
maneira provocativa isso significa que o foco de preocupa•‹o est‡ antes com a
representa•‹o do que com a platŽia.: Òprocurem aprender a olhar e ver as coisas no
palcoÓ90, Stanislavski assevera . Em uma hierarquia de suas atividades, que explicita
88 Agrade•o neste t—pico as gentis e esclarecedoras conversas com meu colegaJo‹o Ant™nio de Lima Esteves.
89 CG 210-241.90 PA 202
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tambŽm seu funcionamento, o ator n‹o est‡ diretamente relacionado com seu pœblico,
como ele mesmo n‹o est‡ diretamente relacionado com seu papel. O ator determina-se
pela compreens‹o de sua situa•‹o interpretativa. A cena configura o horizonte desta
compreens‹o. Mais precisamente Óa dificuldade Ž que estamos simultaneamente em
rela•‹o com o nosso comparsa e com o espectador. Com o primeiro, nosso contato Ž
direto e consciente ; com o segundo Ž indireto e inconsciente. E o not‡vel Ž que, com
ambos a nossa rela•‹o Ž rec’procaÓ91. Que l—gica de distingu’veis
sobredetermina•›es!
Ora, o ator executa atos diferentes e simult‰neos que exp›em a diferen•a
conjunta de referncias as quais sua performance atualiza para fazer poss’vel o
acontecer da representa•‹o. Conectar estes atos como referncia que orienta seu
entendimento Ž desde j‡ possibilitar a audincia, a experincia de recep•‹o. Na cena
mesma Ž que a platŽia passa a existir como observador em busca de saber sentir o que
Ž representado. Assim, uma coisa Ž o pœblico, outra Ž a audincia.
O esfor•o por parte do ator de aprender a configurar esteticamente suas
emo•›es e seus atos, sua performance durante a prepara•‹o de seu papel, isso a partir
do esclarecimento de par‰metros de composi•‹o finitos, em nenhuma momento Ž um
atividade solipsista, fechada sobre a sua Órealidade internaÓ. A continuidade da
representa•‹o se faz na continuidade da observa•‹o que atualiza a estrutura
arquitet™nica do espet‡culo. O empenho em tornar represent‡vel seu papel Ž a
internaliza•‹o de uma perspectiva de audincia. N‹o h‡ uma platŽia como evidncia
prŽ-dada, que n‹o Ž modificada pelo espet‡culo. A lembran•a da platŽia Ž j‡ a men•‹o
de seu esquecimento. O desdobramento do ator compreensivamente trabalhado Ž uma
teoria e uma pr‡tica da recep•‹o.
E para terminar um œltimo t—pico: a quest‹o do subtexto. Um t—pico central da
cr’tica modernista teatral Ž a recusa centralidade do texto na representa•‹o, ou mesmoa recusa completa do texto. A pr‡tica do teatro liter‡rio, alvo dessa recusa, era
subordinar os atos de representa•‹o a um texto. Mas o texto n‹o Ž o problema, e isso Ž
o que foi pouco debatidoa quest‹o Ž o que Ž texto para teatro e como trabalhar com
textos em constru•‹o de espet‡culos.
Da mesma forma que o ator n‹o Ž a personagem, o texto n‹o Ž uma estrutura
aut™noma. Participa da representa•‹o n‹o s— como material, mas como explicita•‹o
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dos par‰metros compositivos para a performance. Ser‡ analisado pelo ator com a
mesma voracidade, da mesma maneira que o corpo e a representa•‹o. O que vai ser
posto em cena n‹o Ž o texto e sim a interpreta•‹o do texto.
Para diferenciar o texto do autor e o texto do ator e o espa•o de mœtua
implica•‹o de ambos que a performance realiza, Stanislavski utiliza o procedimento
de buscar o subtexto do texto. O subtexto ÒŽ uma teia de incont‡veis, variados
padr›es interiores dentro de uma pe•a e de um papel. ƒ o subtexto que nos faz dizer
as palavras que dizemos em uma pe•a. (...) A palavra falada n‹o vale por si mesmo.
Quando faladas, as palavras vm do autor , o subtexto do ator. Cabe ao ator compor
mœsica dos seus sentimentos para o texto do seu papel e apreender como cantar em
palavras esses sentimentos.Ó92. O subtexto est‡ no texto, mas o desempenho dele Ž
feito pelo ator. O texto Ž analisado e reestruturado pela compreens‹o dos padr›es
representacionais nele implicados, assim como a composi•‹o Ž estudada em seus
par‰metros para a performance. O subtexto Ž o contexto expressivo do texto, as
orienta•›es estŽtico-operat—rias do espet‡culo, marcas da arquitet™nica da
representa•‹o. O subtexto integra o ato de fala em uma exibi•‹o dos suportes
expressivos do espet‡culo. Os v‡rios n’veis do texto atualizam a produtiva
complexidade de perspectivas do espet‡culo. As palavras escritas s‹o modificadas
pela interpreta•‹o do ator que transforma em espet‡culo estes padr›es, par‰metros do
contexto compreendido. N‹o se trata de ler entrelinhas, mas de fazer com o texto o
que realizaou com as emo•›es e com o corpo: justificar cada ato como um
conhecimento conquistado e ativado na express‹o.
Assim a oposi•‹o entre texto e espet‡culo Ž superada desde que o processo
criativo para realizar uma representa•‹o seja n‹o uma recusa perempt—ria disto ou
daquilo e sim um esfor•o para contextualizar os procedimentos de composi•‹o e
performance para a cena.O que sobredetermina tudo Ž a realiza•‹o do espet‡culo. Stanislavski viu isso
muito bem. A forma•‹o do ator tem pressupostos em uma estŽtica relacionada com
espec’ficos e intelig’veis momentos de um processo criativo. A representa•‹o Ž
limitada pela explora•‹o de suas possibilidades.
4- V. Meyerhold: A materialidade do evento cnico
92 CG 137-139
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nS
Ò Precisamos de formas novas. Formas novas s‹o indispens‡veis e, se n‹o
existirem, ent‹o Ž melhor que n‹o haja nadaÓ
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UU< 2-)% ?4' 42- .+,.,%&- 3' &+->-(M,< , 7,/7')&, 5'/'+-()J,4K%'< &-/&, ?4' %'
93 Fala da personagem Trepliov (A Gaivota, Tchecov), interpretado por Meyerhold namontagem do Teatro de Arte de Moscou, em 1898, dirigida por C. Stanislavski, queinterpretou a personagem Trigorin .
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94 Muitos desses estere—tipos est‹o relacionados com as dificuldades de acesso adocumentos da antiga Uni‹o SoviŽtica. Ap—s a queda do muro de Berlim, novos
documentos favorecem uma compreens‹o mais ampla da situa•‹o cultural soviŽtica.Sobre a mitifica•‹o de sua morte, consulte-se SENELIC,L.The Making of a Martyr:The Legend of MeyerholdÕs Last Public Appearance. Theatre Research International28, 157-168, 2003. Sobre reaplica•›es da biomec‰nica, NORMINGTON,K.Meyerhold and the New Millennium. NTQ,21,118-126, 2005.95 Como o faz muitas vezes RIPELINO,A.M. O truque e a alma.S‹o Paulo:Perspectiva, 1996.96 Companhia teatral liderada pelo duque germ‰nico Georg II Saxe de Meiningen(1826-1914) que excursionou pela Europa entre 1874 e 1890 Ð em 1885 e 1890
passou pela Rœssia -, destacando-se por um tratamento pomposo do passado hist—rico.Para tanto, desenvolveu a presen•a e o movimento de multid›es no palco, como em
cenas de batalha e coroa•‹o, aprimorou os detalhes de objetos de cena, cen‡rios efigurinos, alŽm de trabalhar com plataformas e efeitos sonoros, o que coloca o Duquede Meiningen como um modelo da figura moderna no encenador, alŽm decontempor‰neo da idŽia wagneriana de arte total. Para mais informa•›es, consultar osseguintes textos: KOLLER, A.M. KOLLER,A.M. The Theater Duke. Georg II ofSaxe-Meiningen and the German Stage. Stanford University Press,1984.;WILLEMS,V. A. Henry Irving and The Meininger. The University of Wisconsin,1970; e GRUBE, M. The Story of the Meininger. University of Florida, 1963. Paradesdobramentos do mŽtodo e do teatro de Meiningen, ver a tese de doutorado de K.T.HANSON, Georg II, The Duke of Saxe-Meiningen:Re-examination,apresentada naBrigham Young University em 1983.97 Em carta para sua esposa Olga. M.Munt,em 22/06/1898, Meyerhold informa que ÒO mercador de Veneza ser‡ realizado ˆ la Meiningen, com a aten•‹o que se deve ˆ
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exatid‹o hist—rica e etnogr‡fica. A antiga Veneza emergir‡ como algo vivo diante do pœblico. De um lado, o velho quarteir‹o judeu, escuro e sujo; do outro, a pra•a diantedo pal‡cio de P—rcia, lindo, poŽtico, com uma vista para o mar que encanta os olhos.Escurid‹o aqui, claridade l‡; aqui, tristeza e opress‹o; l‡, brilho e alegria. O cen‡riosozinho expressa a idŽia por tr‡s da pe•a.! (TAKEDA, C.L. O cotidiano de umalenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003, p. 64-65) Ó.
Noutra carta para sua esposa, em 8/7/1898, Meyerhold comenta entusiasticamente oscen‡rios da pe•a Tsar Fi—dor: ÒN‹o se poderia ir alŽm em termos de beleza,originalidade e verdade. ƒ poss’vel olhar os cen‡rios durantes horas a fio e n‹o scansar. E mais, gosta-se deles como algo real. O cen‡rio para a segunda cena doPrimeiro Ato, um c™modo no pal‡cio do tsarÕ, Ž especialmente bom. Faz a gente sesentir em casa. ƒ bom devido ˆ sensa•‹o confort‡vel que transmite e ao estilo.Ó(TAKEDA, C.L. O cotidiano de uma lenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹oPaulo:Perspectiva, 2003, p. 69). Vemos aqui um Meyerhold bem longe deMeyerhold...98 Segundo vemos em ROUBINE,J-J. A linguagem da encena•‹o teatral . Rio deJaneiro: Zahar, 1998:121 ÒEssa foi a Žpoca dos grandes quadros, sem os quais
nenhuma —pera, de Meyerbeer a Verdi, seria considerada completa. (exemplo disso: otriunfo de A’da, 1971). Foi tambŽm a Žpoca dos grandes balŽs com enredo, nos quaisas cenas feŽricas alternavam-se coma s cenas de corte (exemplos: A belaadormecida,1889; O lago dos cisnes; ambos de Tchaikovski).ÓNote-se comoespet‡culos dram‡tico-musicais encabe•am essa dramaturgia de ostenta•‹o.Posteriormente, tanto em Stanislavski, quanto em Meyerhold - e Brecht, comoveremos Ð obras multidimensionais tornarem-se o material para uma amplia•‹o dosestudos teatrais.99Tchecov, aconselhando seu irm‹o sobre como escrever uma obra de arte, defende:Ò1- ausncia de palavr—rio prolongado de natureza pol’tico-s—cio-econ™mica; 2-objetividade total; veracidade nas descri•›es das personagens e dos objetos; 3-
brevidade extrema; 4-ousadia e originalidade Ð fuja dos chav›es; 5-sinceridade.ÓANGELIDES,S. A.P.Tchecov. Cartas para uma PoŽtica. S‹o Paulo:Edusp,1995,p.52.
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Diante disso, n‹o Ž de surpreender uma aproxima•‹o entre Tchecov e Meyerhold.Meyerhold solicita ajuda de Tchecov na prepara•‹o de papŽis. Em 1899, Tchecovresponde a uma dessas solicita•›es: Òƒ uma irrita•‹o cr™nica {a do personagem queMeyerhold est‡ ensaiando}, de modo algum patŽtica, sem explos›es, nem convuls›es.(...) N‹o se demore sobre isso, mas mostre como se fosse uma das caracter’sticast’picas del, n‹o exagere, caso contr‡rio o que emergir‡ ser‡ um jovem irrita•‹o emvez de um jovem solit‡rio. Konstantin Serguiievitch {Stanislaviski}insistir‡ sobreesse nervorsimo excessivo, mas n‹o ceda; n‹o sacrifique a beleza, a for•a da voz e da
palavra por causa de um efeito moment‰neo. N‹o os sacrifique , pois, na realidade, airrita•‹o n‹o passa de uma futilidade, um detalhe (TAKEDA, C.L . O cotidiano deuma lenda. Cartas do Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003,110)Ó.
O papel era Johanes, da pe•a Os solit‡rios, de G.Hauptmann (1862-1946),considerado o introdutor do Naturalismo na Alemanha. Sobre a recep•‹o do teatro del’ngua alem‹ nesta Žpoca, veja-se. ROSENFELD,A. Teatro Moderno. S‹oPaulo:Perspectiva, 1977,p.93-108.
101 Em carta para Nemir—vitch-D‰nthenko,em 17/01/1899, Meyerholddesabafa: ÒEsperei assumir uma parte ativa na discuss‹o sobre Hedda Gabler queestava agendada para hoje. S— que n‹o houve nenhuma discuss‹o. Discutir osignificado geral de uma pe•a, discutir sobre a natureza das personagens, entrar noesp’rito de uma pe•a de climas por meio de um debate desafiador Ð isso n‹o faz partedos princ’pio do nosso diretor geral {Stanislavski}. O que ele prefere, como foiverificado, Ž ler a pe•a do princ’pio ao fim, parando conforme vai descrendo o
cen‡rio, explicando posi•›es, movimentos e marcando as pausas. Em uma palavra, para o drama social, para o drama psicol—gico, o diretor usa o mesmo mŽtodo dedire•‹o que ele trabalhou anos atr‡s e que o tem guiado, quer seja uma pe•a deatmosfera e idŽias, quer seja algo espetacular. Tenho que provar que isso est‡ errado?(...) Queremos tambŽm pensar enquanto atuamos. Queremos saber por que estamosatuando, o que estamos atuando ((TAKEDA, C.L. O cotidiano de uma lenda. Cartasdo Teatro de Arte de Moscou. S‹o Paulo:Perspectiva, 2003:98).Ó102 Meyerhold envia para Stanislavski o projeto da nova companhia teatral, filial doTeatro de Arte, em 1904, enfatizando o enfoque no treinamento de atores maisexperientes, com vistas a formar um novo ator, mais criativo e menos reprodutivo, oqual se pode ler no primeiro volume da edi•‹o/tradu•‹o francesa das obras Meyerhold(PICON-VALLIN,B. (Ed.) ƒcrits sur le ThŽ‰tre. La CitŽ-LÕAgedÕHomme,1973,p.70-73). Da’ v‡rias imagens religiosas no projeto, preconizando o
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individualismo ascŽtico criador - imagens comuns no simbolismo, e, depois em projetos como o de J.Grotowski.103 Nos par‡grafos seguintes atenho-me a uma leitura atenta deste texto.
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5-Erwin Piscator e o fim da ilus‹o da ilus‹o teatral
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Ò John Heartfield, contra-regra encarregado de preparar um tel‹o para ' O
mutilado', atrasado como sempre, aparece ˆ porta de entrada da sala quando a pe•a j‡
estava na metade do primeiro ato,com o tel‹o enrolado e metido debaixo do bra•o.
HEARTFIELD
Erwin, pare! Estou aqui!
At™nitos, todos voltam-se para aquele homenzinho, de rosto fortemente
avermelhado que acabara de entrar. N‹o sendo poss’vel continuar o trabalho, Piscator
levanta-se e abandona por um instante o seu papel de mutilado e grita:
PISCATOR
Por onde voc andou? Esperamos quase meia hora (murmœrio de
assentimento do pœblico) e come•amos sem o seu trabalho.
HEARTFIELD
Voc n‹o mandou o carro!A culpa Ž sua! (crescente hilaridade no pœblico)
PISCATOR
(Interrompendo - o): Fique quieto, Johnny, precisamos continuar o
espet‡culo.
HEARTFIELD
(Extremamente excitado) Nada disso, antes vamos erguer o tel‹o!
Como HEARTFIELD n‹o cede, PISCATOR volta-se para o pœblico,
perguntando-lhe o que deveria ser feito: continuar o espet‡culo ou pendurar o tel‹o. A
grande maioria decide pela œltima alternativa. Cai o pano, monta-se o tel‹o e, para
contentamento geral, espet‡culo recome•a104.Ó
O trecho acima Ž adapta•‹o de um epis—dio que, segundo E. Piscator (1893-
1966), jocosamente, foi a funda•‹o do Teatror Žpico. Concluindo o relato, Piscatorafirma: "Considero John Heartfield o fundador do teatro Žpico.105"
Em nossa adapta•‹o, convertemos a nota de rodapŽ, que apresenta o epis—dio,
em um roteiro teatral, com o objetivo de tornar mais compreens’veis os
procedimentos relativos a este Teatro ƒpico.
Seguindo o roteiro, notamos que a interrup•‹o de uma representa•‹o
proporciona o contexto para diversas a•›es do ator, do pœblico e do agente invasor. ƒ
104 PISCATOR 1968:53.105 Idem, idem.
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a partir da amplia•‹o dessa interrup•‹o que temos estes diversos atos estritamente
vinculados entre si.
A extens‹o da dura•‹o do que se interrompe vai formando um novo momento
dentro do espet‡culo, providenciando novos nexos, outro padr‹o de intera•‹o entre
cena e platŽia, revisando o padr‹o anterior. Ë frontalidade da cena - manifesta na
unidirecionalidade entre o mundo dos atores e o mundo do pœblico - contrap›e-se a
correla•‹o entre o cnico e o n‹o cnico, simultaneamente.
Dessa maneira, a intrus‹o de Heartfield possibilita n‹o somente a ruptura com
a 'ilus‹o' do que se representa. A unidade da representa•‹o e seu padr‹o de intera•‹o
s‹o colocados em xeque.
Mas, ao mesmo tempo e irreversivelmente, esta intrus‹o Ž integrada a uma
continuidade que redefine tanto a unidade da representa•‹o quanto seu padr‹o de
intera•‹o. Ë diferencia•‹o de eventos representados corresponde uma diversifica•‹o
das respostas da audincia.
Os chamados Ôpreju’zosÕ causados pela interrup•‹o da representa•‹o - a
dispers‹o recepcional e a falha na continuidade actancial - s‹o incorporados pelo
curso subsequente das novas participa•›es do pœblico no espet‡culo. Ou seja, a
ruptura com o espet‡culo, a descontinuidade, produz uma nova continuidade.
Ora este espet‡culo dentro do espet‡culo amplia os nexos recepcionais ao
mesmo tempo em que amplia o mundo representado e a pr—pria representa•‹o. O
pœblico quer tudo, o tel‹o e o espet‡culo.
E Ž para esta amplia•‹o da cena que ruma a proposta de Piscator.
Se a descontinuidade pode produzir tanto novos atos recepcionais quanto
actanciais, ampliando a cena, isso s— se torna poss’vel em virtude de haver o
descentramento do centro de orienta•‹o do espet‡culo quanto a um ponto unificadordo que Ž mostrado.
Ora, a expans‹o e diversifica•‹o dos nexos agem diretamente sobre uma
proposta de homogeneidade. Se se considera imprescind’vel coordenar atos e eventos
heterogneos em seqŸncia e simultaneidade, ent‹o volta-se a totalidade desses
procedimentos contra o totalitarismo da cena fechada sobre sua forma de
apresenta•‹o.
Assim, a proposi•‹o de uma cena expandida reage diretamente contra procedimentos redutores da cena.
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Contudo, a diferen•a de Piscator n‹o est‡ na substitui•‹o de formas. Para ele,
"o critŽrio n‹o est‡ no formal, est‡ no problem‡tico106"
Como ent‹o compreender esta diferen•a que tem um par‰metro
composiocional, mas que ao mesmo tempo n‹o se limita ˆ composi•‹o?
Justamente, quando se inserem quest›es composicionais que controlam op•›es
formais em quest›es outras n‹o puramente estŽticas Ž que come•amos a nos
aproximar da amplitude que Piscator advoga. H‡, pois, uma estreita conex‹o entre
procedimentos de composi•‹o e realiza•‹o e a defini•‹o de espet‡culo.
O impulso para esta conex‹o reivindica um contexto reativo, um claro
posicionamento contra o conluio entre esteticismo e subjetivismo que permeava a
cultura teatral alem‹ dos primeiro decnios do sŽculo XX. Conquistas tŽcnicas do
teatro, como luz elŽtrica e palco girat—rio s‹o incorporadas, por Max Reinhardt, por
exemplo, no fortalecimento do lirismo dram‡tico, em uma naturaliza•‹o do mundo
representado como registro e clausura da Ôalma individualÕ107.
Dessa forma, o dispositivo cnico magnetiza o observador, isolando-o, ao
figurar a•›es, pensamentos e emo•›es que n‹o ultrapassam a inst‰ncia do pr—prio
sujeito que as performa. O incremento tŽcnico da cena, ou este uso da tŽcnica,
consagra a apresenta•‹o de referncias desprovidas de situa•›es que n‹o se reduzem a
a•›es/rea•›es individuais.
Mas h‡ outras maneiras de se efetivar as aplica•›es do dispositivo cnico. As
modifica•›es tŽcnicas ao invŽs de naturalizarem uma cena subjetiva podem capacitar
um deslocamento do "indiv’duo com seu destino particular pessoal" para uma
amplitude hist—rico-social. "A criatura no palco tem para n—s o significado de uma
fun•‹o social. No ponto central n‹o est‡ sua rela•‹o consigo pr—prio, nem sua rela•‹o
com Deus, mas sim a sua rela•‹o com a sociedade.108"
Mas que hist—rico-social Ž este? A mera ado•‹o de uma perspectiva pol’ticacapacita este teatro multidimensional que Piscator objetiva?
De volta ao epis—dio. As confus›es entre Piscator, Heartfield e o pœblico
durante a pe•a 'O mutilado', de K.A. Wittfogel aconteceram dentro das limita•›es do
106 Idem, 43.107 Idem, 37-38. "Essa arte dram‡tica Ž l’rica, quer dizer n‹o Ž dram‡tica. S‹o
obras l’ricas dramatizadas. Na misŽria da guerra, que foi, na realidade, uma guerra dam‡quina contra o homem, procurou-se , pela nega•‹o, pesquisar a alma do homem."
108 Idem, 156.
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Teatro Prolet‡rio. Sindicatos e centrais trabalhistas apoiavam um palco de
propaganda, determinado em promover "apelos para se intervir no fato atual e fazer
pol’tica109"
Este teatro popular, performado em salas e locais de assemblŽia, distinguia-se
tanto dos teatros comerciais quanto dos teatros socialistas de seu tempo:" n‹o se
tratava de um teatro que pretendia proporcionar arte aos prolet‡rios, e sim uma
propaganda consciente.110"
Um outro espa•o, um outro nexo entre a cena e o audit—rio: estes dois
par‰metros de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o teatrais projetam-se contra a
defini•‹o de arte existente e ratificam uma diversa defini•‹o de espet‡culo. Dos
espa•os fechados, suntuosos e consagrados, para as salas e ambientes acanhados com
cheiro de" cerveja velha e urina", com cen‡rios de "tel›es simples, pintados ˆs
pressas" explicita-se uma verdadeira simplifica•‹o dos meios e das posturas, que
proporciona o foco naquilo mesmo que deveria ser a atividade de representa•‹o
dram‡tica: a intera•‹o entre cena/audincia.
Em condi•›es m’nimas, em dificuldades flagrantes, temos o teatro m’nimo: "o
teatro n‹o devia mais agir apenas sentimentalmente no espectador, n‹o devia
especular apenas a sua disposi•‹o emocional; pelo contr‡rio, voltava-se para a raz‹o
do espectador. N‹o devia t‹o somente comunicar eleva•‹o, entusiasmo,
arrebatamento, mas tambŽm esclarecimento, saber, reconhecimento111"
A pedagogia do espectador Ž impulsionada pela diferencia•‹o dos materiais
que lhe s‹o apresentados. Simultaneamente, a economia dos meios de express‹o
efetivava tanto o rigor da aplica•‹o desses meios quanto o controle e a compreens‹o
de seus efeitos. Aquilo que se mostra n‹o Ž mais algo apenas para se contemplar. A
contiguidade entre objetos, a•›es e situa•›es em cena com as fora de cena acarreta
uma intera•‹o palco/platŽia que concretiza este deslocamento da esferasubjetiva/ilusionista do teatro para uma arena interindividual dos eventos
representados e conseqŸente excita•‹o cognitivo-afetiva do pœblico.
Alterando-se o que se mostra a partir dos nexos recepcionais, fundamenta-se
um conjunto de metas e procedimentos que podem ser explorados e se tornar
operacionaliz‡veis, e que n‹o mais se circunscrevem ao lugar e ao pœblico onde foram
109 Idem, 51.110 Idem, ibdem.111 Idem, 53.
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utilizados e testados. Como a intera•‹o palco/platŽia relaciona-se com os meios
empregados na realiza•‹o do espet‡culo e com o deslocamento da cena individual
para a cena s—cio-hist—rica, vemos que a mœtua implica•‹o desses elementos Ž o que
ratifica a amplitude do que se representa e n‹o apenas um somat—rio ou escolha
aleat—ria dos meios empregados. A coopera•‹o entre meios tŽcnicos, referncias
transubjetivas e nexos recepcionais mais cognitivos providencia um programa de
atividades representacionais que transcendem o ponto origem de seu encontro e
manipula•‹o. Eis os procedimentos e par‰metros do processo criativo de Piscator
rumo a uma cena expandida e ampla.
No espet‡culo Bandeiras (1924) estamos longe das assemblŽias, de seus
odores e dos atores n‹o profissionais. De acordo com Piscator, "pela primeira vez
tinha eu em m‹os um teatro moderno, o teatro mais moderno de Berlim, com todas
suas possiblidades, e eu estava resolvido a aproveit‡-las em fun•‹o do sentido da
pe•a, a qual, no tema, correspondia a minha atitude pol’cia fundamental112"
O texto de Bandeiras, de Paquet, era escrito em forma intermedi‡ria entre
conto e drama onde "um frio sentimento do autor o pro’be de participar intimamente
da sorte de suas personagens e do curso da a•‹o.113" Assim, a impessoalidade no
tratamento do material narrativo libera o escritor a trabalhar mais as cenas,
descentrando a voz autoral como guia e condutor da atividade interpretativa do leitor.
Concentrando-se mais no que mostra que no que julga ou diz sobre o que mostra, o
narrador aplica-se melhor ao planejamento e concatena•‹o das cenas e do desafio de
sua inteligibilidade, ao invŽs de unific‡-las em prol de uma mensagem prŽvia autoral.
Essa situa•‹o do escritor Ž hom—loga ao do diretor. Piscator com este material
narrativo tinha a oportunidade de efetivar no palco o seu romance-drama, o seu teatro
Žpico. E no que consistia sua atividade de diretor? "amplia•‹o da a•‹o e doesclarecimento dos seus segundo planos; uma continua•‹o da pe•a para alŽm da
moldura da coisa apenas dram‡tica.114"
Ou seja, frente ˆ elimina•‹o de uma perspectiva central que unifica toda a
representa•‹o no pr—prio mundo apresentado, no mundo da mensagem autoral e sua
interpreta•‹o restrita do que se mostra, Piscator diversifica as referncias produzidas
112 Idem, 67-68.113 Idem,69.114 Idem,ibidem.
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em cena valendo-se de meios e procedimentos que dilatam o horizonte atual. Os
atores contracenavam com tel›es que exibiam ora fotografias, ora textos.
Dessa maneira, o espectador simultaneamente interagia com as figuras em
cena e com os meios. A visibilidade dos meios n‹o se limitava ˆ duplica•‹o
redundante do mundo representado. Antes, no mesmo espa•o e ao mesmo tempo o
espet‡culo se desdobrava em n’veis de referncia pertencentes a m’dias e
performances diversas que expandiam o presente de cena. A presen•a dos meios
tŽcnicos fornecia uma abertura imaginativa da representa•‹o , contrariando o
pressuposto do apagamento das marcas de fic•‹o presentes no uso ilusionista dos
novos recursos cnicos. A exibi•‹o tanto dos meios quanto de seus efeitos in loco,
frente ˆs personagens e ˆ platŽia, proporcionava um recrudescimento da pluralidade
representada e da pluralidade de atos receptivos. A heterogeneidade dos n’veis
referenciais co-presentes em cena faculta o mœtuo aprofundamento dos horizontes da
representa•‹o e da audincia.
Assim, retome-se o epis—dio da pe•a O mutilado: a interrup•‹o da
representa•‹o, a descontuinuidade provocada pela presen•a dos meios Ž produtora de
uma nova continuidade que atravessa o espet‡culo - a continuidade da metareferncia.
O espet‡culo demonstra-se como espet‡culo para assegurar o vinculo entre os
materiais que disponibiliza e os extensos contextos que busca apresentar para a
audincia.
Esse uso da metareferncia, incorporando-a ˆ atividade representacional,
favorece a construtividade da cena, a orienta•‹o da sele•‹o, combina•‹o e distribui•‹o
dos meios em fun•‹o dos atos de entendimentos da recep•‹o. A inteligibilidade da
cena conjuga-se ̂ inteligibilidade da audincia.
Em sua forma de representa•‹o, o espet‡culo Bandeiras era dividido em
"numerosas cenas individuais, algo de revista.115"
Seguindo o descentramento de uma perspectiva autoral privilegiada, que
unificava o mundo representado e o unificava empaticamente ˆ recep•‹o, vimos que
Piscator optara por procedimentos que verticalizavam a intera•‹o cena/platŽia atravŽs
de mœltiplos e heterogneos n’veis de referncia e de meios. N‹o subjugadao ˆ
115 Idem, 73.
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apropria•‹o e reprodu•‹o de uma individualidade restrita ao particularismo de sua
presen•a e contexto, a forma de revista forneceria um modelo de realiza•‹o que
poderia efetivar a libera•‹o do processo criativo para a cena de uma unifica•‹o
personativa- actancial.
Assim, a forma revista com seus nœmeros diversos compostos de m’dias e
performance diversas culminaria a defini•‹o plural do espet‡culo de Piscator contra a
homogeneidade reprodutiva do ilusionismo individualista anterior.
Note-se que a abertura ˆs possibilidades de representa•‹o operada pelo
processo criativo de Piscator, ao radicalizar a heterogeneidade da cena como forma de
se abarcar contextos de a•‹o mais amplos, acaba por justapor performances diversas,
subvertendo e refutando uma pretensa unidade midi‡tica do espet‡culo. Assim,
"mœsica, can•‹o, acrobacia, desenho instant‰neo, esporte, proje•‹o de cinema,
estat’sticas, cena de ator alocu•‹o" - tudo vem ˆ cena. A diversidade midi‡tica
corresponde ̂ diversidade dos contextos de a•‹o representados.
Ora essa diversidade midi‡tica da defini•‹o do espet‡culo de Piscator em
muito ultrapassa a dramaturgia de seu tempo e se converte em um ponto de partida
para a dramaturgia ulterior. A circunscri•‹o da dramaturgia ˆ escritura das falas e ˆ
distribui•‹o das a•›es e das partes da pe•a em fun•‹o de um enredo havia reduzido as
possibilidades expressivas do espet‡culo. Sempre tudo convergia para um centro
subjetivo, para um hipersujeito arquimodelo de todos atos,pensamentos os
desempenhos em cena e na platŽia.
Com a diversidade multimidi‡tica do espet‡culo de Piscator, a dramaturgia se
confronta com novas tarefas - a ilus‹o da ilus‹o do centro subjetivo Ž refutada desde o
processo criativo. Ao isolacionismo do autor, fechado em seu gabinetismo idealt’pico,
temos agora a inser•‹o de seu trabalho em outros trabalhos, um processo criativo
coletivo e colaboracionista. "os diversos trabalhos de autor, diretor, art’stico, mœsico,cen—grafo e ator se entrosavam incessantemente116."
Desse modo, conjugam-se processo criativo, mundo representado e atos
recepcionais na heterogeneidade de referencias e interreferncias que produzem.
A forma revista, dispondo eventos midi‡ticos diversos em sucess‹o, apresenta-
se como exibi•‹o dessa heterogeneidade que abarca tanto a composi•‹o quanto a
realiza•‹o e a recep•‹o do espet‡culo. Ao mesmo tempo a forma revista n‹o Ž uma
116 Idem, 80.
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resultante simples de atitudes ou procedimentos. Tal forma aberta delimita o
horizonte problem‡tico de sua realiza•‹o: os limites de sua inteligibilidade a partir do
posicionamento dos materiais exibidos. Toda forma que recusa uma continuidade
imediata, atua sobre a continuidade mesma. A expectativa de acabamento do material
exposto exige estratŽgias complexas de exibi•‹o mesmo deste acabamento. Com a
abertura da forma, temos a prerrogativa dos suportes recepcionais.
O xito do espet‡culo Apesar de tudo (1925) manifesta o ’mpeto de solu•‹o de
problemas impostos pela forma revista. Em destaque temos o uso de filmes em cena.
A sincroniza•‹o de m’dias diversas era o problema a ser enfrentado. Nas palavras de
Piscator "pela primeira vez a fita de cinema se ligaria organicamente aos fatos
desenrolados no palco.117" Pois a forma de revista n‹o diz respeito apenas ao
seqŸenciamento de partes diferentes, mas sim ˆ estrutura•‹o mesma de cada parte.
Os filmes estavam distribu’dos por toda a pe•a. Eram imagens de arquivos,
"filmagens que apresentavam brutalmente todo o horror da guerra: ataques com lan•a-
chamas, multid›es de seres esfarrapados, cidades incendiadas; ainda n‹o se
estabelecera a moda dos filmes de guerra.118"
Juntos com os filmes, eram apresentados ao pœblico discursos, recortes de
jornal, conclama•›es, folhetos, fotografias. Tudo bem disposto com os atores em um
palco girat—rio, efetivando "uma unidade da constru•‹o cnica, um desenrolar
ininterrupto da pe•a, compar‡vel a uma œnica corrente de ‡gua119"
Assim, essa unidade advinda da montagem e da sucess‹o de eventos
midi‡ticos diversos era o espet‡culo mesmo de sua possbilidade de realiza•‹o e
compreens‹o. Piscator tinha uma dupla ansiedade: "primeiro, de que modo resultaria
a mœtua a•‹o condicionadora dos elementos empregados no palco; segundo, se
realmente se chegaria a realizar-se algo do que forma projetado120"A dupla perplexidade frente ˆ composi•‹o e realiza•‹o do espet‡culo foi
resolvida pelo papel ativo da recep•‹o em dar acabamento ˆs cenas. Durante a
performance da pe•a, Piscator afirma que "a massa incumbiu-se da dire•‹o art’stica.
(...) O teatro, para eles, transforma-se em realidade. Em pouco tempo cessou de haver
117 Idem, 80.118 Idem,81119 idem, 82.120 Idem, 83.
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um palco e uma platŽia, para come•ar a existir uma s— grande sala de assemblŽia, um
œnico grande campo de luta.(...) foi essa unidade que, naquela noite, provou
definitivamente a for•a de incitamento do teatro pol’tico.121"
Note-se que ao se expor os meios e materiais em cena, incrementou-se a
intera•‹o palco-platŽia. A comum-unidade dessa intera•‹o difere de uma proje•‹o
emotiva do pœblico ˆ mensagem do individualismo estŽtico e o ilusionismo de sua
representa•‹o. A motiva•‹o afetiva foi impulsiona pelo esfor•o cognitivo. A
contracena•‹o das m’dias entre si facultou a magnitude da apreens‹o recepcional. A
audincia podia conjugar fatos diversos no diferencial tanto midi‡tico quanto
referencial e disto compreender e reunir a totalidade do que era exibido. A tens‹o do
espet‡culo estava na disparidade dos meios e dos contextos e no modo como esta
disparidade Ž enfrentada em prol de nexos recepcionais. A contracena•‹o entre m’dias
concretizava a contracena•‹o entre palco e platŽia. A 'resolu•‹o' da disparidade, pois,
n‹o Ž a sua anula•‹o, o mero cancelamento do heterodoxo, mas o provimento de atos
vinculantes, de nexos.
Assim, o espet‡culo atua em fun•‹o de sua intera•‹o ao invŽs de ser um
ve’culo para idŽias autorais. A realidade multimidi‡tica da cena Ž o que possibilita a
interpreta•‹o de contextos de a•‹o extremos. Atos representacionais e atos da
audincia colaboram. O projeto composicional culmina no acabamento recepcional.
Nas palavras de Piscator: "no palco tudo Ž calcul‡vel, tudo se entrosa organicamente.
Para mim, igualmente, o ator que eu vejo no efeito total do meu trabalho deve,
sobretudo, exercer uma fun•‹o, tal qual a luz, a cor, a mœsica o cen‡rio, o texto.122"
Mais importante: o documento exposto, difundido estava em mesmo n’vel
com o documento examinado, fraturado, reordenado. A montagem colocava em
mesmo plano o documento e o figurativo, de modo a possibilitar a interven•‹o
recepcional no que era representado e n‹o simplesmente a par‡frase de um original,de uma fonte autoral da informa•‹o. Nesse entrelugar, nessa regi‹o lim’trofe onde os
limites do objetivo e do subjetivo projetam ‡reas impessoais e desconhecidas Ž que a
pe•a Ž executada. A imponderabilidade dos extremos absolutos converte esse
entrelugar em um choque contra toda e qualquer ortodoxia.
121 Idem, 83-84.122 Idem, 98.
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A obra total que o processo criativo de Piscator realizava exigia um teatro
total. O sucesso de pœblico determinou a abertura do Teatro e Estœdio Piscator, nos
quais espet‡culos e pesquisas sobre a arte teatral seriam efetivados. Com
W.Gropius(1883-1969), o teatro total pode ser constru’do.
Piscator justificava essa m‡quina teatral nova, "um aparelhamento dotado dos
meios mais modernos de ilumina•‹o, de remo•‹o e rota•‹o no sentido vertical e
horizontal, com um sem nœmero de cabines cinematogr‡ficas, instala•›es de alto-
falantes" como algo que possibilitasse tecnicamente Òa execu•‹o do novo principio
dramatol—gico.123"
Esta m‡quina teatral refutava a c‰mara —tica que por meio do pano e cova da
orquestra mantinha o espectador separado do palco. Ao invŽs de œnico centro de
aten•‹o, multiplicavam-se os palcos em cena (um central e dois laterais) e
engrenagens que envolviam e cercavam o pœblico distribu’do em torno desses palcos.
Assim, de todas as dire•›es as performances se abatiam sobre o pœblico. A audincia
pertence espacialmente ao palco, e v-se confrontada e tomada pelas performances,
meios mec‰nicos e proje•›es luminosas.
Assim, Ž na atividade exercida sobre a recep•‹o que este teatro total encontra
sua efetividade.
Posteriormente, a cena expandida e multimidi‡tica de Piscator se defrontaria
com a representa•‹o de figuras isoladas, com a representa•‹o do her—i, como em As
aventuras do bravo soldado Schwejk . Seria um recuo, como disseram de Alexander
Nieviski, de S. Eisenstein ? Ora na amplitude do espet‡culo de Piscator a descontru•‹o
da figura individual n‹o se torna a revalida•‹o de centro subjetivo. Antes, h‡ o refor•o
das magnitudes teatrais quando da desconstru•‹o dessa figura. O isolacionismo do
her—i e o recurso ˆ m‡quina da faixa corrente, na qual desfilam as partes todas de umesc‡rnio, complementa-se na globalidade do que foi mostrado.
Assim, as reflex›es e os procedimentos do teatro pol’tico de Piscator
ultrapassam as motiva•›es ideol—gicas e conjuntura hist—rico-pol’tica de sua
ocorrncia. Mas a’, temos uma nova hist—ria.
123 Idem. 146.
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6- B. Brecht A dramaturgia como teoria da a•‹o
A materialidade cnica proposta por Appia efetivou a coerncia de m’dias
diversas para um efeito sobre o espectador. O espet‡culo como met‡fora ficou
disponibilizado tecnicamente, determinou subsequentes encena•›es, sendo depois
catapultado para o cinema.
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Mas Bertold Brecht (1898-1956) retoma criticamente esta heran•a da obra de
arte total. Para ele, a renova•‹o tecnol—gica das Artes Cnicas Ž apenas meia verdade.
De nada adianta modificar as formas de express‹o sem alterar o que Ž representado.
N‹o h‡ representa•‹o sem uma realidade prŽvia, que se coloca para o artista como
obst‡culo e impulso. A realiza•‹o dram‡tica exibe essa dupla natureza do feito
art’stico. O teatro Ž um caso-limite de nossas fic•›es, pois, em sua performance, fica
demonstrado in loco a co-pertinncia entre representa•‹o e mundo. Refutando uma
completa autonomia da representa•‹o, a pr‡tica compositiva e a argumenta•‹o
antilusionista de Brecht se constituir‹o n‹o s— em uma recusa e oposi•‹o ao que se
fazia em sua Žpoca. A materialidade dos meios reivindica um materialismo das
referncias.
Podemos mapear a elabora•‹o do teatro dialŽtico de Brecht distinguindo dois
momentos complementares: no primeiro momento, atŽ meados dos anos trinta, h‡
uma forte ret—rica bŽlica contra os h‡bitos estŽticos dito burgueses e suas implica•›es
art’sticas e pol’ticas. Em um segundo momento, que se desenvolve a partir de fins dos
anos trinta, h‡ o arrefecimento do artif’cio da denœncia em prol de uma coerncia
reflexiva que melhor contextualize tanto formal quanto conceptualmente uma
dramaturgia mais integral. Do didatismo estrito do primeiro momento, temos a
posterior correla•‹o de procedimentos compositivos cuja interdependncia nos exp›e
uma teoria de alcance hist—rico maior. O que culmina em ÒO Pequeno organon para o
teatro(1948)Ó.
Como o t’tulo assinala e parodia, abordagens intelectualistas, como aquelas
calcadas em A poŽtica de Arist—teles, ao n‹o levarem em conta a produtividade entre
representa•‹o e representado, devem ser ultrapassadas por poŽticas que alicercem
suas investiga•›es na concretude hist—rica das fic•›es.
Vamos acompanhar o primeiro momento de Brecht. Podemos ver um programa de a•›es objetivando uma reforma. Da’ o contexto reativo bem marcado no
qual Brecht posiciona-se contra a baixa qualidade estŽtica das produ•›es teatrais e
—per’sticas, contra o misticismo abstrato dos vanguardistas e contra ˆ nfase no
espet‡culo, na representa•‹o pela representa•‹o, que os grandes mestres encenadores
que sucederam Appia praticaram. O ponto cr’tico situa-se no modo como eram
concebidas as rela•›es entre fic•‹o e realidade.
Para Brecht, a reforma se baseia no acatamento da diferen•a entre fic•‹o erealidade. A pr‡tica comum era de apagar as marcas de fic•‹o do espet‡culo.
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Pretende-se manter a platŽia atenta atravŽs de suas respostas emocionais, promovendo
a identifica•‹o como acesso ao que se representa. Desrealizando o mundo de cena,
tornando-o mais receptivo e palat‡vel, cria-se uma ilus‹o cont’nua de o que est‡
diante dos olhos tem seu tempo e seu espa•o em uma distinta esfera da experincia
humana.
Brecht denomina teatro culin‡rio tal proposta cnico-mercadol—gica que
fornece produtos de entretenimento que reduzem o campo de a•‹o do espectador a
uma frui•‹o gustativa. Prolonga-se a concep•‹o de fic•‹o como fantasia e prazer do
sujeito, o qual n‹o se v submetido a nenhum obst‡culo para seu gozo.
Para tanto, Brecht vai pouco a pouco problematizar esta estŽtica contemplativa
baseada na identifica•‹o. Ele bem percebeu que as op•›es desenvolvidas em cena tm
seus pressupostos composicionais. Representar Ž articular inteligibilidade e
operatividade. H‡, pois, a interpenetra•‹o de procedimentos art’sticos, pressupostos
representacionais e formas de recep•‹o. Uma obra de arte n‹o Ž a extens‹o imediata
de uma idŽia. Mas seu tipo de racionalidade construtiva nos exp›e seu horizonte de
pensamento.
A primeira tarefa da teoria e da pr‡tica de Brecht Ž refutar o ilusionismo
representacional e o conseqŸente apassivamento do audit—rio. Pois os espectadores
identificam-se com o que est‹o vendo em virtude do excedente emocional que
assimilam de uma trama preparada para ser o encaminhamento dos atos da platŽia.
Um circuito unidirecional do palco para o audit—rio ilude porque elide o car‡ter
ficcional de sua exibi•‹o. A fic•‹o n‹o quer se mostrar como fic•‹o. Sonega ao
espectador a educa•‹o de seus sentidos ao se demonstrar como natural, evidente e
atemporal. Por isso restringe seu estoque de mercadorias ˆ depura•‹o de
Ônecessidades humana eternasÕ n‹o muito contextualiz‡veis.
Em contrapartida, para Brecht Ž preciso remover tudo o que Ž m‡gico, deixarclaro o que est‡ sendo mostrado como algo que se mostra. Eis o efeito D, ou
distanciamento.
Alargando as possibilidades criativas da arte para o palco, a dramaturgia de
Brecht ganha um impulso de configura•‹o com o conceito operat—rio de
distanciamento. A negatividade deste conceito, que se encontra nas experincias
vanguardistas de estranhamento, no decorrer do trajeto da obra de Brecht vai ao
poucos encontrar sua positividade. Mais que o inverso da espontaneidade daidentifica•‹o, o efeito D n‹o Ž pontual, mas estrutural. Temos um distanciamento
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estrutural que rejeita concep•›es de processos art’sticos baseados em empatia e obras
vinculadas ˆs exigncias meramente embelezadoras. Pois o que ainda pouco se notou
Ž o fato que para Brecht Ž preciso retirar as discuss›es sobre arte das polmicas
estetizantes e ver a obra de arte como obra de conhecimento. O distanciamento Ž a
experincia de compreens‹o de uma obra de arte, experincia essa proporcionada pelo
entendimento da representa•‹o e seus suportes de interpreta•‹o dramatizados.
A renova•‹o tecnol—gica das artes de cena havia deixado bem mais percept’vel
a produ•‹o de efeitos concretos que uma representa•‹o pode desenvolver. O
desempenho de uma fic•‹o encontrava-se agora exposto em virtude da materialidade
dos procedimentos empregados. Antes de tudo, a cena era a exibi•‹o de seu processo
de realiza•‹o. Um racionalismo da produ•‹o poderia oferecer as bases para as raz›es
do fazer art’stico. O fazer estŽtico n‹o era mais um dom ou privilŽgio encarcerado em
mentes escolhidas e sobrenaturais.
Contudo, a otimiza•‹o dos meios tem seus limites: uma tradi•‹o de pr‡ticas
que possibilitam sua utiliza•‹o. Pois desenhava-se ( como todos hoje bem sabemos) o
cons—rcio entre novas tecnologias e a continuidade dos h‡bitos ilusionistas. Presente e
passado conjugam-se. A dimens‹o hist—rica dos feitos estŽticos evidencia-se aqui com
toda sua for•a.
Em raz‹o disso o efeito D torna-se estratŽgico para oferecer uma solu•‹o para
a contradi•‹o entre divertir e apreender que a sintomatologia dos produtos tecno-
ilusionistas efetivam.
O famoso e sempre citado quadro de oposi•›es124 (de 1931) procura esclarecer
a oposi•‹o entre o novo-velho modo de se fazer ilus‹o e a moderna maneira de se
integrar fic•‹o em uma representa•‹o.
Forma dram‡tica de teatro
A cena ÒpersonificaÓ um
Forma Žpica de teatro
Narra-o
124 A necessidade de uma nova forma de apresenta•‹o do drama musical deseu tempo determinou este diagrama contrastrante. S‹o notas para o drama musicalŽpico Mahagonny. Note-se como o quadro se articula em trs grupos b‡sicos dequest›es: forma da obra, recep•‹o da obra e aplicabilidade da obra a contextos n‹oestŽticos, explicitando o amplo escopo da discuss‹o sobre as rela•›es entre drama econhecimento a partir de um paradigma que integra diversas intera•›es queultrapassam dualismos.
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acontecimento
Envolve o espectador na a•‹o
e
Consome-lhe a atividade;
Proporciona-lhe sentimentos;
Leva-o a viver uma
experincia;
o espectador Ž transferido para
dentro da a•‹o;
Ž trabalho com sugest›es;
os sentimentos permanecem
os mesmos;
parte-se do principio que o
homem Ž conhecido;
o homem Ž imut‡vel;
tens‹o no desenlace da a•‹o;
uma cena em fun•‹o da outra;
os acontecimentos decorrem
linearmente;
natura non facit saltus
(tudo na natureza Ž gradativo)
o mundo, como Ž;o homem Ž obrigado;
suas inclina•›es;
o pensamento determina o ser.
Faz dele testemunha, mas
desperta-lhe a atividade;
for•a-o a tomar decis›es;
proporciona-lhe vis‹o do
mundo;
Ž colocado diante da a•‹o;
Ž trabalho com argumentos;
s‹o impelidos para uma
conscientiza•‹o;
o homem Ž objeto de an‡lise;
o homem Ž suscept’vel de ser;
modificado e de modificar;
tens‹o no decurso da a•‹o;
cada cena em fun•‹o de si
mesma;
decorrem em curva;
facit saltus
(nem tudo Ž gradativo);
o mundo, como ser‡ ;
o homem deve;
seus motivos;
o ser social determina o
pensamento
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O que se pode notar desse quadro Ž que o teatro Žpico, e seu distanciamento
estrutural, Ž composto por uma sŽrie de procedimentos ao invŽs de se fundamentar em
uma centralidade projetiva. N‹o h‡ um conceito que unifique a experincia de
recep•‹o ou a pr‡tica compositiva. A varia•‹o de procedimentos desnuda o palco,
desmistifica a ilus‹o encenada ao marcar a delimitada e circunscrita forma que d‡
suporte para uma determinada representa•‹o. Os suportes dram‡ticos expostos
clarificam a singularidade da obra.
Em conseqŸncia disso, h‡ uma correla•‹o enriquecedora entre palco e platŽia
atravŽs do qual o espet‡culo Ž a unidade entre cena e pœblico em uma realidade de
observa•‹o e afetividade. Espet‡culo Ž toda a interatividade entre cena e audincia. O
espet‡culo n‹o Ž mais que a representa•‹o dessa situa•‹o interprtativa entre cena e
platŽia. N‹o est‡ acima ou alŽm de quem o possa assistir. Ele Ž finito e vis’vel em
seus nexos.
Dessa forma, desloca-se a perspectiva de cena da psicologia das personagens
para a contextualiza•‹o do que se representa. H‡ uma unidade entre personagem e
acontecimento, acontecimento que n‹o Ž primordialmente mental. Com isso n‹o
temos um t™nus emocional dominante, um plexo de puls›es b‡sico e invari‡vel.
Flutua•›es emocionais relacionadas a atos espec’ficos alternam-se com debate sobre
os pr—prios eventos que possibilitaram tais emo•›es e reflex›es. Tal clarifica•‹o das
emo•›es articula-se com a exigncia da produ•‹o de uma audincia mais
compreensiva.
Finalmente, o aperfei•oamento da representa•‹o, em virtude de seu
desnudamento para a platŽia, acarreta a exibi•‹o de situa•›es do mundo da vida
integradas ˆs suas possibilidades e alternativas. Assim como a representa•‹o n‹o Ž a
c—pia de uma realidade imposta e comunicada, da mesma forma o mundorepresentado n‹o se reduz a fatos imut‡veis. A inteligibilidade da representa•‹o,
adquirida atravŽs de marca•›es propositadamente vis’veis, conecta acontecimentos e
transforma•›es. A descontinuidade do que se encena promove a continuidade de se
pensar a respeito do que se v. O mundo representado aproxima-se das formas de
compreens‹o cotidianas, corrigindo estratŽgias ilusionistas que apelam diretamente ˆ
emocionalidade do espectador. O que aproxima palco e platŽia n‹o Ž a intensidade de
uma experincia afetiva isolada pontual, mas a constru•‹o de uma postura frente aoque se defronta.
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No fundo vemos que, por detr‡s das proposi•›es do teatro Žpico de Brecht,
est‡ uma desconfian•a do car‡ter gratuito e isolado da intensifica•‹o emocional.
Brecht bem demonstra que esta afetividade absoluta tem sua racionalidade espec’fica,
Ž tambŽm constitu’da. Ao contr‡rio de uma oposi•‹o entre sentir e pensar, Brecht
revela o alcance cognitivo de um pathos extremo, como a experincia do fascismo
bem exemplificou. Toda emocionalidade Ž calcul‡vel.
ƒ, pois, em rela•‹o aos pressupostos e implica•›es da centralidade emocional
do espet‡culo que Brecht se dirige. A forma do espet‡culo, a experincia de recep•‹o
produzida e o mundo representado interagem e enunciam os pressupostos de
realiza•‹o do espet‡culo. A op•‹o representacional centrada na emocionalidade Ž uma
estratŽgia de arrefecer a compreens‹o de seu alcance cognitivo limitado. Muita
m‡gica, muita emo•‹o n‹o significa sensibilidade mais desenvolvida, como Dideror
mostrara em seu Paradoxo do Comediante..
Por isso a novidade da teoria de Brecht se compreende melhor em rela•‹o ˆ
sua defesa de uma dramaturgia n‹o aristotŽlica. O recurso a Arist—teles, pelo menos o
Arist—teles assimilado pelas estŽticas normativas, sempre se fez para legitimar a
separa•‹o entre os conteœdos emocionais e a sua express‹o. Ora pendendo para um ou
outro lado, a utiliza•‹o mesmo que indireta da PoŽtica de Arist—teles, seja na teoria da
m’mesis, seja na teoria da catarse, privilegiou ou a organiza•‹o estŽtica dos materiais
ou a experincia direta da platŽia. A recusa da heran•a aristotŽlica por parte de Brecht
procura, a partir da pr—pria experincia teatral global, acompanhar a efetividade
realizacional da fic•‹o dram‡tica.
Ou seja, o ponto de partida n‹o reside pura e simplesmente em um aspecto
isolado da representa•‹o para a cena, mas prolonga-se na investiga•‹o da
heterogeneidade de diferencia•›es que possibilitam a experincia dram‡tica, dentro
da qual uma continuidade de compreens‹o Ž constitu’da atravŽs da descontinuidade darepresenta•‹o. O efeito D Ž a manuten•‹o de um espa•o de inteligibilidade das formas
dentro das formas mesmas.
N‹o Ž tanto uma revolu•‹o formal que Brecht preconiza. Contra um
formalismo autocontido da express‹o, no qual o mundo Ž orientado a quase coincidir
com a materialidade da linguagem, com os meios de express‹o, temos uma pr‡tica
representacional, que, ao exigir um alcance cognitivo mais desenvolvido, retira a
EstŽtica de sua perifŽrica discuss‹o genŽrica sem referncia a obras concretas em sua
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especificidade construtiva. Ora o fazer teatro, provocativamente, se converte no
fornecimento de mais um objeto entre os objetos que o mundo possui.
Mas entre os grandes resultados da estŽtica de Brecht est‡ a Òreabilita•‹oÓ do
texto. A textualidade para o espet‡culo renova-se ao transformar-se n‹o mais em um
recurso discursivo, mas em roteiro de representa•‹o. Sem o texto, a teoria e pr‡tica de
Brecht n‹o poderiam ser completadas.
Esta Ž uma quest‹o sempre mal compreendida, fruto da heran•a e rea•‹o
descontextualizada ao legado aristotŽlico. A separa•‹o entre texto e espet‡culo, que
pode ser depreendida da PoŽtica de Arist—teles, vai no fluxo das oposi•›es entre
sentir e pensar j‡ comentadas acima. Foi um tipo de concep•‹o de texto ( a do teatro
liter‡rio) e n‹o o texto em si que desencadeou a recusa moderna do texto125. Mas
sempre Ž poss’vel um texto. Mesmo n‹o sendo escrita, a representa•‹o tem uma
virtualidade textual, que n‹o se confunde com simples coment‡rio. Um espet‡culo de
m’mica Ž atualizado em sua textualidade. Texto e espet‡culo n‹o s‹o opostos e
excludentes. O que o ator faz em cena sempre Ž textualiz‡vel, Ž pass’vel de referncia,
mesmo que ele n‹o diga nada.
ƒ que se confunde texto com verbaliza•‹o. Muito pode ser escrito sem ser
dito. A escritura n‹o Ž a inteira performance, nem Ž o registro fechado do que deve ser
proferido. Quando mais aprimorada uma escritura para a cena isso n‹o significa maior
tagarelice do ator. Mas escritura para cena Ž uma performance de performances, Ž
uma composi•‹o de performances, Ž j‡ uma performance e uma metaperformance,
pois roteiriza a representa•‹o, dando-lhe uma finita existncia como material a ser
trabalhado e retrabalhado. Trata-se da interpreta•‹o de um espec’fico processo de
representa•‹o: n‹o Ž um modelo para ser reproduzido, mas a individua•‹o de
orienta•›es e referncias para atos interpretativos. A presen•a do texto Ž a premncia
de um acontecimento intelig’vel afetivamente situado. O texto vai tornar vis’vel umaracionalidade encontrada a partir de uma pr‡tica representacional determinada. Afinal
de contas, a cena Ž por acaso a ant’tese da raz‹o?
ƒ ineg‡vel que h‡ uma distin•‹o entre o efeito D e sua execu•‹o. Muito se
criticou o car‡ter frio, cerebral e impessoal das realiza•›es de Brecht (ou de seus
ep’gonos...). A artificialidade obrigat—ria da manuten•‹o das diferen•as entre fic•‹o e
125 MOTA 1998.
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realidade, atravŽs da exposi•‹o constante e repetitiva dos suportes ficcionais da
representa•‹o, adquiriu solu•›es insatisfat—rias126.
Contudo, os pressupostos do efeito D, os quais n‹o preconizam a
descontinuidade absoluta entre fic•‹o e realidade, mesmo n‹o tendo uma solu•‹o
visual eficiente n‹o se anulam. A teoriza•‹o da representa•‹o Ž um work in progress.
A ado•‹o de uma forma de exibi•‹o Ž a interpreta•‹o e n‹o a totalidade dessa
teoriza•‹o. Quando se refuta uma performance n‹o necessariamente se julga a
totalidade da sua composi•‹o. Uma proposta em um processo criativo pode ser
aproveitada ou refutada em outros processos criativos. ƒ preciso uma cr’tica
integrativa que d conta do projeto de realiza•‹o que Ž esbo•ado ou desenvolvido em
performances.
Ultrapassando o contexto reativo que o motivava, ap—s a maturidade art’stica
em obras como M‹e coragem e Vida de Galileu, temos a segundo momento te—rico de
Brecht, no texto ÒO pequeno organon de teatro Ò(1948).
A ÒreviravoltaÓ conceptual de Brecht aqui delineada se d‡ no abrandamento de
uma ret—rica belicosa contra o teatro culin‡rio. Trata-se de entender este tipo de
teatro, ver suas limita•›es para, a seguir, proporcionar solu•›es para o encanto da
emocionalidade. Ao invŽs de opor divers‹o e espet‡culo, Brecht defende que a fun•‹o
mais nobre do teatro Ž a divers‹o.
Como toda afetividade tem seu horizonte cognitivo, o que est‡ em jogo n‹o Ž a
divers‹o, mas o predom’nio de um modo de produ•‹o representacional. H‡ uma
diversidade de prazeres, e engana-se quem se acomoda pensando que o prazer dado
pela representa•‹o dependa quase que exclusivamente do grau de semelhan•a entre a
imagem e seu objeto, a chamada identifica•‹o. O que diverte e mantŽm um prazer
poss’vel de ser representado e tornar-se espet‡culo Ž um processo marcado de
diferencia•‹o por meio do qual a referncia Ž cada vez mais situada e individualizada para enfim ser relacionada aos diversos momentos da representa•‹o. O audit—rio
participa vivamente distinguindo a inser•‹o das referncias nos momentos
126 Tal frieza vinha principalmente de recursos de interpreta•‹o do ator taiscomo recorrer ˆ terceira pessoa para refor•ar o ato que ele Ž um mostrador derealidades no palco, fazer uso de express›es no passado, para marcar a diferen•a entrea fic•‹o como relato e seu acabamento e a situa•‹o atual de audincia, e o coment‡riodas indica•›es de encena•‹o e sobre os acontecimentos visualizados, para registrar afun•‹o do ator como observador.
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construtivos do espet‡culo. O que v e sente e ouve Ž seu, lhe pertence como algo que
tomou para si como co-intŽrprete, co-realizador da cena.
Transformando referncias sucessivas em paradigmas de orienta•‹o, em
virtude de seu diferencial de realiza•‹o, o audit—rio ganha ao compreender situa•›es
d’spares que proporcionam uma convergncia significativa. Pelo mundo representado,
mundo intenso e sujeito ao tempo de sua possibilidade, a audincia apodera-se da
compreens‹o do espet‡culo e n‹o das figuras sem contexto da realiza•‹o.
Da’ Ž gerado um prazer outro, uma divers‹o mais complexa e integral,
presente na frui•‹o da Žtica particular de sua Žpoca. Vamos pensando com Brecht: se
Ž preciso divertir, que se divirta tambŽm pelo saber, um saber que pertence a quem
compreende o espet‡culo como fic•‹o, fic•‹o t‹o singular como o mundo
representado em cena. A particularidade hist—rica representada, ao tornar singulares
as circunst‰ncias em que agem atores com seus personagens, n‹o s— d‡ a perspectiva
hist—rica dos acontecimentos representados como determina a aplicabilidade da
representa•‹o. A historicidade n‹o Ž tema nem cen‡rio mas a exigncia de uma
refinamento dos procedimentos estŽticos frente a exigncias de conhecimento que
impedem qualquer v™o m‡gico f‡cil. O diferencial cognitivo que desenvolve uma
platŽia mais livre das representa•›es, posto que as compreende como objetos feitos e
finitos, ratifica que sem conhecimento nada se pode representar . O prazer n‹o Ž uma
catarse, mas ato de uma compreens‹o. Voc s— chora ou clama porque entendeu. A
singularidade compreendida Ž prazeirosa como um jogo que se entende para ser
jogado melhor.
Note-se como os antigos temas de Brecht s‹o revisados. O que Brecht
entendeu Ž que Ž preciso um tratamento mais te—rico de seus problemas de
conjuntura. Continuando, a uma teoria do espet‡culo que ultrapassa oposi•‹o entre
fic•‹o e realidade, corresponde uma poŽtica do espectador. Sendo a pe•a umacontecimento restrito, do qual resulta um sentido espec’fico, o audit—rio ser‡
defrontado com a natureza dos nexos que permite tal especifica•‹o. A pe•a
apresentada com lucidez ser‡ recebida com igual lucidez. H‡ uma correla•‹o entre a
produtividade de sentido da representa•‹o e a constru•‹o da platŽia. O mundo
representado figura a poŽtica do espectador, sendo a interface entre a representa•‹o e
a audincia. O conv’vio humano e a objetividade reinterpretada esteticamente em
cena dramatizam a compreens‹o dos acontecimentos dramatizados. A singularidadedos eventos encenados possibilita a fic•‹o e sua construtividade. O dramaturgo, ao
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invŽs de substituir Òum mundo contradit—rio, imperfeito e mortal por um mundo
harmonioso- um mundo que o espectador mal conhece por outro qual se pode sonhar
somenteÓ Ð utiliza-se do mundo plaus’vel representado para fazer a poŽtica do
espectador.
ƒ o que o conceito de Gestus procura evidenciar. Para Brecht Ž preciso
atualizar em palco comportamentos significativos e relevantes que os homens adotam
diante uns dos outros. Cada acontecimento comporta um Gestus b‡sico. A fisicidade
em cena aponta para atos como fatos extramentais que mostram posicionamentos e
conceitos frente ˆ realidade que se representa. A fisicidade do Gestus (toda a
corporeidade do ator relacionada com a representa•‹o singular dos acontecimentos -
caracter’sticas, atitudes, a•›es, palavras) rompe com a imita•‹o psicol—gica que
sobrecarregou o teatro liter‡rio, motivando-o a postular a unidade de a•‹o e de car‡ter
das personagens. Da’ os tipos e as tramas. Ao invŽs de uma m’mesis psicol—gica, o
princ’pio do Gestus efetiva n‹o s— a visualiza•‹o do que Ž permitido dentro de um
contexto hist—rico como possibilita a a•‹o que transforma esses contextos. A a•‹o Ž
uma concep•‹o e n‹o um impulso frente ao senso de cat‡strofe. Homens de carne e
ossos investem seu agir nos processos pelos quais se vive. A marca•‹o do Gestus s—
distingue e espec’fica a fic•‹o encenada.
Dessa forma o que Brecht objetiva em sua teoria hist—rica da dramaturgia Ž
revelar o horizonte compreensivo dos atos humanos na representa•‹o. Sendo a pr—pria
representa•‹o n‹o uma m’stica transcendental, nem um aparato meramente tŽcnico,
ela mesma Ž um desses atos finitos e mundanos impregnados de referncias. A cena
n‹o Ž um n‹o lugar . A extrema referencialidade dos atos humanos Ž interpretada pela
composi•‹o e performance cnicas. N‹o Ž o mundo que se reduz para ser contido em
uma figura, mas Ž a figura que se individualiza ao integrar uma estrutura
interpretativa desse mundo. Ao se valer das capacidades cotidianas de compreens‹o(observa•‹o, fisicidade, mem—ria, debate) a cena faculta ao espectador uma
experincia que torna mais inserida a representa•‹o e o contexto de sua realiza•‹o. O
espet‡culo Ž um acontecimento interpretativo que se revigora na referencialidade dos
atos que o especificam.
A provocativa afirma•‹o de Brecht que nossas representa•›es s‹o secund‡rias
em rela•‹o ao que est‡ sendo representado cifra as implica•›es de sua reorienta•‹o
em dire•‹o ˆ experincia da audincia e a referencialidade. A escritura para a cenadefronta-se com as exigncias da inteligibilidade do espet‡culo como ato fact’vel.
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TERCEIRA PARTE
1-Arte e Subjetiva•‹o
Quem procura ensinar, precisa conhecer os pressupostos de quem aprende.
Ap—s anos participando de bancas entrevistadoras que avaliavam candidatos ao curso
de Artes Cnicas, entrevi-me com as respostas variadas, muitas vezes confusas e
extravagantes, mas que guardavam, apesar de tudo, uma incr’vel coerncia. As
respostas denunciavam o modo contempor‰neo de se conceber o que Ž fic•‹o,
partindo que estamos de que a atividade dram‡tica Ž um processo imaginativo. E este
modo atual de trabalhar com a fic•‹o constitui-se em torno do estatuto
representacional da arte ou dos procedimentos de como legitimar o discurso se faz
sobre ela, retomando uma longa tradi•‹o que, pelo menos, na GrŽcia encontrou um
momento de sua problematiza•‹o.
Colocada a quest‹o desta maneira, parece insano ou fantasioso que se
relacione uma resposta de um candidato a uma vaga no curso de Arte Cnicas da
Universidade de Bras’lia com a codifica•‹o filos—fica do fato art’stico. O que
ganhar’amos com a exposi•‹o e visualiza•‹o desta longa hist—ria?
Mas a’ onde a interroga•‹o e o espanto se erguem, nota-se o diferencial
contempor‰neo desta Hist—ria de longa dura•‹o. A recusa de vincula•‹o, a nega•‹o de
todo tra•o vinculante com uma mem—ria de si mesma j‡ nos diz um pouco dos modosde receber a arte dram‡tica na atualidade. Esta ruptura com a tradi•‹o, veremos, toma
da mesma tradi•‹o renegada os horizontes para sua justificativa. Dialogam os tempos
na unidade de sua proposi•‹o.
Ent‹o, o que unifica a recep•‹o do fato estŽtico hoje? Qual pressuposto torna
homogneo o contato com as fic•›es? Qual Ž a idŽia de arte de nossa Žpoca? Ali
mesmo onde se nega a Hist—ria, se reafirma o sujeito. Eis a resposta. Contra o peso da
tradi•‹o, temos a egolatria autoreferenciadora. Vivemos os œltimos rescaldos da
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subjetiva•‹o da arte, na qual se n‹o se distinguem as fronteiras entre fic•‹o e a
realidade.
Esta subjetiva•‹o engloba os fen™menos imaginativos que ganham da
participa•‹o individual o suporte para seu acontecer. Porque a subjetiva•‹o procura
dar uma intimidade com aquilo que se pratica. A fun•‹o da subjetiva•‹o Ž real•ar a
experincia daquilo com o que se trabalha. A evidncia subjetiva Ž a confiss‹o de uma
eficincia, de uma realiza•‹o, de um conseguir se utilizar daquilo que tomou para si.
A dimens‹o minha Ž a ilumina•‹o de um encontro no qual as dificuldades e os limites
foram ultrapassados e superados.
Da’ o elogio desmesurado da arte. Subjetividade evidente e adjetiva•‹o
hiperb—lica s‹o complementares, pois quanto melhor o sujeito, maior a arte. A
eficincia do indiv’duo redobra-se na perfei•‹o do objeto.
AlŽm desde circuito sujeito-objeto, novos contextos s‹o abarcados. A arte
agora n‹o Ž um elogio, e sim um valor para a sociedade. Ela Ž o meio privilegiado de
se comunicar com mais e melhores possibilidades de tudo o que se quer dizer. Como
express‹o das express›es, a arte, finalmente, Ž o pr—prio homem.!!!
Esta cadeia de racioc’nios, que vai do sujeito atŽ nossa ra•a, precisa, contudo,
ser melhor compreendida. A sobrecarga que a arte ganha, seu infinito nœmero de
determina•›es n‹o se constituem como entendimento do que ela Ž em si mesma. A
cadeia de racioc’nios n‹o Ž progressiva - somente fortalece a mesma base. Quando
mais a inclus‹o da arte se exacerba, mais o sucesso da experincia Ž fortalecido.
Contudo, temos um ilusionismo da seqŸncia por meio da qual as maneiras como
legitimamos a arte est‹o diametralmente opostos ao modo como conhecemos a
mesma arte.
Eis o grande paradoxo: o desmesurado apre•o e elogio da arte n‹o nos d‡
nenhuma intimidade com ela. O ponto de partida afluindo do sujeito que n‹o semodifica com o que conhece e mais se torna homogneo enquanto aplica a arte ˆs
maiores esferas da cultura( atŽ que ela tome o lugar da religi‹o) este ponto de partida
elide muito porque ilude o suficiente. Trata-se de uma fic•‹o filos—fica que, tomando
da conceptualiza•‹o do fato art’stico seu procedimento b‡sico, legitima somente o que
pode ser referenciado imediatamente. Confunde-se o observador com o fen™meno
observado. Exemplo: alguŽm realiza arte, ent‹o o que determina a arte Ž essa
subjetividade. A subjetiva•‹o da arte Ž uma miopia interpretativa.
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Contraditoriamente, a subjetiva•‹o da arte Ž uma intelectualiza•‹o da arte. As
cadeias de racioc’nio, formas de inclus‹o e legitima•‹o da arte, revigoram-se em
generalidade e redu•‹o. Quando mais a arte se justifica em tantos contextos, menos
ela Ž em sua especificidade. Pois, como se pode facilmente depreender, a
intelectualiza•‹o da arte n‹o exige que se tenha uma experincia mais ’ntima com ela.
A abstra•‹o toma o lugar da aprendizagem. O sujeito permanece inc—lume frente ao
que se devota tanto. Ser = pensar.
Tal assepsia do mundo das concep•›es, que substitui uma interatividade mais
forte com o que se defronta pelo refor•o de uma eterna repeti•‹o do sujeito consigo,
faz vigorar a vit—ria da idŽias da arte sobre a pr—pria arte. Entre mim e a arte se
interp›e este intermedium cognoscente transformado em ‡rbrito estŽtico.
Chegamos onde quer’amos chegar. A subjetiva•‹o da arte Ž autof‡gica.
Elimina v’nculos concretos substituindo-os por transparentes v’nculos abstratos. Esta
aura redencionista, sublime, verdadeiro dep—sito de nossas mais belas aspira•›es, na
verdade Ž a entroniza•‹o de uma raz‹o cativa de impor um mesmo modo de
existncia a tudo que Ž ou existe. ƒ hora de desconstruirmos este fundamento sem
fundamento que Ž a subjetividade tornada centro, vetor e matŽria da arte. Est‡ na hora
de denunciarmos que a rela•‹o entre evento art’stico e subjetividade Ž mais complexa
do que se pensa ou se sup›e. Trata-se de concretizar este sujeito ‡vido em se esconder
por entre as formas e simulacros da realidade. Trata-se de operar um descentramento
para reorientarmos o sujeito. Neste momento deixo a vez , a hora e o lugar para o
drama, para outro palco que melhor represente o que quero dizer. ƒ preciso, mais do
que nunca, desmistificar esta inst‰ncia subjetiva.
Nenhuma arte como a dram‡tica sofreu tanto as conseqŸncias da subjetiva•‹o
estŽtica. Historicamente, porŽm, venceu e convenceu a vers‹o bastarda que associa oteatro ao que podemos chamar de dionismo cat‡rtico127. Este mistŽrio gozoso parte do
pressuposto que o objetivo de toda representa•‹o Ž a irrup•‹o de uma reciprocidade e
identifica•‹o imediata e sem limites entre palco e platŽia. O irracionalismo prazeroso
justifica todo e qualquer efeito dram‡tico. A representa•‹o tem que se anular,
cancelar-se para fazer notar a ecumnica partilha da paix‹o. O espet‡culo mesmo Ž
uma maquinaria que objetiva atingir este amplexo emocional que, suspendendo toda a
127 V. MOTA 1998.
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cotidianeidade, nos arremessa para alŽm de n—s mesmos. A catarse desse dionismo Ž a
purga•‹o de nosso mundo ordin‡rio. O melhor n‹o estar aqui. A cena Ž um meio para
algo que ela mesma n‹o Ž e que nem est‡ aqui.
Para melhor funcionar, a maquinaria prorrompe como perform‡tica condi•‹o
humana. O œnico espet‡culo Ž o do sujeito consigo mesmo. Esta Ž œnica maneira
poss’vel para que o que ele pense do mundo se torne o que o mundo Ž. Se n‹o h‡ mais
ninguŽm, se s— existe uma œnica mente , se todas as mentes s‹o essa verdade, tudo Ž
como eu penso e quero. E, logo, a realidade concorda com que eu pense dela. Pois o
subjetivismo defende a elimina•‹o das diferen•as entre fic•‹o e realidade para
suprimir toda e qualquer diferen•a. O privilŽgio perfom‡tico da representa•‹o, onde
n‹o h‡ mais palco ou platŽia, onde tudo Ž ao mesmo tempo todas as coisas agora,
satisfaz a ilus—ria continuidade do sujeito por cima de todos os contextos.
Neste sentido, o mistŽrio gozoso impresso na identifica•‹o total da
representa•‹o e da recep•‹o, marca fundamental do dionismo cat‡rtico de nossos dias,
choca-se com a realidade mesma do que se pode denominar de experincia ficcional
dram‡tica ocidental.
Esta experincia empenhou-se em promover uma continuidade espa•o-
temporal por meio de atos personativos e descont’nuos para uma recep•‹o co-presente
e antecipada. Desta maneira, sempre foi antiilusionista, pois necessitando promover a
orienta•‹o da platŽia para o espet‡culo, reivindicava a diferen•a entre pressupostos do
pœblico e os da obra mesma. A imagina•‹o dram‡tica marca esta operatividade
observacional diferente na qual o porto de partida irrevers’vel reside na assimetria
fatal entre dois horizontes m’nimos que s‹o enfeixados dentro de um acontecimento
maior que Ž o espet‡culo. Adiando os nexos imediatos, problematizando as rela•›es,
recusando a atomiza•‹o do ver por sua coincidncia com o visto, esta dramaticidade
ficcional repercute na proposi•‹o de v‡rios n’veis de realidade da representa•‹o. Oque se representa Ž mais do que se apresenta, mas est‡ intimamente relacionado com
seu contexto de produ•‹o. N‹o Ž um resumo de enredo nem um coment‡rio tem‡tico
que vai dar conta desta tecnologia de representa•‹o. A assimetria entre mundo da
recep•‹o (W.Iser) e mundo da obra se constitui em pressuposto fundamental da arte
dram‡tica e de uma teoria dram‡tica do conhecimento. A m’mesis dram‡tica Ž a
confirma•‹o dos limites da subjetividade que mais se aliena de si por seu
comprometimento com estratŽgias de sentido que n‹o figuram o demonstrar dacompleta e total inser•‹o do sujeito nos acontecimentos.
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Refazendo os nexos. Ao invŽs do consenso intelectual dos espectadores em
torno de um espet‡culo visto como par‡frase de uma idŽia, genericamente
autoevidente a partir da atomiza•‹o e pulveriza•‹o de todos os contextos-cenas,
reivindicamos uma estŽtica concreta que toma da homologia espet‡culo/ espectador
um horizonte de integra•‹o de n’veis que leva em conta essa diferen•a imposs’vel de
ser transposta em semelhan•a e esquema. Desconfiamos do acordo apressado das
subjetividades que, por pensarem as mesma coisas do mesmo modo sempre aqui ,
difundem a calmaria da prevalncia da esquematiza•‹o intelectual da arte, esta ,
ent‹o, discutida e debatida em proposi•›es meramente discursivas.
Ou seja: sempre h‡ mais que o sujeito, este infelizmente sempre visto como
um pano de fundo constante e un’voco. Pois a poŽtica do espet‡culo Ž uma poŽtica do
espectador. Este a mais, esse excesso n‹o Ž a morte do sujeito, o achatamento da
recep•‹o. Ao contr‡rio, este descentramento proposto, ao passarmos da unidirecional
aplica•‹o de hip—teses generalistas do subjetivismo na arte para o contexto real da
experincia imaginativa, oferece-nos a percep•‹o dos processos especificadores
atravŽs dos quais um imagin‡rio se efetiva.
Isto sempre Ž o mais dif’cil. Faz parte de nossa cultura a normaliza•‹o dos
processos representacionais, o controle da m’mesis por sua referncia seja a um
sistema de idŽias, seja a um referente naturalista pura e simplesmente. Nunca
esquecer: referncia Ž referendo, Ž legitima•‹o. A intelectualiza•‹o, lembrando, quer
conservar a homogeneidade do sujeito.
Em raz‹o disso, deslocamos nossas considera•›es para a obra como
espet‡culo, como compreens‹o da construtividade da recep•‹o. H‡ uma
complementaridade sempre agente e subagente entre os procedimentos de composi•‹o
e orienta•‹o da recep•‹o. Chegamos no que chamamos de Ômatrizes dram‡ticasÕ.
O fato teatral como caso-limite da arte vem ser fundamental para nos guiarrumo a este contato mais ’ntimo com a representa•‹o. Matrizes dram‡ticas s‹o
procedimentos de orienta•‹o que determinam a inteligibilidade dos eventos em sua
express‹o. Estamos situados na raz‹o construtiva , no fazer da obra, e n‹o em um
elenco isolado de formas e expedientes. A constru•‹o de um conjunto de referncias
ultrapassa aqui o mero ato de denomina•‹o. ƒ para o suporte imaginativo do evento
que dirigimos nossa aten•‹o. O elenco das matrizes n‹o oferece o dom’nio do que se
figura diante de n—s. A compreens‹o da obra como um conjunto de processosespec’ficos que colocam em quest‹o sua recep•‹o n‹o nos Ž um manual de auto-ajuda
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para executores de imagens. Em todo caso, o caminho est‡ aberto. Uma via de acesso
se delineia. A suspens‹o aqui Ž confiss‹o de um adiamento.
Antes de um olhar cr’tico, um olhar hist—rico n‹o seria preciso um olhar
estŽtico? N‹o Ž uma denœncia categorial (psicanalista, materialista, etc.) que vai nos
livrar do sempre presente obst‡culo da ilus‹o referencial do sujeito. Pois Ž preciso
pensar a obra, pensar o que Ž este modo de ser em obra. Sempre h‡ o espet‡culo,
mas h‡ a obra?
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2- AS RAZÍES DO JOGO SEGUNDO H.G. GADAMER
Mas, ironicamente, Ž para o logos, para o mesmo e outro logos que a
modernidade remete seu modo de ser. A hipercr’tica moderna, refutando a experincia
racional, ao igualar/reduzir a tradi•‹o metaf’sica Ocidental aos pressupostos
iluministas, converte este debate sobre o logos num tribunal da Hist—ria. Esta
convoca•‹o planet‡ria toma como tema de seu pensamento os limites das estratŽgias
de inteligibilidade que motivaram o projeto Iluminista. A hipercr’tica, porŽm, ainda
toma do logos sua referncia e referendo. A denœncia do logofonocentrismo quer ser a
catarse do mito da Raz‹o mas converte-se na autofagia do pensar que desdenha o
pensamento.
A refuta•‹o da raz‹o, comum aos movimentos vanguardistas da arte e aos
niilismos e descontrucionismos crepusculares da filosofia ou antifilosofia, entretanto
nada ter a ver com o logos. Ou parece ter. O tribunal da Hist—ria transforma a
acusa•‹o em veredicto sem interrogar sobre o que condena. A hipercr’tica generaliza
a experincia racional Iluminista como experincia de todo o logos. Paralelamente ao
irracionalismo vanguardista e ˆ subjetiva•‹o do pensamento na hipercr’tica
contempor‰neo, a hermenutica procurou melhor esclarecer esta economia racional na
arquitetura do logos, ao demonstrar a estrutura pressupositiva como fundamento da
racionalidade. Mais que uma negatividade, temos aqui o suporte finito do pensar, as
condi•›es antecipat—rias de um projeto racional. O hipercriticismo procura por seu
veto, eliminar o que h‡, o que existe.
Estrategicamente conjugam-se o antiintelectualismo na arte com a
subjetiva•‹o do pensar no niilismo filosofante. O niilismo filosofante converte-se em
filosofia dessa estŽtica irracional e esta estŽtica Ž a matŽria para subjetiva•‹o do pensamento. A filosofia Ž uma estŽtica e a arte uma contrafilosofia onde o programa
predomina sobre a produ•‹o. O fortalecimento da negatividade Ž que torna essa
aproxima•‹o entre estŽtica e pensamento desej‡vel e realiz‡vel. O sucesso da
estetiza•‹o da filosofia Ž a prerrogativa da subjetiva•‹o da realidade, da autonomia da
representa•‹o vista agora como simulacro. A redu•‹o de tudo que Ž ou existe ao
simulacro Ž uma opera•‹o interpretativa fundamental para a coerncia da hipercr’tica.
Tudo passa a n‹o ser. O simulacro Ž a maximiza•‹o da negatividade que h‡ muitodeixou j‡ de exercer sua atividade contra a refuta•‹o de algo. A negatividade Ž o
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pr—prio movimento formador e constituir do que se quer erigir. O contramodelo Ž
vit—ria sobre o ant’poda. As ra’zes do simulacro se fundam no exerc’cio da
negatividade. Contra a raz‹o, pensa-se. Mas n‹o mais contra ou sobre o Logos. A
continuidade do contra doa a contigŸidade do negador com a coisa negada.
Antifilosofia.
O ensa’smo contempor‰neo n‹o s— assume o simulacro como se assume como
simulacro. Esta reflexibilidade Ž importante. N‹o se trata apenas de inscri•‹o do
sujeito no pensar, mas de apagamento de diferen•as. Pensar hoje Ž coordenar a pr‡tica
do simulacro com sua exposi•‹o. Pensar Ž pensar o movimento do pensamento em
sua valida•‹o redutora e niilista, pois o œnico tema a ser pensado Ž esta uniformiza•‹o
que dissolve os contornos e os limites. O simulacro Ž isso: simula a indistin•‹o entre
representa•‹o e realidade.
Desta maneira n‹o Ž logos. A pergunta pelo logos passa pelo interrogar-se
sobre a fic•‹o. O pensar o logos explicita o princ’pio de realidade impresso nos
fen™menos de sentido no mundo.
As inquietantes investiga•›es de H.G.Gadamer tomam desta pergunta sobre o
logos seu horizonte de realiza•‹o. Ao refletir sobre a concretude da experincia
ficcional a partir de sua homologia com a estrutura do jogo, Gadamer nos faz ver os
limites da abstra•‹o da conscincia estŽtica quando confrontada com fen™menos de
sentido n‹o reduzidos ˆ inst‰ncia subjetiva em seu aporte ideativo. Raz‹o Ž sempre
raz‹o de algo. A conscincia estŽtica, prescrevendo a autarquia da obra de arte por sua
conforma•‹o ˆ conceptualiza•‹o, quer correlacionar o incremento de sua
intelectualiza•‹o ao preconizar a subjetividade.
A subjetiva•‹o da estŽtica desenha um modus operandi que revela
determinados pressupostos em rela•‹o ˆ processos de referencia•‹o. O que chamamos
de subjetiva•‹o da arte n‹o Ž nem pode ser resumido ˆ egolatria. N‹o estamos falandode postura. A postura Ž a imposi•‹o de um pressuposto. O que est‡ em jogo Ž a
singularidade de um modo de apreender que n‹o se resume a um centro de orienta•‹o
œnico. ƒ a capacidade de dinamizar a raz‹o para algo que n‹o se resuma a
representa•‹o como redu•‹o ideativa. A subjetiva•‹o da arte n‹o quer conhecer o
sujeito envolvido com o que se representa. A excedncia do sujeito n‹o Ž condi•‹o de
entendimento de uma obra. Se conseguirmos fundamentar a realidade de um
fen™meno de sentido que n‹o se resume ˆ proje•‹o ideativa de uma subjetividade,abriremos acesso a uma inteligibilidade poss’vel e palp‡vel que n‹o a do simulcaro -
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um tipo de pensar que pensa mais que o pr—prio pensamento, ao acompanhar o
contexto produtivo de um fazer e as modifica•›es deste mesmo pensar durante este
acompanhamento. Abre-se o acesso a esta dimens‹o do logos que a GrŽcia nos
facultou. Uma Hist—ria da Raz‹o passa pela historicidade mesma da inteligibilidade,
vendo os problemas aos quais se v submetida, o enfrentamento com suas limita•›es
e dificuldades que a possibilitaram. A sofism‡tica conjun•‹o carnal entre vanguarda
art’stica e antifilosofia transforma a vit—ria do simulacro em uma nova ortodoxia.
Mas, em nosso caso, pois, a cr’tica da conscincia estŽtica Ž reafirma•‹o da natureza
heter™noma do logos.
O pensamento de H. G. Gadamer vai encontrar na reflex‹o filos—fica sobre a
obra de arte os limites mesmos da aplica•‹o dos pressupostos que preconizam a
subjetiva•‹o estŽtica. A apreens‹o intelectualista que parte da subjetividade como prŽ-
condi•‹o e horizonte para a efetividade do fato art’stico ganha aqui sua cr’tica.
Gadamer procede a uma cr’tica desta conscincia estŽtica, conscincia esta envolvida
em descrever a unidade da obra de arte a partir da proje•‹o das idŽias da unidade de
um sujeito ideal. A recusa da proje•‹o ideativa estabelece um cap’tulo da Hist—ria da
racionalidade Ocidental. Na experincia da arte encontramos essa impossibilidade da
redu•‹o da realidade da obra a conceitos. A reflex‹o sobre a estŽtica n‹o pode
permanecer aut™noma, desconectada da experincia com o que procura pensar. A
abordagem teorŽtica preconiza a inst‰ncia ideal e abstrata de um sujeito universal que
permanece inc—lume na idŽia que motivaria a representa•‹o. O sucesso e a recusa
dessa conscincia estŽtica podem ser pensados a partir mesmo do modo como se
organiza sua redu•‹o.
Seu ponto de partida resulta nesta afirma•‹o: a representa•‹o Ž igual ˆ idŽiaque eu tenha dela. A representa•‹o se confina a um intermedium que confirma a
motiva•‹o conceptual prec’pua. A representa•‹o n‹o fala de si. Seu suporte
expressivo, sua din‰mica referencial se v dependente de um discurso-base. A
eficincia da representa•‹o Ž o cumprimento de um programa de autosupress‹o de
todo e qualquer obst‡culo figurativo que bloqueia a comunica•‹o e a atualiza•‹o da
motiva•‹o conceptual. A representa•‹o Ž o pr—prio movimento de unifica•‹o.
Entre tantos efeitos desta organicidade do processo representacionaldestacamos a prevalncia da superordena•‹o do movimento de unifica•‹o sobre os
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suportes expressivos. A materialidade da express‹o se constitui como resistncia ˆ
raz‹o cativa de sua eficincia ideacional. A obra, sendo um saber que se imp›e a
partir deste fazer, n‹o pode ignorar as condi•›es de sua realiza•‹o. ƒ preciso buscar a
unidade da obra de arte a partir de sua experincia de efetiva•‹o. A obra permanece
como algo finito, que toma de suas condi•›es de realiza•‹o a matŽria e conteœdo de
sua representa•‹o. Procede a uma atividade sempre vinculante que configura seu
modo de ser integrando suas possibilidades de efetiva•‹o.
A prerrogativa abstratizante, generalista, ao n‹o levar em conta a configura•‹o
da obra em prol da unidade prŽvia idealizada, insere um referendo valorizante na
representa•‹o, de modo a ser justific‡vel somente o conjunto das apercep•›es que
toma deste referendo sua norma e guia. Pois o tornar preponderante este movimento
de unifica•‹o acarreta a hierarquiza•‹o da recep•‹o a esta referncia das referncias.
Desde si a realidade da representa•‹o come•a a ser vista a partir do que a
representa•‹o n‹o seja. De si mesma a representa•‹o s— existe, Ž como reflexo da
idŽia que lhe concede existncia. O interrogar-se da realidade da representa•‹o Ž o
interrogar-se acerca do princ’pio de suficincia que possibilite a obra. Pensar a obra Ž
pensar a unidade de sua representa•‹o a partir do que lhe d‡ coerncia como unidade.
Esse modo de pensar faz com que a obra s— exista como proje•‹o-confirma•‹o de seu
princ’pio intelectual fundamental. A representa•‹o n‹o Ž: ela se fundamenta em algo
diverso dela mesma. O esvaziamento da representa•‹o Ž proporcional ao seu
preenchimento ideativo. A representa•‹o Ž (torna-se) a representa•‹o da unidade de
sua coerncia intelectual.
Gadamer denomina este sistema de pensamento de subjetivismo da estŽtica
(GADAMER 1998:33). A postura intelectual que reduz a existncia da obra a um fato
mental de alguŽm Ž o que aqui est‡ visado. Subjetivismo, como vemos, n‹o Ž a
emocionalidade derramada. Mais do que isso, temos a preponder‰ncia da inst‰nciareflexiva, reflexa como acordo sobre a estrutura•‹o de uma representa•‹o. A
subjetiva•‹o da estŽtica s— pode ser entendida em toda a intensidade de sua influncia
e campo de aplica•‹o se compreendermos a pr‡tica racional que a instaura.
Subjetivismo e racionalidade n‹o s‹o ant’podas,e sim interfaces da mesma atividade
de abstra•‹o.
Gadamer, ao fazer uma cr’tica da conscincia estŽtica, bem caracteriza a
abstra•‹o ideativa que determina tal conscincia. O descentramento operado pelaexperincia da arte faz com que sejam revistas nossas concep•›es de sujeito e de
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racionalidade. Este descentramento, contempor‰neo de uma concreta operatividade
hist—rica, orienta-se contrariamente ˆ generalidade abstrata do organicismo. A
proposi•‹o do questionamento sobre a arte alinha sobre si diversas quest›es outras. A
experincia estŽtica continua como lugar-tenente de uma experincia com o logos,
desenvolvida entre os gregos e que hoje possui a favor de si tanto as artes-cincias-
filosofias em seu paradigma de ruptura e descontinuidade como a banalidade eg—ico-
virtual dos produtos da indœstria cultural, erigidos a modelos niilistas-antropol—gicos.
A cr’tica da subjetiva•‹o estŽtica abre o espa•o para di‡logo com a tradi•‹o frente ˆ
falncia das estratŽgias intelectualistas pautadas em seu reducionismo e generalidade,
promovendo a reorienta•‹o do logos como atividade urgente e necess‡ria.
AntigŸidade e contemporaneidade se aproximam deste urgente compromisso: pensar
o evento que Ž a compreens‹o.
Contrariamente a isto, a conscincia estŽtica alicer•ada no simulacro de um
sujeito abstrato, partilhada na uniformiza•‹o da representa•‹o pela coerncia de uma
inst‰ncia ideativa, desdenha dos contextos de express‹o e da historicidade. A
conscincia estŽtica infletida e refletida na subjetividade da arte defende o que
Gadamer denomina de diferencia•‹o estŽtica. Sendo apenas uma idŽia, Òa obra perde
seu lugar e o mundo a que pertence por se tornar parte integrante da conscincia
estŽtica. Por outro lado, a isso corresponde o fato de que tambŽm o artista perde seu
lugar no mundo.Ó(GADAMER 1998: 155).
Vejamos mais de perto. ƒ preciso entender que a especula•‹o em torno da
obra, tomando-a previamente como reflexo de uma idŽia, difunde a idŽia que se tem
da obra. Substituiu-se o pensar a partir da experincia da obra por representar o que
seja a pr—pria representa•‹o. Esta duplicidade Ž valorativa posto que aponta para a
representa•‹o da representa•‹o o grau de valida•‹o da segunda representa•‹o. O que
se intenta Ž a corre•‹o da representa•‹o por meio de uma representa•‹o depurada.Esta diferencia•‹o que encaminha referendar o que Ž a obra por aquilo que eu penso
que ela seja acarreta eliminar o que a representa•‹o possa ser independentemente de
minha vontade de representa•‹o. A diferencia•‹o estŽtica, ao presumir ser o mundo
pararepresentacional o alvo para o qual se dirigem a representa•‹o e nossa pr—pria
rela•‹o compreensiva do que seja a representa•‹o, determina-se como fundamento
causal do que se representa nesta pararepresenta•‹o.
Aqui se encontra o primordial. A defesa da pararepresenta•‹o Ž a defesa dedeterminadas estratŽgias de inteligibilidade que se consumariam na imagem que se
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tem do que quer que seja o pensamento. O modo como concebemos a representa•‹o, a
idŽia que temos dela e o sucesso desta especula•‹o, colaboram para que a
conceptualiza•‹o do fato mimŽtico-art’stico se torne a tarefa do pr—prio pensamento.
O logos aqui se v investido de uma atribui•‹o que associa a dificuldade de sua
execu•‹o ao poder de sua atua•‹o. O hercœleo esfor•o de substituir o que Ž e existe
por uma pararepresenta•‹o redutora e abstratizante dignifica o poder discricion‡rio
do logos. AtŽ isso e mais ele realiza, o logos.
PorŽm, contra este logro do logos, Gadamer vai demonstrar que h‡ uma
defasagem essencial entre as apercep•›es desvinculantes - e por isso abstratas - dessas
estratŽgias de inteligibilidade e as obras. A partir dessa defasagem, pode-se
demonstrar que pensar Ž tambŽm outra coisa, outro modo de se relacionar com os
eventos. O evento-logos que se abre ap—s a cr’tica da conscincia estŽtica presente na
subjetiva•‹o na arte preconiza a experincia da arte como meio de acesso privilegiado
ˆ diversa prerrogativa de nossas capacidades racionais. O que est‡ em jogo n‹o Ž um
niilismo tido como irracional. O homem sempre tem raz‹o, como dizia Eudoro de
Sousa. O que est‡ em jogo Ž est‡ auto-imagem do sujeito no sucesso da redu•‹o
generalista. O que estamos jogando Ž a ca•a ao logos, seguindo, por que n‹o, o olhar
te—rico de Her‡clito.
Como uma provoca•‹o que de si mesma ganha seu nexo e verdade, Gadamer
procura pensar a arte, a m’mesis, por uma homologia com o Jogo. Ironicamente fala
por outra coisa a coisa mesma que quer falar. O recurso ˆ homologia nos fazer
notabilizar a met‡fora como forma de conhecimento. Mas que uma conota•‹o, a
met‡fora traz em seu ato transpositivo a descontinuidade como fundamento de seu
complexo existencialismo. A homologia, transferindo para a met‡fora o modo deapreens‹o do que se quer compreender, consagra que se estabele•a a
complementaridade entre identidade e diferen•a do que se procura estudar. Jogo e arte
podem ser investigados desde que estejam em rela•‹o de reciprocidade, de mœtua
ilumina•‹o. S— sabemos o que Ž a arte sabendo o que o jogo Ž. ƒ preciso jogar o jogo
da arte e pensar a arte do jogo.
PorŽm, equivoca-se quem queira ver na homologia a apressada analogia. A
convergncia significadora da homologia segue o funcionamento da met‡fora que, aorelevar a co-pertinncia, aponta para a media•‹o, para o nexo que aproxima os
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diferidos. Os diferidos n‹o deixam de existir. Jogo e arte n‹o s— est‹o em compara•‹o
como apontam para o terceiro termo ÒausenteÓ. A homologia entre jogo e o modo de
ser da obra de arte vai nos representar a experincia de ficcionalidade que fundamenta
a ambos.
Sen‹o, vejamos.
Abrupta e estranhamente Gadamer afirma que "o sujeito genu’no do jogo n‹o
Ž a subjetividade daquilo que joga, mas o pr—prio jogoÓ(GADAMER 1998:178). Ou
seja, Ž preciso reconhecer "o primado do jogo em face da conscincia do
jogadorÓ(GADAMER idem). Refutando o ilusionismo referencial do sujeito como
totalidade do ato de jogar, Gadamer opera um rico descentramento que questiona o
estatuto observacional desse fen™meno de sentido t‹o corriqueiro que Ž o jogo.
Imediatamente, quem joga, por jogar, determina o sentido do jogo. Mas se o jogo
fosse igual ao jogador, n‹o existiriam nem jogo nem jogador, pois n‹o havendo
diferen•a entre um e outro, nem um nem outro poderiam existir. A subjetividade n‹o
permanece inc—lume frente ao que participa. O sujeito agora Ž um jogador, adquire
um contexto e n‹o mais prolonga-se em uma abstra•‹o coincidindo consigo mesmo
sempre em qualquer lugar. A participa•‹o do sujeito no jogo produz uma mudan•a em
seu status. O sujeito jogador co-pertence e se vincula com o que ativamente joga.
Jogar Ž vincular, Ž fazer com que a anterioridade do que previamente existia passe a
existir na simultaneidade da co-pertinncia. Se o jogo s— existe sendo jogado e o
jogador s— existe jogando ent‹o o jogo Ž mais que o sujeito que joga o jogo. O jogo
n‹o prescinde do jogador, mas sim do sujeito. O alvo agora se detŽm no que faz o
jogo um jogo, tautologia contempor‰nea do ato de jogar. Se ao jogador compete jogar
o jogo, o jogo ser‡ o movimento de se representar como jogo, de ser um jogo que se
joga. Nenhuma outra justificativa vem em nosso socorro sen‹o a dessa realidade de
jogar o jogo como fundamento da realidade do jogo. Pode estar chovendo, pode osujeito estar gripado ou em crise, pode estourar uma guerra, mas o jogo s— existe em
sua ativa•‹o.
O descentramento exige a tautologia. O jogador adensa sua participa•‹o no
jogo ao jogar. A orienta•‹o passa do jogador para as cont’nuas dificuldades do jogar
que s‹o o saber do jogo. A familiaridade com o jogo torna-se a meta do jogo. O jogo
se representa como jogo. Ele almeja ser jogado. O sujeito n‹o visa a idŽia do jogo. O
jogo precisa ser efetivado como ato, como fazer.
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Prosseguindo, temos um desdobramento util’ssimo de ser verificado. O
descentramento da atividade do jogador para o jogo faz com que colaborem
intimamente a constitui•‹o do jogo como jogo e o saber do jogador como jogador ao
participar desta constitui•‹o. H‡ um claro v’nculo entre a intensifica•‹o do jogo ao se
representar como jogo e a inser•‹o do jogador nesse jogar. O descentramento n‹o Ž
elimina•‹o da subjetividade, e sim inser•‹o dele nesta diferen•a que o jogo Ž. O
jogador s— conhece o jogo quando se torna jogador, quando n‹o Ž uma subjetividade
abstrata. A idŽia que ele tem do jogo e o que o jogo Ž s— existir‹o no ato mesmo de
jogar.
Com isso, entendemos o sentido da ir™nica reflex‹o gadameriana, familiar ˆ
vis‹o te—rica heracl’tica. Se o sujeito do jogo Ž o pr—prio jogo, o jogador n‹o Ž o
sujeito do jogar. Ele n‹o detŽm a completude do que acontece ao representar o jogo
pela idŽia que ele tenha do que o jogo seja. Ele n‹o pode representar o jogo por aquilo
que ele pensa que o jogo Ž. H‡ uma dist‰ncia imposs’vel de ser ultrapassada. A
totalidade do jogo n‹o pode ser encontrada naquilo que dele EU pense. Este Ž o EU
que Gadamer critica e refuta pela exemplaridade do jogo. Frente a fen™menos que
necessitam a modifica•‹o de pressupostos, de colabora•‹o na representa•‹o, uma
inteligibilidade que se abstrai do contexto do ato realizacional n‹o ser‡ competente
para compreender o que ali se efetiva. O jogo como sujeito n‹o Ž um animismo
extempor‰neo. Frente ao que n‹o se tem acesso sen‹o por modifica•‹o, experimenta-
se uma alteridade concreta, n‹o circunscrita ˆ verborragia niilista, redundante e
ensimesmada.
Dessa maneira, adensando o saber do que o jogo Ž, o jogador se adentra em
um saber que n‹o Ž simplesmente um saber sobre si mesmo ao passo que ,
confrontando com o que n‹o Ž ele mesmo, v-se solicitado a compreender o que dele
difere e que depende deste diferir. O sujeito Ž uma posi•‹o de diferen•a e n‹o umaelimina•‹o de distin•›es.
O que o jogador tem acesso ao jogar Ž a n’veis de diferencia•›es
complementares. Com o jogar, o jogador posiciona-se em situa•›es que exigem a
ruptura com a homogeneidade dos fen™menos prescrita pela totalidade de sua
presun•‹o. Estes n’veis diferenciados v‹o constituindo a orienta•‹o do jogador. O
jogador se orienta pela heterogeneidade de n’veis, heterogeneidade contempor‰nea da
diversifica•‹o ˆ qual o jogador Ž submetido. Pois sendo o verdadeiro sujeito do jogo o
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mesmo jogo, "todo jogar Ž um ser jogado"(GADAMER 1998:181). O jogar faz com o
que o jogador participe do jogo e tenha seus atos agora sobredeterminados pelo jogo.
A transmuta•‹o do sujeito em jogador sendo acompanhada do incremento do
saber do jogo por parte do jogador frente ˆ natureza autorepresentativa do jogo vai
possibilitar um segundo descentramento mais radical e conseqŸente que o primeiro. ƒ
o que podemos constatar quando percebemos que "todo representar... Ž um
representar para alguŽm"( GADAMER 1998:184).
Esta abertura para a recep•‹o, esta pendncia imanente nos doa um paradoxo.
Se o jogo Ž o cont’nuo movimento de autorepresenta•‹o, como pode ser que o
espectador consume a representa•‹o?(GADAMER 1998:185). N‹o recair’amos
novamente no esvaziamento da representa•‹o por sua finalidade em algo que n‹o Ž a
pr—pria representa•‹o, atitude fatal para a ficcionalidade sempre provida pelos
conceptualizadores da imagem?
Ao mesmo tempo, reatando os fios que nos ligam com o jogador, podemos
entender esta fun•‹o de recep•‹o como inerente ao jogo. A constru•‹o de orienta•›es
para o jogo n‹o prescinde do jogador. A transforma•‹o do sujeito, atravŽs do jogo, em
jogador apela para a din‰mica personativa de base do jogador. Somente por meio de
um desdobramento personativo Ž que o jogo existe, a partir do momento que o sujeito
Ž um jogador. Em um primeiro momento, frente ˆ autorepresenta•‹o do jogo como
tal, parece que prescindimos do jogador, que perante a prerrogativa do jogo frente ao
jogador ter’amos a morte do sujeito. Mas a’ onde se desconfia deste momento negador
Ž a’ mesmo onde temos uma transforma•‹o do pr—prio jogo. O espectador aqui se
concretiza como segundo descentramento do sujeito e primeiro desdobramento do
jogo. O espectador Ž o outro do jogo. Mas entre jogo e recep•‹o h‡ o duplamente
descentrado jogador. O jogo mesmo se descentra como o sujeito mesmo fizera ao se
transformar em jogador. O fim do jogo culmina na representa•‹o de sua pr—pria poŽtica. Mais que um tripŽ jogo, jogador e espectador, este conjunto de fun•›es
trabalha com a finitude da fic•‹o em promover uma diferencia•‹o tomando de si
mesma as condi•›es de sua possibilidade. A fun•‹o-recep•‹o ratifica a
autorepresenta•‹o do jogo, o jogo como sujeito do jogar, pois o espectador Ž o
desdobramento do jogador, Ž o jogo do jogador consigo, o jogo que faz que o jogador
jogue com a fun•‹o de jogador.
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Somente assim entendemos que "no fundo aqui se anula a diferen•a entre
jogador e espectador"(GADAMER 1998:186). Vemos que o jogo manifesta-se na
base de uma m’mesis dram‡tica que o fundamenta.
Neste momento, ap—s o relevo desses trs momentos (fun•‹o personativa,
autorepresenta•‹o do jogo e fun•‹o recep•‹o) o jogo se consuma como m’mesis
transformando-se em configura•‹o. O jogo Ž o englobante que reœne esses n’veis de
orienta•‹o correlatos da finitiza•‹o de sua express‹o. Cada movimento do jogo em
individua•‹o acarreta uma mudan•a no papel do sujeito-jogador. A ficcionaliza•‹o do
jogo em busca de sua representa•‹o e especificidade passa pela disponibiliza•‹o da
heteromorfose personativa do jogador. A fic•‹o Ž a operacionaliza•‹o dessa tripartide
performance.
Como m’mesis, vemos agora que "aquilo que era antes n‹o Ž
mais"(GADAMER 1998: 188). Atinge-se a correla•‹o conjunta entre referencia•‹o e
movimento do jogo mesmo. O movimento do jogo, atualizando altera•›es da
orienta•‹o do jogador para o pr—prio movimento do jogo, constitui-se no pr—prio
referente do jogo. A sua realidade Ž a realidade de sua representa•‹o. O que existe
agora Ž o jogo, irrevers’vel momento do pr—prio jogar. "Na representa•‹o do jogo
resulta o que Ž"(GADAMER 1998:190). Esta realidade da representa•‹o passava
desapercebida para a turba an™nima em volta de Her‡clito, enquanto ele jogava dados
de ossinhos com as crian•as (HEIDEGGER 1998:26).
Podemos compreender o logos do jogo e, disso, o logos como jogo.
Compreender o jogar Ž apreender as raz›es de uma raz‹o manifestando-se em um
interc‰mbio rec’proco que toma do fazer a realidade de seu expressar. Este fazer se
mantŽm e se prop›e diretamente relacionado com a transforma•‹o da subjetividade.
Porque h‡ a promo•‹o de um saber, um saber que n‹o se confina ˆ familiaridade do
sujeito ao que se defronta com ele. Um saber que convoca outras capacidades alŽm daredu•‹o do que Ž ou existe a uma idŽia. O jogador ter‡ que aprender o jogo, vai ter de
jogar,vai ter de figurar, realizar a m’mesis.
Indubitavelmente, no fazer, havendo o fazer-se do sujeito, n‹o h‡ mais o uso
da inteligibilidade como esquematiza•‹o prŽvia das a•›es e elimina•‹o da
experincia. N‹o se pode jogar o jogo sem pensar o jogo, o jogo como configura•‹o
que possui sua poŽtica. A realidade do jogo Ž a de sua representa•‹o como jogo.
Desta maneira, a obra de arte, a m’mesis Òtem seu genu’no ser n‹o separ‡velde sua representa•‹o e que na representa•‹o surge a unidade e mesmidade de uma
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configura•‹oÓ(GADAMER 1998: 203). ƒ para a representa•‹o vista agora como
disponibilidade ficcionalizante que o logos se dirige. No acontecer da arte, medita-se
a media•‹o de uma realidade que toma forma e se demonstra como tal na medida em
que h‡ a correlativa modifica•‹o da subjetividade para o mundo da obra. O que se
representa Ž a concretiza•‹o do horizonte delimitativo e a possibilidade da experincia
de acesso ˆ esta realidade. O logos aqui Ž uma escuta que asculta este fazer. Para
compreender a fic•‹o, inserindo-se como part’cipe da formatividade da obra, o sujeito
necessita pensar esta escuta, apreender esta vontade figuradora que parte de uma
diferen•a imposs’vel de ser ultrapassada, o intervalo entre o mundo da obra e sua
antecedncia frente ao mundo da recep•‹o.
Melhor se entende, pois, o sentido da cr’tica da conscincia estŽtica
operacionalizada por Gadamer na homologia entre arte e jogo se avistamos a poŽtica
da fic•‹o implicada em sua descri•‹o do jogo. A dimens‹o aut‡rquica e privativa da
conscincia estŽtica, buscando uniformizar a representa•‹o pela rela•‹o do
representado ˆ sua esquem‡tica enforma•‹o conceptualizante, oblitera esta poŽtica. ƒ
somente ultrapassando os modos de referncia desta conscincia que se pode ascultar
a fic•‹o, a obra de arte. A diferencia•‹o estŽtica toma a representa•‹o como um prŽ-
dado, n‹o se interrogando sobre a faticidade do estar-a’ como representa•‹o, do
mesmo modo que a platŽia de Her‡clito n‹o tomava conscincia de nem se
relacionava com a pluralidade de n’veis-fun•›es-atos que engendram um imagin‡rio.
A homologia jogo-arte nos faculta a heterogeneidade envolvida na complexa
experincia temporal da fic•‹o. A dura•‹o do imagin‡rio constitui-se na exibi•‹o
deste acontecer plural(GADAMER 1998:209). O que se representa Ž mais do que se
apresenta. H‡ a indissolœvel diferencia•‹o e co-pertinncia entre representado e
representa•‹o. O que se apresenta monitora sua inteligibilidade. O fato Ž fator de
tornar-se. N‹o h‡ a antecedncia da idŽia no processo de representa•‹o. O feitomedeia seu fazer. Esta dupla perten•a, faces da mesma realiza•‹o, n‹o pode ser
avistada atravŽs de estratŽgias que tomam a obra como pretexto para seus coment‡rios
e que n‹o cumprem atŽ seu termo a teleologia ficcional da obra. A m’mesis reivindica
seu logos.
Esta fus‹o da idŽia com o ato pontua cada ato como antecipa•‹o do sentido de
seu acontecer. Declara ser o jogo, antes que a consuma•‹o de uma signific‰ncia
abstrata de uma situa•‹o, uma situa•‹o-roteiro, uma cena que efetiva o horizonte de possibilidades de sua realiza•‹o. Seu fundamento n‹o Ž a tematiza•‹o de um prŽvio
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no qual o que se realiza Ž a proje•‹o integral, un’voca e unilateral de seu pressuposto
caracterizador. Como situa•‹o-roteiro, oferece-se uma limita•‹o que especifica o
horizonte de sua disponibilidade e este disponibilizar Ž sua teleologia. Veja-se esta
natureza insubstancial do jogo mas nem por isso menos palp‡vel e ÒrealÓ. Sendo uma
orienta•‹o de realiza•‹o o jogo efetiva-se como estrutura apelativa que ganha sua
referencia•‹o na correlatividade da participa•‹o. O jogo mesmo Ž o englobar da
representa•‹o com esta correlatividade. Esta abertura orientadora marca
profundamente quem dela participa. A participa•‹o existe porque h‡ orienta•‹o para o
participar. O jogo radicaliza esta finita inst‰ncia de sentido inscrita na estrutura
pressupositiva de nossa compreens‹o. A universalidade da compreens‹o toma forma
no jogo como um compreender que representa a pr—pria compreens‹o. O jogo existe e
Ž em virtude da conex‹o entre estrutura da compreens‹o e estrutura da fic•‹o que ele
se individualiza128. O jogo atualiza o modo de ser de sua compreens‹o como
experincia metaficional.
Desta forma, aquilo que era uma rela•‹o entre jogo e jogador come•a a fazer
mais e melhor sentido. Ultrapassando um binarismo metaf’sico, impresso no velho
problema de sujeito-objeto, suporte da diferencia•‹o estŽtica, a ficcionalidade que se
vislumbra na homologia jogo-arte exige um terceiro termo como forma de se evitar
que se continue rondando o tema sob o viŽs da subjetividade, ou de uma contra-
subjetividade. A extensividade multinivelada do jogo, fundindo necessariamente sua
antecipa•‹o orientadora e sua presentifica•‹o, questiona a constru•‹o de referentes e
reivindica a correlatividade como fun•‹o integrante de sua realiza•‹o. A fic•‹o, como
se pode notar em uma poŽtica do jogo, toma do seu figurar, do seu fazer-se fic•‹o os
suportes de orienta•‹o de seu acontecer. O evento-fic•‹o Ž a concretiza•‹o de seus
suportes orientacionais. ƒ isso que possibilita a fic•‹o. Sendo uma confirma•‹o da
finitude humana, o ato imaginativo acopla seu significar ao seu configurar. Participarde uma fic•‹o Ž participar de sua configura•‹o, de sua orienta•‹o expressiva. Toda
fic•‹o Ž, pois, uma poŽtica e uma paidŽia. Ela orienta roteirizando sua formatividade.
A raz‹o criativa de uma obra Ž a pr—pria obra. O fazer-se da obra Ž a doa•‹o de um
logos, seu pr—prio logos. A obra Ž uma media•‹o de seu pr—prio acontecimento,
Sendo a teleologia da obra fazer-se fic•‹o, Òtransformar-se em configura•‹oÓ,
entende-se porque o jogo Ž representa•‹o, o que acarreta o primeiro descentramento
128 MOTA 1992.
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do sujeito. Ser representa•‹o e n‹o confinar-se a autarquia da conscincia
individualizada emergem como condi•›es mesmas desta media•‹o operada pela
m’mesis. Para haver media•‹o Ž preciso que haja diferen•a. A media•‹o que o evento
fic•‹o possibilita n‹o Ž transparente comunica•‹o de algo que existia antes. A
media•‹o reœne os d’spares, exibe seus nexos. Sendo representa•‹o, redefine-se o
estatuto do conjunto de referncias, o sentido do evento, reseultando que se tangencie
o que se apresenta. Trata-se de evitar a atomiza•‹o do acontecido, sonegando sua
modaliza•‹o singularizadora. O jogo como representa•‹o obriga-nos a pensar a
estreita rela•‹o entre o sentido de um acontecer e o acontecimento de sentido ali
configurado. Disto, temos a sensibilidade para perceber a pluralidade de n’veis pelas
quais se constitui esta realidade-realiza•‹o do evento.
Tal ultrapassagem compreensiva do dado como reflexo de uma generaliza•‹o
apressada releva a formatividade do que se representa. Sabendo que o que se
representa medeia sua contingncia expressiva, compreende-se o que orienta o jogo.
Partimos do questionamento da univocidade do real e da unilateralidade de sua
apresenta•‹o. Desde j‡ o car‡ter de representa•‹o difunde o modo de recep•‹o. O
descentramento nos p›e diante de e defronte ˆ recusa da diferencia•‹o estŽtica. O
descentramento Ž apan‡gio da domin‰ncia de orienta•‹o para a configura•‹o, para o
relevo dos suportes expressivos. Aqui, ao n‹o se reduzir a representa•‹o ˆ proje•‹o de
uma inst‰ncia ideativa, coloca-se em jogo o modo de referncia da media•‹o ficcional
da arte. O descentramento n‹o Ž uma elimina•‹o da subjetividade do processo de
representa•‹o mas refor•o do horizonte ficcional como pressuposto para a realiza•‹o
da recep•‹o. N‹o Ž contra o sujeito que a reflex‹o gadameriana se erige: mas contra a
conceptualiza•‹o do fato art’stico por sua referncia a um regime de inteligibilidade
que n‹o leva em conta as exigncias de sua singularidade ficcicional. A singularidade
ficcionalizante do jogo, propondo-se e realizando-se como representa•‹o, exige quedela participe um logos conectado com esta transforma•‹o em configura•‹o. Eis um
limite-limitante da obra de arte: o que ela Ž s— se compreende quando se experimenta
seu diferencial configurador. A possibilidade ficcicional Ž a efetividade realizacional
do jogo-obra.
A aten•‹o, ent‹o, para a orienta•‹o expressiva da obra, acarretando o
descentramendo do sujeito e da reorienta•‹o do modo como entender o jogo,
desemboca na inser•‹o do sujeito na estrutura de configura•‹o do que se representa.O sujeito Ž obra do jogo ao cumprir seu papel de jogador quanto mais se inscreve na
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estrutura da obra. Deste modo, pode-se pensar que a obra j‡ antecipou o horizonte do
jogador ao fornecer o horizonte de sua poŽtica. A poŽtica do espet‡culo, enfim, torna-
se a poŽtica do espectador. Sendo o jogo a realiza•‹o de seu diferencial expressivo,
suas possibilidade concretas de orienta•‹o, ent‹o o jogo tem seu logos, sua teoria, seu
modo de ver, sua poŽtica, sua raz‹o criativa, sua recep•‹o. O jogo Ž ao mesmo tempo
representa•‹o e espet‡culo, Ž obra e recep•‹o. A cria•‹o antecipa a imagem de sua
recep•‹o ao representar-se. Toda representa•‹o, sendo exterioriza•‹o que demarca por
seus suportes expresssivos seu processo referencial, desde j‡ Ž recep•‹o. N‹o
confundir este fato com a uma ditadura de efeitos. Mas pensar esta d’ade espet‡culo-
representa•‹o como extens‹o da materialidade vinculante do ato ficcional, da
modela•‹o mimŽtica que, ao se expressar, atualiza sua condi•‹o de
produ•‹o/recep•‹o. Ver a obra se torna pensar a representa•‹o na singularidade
ficcional que a possibilita. O que de si mesmo se excede como fator de rastro concede
a forma do sentido.
ƒ que a conscincia estŽtica, em sua abstra•‹o, n‹o pensa a obra em sua
teleologia representacional. Da’ faz repercutir uma m’mesis derivativa que v no
espectador a inst‰ncia a posteriori, apassivada, mero res’duo do processo. Essa
conscincia sem nenhuma conscincia estŽtica, mantendo a recep•‹o fora da fic•‹o,
somente sabe aproximar a representa•‹o do pœblico trabalhando com pressupostos de
identifica•‹o entre palco e platŽia, eliminando o diferencial expressivo da obra.
Por isso a din‰mica personativa da obra precisa ser integrada ˆ m’mesis, uma
teoria da fic•‹o que d o contexto expressivo da experincia do sujeito com a obra.
Desde j‡ a singularidade do evento ficcional, visto como representa•‹o e
descentramento do sujeito, reivindica uma m’mesis dram‡tica que leve em conta a
transforma•‹o em configura•‹o do jogo levada ao seu extremo. Cremos que Ž na arte
dram‡tica que encontramos uma poŽtica como situa•‹o-limite a qual, frente aos problemas e solu•›es que nos coloca, consegue melhor nos auxiliar nessa provocativa
cr’tica de Gadamer ˆ conscincia estŽtica, cr’tica que parte da 'recupera•‹o' da
experincia do logos. A arte dram‡tica se converte agora em poŽtica da fic•‹o. E o
teatro em uma experincia metaficcional.
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3- O DRAMA COMO METAESTƒTICA
A homologia entre jogo e arte utilizada por Gadamer para apresentar a
defasagem entre as estratŽgias de inteligibilidade pautadas na diferencia•‹o estŽtica e
a experincia efetiva da fic•‹o nos encaminham para o dispositivo cnico. A
promo•‹o de atividade de orienta•‹o de sentido como representa•‹o vinculada ˆ
diferencia•‹o da recep•‹o que o jogo difunde, encontra seu pleno existir e proceder na
arte dram‡tica. Esta comparece, pois, como metaestŽtica.
O dispositivo cnico atualiza o movimento de autorepresenta•‹o do jogo,
movimento que desenha a integratividade do receptor ao jogo mesmo. Assim como o
jogo, a fic•‹o dram‡tica se concretiza como modaliza•‹o da referncia, incidindo na
modifica•‹o de quem participa dela. A dificuldade de ver o processo de
autorepresenta•‹o da arte est‡ diretamente relacionada com os h‡bitos pelos quais
pensamos a fic•‹o. Ao invŽs de pensar a fic•‹o como fic•‹o, como ela age sobre
nossos pressupostos de organiza•‹o do real, seguimos na maioria das vezes a
diferencia•‹o estŽtica e n‹o nos propomos a compreender a correla•‹o entre
especificidade imagŽtica e participa•‹o colaborativa que a obra de arte pressup›e e
realiza.
A autorepresenta•‹o, antes de ser uma autarquia, toma de sua diferen•a em
rela•‹o a uma conscincia prŽ-dada, o tempo de sua efetiva•‹o. Pois esta
descontinuidade entre obra e recep•‹o Ž que torna poss’vel haver a obra como
integra•‹o da receptividade ˆ representa•‹o. A obra Ž assim, desde j‡, diagrama da
participa•‹o em um imagin‡rio que se prop›e ˆ compreens‹o. A autorepresenta•‹o
demonstra a co-pertinncia entre a constitui•‹o da obra e a constitui•‹o de quem dela
participa. Sendo que a obra medeia este co-pertinncia, a autorepresenta•‹o Ž a
presen•a destes processos de intersubjetividade. ÒO n‹o idntico Ž a condi•‹o para o
efeito que se realiza no leitor como a constitui•‹o do sentido do textoÓ( ISER
1996:87)
Podemos ver a m’mesis dram‡tica como espet‡culo que integra um espectador
ao mundo de referncia da obra, constituindo o ‰mbito do ver pela colabora•‹o com o
sentido que se efetiva. Voltado para atos personativos que concretizam este
espet‡culo, esta m’mesis representa sua fic•‹o pela media•‹o do espa•o-tempo da platŽia. N‹o Ž em v‹o que se chama Òilus‹o cnicaÓ o meio de acontecer do
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espet‡culo. O que n‹o Ž ou existe sustenta-se no prec‡rio fio de sua exibi•‹o. Dessa
maneira, para algo passar a existir, Ž preciso que se torne condi•‹o mesma de seu
pr—prio acontecer. Tudo o que se v guarda este duplo direcionamento de efetivar a
realiza•‹o do espet‡culo e de se tornar distingu’vel para uma recep•‹o. O ilus—rio da
ilus‹o cnica n‹o Ž o cancelamento do mundo de referncias prŽvias da platŽia, o que
direcionaria o espet‡culo para uma morte improdutiva, esvaziamento. O ilus—rio est‡
na estrutura apelativa do espet‡culo que representa orientando sua recep•‹o. Esta
estrutura apelativa processa uma presen•a, uma continuidade estruturada por atos
descont’nuos.
A arte dram‡tica Ž o acontecer de uma presen•a que dimensiona a dura•‹o de
seu acontecer. Como nada Ž dado de uma vez s—, h‡ o constante reprojetar
(GADAMER 1998:482) que distende esta presen•a. Efetivando-se na (re)orienta•‹o
das expectativas, essa presen•a se esfor•a por individualizar as possibilidades de sua
configura•‹o. Da’ temos a cena como forma deste esfor•o. Para possibilitar Ž preciso
configurar. A presen•a, para durar, medeia a configura•‹o de sua referncia,
predelineando a recep•‹o que dela se tenha.
A cena Ž o representar da presen•a. A cena mesma Ž a presen•a de sua
formatividade. Quem v a cena defronta-se com o que o espet‡culo Ž e com o que o
espet‡culo faz para ser espet‡culo. A cena remete para a escolha de sua forma e de
sua recep•‹o. Como operador estŽtico, a cena singulariza a fic•‹o que se representa.
Note-se que a cena expondo-se como perspectivada concretiza•‹o de seu
modo de ser n‹o apenas evidencia integrar um espet‡culo como tambŽm a
compreens‹o do que se representa. ƒ para a produtividade da compreens‹o que se
orienta esta exibi•‹o(GADAMER 1998: 444). O espa•o aberto, o comparecer diante
dos outros, a oferta de imagens n‹o pode ser apreendida sen‹o no propiciar uma
situa•‹o. A cena Ž o situar da presen•a frente ao indiferenciado do que n‹o Ž aquiloem que agora se tornou. A cena, pois, proporciona o encontro com a sua
singularidade. Em todo caso s— se participa interagindo com o diferencial ficcional
que esta presen•a faz tornar representa•‹o.
A cena, pois, Ž este ÒentremeioÓ(GADAMER 1998:442), entreato que j‡ desde
si Ž seu campo de expectativas: a expectativa de ser compreendida como sendo aquilo
que Ž.
ƒ para a autorepresenta•‹o do espet‡culo que a cena aponta como ato possibilitador de referncia e orienta•‹o. Buscando gerar a continuidade da presen•a,
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oferece a tens‹o que lhe Ž intr’nseca, tens‹o entre a extens‹o da presen•a e a sua
pr—pria extens‹o. A cena, ao situar o espet‡culo, efetiva sua pr—pria presen•a. Este
paradoxo advŽm da realiza•‹o da cena, em fun•‹o de sua alteridade como processo
colaborativo. Singularizando a presen•a, a constru•‹o da presen•a do espet‡culo
esbarra na pr—pria situa•‹o de ser cena. Somente quando se cumprem este dois
direcionamentos ( ser cena e ser presen•a) Ž que o espet‡culo pode passar a existir
pois s— Ž espet‡culo como presen•a. A m’mesis dram‡tica resolve esta quest‹o
assumindo o problema, fazendo que a cena mesma seja a representa•‹o dessa tens‹o.
A cena Ž esta situa•‹o que exibe sua formatividade para perdurarar. A cena Ž situa•‹o
finita e Ž somente por situa•›es finitas, descont’nuas Ž que temos a presen•a e o
espet‡culo. A necessidade de uma prefigura•‹o que determina a autorepresenta•‹o do
espet‡culo exige que a cena ela mesma seja um compreender como situa•‹o, como
orienta•‹o de sua singularidade. Toda cena Ž a efetiva•‹o de sua descontinuidade, de
sua configura•‹o. Pois toda cena Ž interpreta•‹o da configura•‹o do espet‡culo, Ž a
presen•a do espet‡culo mesmo. As cenas fazem o espet‡culo, mas o espet‡culo n‹o Ž
a soma das cenas nem as cenas s‹o reflexos parciais da idŽia-espet‡culo. A din‰mica
gerativa do espet‡culo, impressa na busca de sua autorepresenta•‹o, exige a cena
como ato descont’nuo, multiperspectivador e configurado. ÒTodo compreender acaba
sendo compreender-seÓ(GADAMER 1998: 394).
Desse modo, observa-se a complexidade do processo de autorepresenta•‹o da
fic•‹o dram‡tica que necessita de cenas, v‡rios n’veis de realidade para se concretizar,
invalidando seu acesso por meio da conscincia estŽtica a qual toma como
fundamento de sua intelec•‹o o aspecto ideativo do fen™meno que quer definir. A
dimens‹o de integratividade perpassa essa complexidade. A redu•‹o ideativa n‹o
adentra esta integratividade. A m’mesis dram‡tica aponta o reconhecimento de outro
modo de individuar um sentido, partindo da insofism‡vel alteridade da obra(GADAMER 1998:224) sua autorepresenta•‹o. A m’mesis dram‡tica radicaliza a
realidade finita humana que s— podemos conhecer a partir do di‡logo com aquilo que
n‹o sabe o que Ž. No relevo de sua singularidade como referncia e orienta•‹o, a cena
confirma o car‡ter metaestŽtico da fic•‹o. A fic•‹o, como vimos no jogo, quanto mais
se representa mais exige de sua recep•‹o, mais exige que a recep•‹o compreenda a
obra.
Os atos personativos que irrompem em cena confirmam o reconhecimento doconhecimento da ficcionalidade produzida. Da mesma maneira que no jogo a
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atividade de autorepresenta•‹o repercute em uma din‰mica participativa, no drama
atos personativos atualizam o processo de recep•‹o e orienta•‹o da referncia
ficcional. Os atos personativos em palco realizam n‹o s— a veicula•‹o da cena como
sua construtividade. As personagens tm a dualidade de figuras da representa•‹o e
interpreta•‹o dos acontecimentos representados. A’ que entendemos bem essa
exigncia de atos de recep•‹o, esse orientar-se da cena para um audit—rio em
potencial. A fun•‹o para do jogo e da arte determina o acabamento da configura•‹o.
Sendo a teleologia da fic•‹o instaurar sua raz‹o criativa, sua orienta•‹o em prol da
formatividade que lhe Ž inerente, a predisposi•‹o para a recep•‹o Ž a determina•‹o
das referncias em sua modaliza•‹o, Ž a doa•‹o das condi•›es de inteligibilidade da
pr—pria recep•‹o. A dualidade obra/recep•‹o Ž incorporada dentro do pr—prio fazer. A
poŽtica de uma obra Ž a compreens‹o de como suas condi•›es de produ•‹o e recep•‹o
aparecem inevitavelmente interligadas. Na m’mesis dram‡tica representam-se n‹o s—
cenas que constr—em o espet‡culo. As cenas individualizam o diferencial expressivo
do espet‡culo. E os atos personativos interpretam a orienta•‹o desse diferencial.
Traduzem o movimento de autorepresenta•‹o na situa•‹o de recep•‹o.
Novamente vemos como a fic•‹o, nosso modo de operar com processos de
referncia e orienta•‹o dessas referncias, estando intimamente impressa em nossa
condi•‹o humana finita, impede a aplica•‹o de pressupostos da diferencia•‹o estŽtica
na experincia ficcional. O que h‡ e o que existe Ž impossibilidade do imediato. A
autorepresenta•‹o do jogo, como vemos na finitiza•‹o do espet‡culo por meio da
cena, atualiza uma presen•a que toma de suas condi•›es de express‹o a dura•‹o de
seu evento. A cena n‹o Ž algo imediata e frontalmente situado para seu espectador.
Posteriormente, assim como para ativamente participar do jogo o jogador precisa
conhecer o que o jogo Ž, os atos personativos em cena medeiam para a platŽia o
imagin‡rio que vai ser representado. Perpassa e transpassa a configura•‹o o tempo doaudit—rio, o interagir com a din‰mica personativa presente na estrutura mesma do
espet‡culo.
PorŽm, esse predelineamento da recep•‹o de modo algum reproduz a
monocausalidade diretiva da fun•‹o autoral sobre a passividade do audit—rio. Toda
m’mesis Ž um problema a resolver. Seu acabamento passa pela sua referencia•‹o. A
prefigura•‹o da receptividade Ž o que possibilita a intera•‹o entre pœblico e
espet‡culo ao propor um horizonte, uma configura•‹o que ser‡ a representa•‹omesma desta reciprocidade. Um evento dram‡tico n‹o se confina no representado. A
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m’mesis dram‡tica Ž o espet‡culo do encontro entre uma fic•‹o que se demonstra
como fic•‹o e que exige ser compreendida como fic•‹o que ela mesma Ž.
No drama temos um duplo distanciamento da recep•‹o. Contraditoriamente, a
frontalidade n‹o Ž apagamento do diferencial expressivo, mas sua visibiliza•‹o. Em
cena, atos personativos exp›em os suportes expressivos que formam a compreens‹o
do que acontece. O drama contextualiza essa exposi•‹o. O drama mesmo Ž a
representa•‹o desta contextura. O espet‡culo se dirige para um pœblico, mas um
pœblico que vai se tornando pœblico deste espet‡culo e n‹o de outro - primeiro
distanciamento. O pœblico Ž prefigurado nos atos personativos - segundo
distanciamento. A m’mesis dram‡tica, pois, radicaliza a autorepresenta•‹o do jogo ao
trabalhar com este duplo distanciamento da recep•‹o que nada mais Ž que a
necessidade de uma exposi•‹o efetiva de uma fic•‹o. A presen•a em um presente
atual que a m’mesis dram‡tica realiza choca-se ao mesmo tempo com a singularidade
de sua espec’fica produtividade. Por isso s‹o imprescind’veis mais suportes que
atingem a orienta•‹o do audit—rio. O trabalho com atos personativos, onde cada
personagem Ž uma dualidade palco/cena, reduplica a tens‹o entre obra/recep•‹o. Cada
ato personativo Ž uma cena, Ž o drama mesmo dessa tens‹o entre conhecimento e
compreens‹o da singularidade configurativa da obra. Assim como o espet‡culo Ž a
exposi•‹o do drama de sua legibilidade, de seu logos, da mesma forma o personificar
Ž atualizar essa compreens‹o de sua realidade. Toda personagem Ž uma media•‹o
imaginativa, relacionando a cena com sua orienta•‹o para alguŽm. Mas este alguŽm
precisa interagir com essa fun•‹o para ser integrado ao espet‡culo. Melhor: este
alguŽm precisa se concretizar para ser alguŽm. Contraditoriamente, e nem tanto, Ž a
fic•‹o quem concretiza nossas referncias.
Chegamos a uma fenomenologia da experincia dram‡tica que nos doa o
verdadeiro modo de ser de sua representa•‹o que Ž sua dimens‹o metaestŽtica. O quemantŽm e faz durar a presen•a e a cena Ž constru•‹o dos suportes expressivos da
recep•‹o. A m’mesis dram‡tica Ž presen•a de um compreender que se configura.
Configurando-se, prefigura sua compreens‹o. Confirma o car‡ter antecipat—rio de
nossa vivncia cognitiva. Dramatizar Ž representar o horizonte de inteligibilidade dos
acontecimentos. Todo acontecer, para ser compreendido, precisa ser dramatizado. Na
m’mesis dram‡tica encenam-se as possibilidades de conhecer, pois quem conhece
reconhece-se fadado a compreender a configura•‹o do que se defronta consigo. S—
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existe sujeito como participante dessa situa•‹o dram‡tica. A compreens‹o possibilita-
se na situa•‹o dram‡tica que a efetiva.
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4- LUIGI PAREYSON E A ANçLISE DA EXPERIæNCIA ESTƒTICA:
DO PENSAR O PENSAMENTO PARA O PENSAR O FAZER.
A demanda por contextos tem atingindo o fazer art’stico de tal modo que o
processo criativo se efetiva como fonte para compreens‹o deste fazer.
A partir dessa opera•‹o intelectual, podemos observar a passagem de uma
metaf’sica da arte para uma an‡lise da experincia estŽtica129. Esta passagem se
constitui no emblema do projeto filos—fico do pensador italiano Luigi Pareyson, que
busca redefinir o campo de estudos da estŽtica em fun•‹o da incorpora•‹o de novos
objetos e problemas enfatizados pela produ•‹o art’stica moderna130.
Essa passagem da metaf’sica para a materialidade reflexiva da arte procura
ultrapassar a abstra•‹o da conscincia estŽtica, a qual H-G. Gadamer caracterizou
como nfase absoluta nos aspectos mentais da arte, isolando o feito de sua contextura
processual131.
Em raz‹o de uma outra postura e de diferentes modos de investiga•‹o, pois, a
estŽtica n‹o se encerra mais dentro de sistemas filos—ficos e a racionalidade da arte
pode ser enfrentada a partir da especificidade de suas ocorrncias, proporcionando o
que W. Iser chama de Ôressurgimento da estŽticaÕ. Neste ressurgimento, o estŽtico
deixa se determinar por estar Òsempre associado a alguma coisa que o Ôsi mesmoÕ,
seja essa outra coisa o sujeito, o belo, o sublime, a verdade ou a obra de arteÓ para se
efetivar como Ôopera•‹o modeladoraÕ, um apelo que incita Ò ˆ a•‹o, na qual os
sentidos corporais tendem a obter vantagem sobre os mentaisÓ132.
De forma que a proposta de Luigi Pareyson se fundamenta no encontro da
emergncia da produ•‹o moderna de arte com o questionamento da abstra•‹o da
129 L. Pareyson. EstŽtica. Teoria da formatividade. Vozes, 1993, p.11.Doravante ES.
130 Para tanto, ao invŽs de citar os tradicionais nomes da metaf’sica estŽtica,Pareyson fundamenta sua proposta nas Ò observa•›es de Poe, Flaubert, Valery,Stravinski e muitos outros semelhantes eram um est’mulo para estudar o car‡tercompositivo e construtivo, calculado e improvisador, ao mesmo tempo, da atividadeart’stica.Ó ES,10.
131 GADAMER 1998:147-173.132 W. Iser Ò O ressurgimento da estŽticaÓ in ƒtica e estŽtica, Zahar, 2001:35-
49.
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conscincia estŽtica da tradi•‹o metaf’sica. A impossibilidade de essa produ•‹o ser
interpretada pelas categorias estŽticas metaf’sicas engendrou a teoria da formatividade
de Pareyson.
Em primeiro lugar, decorrente dessa impossibilidade, o que est‡ em xeque Ž a
quest‹o do a apriori. Diante da concretude irredut’vel do fazer art’stico, torna-se
invi‡vel Òtraduzir artificiosamente uma estŽtica de um sistema filos—fico pressuposto,
independentemente da experincia estŽtica, como se o fil—sofo pudesse enquadra os
fen™menos da arte no leito de Procusto de uma filosofia pronta de antem‹oÓ133.
Ou seja, a mudan•a de foco do intŽrprete acarreta mudan•a nas estratŽgias
interpretativas. Ao invŽs de aplicar a arte um arsenal de quest›es e defini•›es
previamente estipuladas, inverte-se e subverte-se este esquema cognitivo para a
nfase na atualidade e imediaticidade de um contexto particular. Os produtos estŽticos
se apresentam como oportunidade de corre•‹o de uma c™moda situa•‹o interpretativa
genŽrica e absoluta e sua pretensa atribui•‹o totalizante de sentido a feitos art’sticos.
Assim, o enfrentamento de obras art’sticas acarreta a explicita•‹o dos limites e
da configura•‹o da atividade interpretativa. Ao interpretar, o intŽrprete Ž revelado.
Essa reflexibilidade do ato interpretativo Ž exibida neste enfrentamento em raz‹o da
operacionalidade mesma do fazer art’stico. Tanto quem interpreta uma obra, tanto
quem realiza ou executa, todos exercem atividades que se concretizam em
Òopera•›es, isto Ž, em movimentos destinados a culminar em obras134.Ó
Assim, quem investiga uma obra, um fazer, posiciona-se em movimento
complementar ao que investiga. Logo, sem as defesas de esquemas a priori, o
intŽrprete se v confrontado em sua interpreta•‹o com atribui•›es daquilo mesmo que
investiga. E quanto mais ele se detŽm nessa inst‰ncia reflexiva de sua investiga•‹o,
mais a atividade de interpreta•‹o transforma-se em um mœtuo esclarecimento de
quem pensa algo que foi feito e de algo feito que se completa a partir de sua recep•‹o.Ao fim, a compreens‹o da obra Ž uma provoca•‹o para a a•‹o.
ƒ neste ponto que a passagem da metaf’sica para a experincia estŽtica Ž
melhor entendida. O que est‡ sendo visado aqui Ž o nexo, o v’nculo entre intŽrprete e
obra. A racionalidade da obra se encontra diretamente relacionada com a
racionalidade do intŽrprete. N‹o se pode atribuir a uma inst‰ncia aquŽm ou alŽm
desse circuito intŽrprete-obra o que se desenvolve durante e atravŽs a atividade de
133 ES,18.134 ES,20.
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interpreta•‹o. ƒ a orienta•‹o interativa da atividade de interpreta•‹o que situa e
contextualiza tanto o fazer o intŽrprete quanto a compress‹o da realiza•‹o da obra.
Cabe ao intŽrprete interrogar e acompanhar o fazer da obra para empreender a
realiza•‹o de sua compreens‹o mesma deste fazer.
Tal relevo dado ao fazer, direciona a compreens‹o estŽtica para atos, para o
que Pareyson chama de formatividade - um fazer, atos de realizar que apontam para
esse realizar. A forma aqui Ž a concretude da opera•‹o art’stica135. E as obras
art’sticas s‹o produ•›es que colocam a meta do fazer como cumprimento em toda a
sua extens‹o e excelncia, como uma hipŽrbole de atos: Ò a opera•‹o art’stica Ž um
processo de inven•‹o e produ•‹o, exercido n‹o para realizar obras especulativas ou
pr‡ticas ou sejam l‡ quais forem, mas s— por si mesmo: formar por formar, formar
perseguindo somente a forma por si mesma: a arte Ž pura formatividade.136 Ó
Ora, da absoluta determina•‹o por algo fora do processo criativo, como se
pode depreender da defini•‹o mentalista e aprior’stica presente na metaf’sica da arte,
passamos para uma absoluta tautologia deste processo, na qual fazer e a forma s‹o o
meio e o resultado mesmo.
Ser‡ que absoluto responde a absoluto? Nesta tautologia, podemos divisar
tanto uma resposta ˆ tradi•‹o alienante da metaf’sica estŽtica quanto um redobrado
reconhecimento da inst‰ncia produtiva da arte. Para tanto, Pareyson, na medida em
que aprimora sua argumenta•‹o, vai deixando mais claro o que Ž esta Ôpura
formatividade.Õ Durante este aprimoramento, o processo criativo em suas diversas
etapas e fun•›es Ž analisado e se converte no horizonte da experincia estŽtica,
mostrando a diferen•a de Pareyson quanto aos absolutos da metaf’sica art’stica. Se
nesta metaf’sica, as obras s‹o pretextos e exemplos de uma especula•‹o prŽvia e,
ent‹o, est‹o desvinculadas de seu processo produtivo, na estŽtica da formatividade, ao
contr‡rio, s‹o justamente as etapas do processo produtivo que vm em primeiro plano.Dentro da concretude do processo criativo ou formatividade da obra, temos o
princ’pio da indissolubilidade entre inten•‹o formativa e sua matŽria, ou matŽria
formada. Tal princ’pio posiciona o ponto de partida do artista e da compreens‹o de
seu trabalho a partir de uma a•‹o exercida sobre a matŽria f’sica a qual por sua vez,
por resistncia determinar‡ uma rea•‹o por parte do artista. Assim, Òa opera•‹o
art’stica n‹o pode ser pura formatividade a n‹o ser que seja forma•‹o de matŽria
135 ES,26.136 ES,26.
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f’sica, de tal sorte que se pode afirmar que a exterioriza•‹o f’sica Ž um aspecto
necess‡rio e constitutivo, e n‹o apenas algo de inessencial e de acrŽscimo (...) Pois a
obra n‹o pode existir a n‹o ser como objeto f’sico e material.137Ó
Note-se como a argumenta•‹o de Pareyson constr—i-se a partir da revis‹o da
metaf’sica da arte. A concretiza•‹o, que antes era um epifen™meno, uma aparncia,
uma fantasmagoria, a partir da proposta plat™nica Ð concep•‹o esta retomada por toda
a tradi•‹o filos—fica posterior que ou sobrevaloriza ou rebaixa a imediaticidade da arte
Ð agora se apresenta como condi•‹o de existncia para os atos do realizador.
Implicado nisso est‡ o fato que a atividade do artista Ž executada em algo prŽ-
existente. Este movimento para o mundo retira o entendimento do que est‡
acontecendo durante o processo criativo da mente do realizador para o circuito de
mœtuas interferncias entre a matŽria e os atos de interven•‹o na matŽria. O
desempenho do artista se especifica em fun•‹o de seu encontro com a matŽria: Òa
escolha de uma matŽria e o ato de se definir uma inten•‹o formativa ocorrem ao
mesmo tempo: a inten•‹o formativa se define como ado•‹o da matŽria, e a escolha da
matŽria se efetiva como nascimento da inten•‹o formativa.(...) A matŽria Ž escolhida
e assumida em vista da obra a executar.138Ó
Dessa maneira, uma explicita•‹o mais compreensiva dos atos envolvidos na
experincia estŽtica procura acompanhar o encadeamento de decis›es e atividades que
v‹o inserindo o desempenho do artista em um contexto de execu•‹o fact’vel e
intelig’vel. N‹o h‡ o privilŽgio de uma inst‰ncia prŽvia que protege o sujeito dos atos
dos efeitos mesmos daquilo que opera. As a•›es sobre algo diverso de si mesmo
difundem a•›es sobre o pr—prio sujeito. Nesse conjunto de movimentos, atos e contra-
atos, h‡ espa•os, possibilidades para que se teste e manifeste a flexibilidade da
matŽria em conjun•‹o com a plasticidade do agente.
A presen•a da matŽria, pois, Ž a materializa•‹o dos atos de realiza•‹o.Descentrando o agente por ampliar o escopo das atividades e elementos de um
processo criativo, a prerrogativa da matŽria esclarece a participa•‹o do sujeito no
processo criativo, redefinindo sua atua•‹o e ressaltando os procedimentos que mais
evidenciam sua atividade. O descentramento funciona n‹o como uma nega•‹o do
sujeito, mas sim como o seu redimensionamento para a atividade na qual ele se
engaja.
137 ES,44.138 ES,47.
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Em virtude disso, temos o seguinte paradoxo: Ò a obra de arte se faz por si
mesma e, no entanto, Ž o artista quem a faz.139Ó Desfazendo o paradoxo, vemos que
s‹o reunidos em uma mesma senten•a duas a•›es que parecem pertencer a l—gicas
diversas e excludentes. Na primeira, aquilo que normalmente consideramos em
termos de resultado de a•‹o vem enfaticamente apresentada como sujeito e sujeito
independente e aut™nomo. Na segunda, temos uma situa•‹o mais pr—xima da
realidade comum, onde se identifica o sujeito de uma a•‹o com quem executa, com
quem Ž o suporte de uma atividade.
Por meio desse paradoxo, Pareyson provoca o pensamento para uma
racionalidade da experincia estŽtica que seja capaz de identificar ordens e l—gicas
somente excludentes quanto n‹o relacionadas com a a•‹o. Sob o primado dos atos, da
conjuntura de atividades de um processo criativo, a linearidade e const‰ncia de quem
age e de quem sofre a a•‹o Ž refutada em prol de uma diversa e din‰mica atribui•‹o
de protocolos de atividade. A reflexibilidade da obra e a agentividade de seu executor
complementam-se formando perspectivas diferentes de um e mesmo processo.
Ratificando esta conclus‹o antecipada, retornemos ao descentramento do
sujeito em fun•‹o da prevalncia da matŽria. Confrontado ˆ a•‹o e ˆ modifica•‹o de
seu isolacionismo por algo que lhe Ž alheio e exterior, o agente desempenha sobre a
matŽria e por ela Ž determinado. Como restri•‹o e ao mesmo tempo possibilidade da
a•‹o, a atividade sobre a matŽria adotada ocasiona tentativas, aproxima•›es, que
demonstram a aderncia do sujeito ao que realiza. Assim, Ò a opera•‹o art’stica Ž um
procedimento em que se faz e atua sem saber de antem‹o de modo preciso o que se
deve fazer e como fazer, mas se vai descobrindo e inventando aos poucos no decorrer
mesmo da opera•‹o, e s— depois que esta terminou Ž que se v claramente que aquilo
que se fez era precisamente o que se tinha a fazer e que o modo empregado em faz-lo
era o œnico em que se poderia faze-lo. N‹o h‡ outro modo de encontrar a forma, istoŽ, saber o que se deve fazer e como fazer, sen‹o efetu‡-la, produzi-la, realiz‡-la. N‹o
que o artista tenha imaginado completamente sua obra e depois a executou e realizou,
mas, sim, ele a esbo•a justamente enquanto a vai fazendo. (...) A descoberta ocorre
apenas durante e mediante a execu•‹o.140Ó
Novamente, observamos a contraposi•‹o entre uma estŽtica metaf’sica e outra
que leva em considera•‹o a concretude da experincia estŽtica. Em uma estŽtica
139 ES,78.140 ES,69.
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metaf’sica tudo se centra na mente do sujeito. Da’ o primado da composi•‹o sobre a
execu•‹o, de uma hierarquia que preserva a identidade do agente. Contra esta
imunidade do pensamento, temos a a•‹o. Em situa•‹o de efetivo desempenho, s‹o
exigidos do sujeito que se coloca em um contexto de produ•‹o atos que reivindicam a
integralidade de suas habilidades. O sujeito deve enfrentar o risco dessa abertura e
premncia ˆ a•‹o.
Diante desse risco, o que antes era conhecido e seguro Ž revisado e
reorientado. O momento de agora, a necessidade atual modela os dados de um
passado que Ž substitu’do por uma nova mem—ria, por um outro passado presente no
conjunto de decis›es e opera•›es desta realiza•‹o, decis›es e opera•›es estas que v‹o
se tornando ao mesmo tempo a pr—pria obra.
A transforma•‹o do sujeito da a•‹o em sujeito operante modifica o estatuto de
sua subjetividade. Se Ž ele quem tem de fazer algo, ele o faz n‹o apenas por si
mesmo, mas inserido dentro de um contexto de execu•‹o. E essa perten•a a uma
busca, a uma corre•‹o de seu pensamento e de seus atos, essa ocasi‹o de a•›es
exercidas contra si e sobre algo que n‹o Ž ele mesmo, determinam a revers‹o da
autosuficincia do sujeito.
Nesta revers‹o, atos de composi•‹o se efetivam por atos de execu•‹o. A
operatividade da experincia estŽtica se esclarece na reorienta•‹o do c—gito abstrato
da metaf’sica da arte para a materialidade dos atos, atŽ mesmo dos atos de pensar.
Assim, temos um Ò fazer tal que, ao fazer, ao mesmo tempo inventa modo de fazer.
Trata-se de fazer, sem que o modo de fazer esteja de antem‹o determinado e
imposto.141Ó
A simultaneidade entre o fazer e a inven•‹o do modo de fazer posiciona o
desempenho do sujeito operante na singularidade daquilo que realiza. Na realiza•‹o
da obra, aplicando-se as habilidades nas tentativas e esfor•os diante daquilo que lhe Žalheio e que ao mesmo tempo determina e circunscreve suas a•›es, o sujeito vai aos
poucos se aproximando do Ó œnico modo em que o que se deve fazer pode ser feito e
o modo como se deve fazer 142Ó.
Ao invŽs da generalidade do pensamento, que esquematiza o mundo, o sujeito
se perfaz em a•›es que se especificam e especificam a sua atua•‹o. Cada vez mais
inserido em um contexto de elabora•‹o e execu•‹o, o agente transforma tentativas em
141 ES,59.142 ES,60.
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solu•›es, as quais s‹o seletivas e prescrevem restri•›es e possibilidades de escolhas e
atos.
A singularidade do que Ž feito, em seu acabamento, ao mesmo tempo em que
proporcionou uma orienta•‹o da atividade do sujeito operante, resulta em obra.
Assim, Òa obra de arte, Ž claro, n‹o depende de nada que lhe seja exterior: n‹o
depende mais do seu autor, pois dele se separou para viver por si mesma; nem
depende de um fim ulterior, pois agora realizou tudo aquilo que devia realizar. (...) A
existncia da obra de arte Ž sua completude , e sua completude o cumprimento ou a
realiza•‹o de sua forma•‹o. (...) a obra Ž como deve ser, e tem tudo aquilo que deve
ter.143Ó
A proposta de Pareyson, ao transferir o conhecimento da arte para a
experincia estŽtica, reage contra uma concep•‹o mentalista que privilegia o acesso
meramente discursivo e prŽ-categorial de atividades que n‹o se definem a n‹o por sua
operatividade.
Para tanto, dentro do contexto reativo desse processo, ao se enfatizar o
desempenho formador, Pareyson parece chegar a uma outra metaf’sica a qual,
redimensionando o papel do sujeito, recai em um animismo da obra, concebida como
um indiv’duo, com a•›es pessoais. Da’ o paradoxo da obra como sujeito e objeto de
um outro sujeito.
Mas se observamos que Pareyson atribui a estŽtica uma dupla natureza, tanto
especulativa, te—rica quanto experiencial 144, vemos que sob o ponto de vista da
descri•‹o de sua experincia, a realiza•‹o da obra ativa procedimentos tais que podem
ser traduzidos e explicitados de uma maneira que transferem atributos concretos do
sujeito operante para a obra realizada. Isso somente se faz, porque evidencia a
realiza•‹o mesma como algo que engloba e determina atos, especifica atos e a
subjetividade, e, principalmente, retira a obra de sua mera posi•‹o de resultado. Entrea matŽria provocadora e resistente e a matŽria resultante de modifica•›es n‹o se
143 ES, 93-94.144 Os problemas da estŽtica,Martins Fontes, 1984, p. 15-27. Doravante PE.
Neste mesmo livro, Pareyson afirma que Ò A estŽtica, longe de prescrever leis aoartista u critŽrios ao cr’tico, estuda a estrutura da experincia estŽtica e aqui seencontra com o problema da poŽtica e da cr’tica. Torna-se objeto da sua reflex‹o oesfor•o do artista para dirigir, segundo leis ou normas, sua pr—pria atividade e o docr’tico para delinear-se um mŽtodo consciente de leitura e de julgamento.ÓPE,22. Usoexperiencial e n‹o experimental em raz‹o dessa dimens‹o da experincia concreta dofazer art’stico.
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prolonga uma subjetividade sem contexto, mas uma contextura de atos, a realiza•‹o.
A amplitude do processo criativo dota a amplitude da obra compreendida como
sujeito da a•‹o, para que se enfatize a realiza•‹o mesma e n‹o a inalterabilidade do
sujeito operante durante sua atividade realizacional. Assim, Òa obra de arte Ž, antes de
tudo, um objeto sens’vel, f’sico e material, e que fazer arte quer dizer, antes de
qualquer coisa, produzir um objeto que exista como coisa entre coisas, exteriorizado
numa realidade sonora e visiva.145Ó
A obra como sujeito, pois, longe de um animismo, refor•a a dimens‹o
operante que atravessa todo o processo criativo e que se encontra no fato de ela ser
matŽria tanto em sua forma•‹o quanto em seu resultado. A•‹o e matŽria s‹o
indissoci‡veis, como modos complementares de se reagir a uma abstrata concep•‹o
da arte que deseduca o artista para o enfrentamento das situa•›es reais e concretas que
envolvem seu fazer.
Pareyson denomina Ôproblema da extrinseca•‹o f’sica da arteÕ essa dificuldade
hist—rica em enfrentar a materialidade da arte e do fazer 146. Segundo Pareyson, Ò a
antiga distin•‹o entre artes liberais e artes servis relegava para estas œltimas, que tm
necessidade do corpo para a execu•‹o manual em que elas consistem, a pintura e a
escultura, de modo que uma nobilita•‹o destas artes n‹o foi poss’vel sen‹o com uma
atenua•‹o de seu aspecto executivo e manual e uma reivindica•‹o do seu car‡ter Ô
mentalÕ, interior, espiritual. Esse processo de Ôespiritualiza•‹oÕ , iniciado no
renascimento, culminou no romantismo, que em cada arte acentuou o aspecto interior
e espiritual da pura cria•‹o.147Ó
Desse modo, reivindicando o car‡ter corp—reo e f’sico da obra de arte, a
extrinseca•‹o f’sica acaba por ser um pressuposto para a compreens‹o da amplitude
do processo criativo. ÒO ato art’stico Ž todo extrinseca•‹o, e o corpo da obra de arte Ž
toda a realidade dela.148ÓAssim, a nfase na obra, na obra atŽ como sujeito, Ž nfase no fazer, mesmo
contra o pensamento. Da’ o paradoxo. A materialidade da obra Ž a materialidade de
sua realiza•‹o, de seu contexto criativo. Logo, a obra n‹o Ž pura e simplesmente o
resultado do sujeito, porque n‹o Ž uma a•‹o unidirecional do sujeito que efetiva a
145 PE,55.146 PE,115.147 PE,115.148 PE,116.
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obra. A a•‹o de formar, de fazer Ž explicitada mais pela obra que pelo sujeito. Pois Ž
na obra que vemos a realiza•‹o, a atividade exercida, as habilidades efetivadas. Como
Pareyson afirma, Ò Ž preciso dar-se conta de que a obra inclui em si o processo da sua
forma•‹o no pr—prio ato que o conclui, e o que o processo art’stico consiste
precisamente no acabar, no levar a termo. (...) A obra no seu acabamento n‹o Ž,
portanto, separ‡vel do processo da sua forma•‹o, porque Ž, antes, este mesmo
processo visto no seu acabamento.149Ó
Da’ o paradoxo que imediatamente se imp›e quando Pareyson diz que Ò a obra
se faz por si, n‹o obstante a fa•a o artista150Ó Ž desfeito sem que se perca sua ruptura
l—gica, mas se obtenha seu contexto de aplica•‹o.
N‹o mais vista nem como um objeto inerte, passivo para a•›es do sujeito, nem
como mero resultado dessas a•›es, a obra Ž compreendida como contextura de atos de
sua forma•‹o, registro de atividades que a possibilitaram. Em busca do realiz‡-la, o
artista determinou seus atos frente ˆ concretude da situa•‹o de desempenho, correlata
ˆ concretude da matŽria.
Dessa maneira, a modela•‹o da obra acarreta a modela•‹o do pr—prio sujeito,
acarretando a irrevers’vel diretriz que ele deve fazer o que faz de acordo com o que
est‡ fazendo. Assim, Ò na arte n‹o h‡ outra lei sen‹o a regra individual. Isto quer dizer
que a obra Ž lei daquela mesma atividade de que Ž produto; que ela governa e rege
aquelas mesmas opera•›es da quais resultar‡; em suma, que a œnica lei da arte Ž o
critŽrio do xito.151Ó A obra acabada, a obra conclusa Ž o acabamento da intera•‹o
entre matŽria e sujeito. Nessa intera•‹o, escolhas e decis›es foram feitas. A obra nos
torna contempor‰neos desses atos seletivos. Essa Ž a•‹o da obra, representar-se na sua
teleologia, em seu xito, fazer-nos executar uma participa•‹o no finito conjunto de
sua realiza•‹o. A obra Ž o operar de sua realiza•‹o.
E para os que n‹o foram autores primeiros, e mesmo para o autor, abre-se a possibilidade de um desempenho, de uma atividade que a obra efetiva.
Enfim, a partir do momento que pensar a a•‹o Ž acompanhar o fazer, Pareyson
motiva a considera•‹o da obra como performance, integrando o processo criativo nos
estudos estŽticos.
149 PE, 147.150 PE,143.151 PE, 139.
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5- RAZÌO, FIC‚ÌO E HISTîRIA: A PROPOSTA INTEGRATIVA DE
R. KOSELLECK CONFRONTADA COM O PROJETO METACRêTICO DE
HAYDEN WHITE
ÒTodo conceito n‹o Ž apenas efetivo enquanto fen™meno lingŸ’stico; ele Ž
tambŽm imediatamente indicativo de algo que se situa para alŽm da l’ngua (...). Isso
porque considero teoricamente err™nea toda postura que reduz a hist—ria a um
fen™meno de linguagem, como se a l’ngua viesse a se constituir na œltima inst‰ncia da
experincia hist—rica. Se assumirmos semelhante postura, ter’amos que admitir que o
trabalho do historiador se localiza no puro campo da hermenuticaÓ
R. Koselleck
As rela•›es entre fic•‹o e hist—ria nem sempre foram t‹o amig‡veis como hoje
se v em algumas teorias. Desde a condena•‹o plat™nica em A repœblica, toda
supervaloriza•‹o do ficcional cifra um ato compensat—rio. O hodierno apelo ˆ fic•‹o
como instrumental te—rico tem favorecido abordagens mais variadas e muitas vezes
irreconcili‡veis. O recurso ao ficcional tem se constitu’do como revis‹o das categorias
hist—ricas.
Objetivamos, partir do contraste entre o projeto metacr’tico de Hayden White
e a proposta integrativa de R. Koselleck, proporcionar um horizonte compressivo
atravŽs do qual as complexas correla•›es entre conceito, fic•‹o e metodologia da
pr‡tica historiog‡fica sejam debatidas, de forma a articular distin•›es mais produtivase operacionais.
Mais que uma op•‹o te—rica, os presuspostos envolvidos nesta
instrumentaliza•‹o do ficcional explicitam mudan•as na hist—ria da Hist—ria, na
Hist—ria das IdŽias152 com a emergncia de uma pr‡tica reflexiva que sustenta, para o
espanto de muitos e mistŽrio gozoso de outros, a identidade entre realidade e discurso.
152 Seguimos esta designa•‹o e a discuss‹o sobre a crise intelectual anglo-americana conf.LACERDA e KIRSHENER 1997: 5-22.
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Primeiros, vamos fazer uma apresenta•‹o cr’tica do projeto te—rico de Hayden
White para, em seguida, a partir do contraste deste projeto com a proposta de
Koselleck, oferecer uma vis‹o mais global dos impasses sessentistas da Hist—ria das
idŽias, impasses esses que, como veremos, prolongam-se atŽ nossos dias.
1- MAPEANDO O PROJETO METACRêTICO DE HAIDEN WHITE
A prolongada crise do historicismo, agu•ada pelo debate sobre a cientificidade
da hist—ria, catapultou a proposta de Hayden White. J‡ no ensaio de 1966 ( ÒThe
Burden of HistoryÓ) White demonstrou a precariedade do Òplano mŽdio supostamente
neutro entre arte e cinciaÓ(WHITE 1994:41) no qual o historiador do sŽculo XIX se
enclausurava como guardi‹o de um passado idealt’pico para sonegar discuss›es sobre
sua pr‡tica.
Essa posi•‹o de assentimento produz o Òfardo da hist—riaÓ, um acomodamento
imobilizante, no qual, presos ˆ autoridade e ao factualismo, somos impedidos de
perceber que Òo que constitui os pr—prios fatos Ž o problema que o historiador como o
artista (WHITE 1994:60)Ó tem de enfrentar para ordenar o campo de referncias que
disp›e em interpreta•‹o discursiva. A hostilidade ent‹o contra esse monismo n‹o Ž
simples rea•‹o, mas sim uma resposta.
A limita•‹o da objetividade e da generaliza•‹o na natureza da investiga•‹o
hist—rica e no status epistemol—gico das explica•›es hist—ricas (WHITE 1994:42)153
realinha as inten•›es de singularidade da Hist—ria para problemas de linguagem.
Pois, para se defrontar com a crise do historicismo, n‹o basta advogar a
predomin‰ncia da representa•‹o anal’tica sobre a narrativista. Essa falsa oposi•‹o,
que na verdade Ž mais de intensidade que de forma, aparece em virtude de s— se
considerar Ódois n’veis convencionalmente distinguidos... o dos fatos(dados ouinforma•‹o) e o da interpreta•‹o (explica•‹o ou hist—ria contada acerca dos
fatos)(WHITE 1994:124)Ó. Assumindo a n‹o homogeneidade de seu campo, mas
laborando na complexidade de estrutura de seu discurso, o historiador participar‡
153 ƒ o que se pode notar nas discuss›es promovidas em filosofia e epistemologia da hist—riarealizadas por Louis Mink, Willian Dray e Arthur Danto em meados da dŽcada de sessenta, e que White retoma.
Posteriormente, em 1973, o decano dos estudos hist—ricos liter‡rios R. Wellek vai assumir as limita•›es doconhecimento hist—rico duvidando de a historiografia liter‡ria poder constituir uma disciplina acadmica. Conf.ensaio de S. Schimidt ÒSobre a escrita de Hist—ria da literaturaÓ in OLINTO 1996:101-132.
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positivamente da tarefa de libertar o presente do fardo da hist—ria(WHITE 1994: 53)
pela ado•‹o da construtividade de seu discurso.
ƒ em Meta-hist—ria. A imagina•‹o hist—rica no sŽculo XIX (1973) que este
deslocamento fundamental ser‡ apresentado e aplicado. No livro h‡ o exerc’cio de, a
partir de uma teoria tropol—gica do discurso, explicar o processo de argumenta•‹o de
autores basilares para a constru•‹o e desconstru•‹o da atividade historiogr‡fica. Estes
autores em sua escrita n‹o s— seriam compendiadores de dados ou te—ricos. Ao
mesmo tempo em que suas interpreta•›es constitu’am o acesso ao passado, o modo
como se estruturavam denunciava estratŽgias de organiza•‹o de seus pensamentos por
meio determinada ret—rica. A Òconscincia hist—ricaÓ do historiador, que cria sua ‡rea
de atua•‹o com maior autonomia frente ao seu contexto imediato, exige uma
atividade de conceptualiza•‹o que reivindica o incremento de sua express‹o. O
aprimoramento e abertura de campos de investiga•‹o se refletem na individualiza•‹o
do discurso hist—rico. As tens›es e as distin•›es para esta individualiza•‹o melhor se
notam se controlarmos as referncias a este percurso em sua singulariza•‹o ret—rica.
O contexto primeiro Ž o texto. A constitui•‹o do trabalho hist—rico deve partir do
entendimento da constru•‹o discursiva, pois este trabalho nada mais Ž que Òuma
estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosaÓ( WHITE 1995:11).
A nfase na lingŸisticidade da pr‡tica historiogr‡fica por parte de White segue
o linguistic turn 154que comanda as rea•›es nesse sŽculo ˆs aporias de uma abordagem
mentalista, que privilegiava a constitui•‹o da conscincia dos fen™menos por sobre os
fen™menos mesmos. A complexa passagem e ruptura entre mentalismo e linguagem
exige a fenomenologia dos atos envolvidos na produ•‹o de sentido, ao invŽs de um
dualismo sujeito-objetivo no qual a objetividade do conhecimento se perfaz na
atividade descritiva de uma subjetividade educada e hegem™nica (GADAMER 1998,
primeira parte). N‹o havendo mais essa estrita correspondncia entre sujeito e objeto, pois o
objeto n‹o Ž dado nem o sujeito cognoscente um universal, abre-se o caminho para o
significado do significado, a metalinguagem que se constitui no campo de referncias
do intŽrprete. Tal reorienta•‹o que o linguistic turn efetiva faz com que a legitima•‹o
do saber n‹o se reduza ˆ quantifica•‹o emp’rica dos resultados, posto que h‡ a
transferncia valorativa para o empreendimento intelectual e cr’tico do que se realiza.
154 Conf. Martin Jay ÒShould intellectual History take a linguistic turn? Reflection on thehabermas-Gadamer debateÓin La CAPRA and KAPLAN, S. 1995:87-110)
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Ao invŽs de se avaliar o sucesso de uma pr‡tica interpretativa pela quantidade de
dados recolhidos e classificados, interroga-se a gnese heur’stica, as escolhas e as
possibilidades efetivadas na elabora•‹o intelectual da express‹o.
Desta maneira, fazendo uma hist—ria da hist—ria como forma de fundamentar
sua nova atitude diante da pr‡tica historiogr‡fica, White vai demonstrar que tanto os
autores mais emp’ricos como os mais metaf’sicos n‹o eram meramente
conteud’sticos: a compreens‹o do que fizeram passa pelo entendimento do modo
como realizaram seus discursos. E em suas obras mesmo h‡ o realce da dimens‹o
construtiva do que empreenderam por uma reflex‹o sobre a linguagem (WHITE
1995:13). Assim, tanto a preocupa•‹o documental quanto a cr’tica apelam para a
centralidade do suporte expressivo. A linguagem n‹o Ž um meio transparente para a
veicula•‹o de preposi•›es e dados ( WHITE 1987:1-57). ƒ preciso a formatividade do
discurso como ato contempor‰neo da reflex‹o empreendida em uma investiga•‹o.
Por isso, e em virtude dessa prerrogativa da linguagem, compreende-se a
defesa da prosa da hist—ria preconizada por White. Se Óo pensamento permanece
cativo do modo lingŸ’stico no qual procura apreender o contorno dos objetos que
povoam seu campo de percep•‹oÓ (WHITE 1995:14), n‹o h‡ nem a op•‹o de se
aferir algo sem a remiss‹o ao verbo. Logo, a materialidade do discurso est‡ em sua
modaliza•‹o. A pris‹o da linguagem Ž a intensifica•‹o da condi•‹o pressupositiva da
palavra como conhecimento. Os objetos acontecem somente pelo contexto que os
significa em um discurso, assim como as proposi•›es autorais apenas existem em
fun•‹o da trama interpretativa de uma obra.
Ora, a radicaliza•‹o do construtivismo lingŸ’stico coloca em quest‹o alguns
fundamentos da pr‡tica historiogr‡fica, marcadamente fundamentada por referncias a
fontes documentais. Respondendo ao Òtorpor te—ricoÓ de seus contempor‰neos, esse
construtivismo refuta a evidncia emp’rica como ponto de partida (e muitas vezes dechegada) da investiga•‹o hist—rica. O intervalo e a descontinuidade entre
representa•‹o e realidade Ž reposta. ORA, TEMOS A DESCONTINUIDADE
ENTRE REPRESENTA‚ÌO E A REALIDADE, MAS A CONTINUIDADE
ENTRE REPRESENTA‚ÌO E LINGUAGEM.155
155 Esta rela•‹o n‹o proporcional entre os termos Ž significativa. O modelo anal—gico entre
fic•‹o e hist—ria, utilizado para transformar a pr‡tica historiogr‡fica, como n‹o pode propor uma superposi•‹ototal dos termos comparantes, Ž administrado Ž fun•‹o de seus limites. ƒ quando o campo conceptual dointŽrprete Ž submetido ˆ um projeto que n‹o se informa de sua historicidade. V. KOSELLECK 1982.
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Para coordenar atos de significa•‹o agora reunificadas, White retoma uma
figura•‹o fenomenol—gica cara ˆ lingŸ’stica de inspira•‹o chomiskiana: a dualidade
dos horizontes aparente e profundo( WHITE 1995:11,13). O realismo da
representa•‹o est‡ em sua estrutura•‹o. A emergncia de dados e conceitos n‹o esgota
o discurso hist—rico. A disposi•‹o e organiza•‹o dos conteœdos Ž o sobredito no dito
do historiador. O enunciado n‹o esgota a enuncia•‹o. A pluralidade de n’veis do
discurso hist—rico visto como representa•‹o refuta sua redu•‹o a uma evidncia posto
que o dado proposto ou confirmador n‹o Ž o resumo de um pensamento. ƒ para a
evidncia lingŸ’stica, suporte das concretiza•›es de sentido do discurso, que Ž preciso
voltar os olhos.
Contudo, a evidncia lingŸ’stica n‹o Ž neutra. Ela formaliza intui•›es poŽticas
que a sobredeterminam (WHITE 1995: 14). Assim, Òos elementos
inconfundivelmente poŽticos do trabalho hist—rico encontram-se na estrutura
profunda da imagina•‹o hist—rica (WHITE 1995:13).Óƒ para uma imagina•‹o
hist—rica como fundamento da pr‡tica representacional no ocidente que ruma a
teoriza•‹o de White, em qualquer Žpoca. O a priori hist—rico Ž a poiesis. A
metahist—ria Ž a revela•‹o da poŽtica da hist—ria. O trabalho do historiador distende-se
ao se divisar o labor da fic•‹o.
Partindo da impossibilidade de separar teoria e pr‡tica da hist—ria (WHITE
1995:14, White interrroga-se sobre a gnese e inteligibilidade da representa•‹o
historiogr‡fica, constatando que os temas e problemas da epocalidade oitocentista
podem ser generalizados como situa•›es paradigm‡ticas, dada a impossibilidade de
separar a explica•‹o de algo sem sua representa•‹o(WHITE 1995:18).
Desse modo, antes de tudo, o historiador Ž ainda um escritor. A escrita Ž o
registro de um esfor•o de individua•‹o entre as exigncias dos limites/possibilidades
da m’mesis na tradi•‹o ocidental. O recurso ˆ m’mesis, mesmo ap—s a ir™nicadesvaloriza•‹o feita pelo Iluminismo ou o fide’smo cient’fico do positivismo,
continua como apelo e pressuposto. A quest‹o da representa•‹o, agora indexada ao
suporte lingŸ’stico para sua efetiva•‹o (e n‹o mais na conscincia, na mente)
circunscreve a apreens‹o das formas da escrita hist—rica.
Em virtude disso, WHITE em sua poŽtica da hist—ria em Metahist—ria busca
formular uma teoria geral da estrutura da obra hist—rica (WHITE 1995:18). Ao invŽs
de distin•›es tem‡ticas ou periodiza•›es de categorias culturais genŽricas ( WHITE1995:434), simplesmente rotulando a obra de um determinado historiador como
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'rom‰ntica' ou 'idealista' ou 'liberal' ou 'conservadora', Ž preciso "revelar a din‰mica
dos processo de pensamento que o levaram a redigir suas hist—rias de uma certa
maneira"( WHITE 1995:434). Concebendo-se a atividade historiogr‡fica dessa
maneira altamente convencionalizada (no sentido de sua mensagem ser codificada
com sinaliza•›es e marcas que concretizam sua express‹o) pode-se formaliz‡-la. A
teoria geral da estrutura da obra hist—rica Ž esta formaliza•‹o que procura dar conta
dos tipos poss’veis, das possibilidades do campo historiogr‡fico. Situa-se tanto como
impedimento a um realismo ontol—gico absoluto do discurso hist—rico, apontado na
cr’tica epistemol—gica que a filosofia anal’tica empreendeu, como tambŽm resposta a
esta cr’tica, pois o realismo lingŸ’stico agora evidenciado no discurso hist—rico,
coloca a hist—ria como cr’tica das representa•›es, como meta-hist—ria.
A fim de combinar o recuo da hist—ria diante de sua pretens‹o de
cientificidade, mas sem perder os par‰metros de uma legitima•‹o disciplinar, com o
recrudescimento do car‡ter aproximadamente mais ficcional de seu discurso, WHITE
vai buscar na formaliza•‹o ret—rica o fundamento de sua teoria da hist—rica. Aqui
entra o tropol—gico, como classifica•‹o das express›es em modelos de estratŽgias
utilizadas, pois a inteligibilidade que neutraliza a oposi•‹o entre fic•‹o e Hist—ria
desenvolvida por White Ž a da integratividade de ambas em uma tipologia. O
refinamento da teoria Ž uma tropologia. A esquematiza•‹o Ž a explicita•‹o dos
processos co-ocorrentes de constru•‹o do discurso hist—rico. Tornam-se mutuamente
dependentes as atividades de dimensionar a fic•‹o dentro da hist—ria e sua
formaliza•‹o.156
Para acomodar tantas exigncias temos duas classifica•›es na teoria de White.
Uma dos tipos de explica•‹o e outra dos tropos de base para esta explica•‹o.
Deve-se ver esta dupla classifica•‹o (WHITE 1995:17-56 e WHITE 1994:65-
95) ent‹o como o esfor•o de compreens‹o da din‰mica representacional do discursohist—rico que, em sua racionalidade e figurativiza•‹o constituintes, que exige uma
pluralidade de n’veis para sua estrutura•‹o.
Na primeira, o "estilo historiogr‡fico representa uma combina•‹o particular
de modos de elabora•‹o de enredo, argumenta•‹o e implica•‹o ideol—gica (WHITE
1995:43)". A forma tripartida ultrapassa o dualismo conceito/imagem, realinhando
motiva•›es ficcionais, l—gico-argumentativas e pol’tico-efeituais.
156 Tarefas mutuamente implicadas e exclusivas explicitam a dificuldade de coordenar objetivos
novos com procedimentos negados de outrem. A modernidade encontra aqui sua problem‡tica.
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A divis‹o tripartida n‹o Ž apenas uma reuni‹o das faculdades humanas,
confirmada pelo kantismo de White (WHITE 1994:37). A divis‹o aponta para uma
hierarquia. A visualiza•‹o das partes se faz em fun•‹o do fator prefigurador poŽtico.
H‡ uma afinidade eletiva entre os tipos de explica•‹o a partir da domin‰ncia do
gnero discursivo, da forma narrativa. A gram‡tica Ž orientada pela poŽtica.
2- OS LIMITES DO TROPOLîGICO157
Contudo essa prevalncia do gnero discursivo Ž ainda antecedida pela
precedncia do tropol—gico. Antes das explica•›es que s‹o as express›es moldadas
em suas conceptuais e formais, temos "as estruturas profundas da imagina•‹o
hist—rica num dado per’odo de sua evolu•‹o" (WHITE 1995:45). Os tropos mobilizam
o pensamento para o controle do campo de referncias e atos de significa•‹o prŽvios
ao historiador. Se "a met‡fora Ž essencialmente representacioal, a meton’mia Ž
reducionista, a sinŽdoque Ž integrativa e a ironia e negacional (1995:49)Ó, o
historiador, ao expressar sua interpreta•‹o, vale-se delas como constru•‹o da
teleologia de seu discurso. Pois a figuras orientam a intencionalidade da express‹o
para os protocolos lingŸ’sticos unificados "que podem ser chamado de linguagens da
identidade (met‡fora), da extrinsecalidade (meton’mia) e da intrinsecalidade (
sinŽdoque)Ó (WHITE 1995:50).
White prefere se definir como um gram‡tico defrontando com uma nova
l’ngua. PorŽm, ele realiza o inverso de uma sistematiza•‹o. Seu procedimento de
formaliza•‹o vai de classifica•‹o em classifica•‹o distinguindo componentes de
componentes atŽ chegar a uma n‹o divisibilidade prim‡ria onde processos simples de
sinaliza•‹o bem caracteriz‡vel s‹o encontrados e que confirmam a idŽia geratriz
procurada nesse percurso formalizado.Ao colocar em discuss‹o o realismo historiogr‡fico, delineado por sua rela•‹o
ir™nica para com a fic•‹o ou com discursos que se valiam da fic•‹o, White tornou
compreens’vel a complementaridade da recusa da poiesis e estrutura•‹o do estilo
historiogr‡fico. Se "toda filosofia da hist—ria contŽm dentro de si os elementos de uma
hist—ria propriamente dita ( WHITE 1995:434)" e vice-versa, o comum unifica e
157
La Capra ,em seu ensaio ÒRhetoric and HistoryÓ (La CAPRA 1985:15-43) procurouapresentar os v‡rios usos e objetivos dessa retomada da ret—rica como linguagem comum e l—gica de investiga•‹ocient’fica presente na emergncia (surto???) do paradigma liter‡rio na Hist—ria e nas Cincias Humanas.
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torna-se o fator primordial por sua abrangncia. Pode-se atŽ ver o texto hist—rico
como um artefato liter‡rio pois a evidncia da construtividade generalizada das
formas efetiva esta nova gram‡tica.
Mas da constata•‹o das prerrogativas do material ficto dentro dos discursos atŽ
sua expans‹o como horizonte explicativo das representa•›es h‡ um salto que
obscurece muitas quest›es de nossa d’ade hist—ria/fic•‹o.
O posicionamento axiologicamente neutro e puramente formalista defendido e
praticado por H.White em Metahist—ria, (WHITE 1995: 441) torna amb’gua sua
rela•‹o com a cientificidade da Hist—ria . Ironicamente, em um projeto ir™nico, a
perspectiva aberta para alŽm da unilateralidade argumentativa Ž interrompida pelo af‹
classificat—rio. Assim como o dilema do realismo historiogr‡fico era como legitimar
um conhecimento, pois o estudioso estava nele inclu’do "de um modo que o estudioso
do processo natural n‹o estava"(WHITE 1995:59), o posicionamento axiologicamente
neutro de uma classifica•‹o empreendido por White , retoma o mesmo modelo das
cincias f’sico-qu’micas, prolongando o status desconfort‡vel que antes criticou.
Apesar de reivindicar padr›es de interpreta•‹o n‹o mais na oposi•‹o entre fic•‹o e
realidade para erigir seu campo de conhecimento, White ainda se vale do ideal de
cincia de um tipo de racionalismo cl‡ssico formulado na querela entre Cincias do
Esp’rito versus Cincias da Natureza.
A inclus‹o do ficto como dupla classe fundante da atividade historiogr‡fica
funciona n‹o s— como explicita•‹o de sua premente import‰ncia como tambŽm revela
o intuito de refor•o explicativo da cientificidade das conclus›es que White chegou
pela revaloriza•‹o do poŽtico. Ë unilateralidade do realismo historiogr‡fico
constru’do em cima da figuratividade das representa•›es, temos a unilateralidade da
constru•‹o te—rica de White representada pela formaliza•‹o tropol—gica da
linguagem/imagem como ato-conceito.Pois a amplitude do alcance da proposta de White se d‡ pela redu•‹o do
espa•o da fic•‹o ˆ sua emergncia lingŸisticamemte formalizada. A generaliza•‹o da
evidncia lingŸ’stico-tropol—gica substituiu o preceitu‡rio cl‡ssico do c—gito postural
da neutralidade cient’fica que decretou a legitimidade de seu conhecimento pela
exclus‹o do incaracter’stico, do ficcional. Mas conservando o ide‡rio de objetividade
pela normaliza•‹o da componente imaginativa em um esquema prŽ referenciado. A
tropologia, ao mesmo tempo que insere a primordialidade do figurado frente aoconceptual, conceptualiza o figurado, determinando-o dentro de uma esfera genŽrica
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de atua•‹o. A reinser•‹o do ficcional dentro do discurso hist—rico, e dentro da
Hist—ria, se d‡ pela proposta de uma idealiza•‹o do imaginativo - retirado de seu
contexto de produ•‹o - atravŽs de uma esquematiza•‹o prŽvia de sua possibilidades
traduzidas em uma grade conceptual-ret—rica. Esta grade se torna a condi•‹o de
existncia e espa•o de a•‹o do ficcional. H‡ o pragmatismo da reinser•‹o do ficcional
pois ele funciona como alargamento das possibilidades referenciais e da pr‡tica
observacional que rendem uma escrita pass’vel de distinguir atos de sentido
representativas de contexto-suportes de sentido, de estruturas de eventos. A
construtividade lingŸ’stica dos fen™menos possibilita a explicita•‹o da
homogeneidade formal que constitui a signific‰ncia dos referentes. Enfim, realidade e
discurso ficam em pŽ de igualdade.
De acordo com este modelo de investiga•‹o, o historiador, c™nscio da basilar
atividade figurada na representa•‹o do que quer explicar, ataca diretamente as
constitui•›es discursivas e a interpreta•‹o da realidade que elas formulam. H‡ uma
metamorfose em sua pr‡tica anal’tica, pois agora exp›e processos de representa•‹o
n‹o mais substantivados em uma moldura explicativa final. Temos a ruptura com a
correla•‹o estreita entre texto e contexto, entre o nome e as coisas, tornando mais
complexas e menos imediatas estes momentos maiores da ficcionaliza•‹o da
realidade.
3- TEXTO E CONTEXTO158
O texto j‡ n‹o Ž mais um res’duo que reconstr—i um evento. O texto mesmo Ž
um acontecimento de sentido no qual se alinham diversos momentos e tens›es
envolvidos no ato de sua realiza•‹o figural. O contexto n‹o Ž o exterior do texto. ƒ o
metatexto que explicita e explora essa transforma•‹o do sentido em orienta•‹o
discursiva. Tudo agora Ž texto, mas com distin•›es frente ˆ sua elabora•‹o eefetiva•‹o discursiva.
As redefini•›es de texto e contexto ficam mais claras no ensaio ÒMethod and
ideology in intellectual History: the case of Henry Adams Ò(1982). 159 Este ensaio foi
publicado em Modern European Intellectual History, colet‰nea de ensaios que, ao
mesmo tempo que demonstrava a d’vida dos Ò novos historiadores das idŽiasÓ norte
158 Neste t—pico seguimos ÔRethinking intellectual history and reading textsÕ in LA CAPRA 1995:
47-85. 159 Republicado em ÒThe content of the formÓ(WHITE 1987). Seguimos esta edi•‹o em nossascita•›es.
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americanos para com as revis›es e desconstru•›es que ocorriam na Europa,
examinava as contribui•›es e perspectivas nesse intercampo que agora se forma no
cons—rcio de v‡rias disciplinas - movimento inverso ˆ subservincia das cincias
humanas ˆs da naturezas no positivismo) tais como teoria da literatura, antropologia,
hist—ria, sociologia, filosofia, abrangidas incomodamente sob o vŽu de Estudos
culturais.
Para White, a amplitude semiol—gica de uma concep•‹o de texto obriga o
historiador a tratar o texto menos que um efeito de causas mais b‡sicas ou como
reflexo de uma estrutura mais fundamental para v-lo como uma complexa media•‹o
entre v‡rios c—digos por meio dos quais a realidade se torna fact’vel e pass’vel de ter
significado (WHITE 1987:202).
Neste ponto compreende-se o contexto intelectual ao qual White reagiu. A
persistncia de regras de cientificidade empiristas nas cincias humanas - presente no
debate entre o historiador social e o das idŽias - nas quais os textos s‹o dados para a
reconstru•‹o de mentalidades passadas160, obstruiu a problematiza•‹o sobre a
referncia e sua representa•‹o, quest›es pr—prias da natureza lingŸ’stica da
textualiza•‹o de significados.
Sem se ater a esta singularidade, o empirismo n‹o percebe distin•›es que
modificam incrivelmente qualquer an‡lise. Acostumado a grandes volumes de dados e
informa•›es, o empirismo utiliza o texto como documento para confirmar uma teoria,
uma perspectiva adotada de antem‹o.
Por isso transforma o texto em conteœdo, em dados marcados e reconhecidos
fora de seu contexto de produ•‹o, contexto este que segue uma tradi•‹o de escrita,
uma hist—ria de interpreta•›es. O texto reduz-se a um conteœdo como evidncia que
reflete sua apreens‹o explicativa.
A desvantagem dessa apreens‹o, ao reduzir todos os textos a reflexos de algoque eles n‹o elaboram, est‡ em igualar todos os textos. A elimina•‹o da diferen•a
figural do texto, marca de sua singularidade, corresponde ˆ objetiva•‹o como
conhecimento.
Com isso n‹o leva em conta que n‹o h‡ conteœdo informe, conteœdo ou dado
ou informa•‹o sem contexto intelectual. No caso do empirismo temos n‹o uma
ausncia de teoria, mas um monologismo explicativo que cifra a heterogeneidade de
160 Conf. ensaio ÒHist—ria liter‡ria e hist—ria das mentalidadesÓ de F. Mayer em OLINTO 1996
(211-221).
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dados em uma œnica moldura explicativa, preconizando que o investigador tem de
possuir um œnico mŽtodo para lidar com a caoticidade e dispers‹o do material que
estuda. O saber aqui Ž a averigua•‹o que confirma a precedncia de uma prŽ - cincia,
de uma œnica hip—tese.
Os v‡rios c—digos enfeixados por um texto, pela tessitura do texto,
demonstram a necessidade de um pluralismo metodol—gico quando se trata de lidar
com fatos que s‹o feitos de linguagem.
Da mesma forma o contexto161. Se se dissolve a causalidade monorientadora
do texto, dissolve-se tambŽm a dicotomia texto e contexto. O olhar se volta agora
para a situa•‹o do intŽrprete com o texto, para a constitui•‹o do horizonte de
perguntas e procedimentos de an‡lise do intŽrprete. H‡ um contexto integrador que Ž
a situa•‹o de interpreta•‹o que reœne o texto e o intŽrprete. 162 Ao invŽs da dicotomia
texto/contexto temos v‡rios textos com espec’ficos c—digos e respectivas escritas
como pr‡ticas de representa•›es que medeiam interpreta•›es, constru•›es de
significados de significados.
Do White do Metahist—ria ao œltimo White, de Figural Realism. Studies in the
M’mesis Effect (1998) vislumbra-se o incremento das implica•›es da nega•‹o da
rela•‹o texto/ contexto. Podemos visualizar o percurso intelectual de White como
varia•›es em torno desse tema que lhe Ž caro.
Inicialmente coloca-se a defesa da tese narrativista, da economia figurativa do
discurso hist—rico contra o predom’nio de um modo anal’tico historiogr‡fico.
Metahist—ria, empreedendo a hist—ria da historiografia, demonstra que este modo
anal’tico, produzindo uma ret—rica antiret—rica, permanece dentro da continuidade do
campo abarcado pela posieis, facultando-nos uma imagina•‹o hist—rica que apela para
o ficcional mesmo que para recus‡-lo.
4- RETOMANDO O PERCURSO
PorŽm, ainda White integra uma descri•‹o dos procedimentos intelectuais com
os figurativos. O texto de White em Metahist—ria coordena os coment‡rios sobre os
conceitos empregados pelos autores e as estratŽgias discursivas. A revolu•‹o
copernicana no campo historiogr‡fico, que se avista na ficconaliza•‹o da hist—ria, Ž
detida no ’mpeto de se ultrapassar. White cita menos autores para justificar suas
161 V. GADAMER 1997:449.162 V. GADAMER 1987
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interpreta•›es, dando maior espa•o para seu pr—prio texto, favorecendo uma maior
intimidade com a caracteriza•‹o dos procedimentos expressivos que analisa bem
como a abertura de espa•os de teoriza•‹o e experimenta•‹o. N‹o padroniza as
chamadas das subsec•›es, intitulando-as com menor grau de par‡frase em rela•‹o ao
que vai ser tratado, como se fossem met‡foras do que vai ser dito. Elimina por
completo as chamadas notas de rodapŽ, obrigando o leitor, na medida em que
prossegue com a leitura, a estabelecer o subtexto, os problemas e os conceitos
familiares a White. O texto de White intervŽm em uma tradi•‹o j‡ comentada e citada
como autoridade, utilizando de pressupostos em parte referidos e citados. White desse
modo atualiza a discursividade da escrita historiogr‡fica, que Ž dependente da
fluncia, de expor, em texto, idŽias, de realizar uma interpreta•‹o medeada pela
linguagem.
H‡ todo um esfor•o, desde Metahist—ria de substitui•‹o de linguagens. Os
conceitos emergentes das Cincias da Linguagem s‹o adotados como termos-chaves e
posicionados quase que de uma maneira autoexplicativa dentro das frases, como
termos fortes do discurso. Eles n‹o s— classificam o que se analisa, como fazem
referncia aos processos de representa•‹o que s‹o utilizados nos autores estudados. A
transposi•‹o destes termos Ž refor•ada pela redund‰ncia de seu uso. A alta freqŸncia
dos termos ret—ricos, repetidos e diferenciados, agora n‹o referidos a obras liter‡rias,
mas a autores , cria estabilidade de referncia, posto que funcionam como
interconceitos163.
O sucesso da explica•‹o Ž correlativo da imagem de coes‹o fornecida pelo
campo interconceptual. Os termos ret—ricos s‹o agora imbu’dos n‹o s— de uma fun•‹o
explicativas e descritivas, mas de uma filosofia das formas. Eles s‹o pontos de
convergncia do sentido e da orienta•‹o das formas. Essa plasticidade e
multireferencialidade corrobora a constru•‹o discursiva de White de tratar de v‡riostemas a cada momento, alterando o centro de orienta•‹o na leitura para focalizar ou
trazer para o texto- base tudo o que consignar para sua interpreta•‹o, eliminando,
consequentemente a diretriz œnica, matiz redutora que orienta a objetividade do
discurso em fun•‹o de suas prescri•›es.
163 Designa•‹o que G.Bachelard usou em sua fenomenologia da din‰mica da inteligibilidade.Assim como uma tŽcnica Ž um teorema reificado, uma teoria Ž a coes‹o de a•›es. A defini•‹o dos atos de
racionaliza•‹o dentro de uma teoria fica mais bem designada por interconceitos. Koselleck retomaessa diferencia•‹o fenomenol—gica de n’veis de conceptualilidade em Future past .
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Essa flutua•‹o de foco Ž vigiada pelo constante criticismo que atua co-
presentemente no discurso anal’tico. Assim como apresenta, situa, classifica, discute,
aproxima, White tambŽm avalia. Presentificando os processos representacionais
utilizados pelos autores dos Oitocentos, White participa da querela fic•‹o/hist—ria
suplementando-a com as discuss›es contempor‰neas. Os atos ainda sem conceitos que
encontra e os conceitos ainda sem objeto com os quais se depara s‹o revestidos pela
tropologia. O criticismo aqui Ž a marca da atualidade expandida e refor•ada com veto
e valor.
ƒ o que se pode perceber pela macroestrutura•‹o de Metahist—ria. As partes
centrais (entre o pref‡cio e o pr—logos como manifestos te—ricos e a conclus‹o
retrospectiva) ao mesmo tempo em que demarcam as temas e as Žpocas que v‹o ser
enfrentados, caracterizam-nas, principalmente nos subt—picos, a partir da
nomenclatura dos gneros liter‡rios e dos tropos. Assim a historiografia ocidental,
procurando responder aos limites organicistas do racionalismo iluminista, buscou sua
autoconscincia nas formas narrativas de sua express‹o, mas valendo-se de tropos
para moldar seu discurso. Esse trajeto Ž contado atravŽs da operacionalidade hist—rica
da representa•‹o, advista como universal meio e modo de construir significados. O
figurativo Ž o incremento do intelectual. Por isso acompanhar a tablatura tropol—gica Ž
dissecar o refinamento intelig’vel dos autores.
Essa conceptualiza•‹o da hist—ria por meio da ret—rica ser‡ radicalizada por
White. A centralidade do ficcional em sua fun•‹o metaexplicativa - que reœne as
tarefas de material ordenante de um discurso e reflex‹o cr’tica sobre a representa•‹o -
gradativamente predomina como alvo das abordagens de White. Ele menos estuda
casos situados ou publica livros totalmente tem‡ticos que se adentra no campo da
discuss‹o de teorias sobre as representa•›es. Gradativamente White Ž mais um
epistem—logo e depois, predominantemente, um cr’tico liter‡rio.A discuss‹o de teorias parte, em um primeiro momento, como se pode ver em
Tr—picos do discurso, para o esquadrinhamento de propostas que est‹o em
alinhamento ou em colis‹o com este paradigma estŽtico que come•a a se desenhar nas
Humanidades frente ao seu movimento de busca de identidade pr—pria sem mais
refugiar-se em padr›es de cientificidade das cincias da natureza (GADAMER 1998).
ƒ o que se depreende da leitura do pref‡cio de Tr—picos, no qual ele vai retomando e
debatendo idŽias de Piaget e E. Thopmson. Note-se qu‹o estrategicamente est‹ocolocados estes dois autores. O cientista Piaget Ž utilizado para abalizar essa
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prerrogativa da fic•‹o no homem, enquanto que o outro, de uma linha mais social que
intelectual, apesar das inova•›es, perpetua o estreito materialismo causal que exige de
toda hist—ria uma justificativa fora de seu discurso.
5- TRANSFORMA‚ÌO DO TROPOLîGICO EM METADISCUSSÌO
TEîRICA164
Prosseguindo, White vai ocupar-se mais detidamente dos temas que tratou
com maior evidncia no pref‡cio e no ep’logo de Metahist—ria. Se neste livro a
epocalidade tratada impedia uma verticaliza•‹o, agora pode distend-la. Da’ o car‡ter
de manifesto que o artigo ÓThe historical text as Literary ArtifactÓ ( Tr—picos do
discurso). O que n‹o pode ser realizado em Metahist—ria aqui Ž anunciado. A
economia figurativa do discurso hist—rico Ž radicalizada para a ficcionaliza•‹o da
hist—ria. Da ambigŸidade de exigncias cient’fico-metodol—gicas temos instaura•‹o
do regime declarativo-ensa’stico no qual o alvo da escrita Ž a defesa e a exposi•‹o de
sua pr—pria enuncia•‹o. Aqui entramos na realidade proposicional de um racioc’nio
autocentrado naquilo que afirma, invalidando todo e qualquer ajuizamento cr’tico que
n‹o leva em conta as regras e as prescri•›es que ele mesmo efetivou. N‹o h‡
constraste ou refuta•‹o, mas sim o modo de satura•‹o expansiva do que se acatou pela
insaciabilidade anal—gica de sua generaliza•‹o. Os ensaios se encaminham para
promover a evidncia do que apresentam pela justaposi•‹o de conceitos e pelas
possibilidades e suas distin•›es, oferecendo a coopera•‹o de um rigor expositivo e
veracidade das express›es. O sistema afirmativo-constatativo abre a relatividade deste
projeto que apela para uma evidncia universalizante.
Assim, a defesa da narratividade na hist—ria transforma-se na defesa da
pr—pria narratividade, a busca da fic•‹o na hist—ria se converte na contempla•‹o da
pr—pria fic•‹o. White165 refina os conceitos antes utilizados a partir de contribui•›esdiversas da teoria da literatura e da semi—tica com crescente contribui•‹o da escola
francesa p—s-estruturalista, conceitos estes que v‹os sendo desfilados em seus
fich‡rios-ensaios.
164 LaCAPRA soube bem acompanhar as diferen•as no percurso de White, comprovando o dŽbito
da tropol—gica com o monocausalidade de um programa positivo, onde um n’vel do discurso (o tropol—gico) Ždeterminativo em œltima inst‰ncia. Este estruturalismo genŽtico cede a gora a este novo causalismo que revigora
na d’ade interpreta•‹o/c—digo. V. La CAPRA 1985:34.165 Fic•‹o e narrativa cooperam nessa t—pica. Como se v nos ensaios ÒAs fic•›es da
representa•‹o factualÓ (1976), e nos textos iniciais de The content of the form ( 1987).
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Mesmo nos ensaios mais situados de Os tr—picos do discurso ( pp 153-252)
este novo estilo se afirma. Basta contrastar com Metahist—ria. Aqui existe uma
disciplina recorrente. N‹o mais aquela t‡tica de traduzir em termos ret—ricos e
liter‡rios o que poderia ser expresso em outros conceitos. Mas uma disciplina de
naturalizar o estranho, de introduzir constantemente n‹o s— os termos, como tambŽm
os temas mais atuais quando se depara com o Iluminismo, Vico, legitimando, assim, a
perspectiva adotada por este novo paradigma . Abandonando a monocausalidade
explicativa positivista e marxista, White reitera a prevalncia da estrutura•‹o
lingŸ’stica como determinante do contexto intelectual que aborda.
Feito um emblema dos novos tempos, Tr—picos do discurso finaliza
resenhando Foucault e reagindo com hesita•‹o aos te—ricos da literatura mais radicais.
O ensaio ÒO momento absurdista na teoria liter‡ria contempor‰neaÓ (WHITE 1994
285-306) procura dimensionar o niilismo e a iconoclastia de grande parte cr’tica
liter‡ria contempor‰nea, maior parte dela vindo do rescaldo estruturalista e agora
empreendendo um v™o onde Òtudo Ž admitido. Essa cincia de regras n‹o tem regras
(WHITE 1994:285)Ó. White ironicamente caracteriza o eclos‹o da cr’tica absurdista ,
descrevendo seus radicalismos como redu•›es onde Òa literatura Ž reduzida ˆ escrita,
a escrita ˆ linguagem e a linguagem, num paroxismo final de frustra•‹o, ao
palavreado oco sobre o silncio(WHITE 1994:2860)Ó. Ao contr‡rio de outros
lingŸ’sticos tŽcnicos, a cr’tica absurdista Òtrata a linguagem si como um problema e se
demora indefinidamente na superf’cie do texto... da textualidade em si (WHITE
1994:287)Ó.
Movimentando-se no ar rarefeito da fetichiza•‹o do texto, o orfismo da critica
absurdista choca-se com o que White denomina cr’tica normal, que considera a
literatura valiosa e n‹o misteriosa(WHITE 1994:295). Opondo-se ao projeto
civilizacional da cr’tica normal, a cr’tica absurdista objetiva Òa desespiritualiza•‹o dosartefatos culturais da sociedade modernaÓ... desmitologizando a moderna sociedade
industrial (WHITE 1994: 293).
Desfamiliarizando a cr’tica normal e hipostasiando a teoria do discurso, ao
absurdismo s— restam as mans›es do solipsismo da egolatria, em virtude da Ó
dissocia•‹o do cr’tico de todo empreendimento coletivo, a eleva•‹o da cr’tica ˆ
condi•‹o de supercincia que Ž ao mesmo tempo puramente objetiva e propensa a
reivindicar a significa•‹o universalÓ(WHITE 1994:302).
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Entretanto, a deifica•‹o do sem sentido formula quest›es que Òcolocam os
cr’ticos normais na obriga•‹o de fornecer as respostas com as quais eles pr—prios n‹o
conseguem atinarÓ(WHITE 1994:306). Os cr’ticos absurdistas Òn‹o s‹o
incompreens’veis, e tampouco sua obra Ž insignificanteÓ(WHITE 1994:306).
Pode-se transpor a situa•‹o impactante dos cr’ticos absurdistas para o campo
historiogr‡fico, com White fazendo o papel destes œltimos. Embora frente ˆ diferen•a
espec’fica de campo intelectual n‹o tenhamos uma analogia total, Ž f‡cil perceber
como quando White diagnostica as atividades do absurdismo ele revela parte de suas
pr—prias pr‡ticas. A diferen•a Ž que os absurdismos, vendo que tudo Ž representa•‹o,
transformaram seu pr—prio criticismo em representa•‹o, fundindo literatura-objeto e
discurso anal’tico, gerando esse h’brido entre ensaio e fic•‹o que comanda as obras da
tradi•‹o p—s-estruturalista francesa. A utopia do sem limite pariu a aporia da
discursividade eg—ica. Este superficialismo subjetivo, porŽm, Ž compensado por
White frente ao sintom‡tico contexto reativo que os apreende. White, como bom
defensor da literatura, sabe ver a boa fic•‹o do absurdismo. As possibilidades
te—ricas dos absurdistas s‹o obnubiladas pelos problemas culturais que revelam
(WHITE 1994:306). Assim White veta o c—gito por sua n‹o cientificidade, mas v
com altivez as implica•›es das posturas.
6- Proje•›es: limites e interroga•›es do projeto metacr’tico 166
N‹o menos impactante foi White no campo historiogr‡fico. Ele abriu feridas
que exigem menos remendo que aten•‹o. Ap—s sua volumŽtrica irrup•‹o ficam para
ele e para n—s algumas quest›es:
a- como conciliar teoria cr’tica da representa•‹o, erudi•‹o, cr’tica das fontes e
metodologia, evitando que a pr‡tica historiogr‡fica seja uma extens‹o da teoria
liter‡ria? b- como conciliar padr›es de conceptualiza•‹o e novos paradigmas de
racionalidade e constru•‹o conceptual?
c- como conciliar as dimens›es representacionais e a singularidade hist—rica
dos discurso, evitando anacronismos e a obsess‹o pela atualidade te—rica?
d- como conciliar a tradi•‹o estudada com o hipercriticismo de teorias
contempor‰neas?
166 Seguimos , para formular estas perguntas, Koselleck e Gadamer , conf. Bibliografia.
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e- como conciliar as pretens›es de uma teoria geral da representa•‹o com as
limita•›es hist—ricas de todas as teorias?
Esse "reino-meta" que White adentrou perpetua ou contempla algumas dessas
quest›es.
Continuando seu percurso intelectual, White permanece nesse c—gito
fronteiri•o por ele avistado, publicando colet‰neas com artigos que ficham reflex›es
sobre a rela•‹o entre narrativa e representa•‹o, autores que compartilham de seu
campo intelectual (como se v em The Content of the Form (1987), mapeando o
campo intelectual contempor‰neo, com a diminui•‹o casos mais situados, a n‹o ser
aqueles que se relacionam o tema da ficcionaliza•‹o da hist—ria. H‡ o esperado
abandono da tropologia ( e de Vico) em prol das multidesviantes problematiza•›es
sobre a representa•‹o da realidade, ou melhor, sobre a realidade da representa•‹o.
White instala-se no espa•o de representa•‹o e discuss‹o que ajudou a formar, sendo
seu vigilante, traduzindo subjetividades em cincia discursiva.
Mas em seu ultimo livro, Figural Realism, reascende o torpor absurdista no
p—s-ceticismo egol‡trico que Ž o relativismo, com White defendendo que a diferen•a
entre sentido literal e figural Ž uma distin•‹o convencional. A elimina•‹o das
distin•›es forneceria um pressuposto eficiente para os novos tempos?
As dif’ceis rela•›es entre hist—ria e fic•‹o, medeadas por uma teoria da fic•‹o,
e n‹o por obras ficcionais, prolongam discuss›es-meta sobre a representa•‹o.
Enquanto perdura o modelo anal—gico, onde um termo Ž comparado ao outro n‹o
marcado ou em oposi•‹o, o sucesso do modelo mascara a redu•‹o efetivada. O
probalismo discursivo do mentalismo lingŸ’stico p—s-tropol—gico resolve os dŽficits
de aplica•‹o te—rica pela assepsia criticizante, encaminhando-se a ensa’stica para um
exerc’cio autoreferente, para uma hermenutica hermŽtica.
As hesita•›es, os incrementos e as ambigŸidades de White, no entanto,registram alternativas para os impasses de uma racionalidade atenta ˆ singularidade
expressiva dos textos da tradi•‹o.
7- O œltimo e expandido HaydenWhite: retomando criticamente a
hip—tese narrativista
O hipercriticsmo da hip—tese narrativista prolonga-se para alŽm dos debates
sobre a natureza ficcional da Hist—ria. Tal hip—tese engendrou intricado conjunto de
quest›es em conformidade com a explicita•‹o de parte dos mecanismos referenciaisdo discurso hist—rico. Isto propiciou um topos privilegiado que foi convertido em
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evidncia e logo em prŽ-requisito. O esfor•o das reflex›es aqui delineadas Ž uma
tentativa de se pensar a Hist—ria sem o recurso deste prŽ-requisito como pressuposto.
Para tanto valho-me da explana•‹o da proposta integrativa de R. Koselleck
que, em sua fenomenologia da atividade historiogr‡fica, possibilitou acesso a
interroga•›es nas quais o empreendimento te—rico n‹o Ž cativo de seu contexto
reativo, mote e limita•‹o da hip—tese narrativista, como veremos.
No recente Figural Realism Hayden White procura sintetizar a hip—tese
narrativista e, ao mesmo tempo, responder aos seus cr’ticos. Desse modo, fornece-nos
os procedimentos padr›es pelos quais a hip—tese narrativista ganha sua coerncia e
estabilidade. As novas preocupa•›es, alvos cr’ticos e teorias s‹o assimiladas e
naturalizadas em um contexto intelectual j‡ bem definido. A expans‹o do argumento
narrativista Ž confirmada pelo que se comenta. A amplitude, pois, Ž a ratifica•‹o dos
pressupostos narrativistas.
O pressuposto fundamental da hip—tese narrativista Ž que a Hist—ria Ž discurso,
Òas special kind of language use Ò(p.7)167. Sendo assim, o discurso hist—rico Ž Òspecial
case of discourse in generalÓ(24). O que se descobre no discurso em geral ser‡
aplicado corretamente ao discurso particular. A materialidade lingŸ’stico-expressiva
como fato determinante da produ•‹o de sentido nos discursos teorizada por fil—sofos
da linguagem (Quine,Searle,Goodmam e Roorty (5), enfatizada pela emergncia da
teoria liter‡ria contempor‰nea(Barthes,Jakobson,Todorov) e sempre presente nos
cl‡ssicos da historiografia (como Hayden White demonstrou em Metahist—ria) Ž
eficiente tambŽm no discurso hist—rico. Mais explicitamente, o conteœdo do discurso
pode ser extra’do de sua forma lingŸ’stica(5).
Esta forma lingŸ’stica Ž esclarecida pela narrativa. A economia narrativa do
discurso hist—rico Ž ampliada. A fun•‹o da narratividade na produ•‹o do texto
hist—rico se d‡ em todas as fases da escritura historiogr‡fica. Os modos de escolha,ordena•‹o temporal dos acontecimentos bem como a pr—pria argumenta•‹o s‹o
orientados e previamente selecionados em fun•‹o das estratŽgias de figura•‹o
utilizadas(9).
Assim sendo, temos v‡rias implica•›es da hip—tese narrativista:
a- elimina•‹o da distin•‹o entre fato e interpreta•‹o, ou seja, entre objetos e
metalinguagem(29)
167 Como vou me deter em Figural Realism nesta se•‹o, indico apenas a p‡gina.
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b- elimina•‹o da distin•‹o entre discurso(sentido) figural e literal(Pref‡cio p
vii).
Mais propriamente, estas distin•›es s‹o convencionais. Respondendo a seus
cr’ticos, White procura demonstrar que as obje•›es que lhe s‹o feitas - relativismo
lingŸ’stico, ausncia da faticidade e veredic•‹o da realidade, limita•‹o cr’tica da
teoria ao espa•o subjetivo generalizador e abstrato do intŽrprete(13-16) - n‹o levam
em conta a redefini•‹o da atividade cognoscente que a radicaliza•‹o da determina•‹o
figural lingŸ’stica faculta. Ao invŽs da sistem‡tica de contraconceitos, nos quais
pressup›es uma totalidade que Ž reafirmada por partes que lhe s‹o contrapostas,
White advoga uma teorŽtica unificadora que atomiza os diferidos e os diversos por
sua referncia a um movimento significador basilar. Essa pansignifica•‹o Ž
formalmente explicada pela tropologia, ou teoria formal das representa•›es.
Resolvendo quest›es por uma mudan•a de enfoque que as elimina, Hayden
White acaba por setorizar o campo da hip—tese narrativista. A evidncia material da
linguagem no discurso da Hist—ria aparece aqui como um tru’smo n‹o desenvolvido.
As analogias entre discurso hist—rico e liter‡rio se avolumam. Contudo, a diferen•a
permanece. Fic•‹o n‹o Ž somente narrativa, assim como Hist—ria n‹o Ž somente
linguagem.
Neste momento, chamo para este di‡logo R. Koselleck. Sua teoria da hist—ria
pode nos ajudar a entender o papel da linguagem na Hist—ria.
8- A proposta integrativa de Koselleck. Primeira aproxima•‹o
ÒH‡ processos que escapam a toda compensa•‹o e interpreta•‹o lingŸ’stica.
Este Ž o ‰mbito da Hist—rica (...) Quando a Hist—rica apreende as condi•›es de uma
poss’vel Hist—ria, remete-se a processos de longo prazo que n‹o est‹o contidos em
texto algum, mas que provocam textosÓR. Koselleck
Koselleck, assim como White, est‡ empenhado em problematizar o estatuto da
Hist—ria. Tendo um imenso arquivo a seu dispor, uma tradi•‹o te—rica e cr’tica
secular, para Koselleck o modo de intervir e interrogar este estatuto foi efetivado a
partir dessa mesma tradi•‹o. Ao invŽs de erigir a teoria como resposta a determinado
problema de seu campo intelectual e restringir com isso o horizonte da reflex‹o ˆatualidade dos eventos pontuais ( que coordenados ent‹o v‹o se tornando fatos
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confirmados da teoria proposta), Koselleck integra as situa•›es em constantes, em
padr›es de acontecimentos que conjugam a singularidade do evento com correlativa
multiplanaridade temporal. Ou seja, os fatos demonstram-se integrados em
pressupostos de a•‹o estruturais, como veremos mais adiante.
A teoriza•‹o Ž uma clarifica•‹o preliminar que procura pensar a pr‡tica
historiogr‡fica no contexto de sua produ•‹o. Para tanto, as atividades desta pr‡tica s‹o
desnaturalizadas e caracterizadas. Diferentemente de Hayden White, as distin•›es
aqui s‹o fundamentais. Na fenomenologia da atividade historiogr‡fica a
heterogeneidade da experincia de tempo se apresenta conectada ˆ diversidade
cognitiva dos processos que a apreendem. A mœtua implica•‹o entre experincia
hist—rica e conhecimento de tal experincia constitui a coerncia e a coes‹o do
impulso te—rico de Koselleck
Fiel a este ditame, h‡ a factual distin•‹o entre evento e estrutura. Eventos
podem ser narrados e estruturas, descritas. H‡ condi•›es estruturais que tornam
poss’veis os eventos assim como estruturas somente s‹o compreens’veis atravŽs dos
eventos com os quais as estruturas s‹o articuladas (109168) Mas, frente ˆ diversidade
de extens›es temporais pr—prias, estas atividades existem e exigem diferentes
metodologias (105). Mais precisamente, Òn‹o h‡ completa inter-rela•‹o entre n’veis
de diferentes extens›es temporaisÓ(105). O tempo do evento e o tempo da estrutura
n‹o se fundem. Tal assimetria Ž que os coordena. O hiato Ž ’ndice de uma
produtividade mais fundamental.
A hip—tese narrativista supervaloriza uma componente da pr‡tica
historiogr‡fica, transferindo significados e fun•›es sem se interrogar sobre a diferen•a
que as funda. ƒ preciso estar atento ˆs condi•›es de possibilidade da Hist—ria. A
compreens‹o das extens›es temporais das circunst‰ncias hist—ricas esclarece a a•‹o
interpretativa. Basear a pr‡tica historiogr‡fica na narratividade e em seu campoconceitual implicado Ž limitar a racionalidade empregada nesta pr‡tica ˆ interroga•‹o
do n’vel representacional dos eventos. O poder de explica•‹o da teoria fica reduzido a
uma metalinguagem que sucumbe ao espa•o de experincia do intŽrprete .
A distin•‹o entre evento e estrutura melhor evidencia o processo conceptual
que determina a Hist—ria. A pr‡tica historiografia Ž uma constru•‹o racional bem
situada. Fatos ocorridos e julgamentos atuais (152) convergem para uma tens‹o entre
168 Nesta e nas pr—ximas duas se•›es me refiro a KOSSELECK1985(Future Past). Da’ cito apenas a p‡gina do livro em parntesis.
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teoria da hist—ria e fontes. Mas estes n’veis n‹o se confundem. Hist—ria nunca Ž
idntica ˆs fontes que providenciam evidncia para Hist—ria (153). Contudo, o passo
alŽm das fontes, a total primazia te—rica, Ž limitado pela cr’tica das fontes. ÒFontes
protegem-nos de erro, mas nunca nos contam o que Ž preciso dizerÓ(155), mas sim o
que n‹o dizer. ÒAs fontes tem o poder de veto.Ó(155). A transcendncia ˆ exegese
imanente n‹o pode ser decidida em termos de fontes. Trata-se de uma decis‹o te—rica.
A primazia da teoria que individualiza estruturas de longa dura•‹o nos eventos Ž
conectado ˆ presen•a de uma met—dica acur‡cia, marca da faticidade de uma
determina•‹o extralingŸ’stica. Revela a descontinuidade entre o tempo do discurso e o
tempo dos acontecimentos estruturados e suas possibilidades heur’sticas A
conceptualiza•‹o, pois, conecta a racionalidade a uma aplicabilidade contrapontual. O
conceito hist—rico Ž a express‹o dessa racionalidade aplicada, n‹o autocontida.
O que promove um esclarecimento mais preciso da intera•‹o entre
acontecimentos hist—ricos e sua constitui•‹o lingŸ’stica (201) dentro de um paradoxo
aparente. ÒNa ausncia de atividade lingŸ’stica, os eventos hist—ricos n‹o s‹o
poss’veisÓ... assim como Ònem eventos ou experincias s‹o esgotados por sua
articula•‹o lingŸ’sticaÓ(230). Hist—ria nem Ž a soma de todas suas denomina•›es nem
Ž assimilada pelos conceitos que a compreendem (162). N‹o se identifica com seu
registro lingŸ’stico, mas ao mesmo tempo n‹o Ž independente de sua articula•‹o
lingŸ’stica(164). Linguagem e Hist—ria s‹o interdependentes, mas n‹o nunca
coincidem(233)
Tais defasagens situam a pr‡tica historiogr‡fica em sua efetividade e n‹o
apenas em sua materialidade expressiva. Providenciam limites e possibilidades. A
conceptualidade por si n‹o recobre o que representa. Definindo-se a economia
representacional do discurso historiogr‡fico, reelaboram-se as suas t‡ticas
interpretativas. A singularidade do interpretado modifica as estratŽgias doinvestigador. A performance lingŸ’stica interpreta a experincia medeando a
explicita•‹o dos ’ndices temporais dessa experincia. A pr‡tica historiogr‡fica
conceptualiza a temporalidade das experincias. A lingŸisticidade da hist—ria Ž a
medea•‹o conceptual das estruturas temporais que tornam poss’veis os eventos. A
atividade historiogr‡fica, pois, precisa ser interrogada acerca de sua determina•‹o
conceptual e de sua sem‰ntica temporal.
9- Segunda aproxima•‹o: Conceitos e Hist—ria
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A reflex‹o sobre as rela•›es entre os mŽtodos da Begriffsgeschichte e Hist—ria
Social em muito contribui para o esclarecimento do uso de conceitos em Hist—ria.
Examinando as diferen•as entre as duas disciplinas, Koselleck demonstrou o equ’voco
de fun•›es a elas s‹o atribu’das. A Begriffsgeschichte encontraria na linguagem seu
œnico estatuto de praxis. J‡ a Hist—ria Social somente se utiliza do texto como
pretexto confirmador de forma•›es sociais de longa dura•‹o (74).Os usos do texto
(linguagem) revelam as estratŽgias diversas de contextos intelectuais ou pressupostos
de inteligibilidade.
Koselleck, interrogando mais esta aparente oposi•‹o, explicita uma
problem‡tica mais complexa. A tens‹o entre ÔsociedadeÕ e ÔconceitoÕ n‹o pode ser
considerada sem um tratamento te—rico mais rent‡vel. A regionaliza•‹o das
disciplinas n‹o elimina a presen•a da conceptualidade. O enfoque Ž diverso, mas
sempre se recorre a uma conceptualiza•‹o.
Quando Koselleck pontua a diferen•a entre conceito e palavra o incremento
da Begriffsgeschichte para alŽm de sua disciplina Ž melhor entendido. Ò Cada
conceito Ž associado a uma palavra mas nem toda palavra Ž um conceito social ou
pol’tico(83)Ó A n‹o conversibilidade de palavra e conceito torna percept’vel n‹o s—
os heterogneos usos da linguagem mas a coexistncia de modos de referncia
diferentes em um sincronia assim como diversos empreendimentos de inteligibilidade.
ÒA palavra pode permanecer a mesma, no entanto o conteœdo por ela designado
altera-se substancialmenteÓ (KOSLLECK1992:138). O conceito Ž proposi•‹o de uma
argumenta•‹o sendo elaborada.
Ë distin•‹o entre conceito e palavra Koselleck acopla Ò o car‡ter œnico e
particular que configura o momento concreto em que um conceito Ž formulado e
articulado(KOSLLECK 1992:140)Ó O conhecimento do repert—rio de referncias
tratadas reflexivamente pelos conceitos precisa reivindicar a aplicabilidade da teoria.O aprofundamento das estruturas profundas das continuidades exigem a singularidade
do evento focalizado(KOSLLECK1992:141). ÒTodo conceito s— pode enquanto tal
ser pensado e falado/expresso uma œnica vezÓ (KOSLLECK1992:138) aponta para a
primazia te—rica na pratica historiogr‡fica que investiga as possibilidades da historia
dentro de uma racionalidade cativa de experincias compreensivamente integradas ˆ
sua problematiza•‹o conceitual, que leva em conta uma delimita•‹o da atividade
categorial das condi•›es dessas possibilidades.
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Diante disso, Koselleck amplia a metodologia da Begriffsgeschichte como
emblem‡tico posicionamento do campo historiogr‡fico. Ò Nada pode ocorrer que n‹o
seja apreendido conceptualmenteÓ (85). Experincias passadas na linguagem-fonte e
metalinguagem cr’tica do analista convergem para a primazia da
Begriffsgeschichte(90).A investiga•‹o do conceito n‹o se reduz a uma tarefa
puramente lingŸ’stica. Para alŽm da ingnua circularidade palavra-coisa (85), o
conceito Ò Ž ’ndice de seu conteœdo extratextual, indicador de estruturas sociais e
situa•›es de conflito pol’tico.Ó(82) A clarifica•‹o do uso conceptual no passado Ò n‹o
apenas nos ensina a singularidade de significados mas tambŽm contŽm possibilidades
estruturaisÓ(90) As dura•›es, mudan•as e futuridades contidas em eventos s‹o
interpeladas em seus tra•os lingŸ’sticos(77) demarcando as fronteiras entre n’veis de
realidade significados, propostos ou debatidos. A integratividade dos tempos dos
eventos aponta para o tratamento te—rico das distin•›es. A conceptualidade da
Hist—ria funda-se aqui no estudo aplicado das referncias e de suas simplifica•›es. A
produtividade das distin•›es temporais dos eventos exige uma reflex‹o que saiba dar
o horizonte cognitivo de cada distin•‹o uma amplitude e seja capaz de revelar as
condi•›es de realiza•‹o do evento. A persistncia da experincia do passado e sua
viabilidade te—rica se acoplam no esfor•o conceitual.
A amplia•‹o da Begriffsgeschichte promove o contexto reativo de Koselleck
no qual ele argumenta contra os limites de uma hermeneutiza•‹o completa da
Hist—ria, ou melhor contra a manipula•‹o da Hist—ria como subcaso da
hermenutica(KOSLLECK1997:69). Interrogando-se acerca do status lingŸ’stico das
categorias empregadas na Hist—ria, Koselleck conclui que tais categorias apontam a
modos de existncia que, Ò mesmo mediados lingŸ’sticamente, n‹o se diluem
objetivamente na media•‹o lingŸ’stica, mas possuem tambŽm seu valor pr—prio e
aut™nomo( KOSLLECK1997: 87)Ó. A distin•‹o entre palavra e conceito proporcionada pela Begriffsgeschichte , retomando a distin•‹o entre evento e
estrutura, procura contextualizar o que faz um historiador. Ele n‹o Ž um formalizador
de representa•›es. Sua racionalidade n‹o se reduz ao confinamento de sua
metalinguagem. N‹o basta que a origem da teoria hist—rica seja demonstr‡vel
lingŸ’sticamente ou que esta teoria possa ser concebida como uma resposta lingŸ’stica
a uma pergunta previamente dada (KOSLLECK 1997:88 ). ƒ preciso se dar conta da
excedncia estrutural inscrita nos eventos (KOSLLECK1997:88) como forma de
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ultrapassar o ilusionismo metodol—gico da separa•‹o entre atividade cognoscente do
intŽrprete e a provoca•‹o resistente da realidade-foco.
A refuta•‹o da aposta que Ò a l’ngua visse a se constituir na ultima inst‰ncia da
experincia hist—ricaÓ (KOSLLECK1992:136) e o relevo de elementos prŽ-
lingŸ’sticos ou n‹o lingŸ’sticos na verdade respondem a um conceito de linguagem
mais relacionado com atividade do historiador. A resposta contra essa generaliza•‹o
do paradigma lingŸistico hermenutico Ž uma refuta•‹o de evidncias n‹o
questionadas que obliteram acesso a problemas mais prementes ˆ realidade da pr‡tica
historiogr‡fica. O apelo ˆ Begriffsgeschichte procura iluminar as implica•›es da
interven•‹o racional na interpreta•‹o de eventos de modo a proporcionar uma teoria
compreensiva da hist—ria em suas possibilidades, a Hist—rica (KOSLLECK1992: 68).
O nexo entre evento e sua representa•‹o implica na teoriza•‹o do entendimento deste
nexo. A historicidade dos eventos duplica-se na historicidade da compreens‹o. A
aplicabilidade dos conceitos Ž a possibilidade de uma Raz‹o hist—rica.
10 - Terceira Aproxima•‹o: A sem‰ntica temporal
O conceito hist—rico de tempo, delineado na compreens‹o da n‹o localidade
insular dos eventos, exige do intŽrprete a temporaliza•‹o de sua atividade. A
Òhistoriza•‹oÓ dos eventos Ž suplementada pela aplica•‹o de duas categorias: espa•o
de experincia e horizonte de expectativa (169266-288). A rentabilidade heur’stica
dessas categorias revela-se na medida em que configuram diversos n’veis de
referncia e temporalidades presentes em uma sincronia. Facultam-nos a visibilidade
dos eventos conectados ˆ efetividade da condi•‹o humana, de modo a indexar o
conhecimento hist—rico ˆ estrutura•‹o dos acontecimentos, pois Òas condi•›es de uma
hist—ria real s‹o ao mesmo tempo as condi•›es de sua cogni•‹oÓ(270).
Espa•o de experincia e horizonte de expectativas est‹o indissociavelmente
relacionados, Òn‹o h‡ expectativa sem experincia, nem experincia semexpectativaÓ(270). Contudo, Óexperincia e expectativa pertencem a diferentes
ordens... passado e futuro nunca coincidemÓ(272). Mais especificamente Òa presen•a
do passado Ž distinta da presen•a do futuro(273). Experincia e expectativas remetem
a efetividades que as possibilitam e limitam. Marca disso Ž a irreversibilidade da
experincia e a revisionabilidade das expectativas. Expectativas podem ser
experimentadas(274) mas sua indetermina•‹o n‹o se recolhe nesse proceder. Os
169 Novamente Future past.
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’ndices temporais de experincias e expectativas remetem para acontecimentos
espec’ficos.
A din‰mica de coexistncia de pluralidade de tempos(282), assinalando eixos
de referncia sobrepostos e distingu’veis, demonstra a insuficincia de uma
racionalidade monorientada. Os tempos e acontecimentos distintos para os quais as
categorias apontam indicam a insuficincia de sua determina•‹o quando apreendida
por categorias exclusivistas e unilaterais (275).ÓA prŽvia existncia de um espa•o de
experincia n‹o Ž suficiente para a determina•‹o do horizonte de expectativa(275)Ó A
hist—ria articula-se em contextos e situa•›es que demandam existencialismos que n‹o
est‹o em um mesmo n’vel de realiza•‹o. A faticidade espec’fica dos acontecimentos
que a copla experincia/ expectativa assinala habilita o historiador a poder trabalhar
com um realismo produtivo em seu trabalho, um realismo comprometido com
diversos n’veis de referncia e sentido que uma coesa heterogeneidade oferece.
Este influxo temporal nas categorias hist—ricas mobiliza a compreens‹o da
dist‰ncia hist—rica entre o intŽrprete e o passado. Ao invŽs de uma homogeneiza•‹o
dos eventos por meio de uma metalinguagem aplainadora das diferen•as, transferindo
os fatos para feitos formais ( Hayden White), a compreens‹o da presen•a do futuro na
presen•a do passado exige o refinamento racional para distin•›es sutis e tra•os de
referncias espec’ficas.
A sem‰ntica temporal n‹o Ž fato lingŸ’stico. ƒ feito te—rico. A articula•‹o da
hist—rica experincia de tempo efetiva os seguintes fatores de uma Hist—rica(94):
1- a irreversibilidade dos eventos
2- a repetibilidade dos eventos
3- a contemporaneidade do n‹o contempor‰neo ou estrutura
progn—stica do tempo hist—rico.O influxo de futuridade que a categoria de expectativa possibilita desloca o
modo como a referncia em hist—ria Ž constru’da. Trabalhando normalmente com um
discurso constatativo, apenso ˆ localidade dos eventos, o historiador desnorteou-se
com a atemporalidade da hip—tese narrativista. Problematizando a referncia mas n‹o
a orienta•‹o temporal da referncia, Hayden White solucionou as quest›es de
realidade e verdade eliminado-as em prol da lingŸisticidade da Hist—ria. A
autoreferencialidade do discurso historiogr‡fico Ž a resposta para as exigncias prŽ ou p—s lingŸ’sticas. Esse novo gabinetismo prescinde de arquivos de contraste ou
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propostas te—ricas adversas. Quando defronta-se com diferidos, confronta-os com as
exigncias de sua clivagem te—rica. Isso ficar‡ mais claro quando vamos ver Hayden
White ˆ luz da reflex‹o sobre a modernidade e Historia proposta por Koselleck. A
hip—tese narrativista Ž mais um capitulo da modernidade e sua espec’fica sem‰ntica
temporal.
11- A sem‰ntica temporal aplicada : historiografia da modernidade
Permeando a Teoria das hist—rias poss’veis (Hist—rica), temos um motivo
basilar frequentemente revisitado. Trata-se da interroga•‹o acerca do conceito de
Hist—ria e, por conseqŸncia o conceito de Modernidade. A forma como Koselleck
escreve - interligando ao seu foco de observa•‹o conceitos e situa•›es
exemplificadoras e correlatas Ð resulta que, quando h‡ retorno ao circuito conceito de
Hist—ria Ð Modernidade, repense-se e se diversifique tanto os conceitos que cada
texto seu procura debater quanto essa presen•a extensa do circuito.
Dessa maneira a extens‹o e presen•a do circuito conceito de Hist—ria Ð
Modernidade se transforma no contexto intelectual de sua Hist—rica. A compreens‹o
da situa•‹o interpretativa da pr‡tica historiogr‡fica, revelada nas discuss›es
metodol—gicas Ž mais bem esclarecida na historicidade conceptual que preside a
forma•‹o de nosso conceito de Hist—ria. O embate epistemol—gico Ž esclarecido por
meio da teoriza•‹o sobre as fontes do discurso-base. A sincronia do investigador n‹o
Ž alvo e meta do esfor•o interpretativo. A contextualiza•‹o metodol—gica Ž
acompanhada por uma contextualiza•‹o da tradi•‹o do discurso-base.
A Hist—rica de Koselleck vale-se do processo de transforma•‹o que a pr‡tica
historiogr‡fica vem desenvolvendo desde o sec XVIII (200). Antes, o que havia era
Òhist—riasÓ. O passado era um suplemento para a experincia hist—rica da comunidade
viva (140), n‹o excedendo a trs gera•›es tal espa•o de experincia(142). Sob oinfluxo do Iluminismo h‡ uma abertura e amplia•‹o metodol—gicas, alterando a
rela•‹o com o passado. Ao invŽs de ser somente preservado oralmente ou por textos,
o passado podia ser reconstru’do atravŽs de um processo intelectual de critica de
fontes(142), visando uma sistmica totalizante e universalista.
Dessa forma tornou-se poss’vel reconhecer Òa qualidade temporal que
distingue o Ontem de Hoje e que o Hoje necessita ser observado como
fundamentalmente distinto do amanh‹ (142)Ó. A repeti•‹o paradigm‡tica e exemplar
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dos eventos nas Òhist—riasÓ Ž descartada. O todo œnico da Hist—ria assimila essa
divis‹o temporal.
Frente a esta ruptura com a continuidade, o tempo de agora, o novo tempo
(Neuzeit/neu Zeit) Ò pressup›e uma conscincia da diferen•a entre experincia
tradicional e a irrup•‹o de expectativas(277)Ó A modernidade trabalha neste hiato
cada vez maior entre experincia e expectativa, incrementando um renovado e
extenso horizonte de expectativas futuras(203). Abreviando o espa•o de experincia,
subtraindo dele sua const‰ncia e continuidade, projetando-o como continuamente
novo, a modernidade suprimeÓ a possibilidade de o presente ser experimentado como
presenteÓ(18)
A cont’nua mudan•a culmina na determina•‹o de progresso. Ò O progresso
combina experincias e expectativasÓ(278) nesta assimetria geradora de um novo
futuro. N‹o h‡ mais contemporaneidade, mas acelera•‹o, otimiza•‹o progressiva
(283-284). O tempo topicaliza-se na ruptura da continuidade (281) tendo como efeito
compensat—rio esta f—rmula: experincia em plano secund‡rio, expectativa em
destaque (288). Eis a referncia da estrutura temporal da modernidade, que poderia
ainda se consumar em uma prognose racional pragm‡tica(280, 14)
Tal descri•‹o coincide com alguns tra•os da hip—tese narrativista. Hayden
White transforma o topos ruptura na continuidade em mecanismo referencial dos
processos que defende e postula como integrantes da renova•‹o dos estudos
historiogr‡ficos e do pensamento ocidental. Para ele, em nosso sŽculo ocorreu uma
revolu•‹o nas pr‡ticas de representa•‹o por meio da qual a no•‹o de evento hist—rico
foi modificada (WHITE 1999:72). Assim como a atividade liter‡ria contempor‰nea
dissolveu a trindade de evento, personagem e enredo do romance realista do sŽculo
XIX e sua pretens‹o de representar a realidade realisticamente a realidade, (17065-66)
deve a Hist—ria renunciar ao seu estatuto referencial f‡tico. Contra o fetichismo doseventos (82), a recusa do tabu representacional que separa e op›e fato e fic•‹o e
fic•‹o (66).
Esta renœncia concentra-se na seguinte aposta: Ò The denial or the reality of
the event undetermines the very notion of fact informing traditional realism(67)Ó.A
nega•‹o dos pressupostos realistas, por sua natureza convencional e arbitr‡ria,
possibilita o acesso a sentidos outros que n‹o poderiam ser revelados.
170 Aqui e no restante da se•‹o refiro-me a Figural Realism
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Eis a an™mala natureza dos eventos modernistas Òthat undermine not only the
status of facts in relation to events but also the status of the event in general (70)Ó. O
foco muda do evento para seu sentido.
Tal desrealiza•‹o dos eventos (76),contudo, ainda opera por categorias
negativas que se acumulam indefinidamente e materializam-se na transposi•‹o de
imagens para o discurso anal’tico. O sentido Ž definido como Òspectral, seeming to
consist solely in the spatial dispersion of the phenomen (76)Ó Ou mais indeterminado
ainda como Òinstable, fluid phantamasmagoric(79)Ó.
Por meio de nega•›es progressivas, Hayden White constr—i um espa•o de
referncia somente acess’vel pelo acatamento desta ret—rica e seus procedimentos. A
realidade desta desrealiza•‹o efetiva-se em objetos conceptuais-estŽticos, construtos
que procuram relevar sua independncia ˆ qualquer condi•‹o objetiva prŽ-existente. O
questionamento dos modos de referncia se torna a matŽria desse entre-lugar.
Quando Hayden White analisa e critica alguns trabalhos do New Historicism
evidencia a defini•‹o modernista da hip—tese narrativista.
Nos trabalhos do New Historicsm ter’amos (55-57):
a- fal‡cia genŽtica, ou Òa cren•a que os textos liter‡rios podem ser
iluminados pelo estudo de suas rela•›es com seu contexto hist—ricoÓ;
b- fal‡cia referencial, ou distin•‹o entre texto e contexto;
c- fal‡cia culturalista, ou a cren•a que o contexto hist—rico Ž o
sistema cultural;
d- E, finalmente, fal‡cia textualista, a cren•a que a cultura Ž texto.
Para Hayden White, o New Historicism Ž duplamente redutor por reduzir o
social ao status de uma fun•‹o do cultural e o cultural ao status de texto.(56).
Combina o que Ósome historias regard as formalist falacies (culturalist and
textualism) in the study of history with what some formalist literary theorists regardas historicist falacies (geneticism and referentiality) in the study of literature (56)Ó.
Tal poŽtica cultural retoma o entrechoque entre estratŽgias contextualistas e
formalistas na explana•‹o hist—rica, debate ocorrido que aconteceu ap—s a redefini•‹o
das rela•›es entre texto e contexto nos anos sessenta. Para os p—s-estruturalistas, n‹o
h‡ nada alŽm de texto. O apelo ao contexto retoma um ideal de verdade emp’rica
ainda presente na disciplina (43). A recusa da d’ade texto-contexto Ž a denœncia da
continuidade deste ideal. Incita ˆ libera•‹o da atividade te—rica da referncia a este programa do idealismo hist—rico. O programa hist—rico de agora Ž caracterizar as
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ocorrncias de sentido e suas rela•›es com os c—digos dominantes (63), expurgando
Ómyths of such Ôgrand narrativesÕ as fate, providence, Geist, progress, the dialetic, and
even the myth of the final realization of realism itself (100)Ó A transforma•‹o dentro
do sistema ultrapassa a tens‹o entre estratŽgias contextualistas e formalistas.
Escrevendo um cap’tulo da modernidade, Hayden White busca legitimar em
sua proposta narrativista a redu•‹o do espa•o de experincia em prol do horizonte de
expectativas. O fantasmag—rico contra todo e qualquer res’duo realista acredita que
mudando os nomes, os problemas ser‹o resolvidos. O conceito aqui se torna o campo
de experincias de desindexar a linguagem de uma operatividade hist—rica. N‹o Ž em
v‹o que a contraparte estŽtica do p—s- estruturalismo denomina-se realidade virtual.
A autonomia da representa•‹o, este castelo de Axel ainda visado, acess’vel
somente em sua metalinguagem, proporciona a articula•‹o de conceitos
independentes de processo argumentativo aplicado a um evento. A justaposi•‹o
conceptual Ž uma racionalidade sem cogitatum, pensamento que repensa o
pensamento.
12- Koselleck plaus’vel: a operacionalidade da sem‰ntica hist—rica
Em vez de parafrasear Koselleck, procurarei demonstrar a operacionalidade de
sua proposta integrativa. Denominei INTEGRATIVA assim, pois, para ser fiel ˆ
tradi•‹o hermenutica com a qual dialoga. Koselleck retoma a hermenutica filos—fica
de H.G. Gadamer(1997:68-94), principalmente a recupera•‹o da reflex‹o moral e da
aplica•‹o de Arist—teles (GADAMER 1998:459-481). Gadamer exp›e sua
Hermenutica filos—fica a partir da demonstra•‹o dos limites do idealismo alem‹o
(GADAMER 1998:273-288). Gadamer realiza ent‹o tambŽm o seu embate com o
Modernismo. Koselleck procura expandir o escopo das reflex›es de Gadamer ao propor que a Hist—rica se utilizaria de uma racionalidade que levaria mais em conta a
nossa faticidade, n‹o uma faticidade filos—fica, discursiva, mas factual (1997:91-93).
Pois no projeto cr’tico de Gadamer estaria inscrita uma alternativa ˆ racionalidade
ocidental por meio da alteridade imanente que a linguagem revela (1997:104). Mas
seria somente a linguagem que possibilitaria essa reorienta•‹o do sujeito e de suas
estratŽgias de entendimento?
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Para tanto, creio retirar da reflex‹o de Koselleck algumas proposi•›es
operacionais v‡lidas para o in’cio desta problematiza•‹o entre Raz‹o e Hist—ria, a
partir da pr‡tica historiogr‡fica:
0- Hist—ria Ž a conceptualiza•‹o de uma experincia;
1- referncia n‹o Ž linguagem Ð Ž ’ndice temporal;
2- a focaliza•‹o discursiva tematiza ordens temporais diversas;
3- h‡ v‡rios n’veis de contextualiza•‹o implicados em uma atividade
conceptual;
4- a argumenta•‹o individualiza-se em fun•‹o de seu processo de
finitiza•‹o;
5- n‹o h‡ o conceito, mas procedimentos de conceptualiza•‹o;
Contudo, mesmo ap—s cr’tica da Hermenutica pela Hist—rica, ainda ressoam
as palavras de Gadamer: Ò A faticidade do factum constatado pelo historiador nunca
poderia competir em import‰ncia com a faticidade que cada um de n—s Ð no momento
em que se constata ou se toma conta de tal factum Ð conhece como sua e que todos
n—s juntos reconhecemos como nossaÓ (1997:104). Com esse reconhecimento de n—s
mesmo, previne que se equipare historiografia com matem‡tica (1997:106 ). O
esclarecimento da situa•‹o interpretativa do historiador, pois, Ž finita, assim como as
tarefas. N‹o se esconderia aqui nesta resposta de Gadamer a Koselleck uma produtiva
refuta•‹o do esfor•o de igualar raz‹o e Hist—ria, lembrete sempre œtil frente a este
sŽculo p—s-Hegel.
Se as limita•›es da hip—tese narrativista, que radicalizou as analogias entre
discurso liter‡rio e hist—rico, conduzem para o ilusionismo do autofechamento e
autonomia da teoria, a proposta integrativa n‹o seria cativa do ilusionismo do poder
explicativo do conceito? Afinal, h‡ limites para a Hist—rica? Nesse debate, a amplia•‹o do conceito de texto fez sua refigura•‹o hist—rica,
n‹o mais como objeto pretextual de uma abordagem prŽ-dada. A historicidade do
texto transforma referncia em orienta•‹o, exigindo explana•›es te—ricas que
ultrapassem o aspecto frasal do texto. A operacionalidade dessa mudan•a incrementa
as estratŽgias interpretativas. O texto n‹o Ž mais lago a ser pulverizado e atomizado
em cita•›es. Ele Ž uma argumenta•‹o que pede uma contrargumenta•‹o. A abertura
metodol—gica da pr‡tica historiogr‡fica Ž contempor‰nea desta redefini•‹o de texto,mas n‹o se confunde com ela.
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6- Hist—ria cultural e teatralidade: Roger Chartier e a textualidade de
obras performativas
Roger Chartier referiu-se a obras e autores teatrais em algumas ocasi›es171. O
encontro do historiador cultural com registros dramatœrgicos explicita as rela•›es
entre texto e performance, fundamentais para a reinterpreta•‹o contempor‰nea tanto
das pr‡ticas investigativas historiogr‡ficas quanto de atividades representacionais das
artes de espet‡culo.
Ou seja, h‡ uma interse•‹o entre quest›es presentes na hist—ria das pr‡ticas de
leitura e a constitui•‹o de um horizonte te—rico de eventos cnicos172. Por meio de
uma detida considera•‹o do modo como Chartier analisa obras teatrais tais
convergncias e intersec•›es aqui ser‹o debatidas e estudadas.
O Ôcaso George DandinÕŽ paradigm‡tico. Chartier debru•ou-se sobre a obra de
Molire interrogando suas edi•›es impressas para reconstruir as rela•›es entre Òa
composi•‹o social do pœblico, as categorias estŽticas e as percep•›es que moldam as
diferentes apropria•›es da pe•a, e as diversas modalidades cnicas e perform‡ticas do
texto (CHARTIER, 2002:52)Ó
Para efetivar este pluralismo metodol—gico, Ž preciso ultrapassar o monadismo
lingŸ’stico Ð abordagem que v o texto como um objeto lingŸ’stico auto-suficiente,
capaz de gerar seu pr—prio significado a partir da materialidade verbal. Assim,
Òcontrariando a cr’tica tradicional, insens’vel aos modos de impress‹o e representa•‹o
dos textos, que acredita que o significado de uma obra de arte liter‡ria pode ser
inteiramente designado atravŽs de protocolos lingŸ’sticos, a dupla participa•‹o de
Georges Dandin nas festividades da Corte e nas pr‡ticas teatrais urbanas nos mostraque o sentido de uma obra depende sempre da maneira como ela Ž apresentada aos
seus leitores, expectadores ou ouvintes (CHARTIER, 2002:51)Ó
171 Atualmente R. Chartier orienta o semin‡rio Òƒcrire, publier, reprŽsenter etlire le thŽ‰tre aux XVIe et XVIIe sicles. ƒtudes de cas (Angleterre, Espagne, France) Èna LÕEcole Des Autes Etudes, Sorbone. V. http://crh.ehess.fr/document.php?id=314.Entre dramaturgos analisados, temos Shakespeare, Lope de Vega, Molire e Goldoni.
172Met‡foras epistemol—gicas a partir da teatralidade podem servistas em express›es como Òa idŽia que a publica•‹o de obras implicasempre uma pluralidade de atores sociais, de lugares e dispositivos, detŽcnicas e gestosÓ CHARTIER 2002:10.
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Disto, temos que a heterogeneidade do processo de transmiss‹o e recep•‹o e
recep•‹o n‹o Ž apenas um contexto de interpreta•‹o da obra, como se inscreve no
texto mesmo, redefinindo sua textualidade, vista agora em suas diversas opera•›es,
em sua produ•‹o coletiva, evidenciando Òa negocia•‹o entre o teatro e o mundo social
(CHARTIER,2002:51)Ó
Georges Dandin foi apresenta inicialmente em Versailles, em 1668, dentro de
um programa de evento festivo multifacetado por meio do qual a Corte celebrava a
gl—ria do maior monarca do mundo. A comŽdia se organizava na altern‰ncia entre
partes faladas e partes musicais (cantadas/dan•adas). Como dois espet‡culos dentro de
um s—, t’nhamos modalidades performativas com diferentes tramas, que se
comentavam Ð o mitol—gico-pastoral e o c™mico cotidiano do campons mal casado.
Georges Dandin, o campons humilhado Ž o contraponto ao mundo dos amantes no
mito. Os dois mundos s‹o justapostos e separados por suas modalidades de
apresenta•‹o. Na sucess‹o do espet‡culo temos o princ’pio da exclus‹o sendo
encenado: a farsa relacionada ˆs classes populares e a pastoral, ˆ corte. Mas, no
procedimento mesmo da justaposi•‹o, temos ambivalncias Ð a possibilidade dos
universos estanques trocarem suas referncias, as fronteiras entre as formas
promoverem contatos entre pretensas molduras fixas de representa•‹o e distin•›es
estŽticas e sociais.
Dessa forma a comicidade de Georges Dandin n‹o se manifesta apenas nos
jogos de cena, que Òmultiplicam os qŸiproqu—s, equ’vocos, e invers›es de situa•‹oÓ e
sim no contraste estrutural, na organiza•‹o que postula formas de espet‡culo para
distintas ordens sociais, e que, no decurso das performances, demonstra a que tais
distin•›es s‹o construtos, artificiais, formas de auto-representa•‹o e celebra•‹o Ð a
mœsica, as dan•as e o espa•o ideal do mito para as Ôclasses superioresÕ e a falta de
mœsica, as confus›es e o cotidiano para as Ôclasses inferioresÕ. A teatralidade doevento exp›e a construtividade das marcas. A convencionalidade das atribui•›es Ð a
comicidade do motivo do marido tra’do para o mundo pastoril e a sublimidade dos
sentimentos para o mundo da corte Ð subverte a estabilidade do contrato social. Para
Chartier, Ò a fic•‹o do teatro n‹o visa a reproduzir uma situa•‹o do ÔrealÕ, mas
pretende extrair,atravŽs da ilus‹o que ela postula e desmente ao mesmo tempo, os
pr—prios procedimentos pelos quais,contraditoriamente, o social Ž constru’do
(CHARTIER, 2003:119).Ó
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Ou seja, a dicotomia da forma de organiza•‹o do espet‡culo, procurando
demarcar distin•›es e valores entre as classes sociais, promove a exposi•‹o n‹o de
uma sociedade r’gida, baseada em uma classifica•‹o que se justifique alŽm do seu
impulso configurador. A sucess‹o dos eventos performados implode posi•›es
absolutas e torna simult‰neos os heterogneos, vinculando-os. O espet‡culo n‹o se
restringe ˆs falhas do campons: amplia-se em todas as dire•›es, exibindo aquilo que
se mostra - o arranjo do mundo como espet‡culo de sua manipula•‹o, Òdesmonta, em
uma situa•‹o de imagina•‹o, os efeitos da convic•‹o ilus—ria na mobilidade das
condi•›es (CHARTIER, 2003:139)Ó
A figura mesma de Georges Dandin nos ajuda compreender tal l—gica
representacional do avesso. A personagem-t’tulo casa com a filha de um nobre. Ele
procura ser igual aos membros da Corte. Esse homem simpl—rio articula
inverossimilhan•as tremendas em sua fantasia: seus atos s‹o imposs’veis dentro do
sistema social da Žpoca. No teatro apresenta-se uma transgress‹o da ordem vigente,
rid’cula tanto para a Corte quanto para os campesinos. Georges Dandin reœne os
paradoxos que uma transgress‹o realiza. Por isso, a pe•a articula-se como momento
em que os fatos encenados provocam um riso n‹o pontual. Os acontecimentos
explicitam um absurdo frente ao horizonte de expectativas quanto ao modo como as
identidades sociais eram definidas.
Assim sendo, vemos como a leitura de uma pe•a teatral se problematiza. A
din‰mica representacional do teatro, com sua materialidade espec’fica, dialoga tanto
com a tradi•‹o das artes da cena quanto com as formas de organiza•‹o da
comunidade. Em todo o caso, eventos performativos explicitam ser car‡ter de coisas
constru’das, sua metateatralidade. Obras teatrais s‹o an‡lises in situ de procedimentos
de organiza•‹o e valida•‹o de realidades.
Georges Dandin foi representada posteriormente agora em temporada emParis, no Teatro do Palais Royale. Em sua nova montagem, n‹o houve mœsicas ou
dan•as. Assim, n‹o mais nos jardins de Versalhes, optou-se por modificar um excesso
por outro: o excesso das distin•›es da primeira montagem rebaixava a fantasia da
personagem-t’tulo ao mesmo tempo em que dignificava a excepcionalidade do
monarca e suas regras. J‡ na cidade, a artificialidade redundante dos muros estŽticos
poderia ser a nova comicidade, o novo rid’culo, deslocando o rebaixamento do
absurdo campesino para o absurdo da corte. Em outro contexto, uma nova forma deorganiza•‹o do espet‡culo. A din‰mica da performance atravessa os lugares sociais.
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Ainda, publica-se o texto da pe•a e como objeto de leitura, multiplicam-se as
apropria•›es da obra, em virtude das edi•›es piratas. Considerando as formas
impressas da pe•a tambŽm como um tipo de performance (CHARTIER, 2002:53)Ó,
Chartier acompanha como omiss›es, substitui•›es, confus›es e acrŽscimos n‹o s‹o
somente erros de tipologia e sim apropria•›es dos textos, deliberadas interven•›es e
modifica•›es da obra, reperformances. A interferncia da oralidade nas diferentes
edi•›es materializa um novo texto, inserindo e alterando posturas previamente
registradas.
Da sociedade como espet‡culo ˆ socializa•‹o das representa•›es Ð seguindo a
an‡lise de Chartier podemos observar as mœltiplas formas por meio das quais os atos
interpretativos s‹o realizados. Textos deixam de ser entidades aut™nomas e se
apresentam como espa•os de emergncia de conflituosas disputas e trocas. A
teatralidade explicita a configura•‹o destes embates.
Neste sentido, a explicita•‹o da materialidade dos textos e da corporeidade
dos leitores encaminhou Chartier para o complexo lugar dos textos teatrais. A
amplitude da cultura escrita Ž apreens’vel dentro de uma moldura teatral. Se Ò as
obras, os discursos, s— existem quando se tornam realidades f’sicas, inscritas sobre as
p‡ginas de um livro, transmitidas por uma voz que l ou narra, declamadas num placo
de teatro (CHARTIER, 1994: 8)Ó, ent‹o o estudo de textos teatrais proporciona o
exerc’cio de habilidades que n‹o se reproduzem h‡bitos interpretativos baseados na
abstra•‹o da leitura e dos textos173.
BIBLIOGRAFIA
CHARTIER, R . Do palco ˆ p‡gina. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2002.
CHARTIER,R. Formas e sentidos. S‹o Paulo, Mercado das letras, 2003
CHARTIER, R. A ordem dos livros. Bras’lia, Editora UnB, 1994.
173 Para cr’ticas de interpreta•›es de R. Chartier veja-se o artigo de A. MartinsVianna ÒÕShakespeareÕ entre atos editoriais: A prop—sito de uma cr’tica a RogerChartierÓ Hist—ria, Imagens, Narrativas, 3, 2006, acessado emwww.historiaimagem.com.br/edicao3setembro2006/shakespeare.pdf.
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Outras publica•›es que R.Chartier trabalha diretamente com textos teatrais:
CHARTIER, R e STALLYBRASS,P. ÒReading and Authorship: The
Circulation of Shakespeare 1590-1619Ó In A Concise Companion to Shakespeare and
the Text.Blackwell Publishing, 2007.
CHARTIER, R . Ò Jack Cade, the Skin of a Dead Lamb, and the Hatred for
WritingÓ, Shakespeare Studies, Volume XXXIV, 2006, p. 77-89.
CHARTIER,R., MOWERY,J.F., WOLFE,H., E STALLYBRASS,P.
ÒHamletÕs Tables and the Technologies of Writing in Renaissance England Ò
Shakespeare Quarterly, Vol. 55, Number 4, 2004, pp. 379-419
CHARTIER,R. ÒTexte et tissu. Les dessins dÕAnzoletto et la voix de la
navetteÓ, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 154, Septembre 2004, p. 10-23.
CHARTIER, R. Ò ÔCoppied only by the earsÕ : le texte de thŽ‰tre entre la scne
et la page au XVIIe sicleÓ, Du spectateur au lecteur. Imprimer la scne aux XVIe et
XVIIe sicles, Larry F. Norman, Philippe Desan, Richard Strier (eds.), Fasano, Schena
Editore, et Paris, Presses de l'UniversitŽ de Paris-Sorbonne, 2002, p. 31-53.
CHARTIER, R. Ò Editer Shakespeare (1623-2004)Ó , Ecdotica, 1, 2004, p. 7-
23.
CHARTIER, R. De la scne ˆ la page È, Le Parnasse du thŽ‰tre. Les recueils
dÕÏuvres compltes de thŽ‰tre au XVIII e sicle, Georges Forestier, Edric Caldicott et
Claude Bourqui (dir.), Paris, Presses de lÕUniversitŽ Paris-Sorbonne, 1987, p. 7-41.
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7- TRADI‚ÌO E RAZÌO : MODERNIDADE E MITO EM RUMBLE
FISH
N‹o Ž novidade ou redund‰ncia, mas urgncia estreitar os v’nculos entre arte
cinematogr‡fica e dramaturgia. Tal aproxima•‹o ultrapassa as meras referncias
tem‡ticas que se confinam em elencar similitudes sem o questionamento a respeito da
natureza mais fundamental dessa proximidade. Ora, como processos de constru•‹o da
realidade, pertencem a contextos culturais distanciados no tempo (AntigŸidade e
Modernidade). Assim sendo, poder-se-ia afirmar que a maneira mais adequada para
configur‡-los num mesmo plano seria neutralizar a diferen•a epocal e fazer falar um
pelo outro.
Contudo, a reflex‹o pautada pelos ditames da adequa•‹o s— se sustenta na
provis—ria inst‰ncia predicativa que apresenta o que discute por meio de estratŽgias de
entendimento normalizadoras. Ou seja, discute-se com o objetivo de tornar
indiscutida a estrutura e o significado do fen™meno visado (imagina•›es para a cena
diferenciadas). Teatro e cinema comparecem como momentos-luminares da tradi•‹o
ocidental quanto ˆ apreens‹o e interpreta•‹o dos eventos. Mais que ilusionismos
estŽticos reprodutores de ordens hist—ricas localizadas, ambos s‹o atualiza•›es do
dram‡tico - experincia humana de compreens‹o dos acontecimentos.
Estranho que se pense assim, que se medite medeando passado e presente sem
as sempre v‡lidas compara•›es. A arte cnica e a atividade f’lmica possuem narra•‹o,
atua•›es personativas, representa•›es englobantes que envolvem jogos
intersemi—ticos ( cor, som, movimento, gesto, palavra), estabelecem participa•›esentre o que se mostra e quem v. Pertencem, resumidamente, ˆs contingncias da
visualidade. E encontram-se na din‰mica das recep•›es: a passagem dos grandes
pœblicos para as pequenas platŽias no transcurso temporal do teatro e (o inverso no
cinema) - como se uma arte desse a senha para a outra.
Continuando as similitudes, passar’amos das informa•›es pulverizadores para
significados mais integradores. Ambos os modos de representa•‹o da realidade
surgem em contextos de excessos de utiliza•‹o da visualidade como meios deresolu•‹o dos conflitos cognitivos, afetivos e volitivos. No momento grego, a
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antropomorfiza•‹o dos deuses, intensificada pela reforma homŽrica - e denunciada
por Xen—fanes -, atribu’a aos deuses, aos terr’veis-desconhecidos-ausentes, formas
humanas t‹o evidentes, imputando-lhes desejos, crimes e v’cios - o que acarretava a
indistin•‹o entre divinos e mortais. O apagamento da diferen•a Ž contempor‰neo do
arrefecimento do sagrado, instaurando uma crise religiosa sem precedentes que Ž a
crise das rela•›es com a verdade, motivo depois utilizado no debate entre fic•‹o e
realidade.
O teatro ateniense desenvolve-se nesse drama da cultura. Cultura Ž unidade de
culto (Eudoro de Sousa); reverenciamos aquilo em que acreditamos. Quando essa
cren•a situa-se no limite de sua possibilidade, necessita a reelabora•‹o interpretativa
desse limite.
E eis o teatro. Encena-se, dentro das festividades dionis’acas, o her—i
homŽrico, corrigindo, pela curva do destino, o ’mpeto de sua desvitaliza•‹o. Vive o
personagem a arquiviagem de seu deus. O her—i Ž imolado no sacrif’cio aos ausentes.
Temos, ent‹o, uma dupla disposi•‹o dos eventos. Na sua estrutura aparente,
desfila o per’odo her—ico grego; em sua estrutura profunda, acena-se para a dimens‹o
m’tica que subliminarmente emoldura o que se encena.
Desse modo, o que se apresenta Ž mais do que uma mera presen•a mimŽtica
que se reduz ˆ atualidade do visto. Registra-se uma totaliza•‹o que supera o
isolacionismo das partes dramatizadas.
Duplo de um ser desdobrado, encontramos, na configura•‹o mesma do
espet‡culo dram‡tico, essa pluralidade de n’veis recuperada por meio da Ôilus‹o
cnicaÕ. Nessa, pœblico e palco passam a existir conjuntamente em um jogo de
dist‰ncias e proximidades, dentro do qual cada momento atual do teatro investe-se da
construtividade do tempo. AquŽm e alŽm das marcas de referencia•‹o estereotipadas,
distende-se o ritmo de representa•‹o, no encontro e no mœtuo envio de realidades pertencentes a contextos diversos de a•‹o, mas reunidas em diversa teleologia que se
utiliza do descont’nuo como linguagem compat’vel com o modo atravŽs do qual nos
inserimos em outra factualidade. Tanto ficcionais como corporizados se encontram os
que vem e os que s‹o vistos. Desdobra-se a pe•a agora contempor‰nea de seu
processo enformador. Ver e imaginar n‹o s‹o incompat’veis, mas atividades
interdependentes que experimentam a problematiza•‹o dos modos e dos meios da
efetividade do afetivo, da doa•‹o de um logos para o pathos.
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Tempo, espa•o, linguagem, pessoa nutrem-se dessa descontinuidade
pluralizante assumida estruturalmente na arte cnica. N‹o se trata de identificar
ambigŸidades nas falas dos personagens, de notar como suas a•›es pertencem a
diferentes ordens simb—licas, de verificar a arquitetura multifacetada dos personagens
elaborados na contracena•‹o e partipantes de nexos interindividuais que
proporcionam um estatuto metaf—rico a seu ser.
N‹o se trata de perceber esses elementos isoladamente e sim de passar do
plano do conteœdo para o plano da express‹o e ver que tais tŽcnicas de elabora•‹o do
evento cnico s‹o processos que demonstram a singularidade do Ôdram‡ticoÕ.
O dram‡tico n‹o se guia pelos ditames da organicidade da obra de arte que o
condenariam a assumir total dependncia do estŽtico a uma dimens‹o extra-art’stica
ocupada na m’mesis de uma unidade. Tal codifica•‹o filos—fica do fato art’stico
instrumentaliza o estŽtico, fazendo com que ele responda ˆ cartilha dos fil—sofos do
œnico-uno-unificante, expurgando, por meio de esquemas abstratos de equil’brio e
normatividade, o contradit—rio do seio do mundo.
Ao contr‡rio, a atividade cnica chama para si o contradit—rio e o conflitivo.
Contrariando as generaliza•›es formalistas de Arist—teles, que viam na tragŽdia certa
m‡quina de efeitos emocionais refor•ada pelas causalidades determinantes do enredo,
o que se constata Ž o vertiginoso aprofundamento do contradit—rio como forma de se
atingir a integratividade e diferencia•‹o de n’veis da realidade. O dram‡tico Ž a dupla
fenomenologia da compreens‹o, pois interpreta os acontecimentos concretizando-os
no horizonte existencial e imaginativo de sua efetiva•‹o.
Em Rumble Fish, de Francis-Ford Coppola, os suportes cnicos se fazem
presentes, condicionando o entendimento do filme. Entrecruzam-se dois planosnarrativos b‡sicos. Dois irm‹os e suas duas vidas aproximam-se e afastam-se ao
mesmo tempo. O irm‹o mais novo, Rusty James, procura concretizar o ideal
comportamento de seu irm‹o mais velho, cognominado de Ôo garoto da motocicletaÕ.
O que temos Ž a representa•‹o do hero’smo nos tempos modernos.
Rusty James herda o gerenciamento do conflito que o her—i possibilita.
Contudo, Rusty James expulsa a ambivalncia onde quer que ela possa estar,
nivelando os acontecimentos ao satur‡-los com o modelo œnico de resposta, que Ž oreflexo reiterado de seu individualismo. Em todos instantes de seu percurso actancial,
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no desafio de gangues, na fam’lia, na escola e no amor, permanece ele inc—lume,
imune aos contextos diferenciados, agindo do mesmo modo e reagindo da mesma
maneira, impondo o saciar de sua presen•a.
Rusty James encarna o pleno, o tudo ao mesmo tempo agora, ultrapassando as
singularidades, configurando-as na obedincia de um vitalismo cego. Rusty James
n‹o sofre - n‹o h‡ perdas ou ganhos para ele. Feito imortal, entidade ol’mpica, cultiva
o ilimitado, em uma raz‹o cativa de sua egolatria. Seu saber Ž o da esperteza, um
reduzido logos de Ulysses, que se compraz na manuten•‹o de uma transcendncia
vazia que se perpetua para alŽm das diferen•as.
Esse her—i de uma presen•a atual, pontual, sem mem—ria, confronta-se com a
serenidade do irm‹o mais velho, antigo l’der de gangues, que viu todo esse
gerenciamento de conflitos n‹o render mais sentido para sua existncia. O garoto da
motocicleta vai embora para Calif—rnia e volta, din‰mica de entradas e sa’das cnicas
que proliferam a abrangncia de sua figura. Negando o hero’smo apol’neo do eterno
retorno do mesmo, m’mesis extempor‰nea da supress‹o dos limites, ele intervŽm nos
diversos momentos da gesta de Rusty James, insuflando-a de reflex‹o e percep•‹o
sobre o obtuso de sua perspectiva.
Com ele, pensar e sentir n‹o se encontram separados. O garoto da motocicleta
pergunta e difunde saber. Os contextos s‹o assimilados dentro do horizonte
compreensivo que os emoldura. As especificidades dos momentos se integram na
l—gica subjacente que os constr—i. Para alŽm das categorias de exibi•‹o e
atemporalidade, a vida n‹o Ž barganha com o imenso e tedioso movimento de
unifica•‹o das situa•›es existenciais.
Na grande cidade onde os irm‹os vivem, o plural real•a o un’voco. Dia e noite
se sucedem na ciclomitia da nŽvoa que habita todos os espa•os e todos instantes,
desvanecendo e dessubtancializando os contornos e as formas do mundo. Viver aqui Žsobreviver em meio ao que j‡ se orienta entre carca•as de coisas. ƒ preciso o rigoroso
vigor aplainador das diferen•as para permanecer na grande cidade. Os nexos
interindividuais, seja no amor seja na lealdade, expressam-se em estratŽgias
comportamentais que asseguram seu enquadramento em um circuito padr‹o de
referncias. Indiv’duo e grupo, mesmo e outro, todo e parte se associam em unidade
org‰nica que se apresenta como representa•‹o globalizadora do parcial, circunscri•‹o
do diverso ao monol—gico.
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Rusty James Ž o habitante e her—i dessa cidade. Seu irm‹o, o que negou tal
envolt—rio rumando para a utopia que ela aponta (Calif—rnia, a imagem do prazer sem
limites, a imensa prostituta maquiada e doente), volta. Ir e vir, estar e n‹o estar,
pertencer e n‹o pertencer objetivam a complexa r’tmica de dispers‹o, cujo emblema Ž
de integrar e diversificar.
Ambos contracenam um conflito de saberes que ultrapassa a diferen•a de
opini›es.
Em determinado momento da narrativa, os irm‹os discutem sobre uma mulher
denominada Cassandra, hom—loga da personagem da pe•a Agamenon, de ƒsquilo.
Rusty James, o que s— conhece o que se reconhece imerso em sua l—gica unificante,
desconhece a tradi•‹o. Interroga-se, real•ando sua inst‰ncia descontextualizadora: ÒE
o que os gregos tm a ver com isso ?Ó
Cassandra era a profetisa que previu a pr—pria morte e que, em sua agonia,
recuperava a morte do rei Agamenon. Longe da exposi•‹o contempor‰nea da morte,
preocupada no quantitativo e no informativo da mortantade e do mort’fero, mostra-se
e se demonstra a finitude como poss’vel expressivo, como palco outro que dramatiza
a estrutura da sensibilidade relacionada a uma estrutura da imagina•‹o, para que se
registre o acontecimento do limite como limiar compreensivo. A morte n‹o Ž regi‹o
œltima e intranspon’vel, que s— se doaria em feitos irracionaliz‡veis, dep—sito
sedimentado de emo•›es. Ao invŽs de res’duo transcendental do nada, a morte
comparece em sua plasticidade originante, como desafio aos meios de constru•‹o de
significados. Por isso, nutre de agonias, esperas, dœvidas, incertezas,
desconhecimentos - momentos cnicos que, em sua entreabertura mediadora de
contr‡rios, possibilitam, em si mesmos, as formas e os conteœdos de sua ratifica•‹o.
O que os gregos tm a ver com isso ? Passados dois mil e quinhentos anos
entre a pergunta de Rusty James, modelar her—i da subjetividade moderna, e a figura
de Cassandra, acontecer da morte na tragŽdia grega, recupera-se uma pergunta que
rep›e um saber transhist—rico. Sempre diante daquilo que ultrapassa o horizonte
comum da experincia humana, diante de signos que retomam uma ausncia que nada
mais Ž que desvincula•‹o com os pressupostos cristalizados e com o imediato, sempre
a hesita•‹o ante a ambivalncia do desconhecido irrompe: ou interdita-se o ignaro pelo conhecido, ou se assume as frinchas e as brechas de indetermina•‹o (Husserl)
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dos fen™menos como tempos pr—prios da compreens‹o e ruma-se para dinamizar o
c—gito em sua saciedade de sombras, no lascinante jogo espectral multiforme do
claro-escuro da conscincia.
O que os gregos tm a ver com isso ? H‡ dois mil e quinhentos anos o teatro
ateninense produzia uma arte-conhecimento que prop›e o descont’nuo, o
contradit—rio como modo de concretiza•‹o dessa conscincia. Naquele tempo tambŽm
surgiu a pergunta Ó E o que Dioniso tem a ver com isso ? Ó, diante da incompreens‹o
do fundo m’tico agente e subagente na arte dram‡tica. Veja-se a transhistoricidade da
quest‹o, pois aqui se assenta a Modernidade, a Modernidade de todas as Žpocas. Em
determinado momento, h‡ uma crise de ordens na cultura. J‡ n‹o se percebe mais o
horizonte de tudo o que Ž ou existe. Agora h‡ somente a urgncia de se interrogar pelo
nexo das coisas, pelos v’nculos que situam os encontros entre as diferen•as.
Tradi•‹o x raz‹o - eis a problem‡tica que encampa tal interrogar (Gadamer).
Dentro de um espa•o- tempo, ascendemos ˆ pluralidade de n’veis estruturantes dos
acontecimentos, sendo que esses n’veis s‹o percebidos como n‹o pertecentes ao
mesmo fen™meno. S‹o t‹o divergentes as ordens de sentido que n‹o mais convergem
para o intervalo nodal que os consagra. Consequentemente, engendra-se uma
Ôtradi•‹oÕ, um pretŽrito como imagem de algo que perdeu seu vigor e seu valor, e uma
ÔmodernidadeÕ que hospeda o que pode ser racionaliz‡vel e pertencente ˆ urgncia
fulcral do necess‡rio e do caracter’stico. Relega-se ao museu de formas passadas tudo
o que refor•a a atualidade coesa e coerente do que faz sentido em sua clareza e
harmonia estabelecidas.
A temporalidade aqui Ž constitu’da e cifrada em atitudes de exclus‹o e
interdi•‹o que patenteiam um processo de referencia•‹o ocupado em manter
constantes de sentido. Algo n‹o possui mais significa•‹o, pois n‹o obedece mais ao
esquema can™nico de representa•‹o. Repercute-se certa Raz‹o, certa estratŽgiainterpretativa que uniformiza as percep•›es agora como reprodutoras do modelo-base
e n‹o como aproxima•›es ao diferencial da diferen•a dos eventos. Pensar aqui Ž
conduzir a compreens‹o para entronizar o j‡ sabido, o j‡ sentido, o j‡ desejado.
Rusty James Ž o teatro vivo que elimina o dram‡tico. O contradit—rio n‹o
pertence ˆ sua esfera de a•‹o. Quando n‹o sabe de algo, seu n‹o saber Ž apenas
conclus‹o de que esse algo n‹o faz parte e nunca far‡ daquilo que ele de antem‹o
conhece. Quando n‹o percebe, seu n‹o perceber Ž a reposi•‹o do mesmo esquemacognitivo que expulsa tudo e todos que escapam desse esquema. Por isso pergunta,
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desdenhando da pr—pria pergunta. Por isso Òo que os gregos tm a ver com isso?Ó N‹o
Ž interroga•‹o, mas afirma•‹o que capitula diante do que n‹o Ž previamente
determinado por suas respostas j‡ automatizadas. No questionar j‡ n‹o h‡ mais
quest‹o, mas a pergunta j‡ diz de si o que procura como resolu•‹o da dœvida, que Ž
d’vida com o necess‡rio meio de sobrevivncia na grande cidade - o espetaculoso
crepœsculo da raz‹o frente ˆ elimina•‹o de suas virtualidades.
Rusty James poder‡ se ferir na briga de gangues, mas n‹o vai morrer; poder‡
perder a namorada, mas n‹o sofrer‡; ser‡ expulso da escola e ainda continuar‡ senhor
de sua pessoa. Negar‡ o que est‡ pr—ximo de si e sair‡ inc—lume da vida - como
entrou, saiu.
No entanto, o garoto da motocicleta vai morrer, vai morrer, pois se arriscou
muito mais. Viver Ž muito perigoso quando se atinge os limites da experincia
humana (Guimar‹es Rosa). Ele, que foi e voltou, que saiu da grande-pequena cidade,
realiza a transviagem, que Ž visagem da transcendncia maior. O mais importante
sempre est‡ perto de n—s. Transcender Ž tornar imanente, mais consciente e part’cipe
daquilo o que no jogo entre proximidade e dist‰ncia acusa a essncia variacional dos
seres e dos acontecimentos. Ser her—i Ž ultrapassar a arena de vitoriosos e perdedores
e repor o conflito, a descontinuidade impressa e inerente a tudo que Ž ou existe. AlŽm
e aquŽm se complementam na intensifica•‹o de suas disponibilidades.
O garoto da motocicleta, em um filme em preto e branco ( cores antigas para
eternos problemas, novos e velhos tempos se reunindo), vai morrer, pois todo her—i
morre. Morre para libertar os animais de suas jaulas, para fazer voar os p‡ssaros, para
retornar ao mar os peixes briguentos. Coloridos, azuis e vermelhos, s‹o os peixes que
lutariam infinitamente, eternamente, atŽ contra si mesmos, como azuis e vermelhos,
contraditoriamente, s‹o as cores que vm do carro da pol’cia, logo para ele, dalt™nico,
que n‹o percebe as cores, mas compreende os conflitos.
A Hist—ria n‹o se escreve com os her—is, mas com o dram‡tico. A aversiva
vers‹o brasileira do t’tulo do filme evoca um tragic™mico filtro rom‰ntico e
hiperrealista. O filme intitula-se originalmente Rumble Fish, referncia ˆ singular
espŽcie de peixes briguentos, mas foi batizado aqui como O selvagem da
motocicleta. O tom apelativo da nova embalagem comercial traduz o que hoje se
entende por dram‡tico e por art’stico. Revela-se nessa vers‹o traidora um problemacultural b‡sico.
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No embate hist—rico entre Tradi•‹o e Raz‹o, instrumentalizou-se o
contradit—rio em prol do un’voco, racionalizou-se a Tradi•‹o a ponto de esquematiz‡-
la em conceitos tornados Ôcl‡ssicosÕ.
Complementar a esse direcionamento do passado por um olhar medusante, o
dram‡tico, que alimenta o conflito-base da cultura, foi negativado. Por isso o
acrŽscimo do ep’teto ÒselvagemÓ ao garoto da motocicleta. Tal emblema Ž verdadeira
legenda que reduz o fen™meno ao seu valor abstratamente atribu’do e n‹o ˆ sua
realidade efetiva. O selvagem evoca e provoca a esfera irracionalizavel a qual
pertenceria o dram‡tico. L‡, nessa regi‹o que deve ser obstru’da e esquecida, as
ambivalncias e as contradi•›es, o ca—tico e o amorfo, as potncias misteriosas e o
sagrado habitam. Somente l‡, nessa regi‹o-licen•a-parntesis pode existir. Negativar
o drama, situando-o na derrocada das estratŽgias cognitivas do mundo, Ž eliminar
todo saber que se defronte com a compreens‹o de seus limites. ƒ subordinar todo
pensamento, toda a•‹o, todo desejo ˆ m’mesis distributiva de uma normalidade
perene, exclusiva e absoluta.
Contra essa modernidade de todas as eras, existe a premente recusa de n‹o
aceitar a perda da dimens‹o plural dos acontecimentos de sentido Ð aquilo que muitas
vezes o teatro encena e para a qual o cinema, em certos momentos, aponta.
Toda obra de arte fala de si mesma. Em cada filme, em cada pe•a, exibe-se
uma realidade como linguagem das escolhas assumidas, de poss’veis concretizados. A
arte cinematogr‡fica e a arte teatral se aproximam como vigilantes perpetua•›es do
dram‡tico, da capacidade da compreens‹o em efetivar a construtividade dos conflitos,
ao invŽs do gerenciamento metaf’sico e conclusivo destes.
Num palco, numa tela o que se apresenta Ž mais do que se representa. V-se
uma fatal combina•‹o de presen•as e ausncias sobredeterminadoras do imagin‡rio,
que se faz no momento de sua recep•‹o. Ver aqui Ž dinamizar a compreens‹o naassimila•‹o dos diversos, em uma l—gica outra que mantŽm a pluralidade do que se
concretiza. Ver aqui Ž contextualizar o processo de referencia•‹o na construtividade
de sua inst‰ncia formativa. Ver Ž configurar, Ž transcender o visto, para patentear o
horizonte construtivo do que se apreende. Eis a experincia do dram‡tico: concretizar
no intervalo entre o real e o imagin‡rio, medear o infinito no finito, materializar o
tempo da origem na experincia origin‡ria da estrutura da compreens‹o conectada ˆ
estrutura da criatividade.A cena e a tela, meus amigos, ainda podem vencer a arena.
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8- APROXIMA‚ÍES A UMA DRAMATURGIA FêLMICA A PARTIR
DO CASO EISENSTEIN
Em 1951, no ensaioÓ Teatro e cinemaÓ, AndrŽ Bazin, refutando a pureza da
linguagem cinematogr‡fica (cinema puro) e o Òpreconceito contra o teatro filmadoÓ
174, prop›e que se reconsidere Ò a hist—ria do cinema, n‹o mais em fun•‹o dos t’tulos e
sim das estruturas dram‡ticas do roteiro e da mise-en-scneÓ175.(OC 123) O sucesso
das adapta•›es de obras teatrais para a tela realizadas por Laurence Olivier ( Hamlet ),
Orson Welles ( Macbeth-Reinado de sangue) e Willian Wyler ( PŽrfida ), entre outros,
expunha n‹o s— a fragilidade do apagamento e oculta•‹o do suporte teatral operado
pela narrativa cinematogr‡fica cl‡ssica. Exibia, passava para a tela, a teatralidade do
drama, de forma a evidenciar que Ò o tema da adapta•‹o n‹o Ž o da pe•a, Ž a pr—pria
pe•a em sua especificidade cnicaÓ (OC 156).
Ora, se a tela do filme exibe o dispositivo cnico, um outro n’vel de
representa•‹o alinha-se ˆ proje•‹o de imagens. Impresso na visualidade do que se
observa est‡ uma diversa referncia que o seguir da narrativa. A adapta•‹o nos coloca
diante da exibi•‹o de concretas e intelig’veis marcas n‹o narrativas,as quais se
justap›em ˆ seqŸncia do que Ž mostrado. ƒ passada para a tela a teatralidade, uma
ainda n‹o definida, mas reconhecida moldura representacional, que acopla, ˆ
visualidade dos eventos, um horizonte de observ‰ncia que interfere na identifica•‹o e
compreens‹o do que se v. Se a adapta•‹o deixa isso expl’cito, real•a o que j‡ havia e
que n‹o era focado com nfase.
Essa interferncia da teatralidade chama a aten•‹o para os suportes dram‡ticosda linguagem f’lmica, para aquilo que n‹o deve ser exposto: a heterogeneidade do
174 Essa pureza recalcitrante cria as ambivalentes defini•›es de extra-cinematogr‡fico, atravŽs das quais o monop—lio tŽcnico de produ•‹o de filmes excluiuma dimens‹o composicional mais integral. O argumento da pureza da linguagemcinematrogr‡fica, ao fim, aplica-se a quest›es n‹o estŽticas. Em raz‹o disso, aaproxima•‹o de obras cinematrogr‡ficas a outras estŽticas e processos criativosquestiona este purismo e sua exclusividade narrativa.
175 Para maior agilidade da leitura, uso as notas de rodapŽ como referncia bibliogr‡fica e siglas seguidas do nœmero da p‡gina. Refiro-me aqui ao livro Ocinema (S‹o Paulo, Brasiliense, 1991) pela sigla OC.
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cinem‡tico e sua dependncia a uma situa•‹o Òextracinematogr‡ficaÓ. As conven•›es
f’lmicas s‹o desnudadas pela exorbit‰ncia da teatralidade. O drama Ž a caixa-preta do
filme.
No mesmo ensaio, ao procurar reorientar mais reflexivamente as dif’ceis
rela•›es entre teatro e cinema para uma conex‹o mais produtiva e reflexiva, Bazin
formula trs tempos-situa•›es dessa problem‡tica hist—ria :
Momento 1- resumido na rubrica o Ò teatro acode o cinemaÓ, postula que a
tradi•‹o multissecular do texto teatral pode enriquecer intelectualmente os roteiristas.
Provocativamente, Óquanto mais o cinema se propor por ser fiel ao texto, e ˆs suas
exigncias teatrais, mais necessariamente aprofunda sua linguagemÓ(OC 157);
Momento 2- sob a rubrica Ž ÒO cinema salvar‡ o teatroÓ, Bazin argumenta
que, por meio da explora•‹o da teatralidade operada pelo cinema em escalas
massivas, renova-se a concep•‹o de mise-en-scne teatral. O teatro v-se confrontado
com suas origens populares, repensando o div—rcio entre palco e pœblico;
3- a rubrica Òdo teatro filmado ao teatro cinematogr‡ficoÓ finalmente aparece
como uma s’ntese onde a cinem‡tica correlacionada a uma teatralidade proporciona a
emergncia de uma performance desse tempo, uma mise-en-scne contempor‰nea.
Mais que m’dias diferentes, Bazin aponta para uma forma de espet‡culo integral que
rompa com a oposi•‹o entre teatro e cinema. Modernidade e tradi•‹o se conjugam
nessa mise-en-scne contempor‰nea na qual o dispositivo f’lmico Ž modelado por
suportes teatrais.
Mas o que Ž esse teatro cinematogr‡fico? A componente cnica desse teatro
cinematogr‡fico restringe-se ao que Bazin chama de Ò virtualidades...estruturas
cnicasÓ(OC 150). O espet‡culo, porŽm, Ž da competncia da componente f’lmica. O
foco de an‡lise de Bazin Ž o que se pode chamar Ôfilme de arteÕ. O cinema como arte
Ž divisado na incorpora•‹o de tradi•›es representacionais hist—ricas como pintura eteatro. ƒ PARA CONTRIBUIR COM O TEXTO DO FILME QUE A
INCORPORA‚ÌO DA TRADI‚ÌO TEATRAL ƒ REIVINDICADA. O TEATRO
CINEMATOGRçFICO DE BAZIN ƒ UM CINEMA CUJO ROTEIRO ƒ
DIGNIFICADO COM Ò VIRTUALIDADES CæNICASÓ.
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Correlativamente, o teatro Ž visto pelas lentes de Bazin como teatro
liter‡rio176, no qual h‡ a primazia do texto sobre o espet‡culo. O idealismo estŽtico
desta postura, contr‡ria mesmo ˆ renova•‹o contempor‰nea da linguagem para a cena,
deixa em aberto a concretiza•‹o do teatro cinematogr‡fico, no qual a componente
cnica Ž uma evidncia n‹o discutida.
Mesmo assim, as rela•›es entre texto, teatro e cinema comparecem como
elementos para uma futura coordena•‹o mais esclarecedora.
O caso Eisenstein177
Coube a um homem de teatro e posteriormente cineasta e te—rico do cinema
interrogar mais detidamente estes elementos. As dif’ceis rela•›es entre cinema e
teatro ocuparam n‹o s— a arte como tambŽm a biografia de S.Eisenstein. Antes de se
notabilizar como cineasta, n‹o s— foi aluno de um dos renovadores das artes de cena
(V. Meyerhold), como tambŽm dirigiu e encenou pe•as experimentais. Um detido
exame de sua passagem da cena para a tela e, quando da emergncia do filme sonoro,
um ÒretornoÓ ao drama, pode nos auxiliar na supera•‹o do idealismo estŽtico que
elogia a componente teatral da atividade cinematogr‡fica mas, contudo, n‹o
efetivamente determina o contexto de produ•‹o dessa componente.
O teatro para Eisenstein surge no contexto de renova•‹o da linguagem para a
cena teatral que a tradi•‹o antinaturalista (e antimimŽtica) moderna empreendeu. O
debate entre Constantin Stanislavski e seu aluno Vesevolod Meyerhold situa na
Rœssia esta tradi•‹o de ruptura. Eles divergiam, principalmente, quanto ˆ prepara•‹o
176 Concep•‹o monumentalizante do teatro que, a partir de leituras da PoŽtica,de Arist—teles, defende a subordina•‹o do espet‡culo ao texto, como ilustra•‹o dotexto. A partir das obras de Corneille e Racine atŽ o Naturalismo,tal concep•‹odeterminou um estilo de interpretar e construir obras, formando um pœblico atento ˆ
convencionalidade de uma representa•‹o teatral grandiloqŸente e verborr‡gica. Viroualvo critico b‡sico do contexto reativo das vanguardas teatrais. Para uma apresenta•‹ocr’tica de seus procedimentos consulte-se meu livro Imagina•‹o Dram‡tica ( Bras’lia,Texto&imagem,1998:160-188).
177 O caso Eisenstein foi sugerido por uma releitura da disserta•‹o de mestradode Maria Maia (UnB 1998) ÒA escritura f’lmica dramaturgia do enredo e dramaturgiada formaÓ. Segundo ela, retomando como modelo as mudan•as de foco nos ensaios deEisenstein, o filme nasce do conflito entre os elementos constitutivos plano/montageme argumento ou enredo. Uma linguagem espec’fica interagindo com umanarratividade espec’fica marcam a textualidade f’lmica. Em minhas considera•›es,
porŽm, ressalto um fator Òextracinematogr‡ficoÓ mais efetivo, pouco comentado eanterior ˆ narratividade: a dramatiza•‹o, concentrando-me em problemas decomposi•‹o ao invŽs da analogia l’ngua/filme.
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de atores. Stanislavski, reagindo contra a falta de profissionalismo e (cons)cincia dos
atores de seu tempo, procurou desenvolver um conjunto de princ’pios para a atua•‹o,
atravŽs do qual os pensamentos e as emo•›es do intŽrprete adquiriam uma coerncia
fiel ˆ individualidade de uma personagem criado por um autor. Centrado na an‡lise do
texto e no isolamento da personagem frente ao pœblico - rea•‹o contra ˆs concess›es
do teatro comercial das companhias- , este conjunto de princ’pios parecia, em um
primeiro momento178, dar menor aten•‹o ˆ exterioriza•‹o da a•›es. A prepara•‹o
intelectual do ator e a internaliza•‹o de uma imagem textual eram mais focalizados .
Meyerhold179, diferentemente, orienta-se para pensar e produzir a•›es f’sicas.
Ele parte das a•›es f’sicas para estruturar a representa•‹o. Esta invers‹o Ž uma
verdadeira subvers‹o n‹o s— na prepara•‹o de atores como na constru•‹o do
espet‡culo. Coloca-se em evidncia o contexto realizacional da performance cnica.
Ao invŽs de o espet‡culo ser um ve’culo para comunicar idŽias do autor, a exposi•‹o
Ž um acontecimento f’sico sujeito ˆ materialidade de sua efetiva•‹o. A audincia Ž um
fato f’sico concreto inerente a essa exposi•‹o. A observ‰ncia de um espet‡culo Ž a
intera•‹o com os movimentos no espa•o realizados por corpos expressivos.
Dessa maneira, Ž preciso reduzir a dist‰ncia entre palco e platŽia, dinamizar
formas de espa•o cnico (espa•os simult‰neos e focos mœltiplos) e explorar a
tridimensionalidade do corpo humano em situa•‹o de representa•‹o (MEB 26).
Meyerhold integrou todas essas atividades em um estilo interpretativo
chamado ÔBiomec‰nicaÕ. A prepara•‹o f’sica do ator, atravŽs do conhecimento do
corpo e da explora•‹o de suas possibilidades expressivas, determinou a perda de uma
absoluta autoimagem do ator como horizonte de coes‹o da atua•‹o (MEB 96). Ao
invŽs de internalizar essa imagem, ele deve aprender tornar fact’veis movimentos
expressivos. Agora ele se confronta com a continuidade material de um audit—rio.
Dessa maneira, todas suas exterioriza•›es devem pressupor essa contingnciareceptiva. O corpo inteiro (MEB 103) em sua muscular presen•a Ž observado. Por
178 V. primeira parte deste livro. Com a divulga•‹o de documentos, sabemosque a quest‹o dos atos f’sicos em Stanislavski fora ampliada. No entanto, a quest‹odecisiva ainda reside no ponto de partida e na nfase de orienta•‹o de um processocriativo.
179 Sigo aqui em profus‹o o livro de Alma La e Mel Gordona Meyerhold, Eisenstein and Biomechanics (Londres, Mcfarland Company, 1998) n‹o s— pelariqueza de informa•›es,como tambŽm pelos textos sobre a biomec‰nica traduzidos dooriginal russo, texto de disc’pulos de Meyerhold e textos pouco conhecidos da obra deEisenstein. Dou-lhe a sigla MEB.
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isso, Ž preciso que o movimento seja expressivo, com uma precis‹o capaz de predizer
e gerar audincia, atra•›es180.
Aqui est‡ o ponto-origem das produ•›es f’lmicas e te—ricas de Eisenstein: uma
dramaturgia que singulariza a experincia de observ‰ncia produzida por
procedimentos que exploram essa experincia. A representa•‹o n‹o Ž a atualiza•‹o de
uma idŽia sem o contexto material de sua realiza•‹o. Na pr—pria representa•‹o este
contexto Ž explorado. O que Ž mostrado n‹o Ž a reprodu•‹o de uma realidade, mas a
exibi•‹o de uma anal’tica tempo-espacial, que torna fact’vel a compreens‹o do que se
observa.
Ao basear a representa•‹o em aspectos f’sicizados e materiais a Biomec‰nica
forneceu para Eisenstein o embasamento de um mŽtodo espec’fico de produzir
imagens que agem sobre o espectador. A organiza•‹o do movimento - explorada no
rendimento de seu efeito - exibida em cena fornece os par‰metros pelos quais o
observador coopera em sua observ‰ncia do o espet‡culo.
Dessa forma, o que antes pareceria um contra-senso, em um teatro onde s— se
comunicam idŽias, um teatro de cabe•as falantes, agora fundamenta o espet‡culo: Ž
precisamente o movimento expressivo181, constru’do sobre um fundamento org‰nico
correto que Ž capaz de orientar a recep•‹o. O espectador Ž atra’do pela forma do
movimento executado diante dele. H‡ uma complexa m’mesis na qual os movimentos
expressivos exibidos atravŽs do apelo muscular dos movimentos do ator s‹o
reelaborados pela audincia (MEB 187).
Com o cinema, o forte contexto antimimŽtico vanguardista da Biomec‰nica e
o controle da representa•‹o visual poderiam melhor ser efetivados. Cinema Ž antes de
tudo para Eisenstein uma fic•‹o explorat—ria que, por meio da integra•‹o das
contingncias espa•o-temporais, possibilita o estudo e a figura•‹o de imagens que o
teatro limitava.A contraposi•‹o entre o teatral e o cinematogr‡fico se torna mais vis’vel a
partir do momento em que a realidade representada n‹o se afasta da faticidade
180 Atra•›es no sentido de efeito sobre a platŽia atravŽs do movimento f’sicode espet‡culos tais como circo, boxe, music hall , acrobacia, teatro chins, paradasmilitares foi o que Meyerhold pensou e Eisenstein aplicou ao cinema em seu famosoartigo ÒMontagem de atra•›esÓ de 1924.
181 Movimento expressivo Ž um conceito-s’ntese da Biomec‰nica. Adecomposi•‹o dos movimentos e sua conex‹o entre eles como forma de agir sobre oespectador amplifica em termos corporais o que Eisenstein pensa sobre a montagem.
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material da realidade n‹o representada. Este Ž o esp’rito de seu ensaio ÒDo teatro ao
cinemaÓ182, uma varia•‹o do Mito ao logos. O t’tulo reivindica um trajeto que
assinala certa ultrapassagem , uma medida valora•‹o evolutiva, uma defasagem entre
in’cio e fim de percurso183.
No teatro, Òa impossibilidade da mise-en-scne se desenrolar pela platŽia,
fundido palco e platŽia em um padr‹o em desenvolvimentoÓ(FF 23), sua geometria
convencional de justapor movimento sem contiguidade redundaram em uma
hipertrofia da representa•‹o. H‡ uma impossibilidade f’sica do teatro em coordenar os
movimentos disjuntivos que se mostrem em uma unidade que supere seu localismo.
As tentativas pl‡sticas (elimina•‹o de painŽis pintados, utiliza•‹o de objetos cnicos,
movimentos corporais, mœsica, superposi•‹o de imagens projetadas e atores) de
superar essa limita•‹o da materialidade (limita•‹o fragrante pela imagem
cinematogr‡fica) devolvem tal impossibilidade representacional.184 A linearidade
seqŸencial do que se exp›e em cena n‹o tem o aprofundamento de detalhe e estrutura
que o plano e suas transi•›es f’lmicos facultam.
Ent‹o Ž preciso ao invŽs de uma mise-en- scne, uma mise-en-cadre, isto Ž,
Òcomposi•‹o pict—rica de cadres (planos) mutuamente dependentes na seqŸncia da
montagem (FF 23)Ó.
O convencionalismo do teatro dominante, avesso aos requisitos tŽcnicos da
materialidade cnica, elabora uma realidade artificiosa que Ž refutada pela montagem
f’lmica. A montagem possibilita o registro e exposi•‹o de escalas apropriadas para o
que Ž enfatizado, tornando a descri•‹o n‹o proporcional de um movimento um evento
organicamente efetivo. Dessa maneira ao Ò desbastar peda•os da realidade com o
machado da lente(FF 44)Ó, o cinema opera uma interven•‹o que explicita seu modus
operandi: demonstra e mostra a refigura•‹o dos materiais que exibe.
As imagens em movimentos do cinema, como uma Biomec‰nica f’lmica, providenciam uma composi•‹o (esquema gr‡fico) que orienta a recep•‹o
182 De A forma do filme ( Rio de Janeiro, Zahar, 1990). Sigla FF183 Basta ver que em 1939 sobre esta Žpoca Eisenstein afirmaÓ eu estava
crescendo, saindo do teatro para o cinemaÓ(FF 168).Em 1928 mesmo ele proclamaque Òestou convencido que o cinema Ž o n’vel de hoje do teatro. De que o teatro emsua forma mais antiga morreu e continua a existir apenas por inŽrciaÓ(FF 33)
184 N‹o esquecer que este texto de 1929 avalia o fracasso de sua produ•‹o M‡scaras de g‡s na tentativa de se representar o cotidiano de uma f‡brica , mesmocom todos os aparatos modernos de encena•‹o e prepara•‹o de atores.
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(emo•›es/raz›es do espectador). Quanto mais houver um rigoroso sistema de rela•›es
na composi•‹o maior ser‡ o impacto sobre a recep•‹o.
ƒ no ensaio ÒDramaturgia da forma do filmeÓ(1929) que o posicionamento de
Eisenstein quanto ˆ supera•‹o do teatral encontra-se fundamentada. Ele j‡ havia
realizado duas grandes obras cinematogr‡ficas {O encoura•ado Potemkin (1925) e
Outubro(1928)}, que serviram como experimentos confirmadores das posturas que
defendia. O t’tulo mesmo postula n‹o uma dramaturgia relacionada com uma situa•‹o
de observ‰ncia teatral e sua concretiza•‹o tempo-espacial, mas a incidncia de
aten•‹o sobre obten•‹o de um espet‡culo visual-musical. A concretude material
dentro do plano em suas disposi•›es e reapropria•›es pela montagem geram
orienta•›es associativas atravŽs das quais se pode esperar encontrar Óuma dramaturgia
da forma visual do filme t‹o regulada e precisa quando a existente dramaturgia do
argumento do filme.Ó(FF 59) A sintaxe visual prevalece sobre a sem‰ntica . A
dramaturgia aqui Ž o planejamento do modo eficiente de combinar diferentes
extens›es de planos e as tens›es decorrentes como forma de impactar a audincia,
fazendo-a identificar os conflitos dos materiais expostos como atualiza•›es
avaliativas dos conflitos que s‹o conceptualizados no referente dos materiais.
O processo mec‰nico e tŽcnico da montagem185 se transforma em princ’pio
construtivo. Planos independentes e atŽ opostos colidem e, quando previamente
arranjados e planejados, destinam seu confronto para a garantia da homogeneidade do
representado. Por isso, para maior eficincia do processo de montagem, Ž preciso uma
metodologia da forma desprovida de referncia ao conteœdo ou enredo. Mas a
ÒdramaturgiaÓ da forma do filme continua a pagar dividendos para fatores teatrais...
Eisenstein foi perceber, depois, que somente o design do filme n‹o era
suficiente para uma experincia cinematogr‡fica completa. A teoria do cinema
intelectual, que transforma conceito abstrato em forma vis’vel na tela revelava haveruma descontinuidade entre idŽia e visualidade. A substitui•‹o exaustiva do conteœdo
(FF 121) exibia seu sucesso em uma eficincia redutora. A visualidade n‹o Ž uma
evidncia, mas o registro de uma situa•‹o observacional. As imagens fazem ver quem
185 Essa centralidade da montagem, explicitando sua motiva•‹o reativa ˆ pr‡ticas representacionais mimŽticas, abunda no exerc’cio especulativo de diferenciarmodalidades de montagem, como se v no artigo de 1929 ÓMŽtodos de montagemÓ(FF 77-84), no qual temos a defini•‹o de montagens mŽtrica, r’tmica, tonal, atonal eintelectual. Tudo agora Ž montagem, mas em diferentes n’veis qualitativos de suautiliza•‹o.
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as observa. Surge ent‹o a quest‹o de se Òretratar uma atitude em rela•‹o ˆ coisa
retratadaÓ (FF 137).
Tal ÓviragemÓ tornou-se mais palp‡vel inicialmente quando de suas atividades
did‡ticas no Instituto Estatal de Cinematografia (1932). Em um curso nesse mesmo
ano, Eisenstein afirma que Óconstruir a cinematografia a partir da idŽia de
cinematografia e de princ’pios abstratos Ž b‡rbaro e estœpido. Apenas atravŽs da
compara•‹o cr’tica com as formas primitivas b‡sicas do espet‡culo Ž poss’vel
dominar criticamente a metodologia espec’fica do cinemaÓ(FF 88). Ainda pensando
em termos de uma diferen•a tŽcnica (Ôformas primitivasÕ) - hesita•‹o que posiciona a
perspectiva e a valora•‹o do cineasta - Eisenstein reinsere o estudo do teatro como
algo insepar‡vel do estudo do cinema.
Esta reinser•‹o do ÔteatroÕ alinha-se com a escritura cinematogr‡fica. O
elemento n‹o f’lmico Ž requisitado para a expans‹o do f’lmico. A luta pela alta
qualidade da cultura do filme passa pela quest‹o liter‡ria da escritura cinematogr‡fica
ao se incorporar e superar a tradi•‹o de textualidade art’stica existente. O cinema
transparece como uma m‡quina transformadora de tradi•›es art’sticas, como a
tragŽdia grega o fora 2500 anos atr‡s186.
Em 1935 no ensaio ÒA forma do filme: novos problemasÓ , diretamente
relacionado com ÒA dramaturgia da forma do filmeÓ, Eisenstein rev seu percurso
cinebiomec‰nico. A impossibilidade do cinema puramente conceptual e da pureza da
linguagem cinematogr‡fica fica patente na mudan•a estrutural da ÒrecenteÓ produ•‹o
soviŽtica de filmes, na qual se nota Òo uso de uma dramaturgia mais tradicional, com
personagens-her—is se distinguindoÓ(FF 118). Ao invŽs das imagens coletivas de
experincias das massas, a individua•‹o da figura concretiza o detalhamento
integrante que a montagem busca atingir.
Eisenstein v nessa mudan•a um desvio e uma corre•‹o de percurso no qual aforma n‹o Ž negada, e sim real•ada com o aprofundamento e amplia•‹o das
formula•›es tem‡ticas e ideol—gicas que as Òquest›es de conteœdoÓ trazem ao cinema
(FF 118). Agora o org‰nico e o patŽtico interligados podem fornecer a possibilidade
da Òtotal apreens‹o de todo o mundo interior do homem, da reprodu•‹o total do
mundo exterior(FF 163).Ó
186 HERINGTON 1985.
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A mudan•a se intensifica ainda mais com o advento do cinema sonoro.
Eisenstein, que havia sido pioneiro no cinema mudo, hesitou diante da novidade. Seu
primeiro filme sonoro, Alexandre Nievski, Ž de 1938. Sua dœvida residia em como
coordenar som e imagem produtivamente187. Perguntava-se se nessa modalidade de
composi•‹o: Òo que voc v quanto est‡ ouvindo n‹o merece aten•‹o?Ó(FF 107) -
preocupa•‹o inerente a quem tinha mŽtodos estritamente formais, quando toda
explica•‹o tem uma justificativa tŽcnica.
A sincroniza•‹o e igualdade r’tmica entre som e movimento representados se
oferecem n‹o s— como problema compositivo-tŽcnico, como tambŽm aproxima•‹o da
atividade cognitiva da obra. Com a complexidade de n’veis da realiza•‹o f’lmica -
agora n‹o Ž s— ver, e sim avaliar vendo e ouvindo avalia•›es - mobiliza-se a
inteligibilidade dessa complexa estratifica•‹o. O inter-relacionamento criativo das
bandas sonoras e visuais Ž a proposi•‹o de sua pr—pria compreens‹o. Se Òn‹o Ž
suficiente apenas ver - algo tem de acontecer com a representa•‹o, algo mais tem de
ser feito com ela, antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura
geomŽtrica188(SF 18).Ó - coloca-se em quest‹o a imagem total da obra e sua
receptibilidade. ƒ preciso que" o filme se revele como constru•‹o diante do
espectador (SF 21).Ó
ƒ o que acontece n‹o por uma justaposi•‹o mec‰nica de n’veis, mas quando
tudo Ž plenamente desenvolvido e resolvido em um Óavan•o simult‰neo de uma sŽrie
mœltiplas de linhas, cada qual mantendo um curso de composi•‹o independente e cada
qual contribuindo para o curso de composi•‹o da seqŸncia (SF 52)Ó. Esse
movimento em dire•‹o a uma totalidade integrada tra•a a trajet—ria de movimentos
futuros, gerando a atratividade do espectador, o qual Óexperimenta o processo
din‰mico do surgimento e reuni‹o da imagem (SF 27).Ó
187 Em 1926 Eisenstein, em um manifesto conjunto com V.I Pudovkin eG.V.Alexandrov a respeito do futuro do cinema sonoro, argumentava que a utiliza•‹odo som Ž uma faca de dois gumes pois poderia, ao invŽs de melhoria narepresenta•‹o, causar inŽrcia composicional e recepcional. Advoga a n‹osincroniza•‹o do som e das imagens. Claro se v nessa recusa o n‹o emparelhamentodo cinem‡tico com o dram‡tico em fun•‹o da palavra e suas articula•›es em cena.Pudovkin ( Argumento e realiza•‹o, Lisboa, Editora Arcadia 1961- sigla AR) temiaque o filme sonoro fosse uma variedade fotogr‡fica de pe•as teatrais e bradava quenunca deveria Ómostrar o homem e reproduzir ao mesmo tempo sua fala exatamentesincronizada com o mover de seus l‡biosÓ(AR 196).
188 Conf. O sentido do filme (Rio de Janeiro, Zahar , 1990) Sigla SF.
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Ao invŽs de ser oferecido ao espectador o que Eisenstein chama de Ódistor•‹o
de nossa ŽpocaÓ, - possibilidades de justaposi•‹o 189e n‹o an‡lise do material
justaposto, Ž imprescind’vel Òa necessidade da exposi•‹o coerente e org‰nica do tema,
do material, da trama, da a•‹o, do movimento interno da seqŸncia cinematogr‡fica e
de sua a•‹o dram‡tica como um todo(SF 13).Ó
Contudo, a corre•‹o de percurso Ž transformada em nova recusa. J‡ em 1939
esta s’ntese e totaliza•‹o do cinema Ž contraposta ˆs limita•›es das artes como a
pintura, escultura, literatura, mœsica e, claro, teatro. Sobre esta œltima, como n‹o
poderia deixar de ser, Eisenstein Ž mais incisivo. Ap—s se congratular com a riqueza
da representa•‹o audiovisual que o cinema proporciona, agora mais eficaz atravŽs da
narrativa, ele afirma que essa riqueza n‹o Ž para o teatro:Ó este Ž um n’vel acima de
suas possibilidades. E quando quer superar os limites dessas possibilidades, n‹o
menos do que a literatura, tem de pagar o pre•o de suas qualidades naturais e
realistas.... Que entulho de anti-realismo o teatro inevitavelmente despeja no
momento em que se estabelece metas ÔsintŽticasÕ(SF 164)Ó. O teatro, para ampliar sua
representa•‹o, desmaterializa-se, explicitando nesse movimento seu pr—prio suporte
f’sico negado. O anti-realismo, pensado como expans‹o da linguagem de cena,
converte-se na redu•‹o de sua atividade representacional.
Esta certeira cr’tica de Eisenstein ˆ parte do vanguardismo teatral que ele
pr—prio recusou, porŽm, Ž manobrada para notabiliza•‹o da linguagem
cinematogr‡fica. Somente com o cinema Òpela primeira vez alcan•amos uma arte
genuinamente sintŽtica190- uma arte de s’ntese org‰nica em sua pr—pria essncia, n‹o
um concerto de artes coexistentes, cont’guas, ÔligadasÕ, mas na realidade
independentes .(...)De forma que o mŽtodo do cinema, quando totalmente
compreendido nos capacita a revelar uma compreens‹o do mŽtodo da arte em geral
189 Nesse sentido tambŽm o fracasso, fracasso formal, de D.W.Griffth em Intolerance Ž analisado por Eisenstein, em virtude de o cineata americano ter justaposto materiais sem integra•‹o dram‡tica j‡ no intraplano, n‹o levando em contao conteœdo dos fragmentos, a natureza real dos fragmentos (FF 203). Ironicamente, asrealiza•›es de Griffth haviam desconectado o cinema do teatro, produzindo umatens‹o e vigor dram‡ticos f’lmicos, ao movimentar a c‰mera , antes fixa, sugerindo avis‹o do espectador em uma platŽia, e ao utilizar mais integralmente a montagem
paralela, interrompendo o registro ininterrupto da cena antes do come•o de outracena.
190 Note-se que a s’ntese das artes enfatiza o projeto concorrencial do cinemade Eisenstein com o drama, posto que a pr‡tica da tragŽdia grega se tornou idealestŽtico para o Ocidente.
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(SF 169)Ó. O cinema se converte em uma poŽtica da representa•‹o. Seu realizar Ž a
visibilidade do modo como se constituem procedimentos integrados de
ficcionaliza•‹o da realidade. O cinema exibe a formatividade do mundo. A libera•‹o
do teatral, ˆs expensas da narrativa191, transforma as capacidades tŽcnicas e
representacionais do cinema em uma arte total.
Uma dramaturgia f’lmica poss’vel
O percurso rico e hesitante de Eisenstein diante da tradi•‹o dram‡tica nos
situa diante dos problemas compositivos da atividade audiovisual cinem‡tica. O
dom’nio e explora•‹o da proje•‹o de imagens apelam para a correla•‹o dessa
atividade de manipular o que mostrado em um espet‡culo com problemas de
dramatiza•‹o. O diferencial compreensivo e formativo da totalidade da imagem da
obra cinematogr‡fica se faz ˆs expensas de procedimentos de determina•‹o do modo
como o visto Ž integrado a uma apropria•‹o recepcional. A descontinuidade dos
materiais expostos submete-se ˆ continuidade de um projeto interacional executado. A
presen•a irremov’vel de uma audincia pagante e determinada a avaliar e entender o
que v direciona a representa•‹o a singularizar sua forma na medida em que promove
a situa•‹o interpretativa do espectador. A dura•‹o do vis’vel se d‡ proporcionalmente
ˆ orienta•‹o da audincia. A representa•‹o cinematogr‡fica se v limitada a
considerar entre seus problemas composicionais o horizonte integrante e completador
da exposi•‹o audiovisual192
O conflito entre o dispositivo f’lmico e a integratividade dram‡tica tem sua
Hist—ria193. Para Jean Mitry, porŽm, mais detidamente que Bazin, antes da
191 Nessa mudan•a, recrudesce a oblitera•‹o do teatro. A dramaturgia integraldo filme,prpugnada por Eisenstein vai buscar suas comprova•›es em romancistas(Dickens, T—stoi), pintores(El greco) e atŽ em poetas ( Pukhin), mas nenhum autorteatral Ž utilizado como modelo. A ruptura com o teatro liter‡rio duplica-se na rupturacom a cena teatral. Pelo menos na defesa da linguagem cinematogr‡fica.
192 Francesco Casetti em Inside the Gaze (Indiana University Press,1998-original Ž de 1988)procura investigar o modo como o filme designa seu espectadorestruturando sua presen•a(p 15).Mas o ‰mbito de sua criteriosa pesquisa est‡ naenuncia•‹o f’lmica e a possibilidade de formalizar essa estrutura•‹o da audincia, en‹o na efetividade composicional da realiza•‹o f’lmica. O dram‡tico ainda Ž umaanalogia.
193 Marc Ferro em CinŽma et histoire (Paris, Editions Deno‘l/Gothier, 1977), propondo uma leitura hist—rica do filme e uma leitura cinematogr‡fica da Hist—ria,
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dissocia•‹o194, o filme instituiu-se como espet‡culo, Óimitando a cena, tentando se
tornar espet‡culo (APC 277)".
O ideal da concentra•‹o dram‡tica, fornecendo os padr›es de disposi•‹o do
que se v tanto das figuras representada quanto do modo de exibi•‹o , parecia normas
a serem seguidas, sendo o filme o registro do espet‡culo(APC 278).
Ap—s as realiza•›es de Griffth, como foi visto, a flexibilidade da representa•‹o
f’lmica chocou-se com a rigidez da concentra•‹o dram‡tica e suas conven•›es tempo-
espaciais.
De acordo com Mitry foi Thomas Ince quem mais sistematicamente resolveu
essa libera•‹o da concentra•‹o dram‡tica ao dissociar teatro e dramaticidade,
buscando no drama n‹o mais sua estrutura teatral e observacional transposta para a
tela, e sim uma estrutura dram‡tica cinem‡tica (APC 296).Ince rejeita a adequa•‹o do
palco ˆ tela mas generaliza a din‰mica representacional dram‡tica como coerncia da
inteligibilidade emocional do espectador. A concentra•‹o dram‡tica Ž o paradigma
para o controle do que Ž mostrado na tela.
Tal transcendncia operacional da teatralidade frente ao teatro se d‡ ao se
considerar a construtividade do drama como um conjunto de procedimentos de
singulariza•‹o tanto do que representam como da orienta•‹o desta representa•‹o para
uma audincia.
A positiva artificialidade do drama, no sentido de artif’cio, atravŽs da qual a
sucess‹o e simultaneidade do que Ž mostrado se faz em fun•‹o de escolhidos eventos
dispostos em uma prŽ-ordenada conclus‹o, como no caso da tragŽdia, faz com que
tudo contribua conjuntamente para a revela•‹o tanto do modo de express‹o quanto do
que Ž representado (APC 298). Dramatizar deve ser uma inst‰ncia antepredicativa da
constru•‹o f’lmica onde se pensa e se resolve a estrutura•‹o de eventos intelig’veis e
recept’veis.Ouvir e ver n‹o se reduzem a uma tŽcnica audiovisual. Ouvir e ver imagens e
sons Ž compreender sua finita articula•‹o em uma estrutura que torne poss’vel suas
distin•›es relacionadas ˆ modalidades diversas e mutuamente implicadas de
chama as imagens do filme de imagem-objeto cujas significa•›es n‹o s‹o s—cinematogr‡ficas. Em meu caso, mais modesto, opto por uma outra historicidade, a deuma imagina•‹o dram‡tica de longa dura•‹o concretizada nos modos como oespet‡culo Ž composto e realizado. Conf. meu livro Imagina•‹o dram‡tica op. cit.
194 Sigo aqui as coloca•›es de Mitry em The Aesthetics and Psychology of theCinema, Indiana University Press, 1997.(O original Ž de 1963) Sigla Ž APC.
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compreender um espet‡culo em sua totalidade. De forma que a dessincroniza•‹o da
palavra e da imagem Ž transformada em ponto de partida para a dramatiza•‹o que
procura significar imagens com palavra e palavras com imagens a partir da defini•‹o
do tempo, sucess‹o e dura•‹o e interesse de sua exposi•‹o. Assim, Òa imagem do
filme atua no cinema exatamente a mesma fun•‹o das palavras no teatro. Um filme
pode ser considerado como uma pe•a, seu ÔconteœdoÕ pode ser baseado na
concentra•‹o de diferentes tempos e espa•os. De outro lado, o papel da imagem no
filme Ž similar ao do papel das palavras na pe•a (APC 320)Ó.
A passagem do teatro para o dram‡tico, advista como instituidora da
linguagem cinematogr‡fica, Ž a solu•‹o proposta por Mitry para se tornar intelig’vel o
filme tambŽm para o realizador. O filme como pe•a Ž mais que uma analogia. Exp›e
determinadas atividades relacionadas com ˆ composi•‹o do espet‡culo e sua
inteligibilidade. Uma dramaturgia f’lmica toma do dram‡tico o princ’pio estŽtico para
explorar o tempo cinematogr‡fico para abertura de possibilidades representacionais
'roteiriz‡veis'. O dram‡tico se apresenta como modo transformar referncias em
orienta•›es de um espet‡culo, estabelecendo par‰metros de compreens‹o do que se
representa ao levar em conta os efeitos da extens‹o e dura•‹o do que se exibe.
Dessa maneira, a visualidade Ž reestruturada como campo de emergncia de
uma situa•‹o interpretativa bem especificada. O ver Ž integrado a um saber que se
confronta com a marca•‹o dos eventos representados. A focaliza•‹o dram‡tica,
emoldurando a tela, vai constituindo uma experincia de interpretar essa marca•‹o.
Seguindo Pudovkin195, o c‡lculo e o conteœdo de cada plano e a ordena•‹o da
sucess‹o e ritmo das seqŸncias a partir do estudo preliminar e detalhado do
argumento com objetivo de mostrar que deve ser visto parece caracterizar Ž o que nos
d‡ a totalidade f’lmica.
Segmenta•‹o e busca de totaliza•‹o parecem ser dois procedimentosinterligados na composi•‹o f’lmica. A aplica•‹o de uma dramaturgia ao roteiro de
representa•‹o do que deve ser apresentado em espet‡culo cinematogr‡fico efetiva a
integra•‹o de par‰metros compreensivos que evitam a confus‹o entre especificidade e
reducionismo. A disseca•‹o do argumento n‹o estrutura a recep•‹o do que se v, pois
195 Op cit. Na verdade, a concep•‹o de roteiro de Pudovkin Ž extens‹o damontagem. Segundo ele, Òo argumento divide-se em seqŸncias, estas em cenas, e ascenas em tomadas separadas (planos) que compreendem os peda•os isolados queligados firmemente formar‹o o filmeÓ(AR 106)
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o contexto de recep•‹o n‹o se alcan•a por uma t‡tica de controle e monitoramento da
representa•‹o apenas.
Se o dram‡tico se revela na estrutura do filme quando o filme demonstra esta
estrutura em sua exibi•‹o, o processo de dramatiza•‹o Ž a compreens‹o do filme em
sua estrutura. E sendo esta estrutura revelada pela dramatiza•‹o, Ž dram‡tica a
estrutura do filme. De modo que o espec’fico filme se faz em virtude de sua
dramatiza•‹o. A dramaturgia f’lmica, hesitante em Eisenstein, elogiada por Bazin e
reinserida por Mitry, Ž uma chave de acesso ˆ compreens‹o do espet‡culo
cinematogr‡fico e sua textualidade196.
196 Explorando as tens›es entre cinema e teatro, temos, mais recentemente, a publica•‹o de AUMONT 2008.
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9- CINEMA E TEATRALIDADE: O BEBæ (SANTO) DE MåCON , DE
PETER GREENAWAY 197
Preliminares
Cinema e teatro, atividades espetaculares, co-participam de um hist—rico
di‡logo que redefine conceitos e pr‡ticas de ambos198. Para alŽm das analogias
apressadas e pontuais, uma reflex‹o a partir da dramaturgia f’lmica de O beb de
M‰con (1993), de Peter Greenaway, efetiva o esclarecimento do jogo de apropria•›es
e transforma•›es existente em eventos interart’sticos e multidimensionais.
Inicialmente, Ž bom se ter em mente que as rela•›es entre teatro e cinema nem
sempre foram assim amistosas. H‡ paradigmas antiteatrais em alguns momentos do
percurso do cinema. Eisenstein (1898-1948), por exemplo, ao longo de sua carreira,
vale-se de referncias ao teatro, concebendo-o como modelo estŽtico e dispositivo
tŽcnico que precisa ser ultrapassado199. Desse modo, a amplia•‹o das possibilidades
do cinema passaria pela ultrapassagem de sua moldura cnica.
Entretanto, o chamado Òprimeiro cinemaÓ (1894-1908) apresenta-se marcado
por fortes la•os a eventos performativos: a exibi•‹o de imagens em movimento para
uma audincia em espa•os de exibi•‹o pr—prios de eventos circenses, de magia,
pantomimas e aberra•›es Ñ atra•›es que tanto maravilhavam o espectador. O teatro
de variedades, o vaudeville, e sua localiza•‹o da audincia e do lugar de exibi•‹o
197 Parte das an‡lises e discuss›es aqui registradas foi desenvolvida durantecursos que ministro na Universidade de Bras’lia desde 1995, nos quais a interfaceentre teatro e cinema e os coment‡rios de obras cinematogr‡ficas n‹o se limitam a
pretextos paradid‡ticos ou ilustra•‹o de teorias e conceitos. Antes, enfatiza-se arela•‹o entre dramaturgia e audiovisualidade, a partir da experincia de frui•‹o ean‡lise de filmes.
198 Ver partes dessa hist—ria em AndrŽ Bazin, O cinema (S‹o Paulo:Brasiliense, 1991).
199 Ver Marcus Mota, ÒDramaturgia f’lmicaÓ (Belo Horizonte: Anais da IV Reuni‹o Cient’ficada Abrace, 2007) e Damiana Cerqueira Rodrigues, O cinema teatral de Eisenstein: dŽcada de 20 (disserta•‹o de mestrado, Universidade de Bras’lia, 2007).
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cedo foram modelo para o registro cinem‡tico de performances, com a c‰mera em
posi•‹o frontal a um proscnio e autonomia dos planos200.
E, ainda, estŽticas teatrais revolucion‡rias, de Meyehold a Piscator, valeram-se
de proje•›es de imagens em movimento em suas encena•›es201.
Assim, esse fŽrtil intercampo de realiza•›es estimula mœtuos esclarecimentos
e redefini•›es do que venha a ser ÒcinemaÓ ou ÒteatroÓ. Diante da estreita conjuga•‹o
entre tecnologia e espet‡culo, nem teatro Ž mais aquela forma de express‹o baseada
em di‡logos ilustrados por cen‡rios inertes, nem muito menos cinema Ž uma hist—ria
ilustrada por imagens. Nos dois casos, por meio de uma aproxima•‹o mais
enriquecedora e explorat—ria, cinema e teatro seduzem o espectador pela explicita•‹o
da heterogeneidade de efeitos e recursos que organizam a elabora•‹o e recep•‹o de
obras audiovisuais.
O filme
M‰con, uma cidade ao norte de Lyon, a 380 km de Paris, concruz de
caminhos, foi palco de guerras sangrentas entre cat—licos e protestantes no sŽculo 16.
De sede da antiga diocese, M‰con integrou o Sacro ImpŽrio Romano, perfilando uma
longa hist—ria relacionada com religi‹o e poder.
A pol’tica de M‰con Ž reinterpretada pela dramaturgia f’lmica de Peter
Greenaway, por meio n‹o s— da interpenetra•‹o de institui•›es e grupos sociais v‡rios
(igreja, corte, intelectuais, povo, artistas), como tambŽm da conjuga•‹o de artes
(mœsica, —pera, pintura, fotografia, literatura, teatro, cinema). A amplitude do
universo representado materializa-se na diversidade interart’stica. Tal determina•‹o
de reunir d’spares e tornar simult‰neos os diferentes multiplica os nexos, as
referncias, as associa•›es produzidas202.
200 Ver Laurent Mannoni, A grande arte da luz e da sombra (S‹o Paulo:Unesp/Senac, 2003) e Fl‡via Cesarino da Costa, O primeiro cinema (Rio de Janeiro:Azougue, 2005).
201 Ver Erwin Piscator, Teatro pol’tico (Rio de Janeiro: Civiliza•‹o Brasileira, 1968). Para ascontempor‰neas experincias entre cinema e teatro, ver Hans-Thies Lehmann, Teatro p—s-dram‡tico (S‹o Paulo: Cosac Naify, 2007).
202 Maria Esther Maciel, ÒPeter GreenawayÕs encyclopaedismÓ, em Theory, culture & society (UK: Nottingham Trent University, vol. 23, 2006), p. 53: ÒTo call Peter GreenawayÕs cinemaencyclopaedic is to recognize it as this web of knowledge fields, languages, metaphors, allegories,
literary references, organized according to some rigorous principles of order Ñ even if provisional andarbitrary Ñ to deal with a disorderly, ultimately absurd world. Art History, Literature, Music, Theatre,Dance, Cookery, Architecture, Cartography, Mythology, Electronics, Zoology, Botany, Landscape,
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Como horizonte dessa heterogeneidade, temos a moldura teatral dos eventos
expostos. Se tudo Ž mostrado, se tudo vem ˆ superf’cie do mundo, do sexo ˆ morte,
tudo ganha um status de coisa exibida e percebida em sua exorbit‰ncia cnica: o
excesso das coisas dispostas para se ver e ouvir acopla-se ao excesso de sua
observa•‹o, pois atravessa a sucess‹o dos acontecimentos a marcada presen•a de uma
platŽia in loco. Em alguns momentos chegamos ao extremo de n‹o saber se assistimos
ou n‹o a uma pe•a diante do acœmulo do emolduramento teatral dos eventos203.
O imenso galp‹o que se abre em novos tablados abrange e n‹o completa as
tens›es entre fŽ e cincia, que logo descambam para manobras de interesses
particulares204. NinguŽm escapa dessa nivela•‹o dos valores. A cidade faminta,
rodeada pela praga, converte-se no teatro de sua autofagia, na necessidade de
fomentar mitos e de literalmente os devorar.
O teatro no cinema comparece n‹o s— na clara identifica•‹o do dispositivo
tŽcnico-cnico205. Para o muito exibir, o filme explora uma teatralidade generalizada.
Aquilo que se mostra n‹o se confina ˆ apari•‹o dos elementos. A moldura teatral Ž a
Gardening, Psychoanalysis, History, Calligraphy, Engineering, Aeronautics, Geometry, Anatomy,Astronomy, Philosophy, among other fields of knowledge, compose this cinema that, more and more,moves away from the limits of the screen to expand itself into several other artistic spacesÓ. Para outras
tentativas de defini•‹o da obra de Peter Greenaway, ver Rosa Cohen, Motiva•›es pict—ricas emultimediais na obra de Peter Greenaway (S‹o Paulo: Ferrari, 2008); Wilton Garcia, Introdu•‹o aocinema intertextual de Peter Greenaway (S‹o Paulo: Annablume, 2000); Jo‹o Carlos Gon•alves,ÒBanquete dos signos: o estranhamento da recep•‹o em Peter GreenawayÓ, em Revista nexos (S‹oPaulo, 2001, p. 41-56); Maria Esther Maciel (org.), O cinema enciclopŽdico de Peter Greenaway (S‹oPaulo: Unimarco, 2004); ClŽlia Mello, O cinema em cena: uma aproxima•‹o hipertextual ˆ encena•‹ode Peter Greenaway (Edi•‹o de autor, 2001, hiperm’dia em CD-ROM); Gilberto Alexandre Sobrinho,ÒEspa•o e sentido em O beb santo de M‰conÓ, em Cadernos da p—s-gradua•‹o Ð Instituto de
Artes/Unicamp (Campinas, v. 4, n. 1, 2000, p. 175-180).203 Giovana Dantas, ÒTr‰nsito de imagens no cinema de Peter Greenaway: cinema, teatro,
artes visuaisÓ, em Leituras contempor‰neas (Salvador: Faculdades Jorge Amado, v. 1, n. 2, 2003), p.94: ÒO beb santo de M‰con (1993) Ž uma pel’cula que tambŽm leva o cinema a dialogar com o teatro.
O filme trata de uma encena•‹o, com platŽia, em que toda a ilus‹o Ž desmistificada no final, quando ac‰mera recua e vai inserindo os espectadores da pe•a no enquadramento. Enquanto isso, os atoresagradecem os aplausos, ao tempo em que retiram seus adere•os e a maquiagem. Apesar de utilizar umacomposi•‹o de plano extremamente simŽtrica e ordenada, com uma perspectiva acentuada que enfatizaa ilus‹o espacial das pinturas renascentistas, ele desmonta essa mesma ilus‹o, ao se deter na naturezateatral do filmeÓ.
204 Ivana Bentes, ÒGreenaway e a estiliza•‹o do caosÓ, em Ivana Bentes (org.), Ecos docinema (Rio de Janeiro: UFRJ, 2007), p. 175: ÒA tela vira um palco medieval e um tableaux vivant , ahist—ria do beb santo Ž encenada dentro de uma catedral e a platŽia participa ativamente do espet‡culono papel do coro que narra e comenta a hist—ria ao mesmo tempo. O filme tem a estrutura de uma —peraou farsa cheia de simbolismosÓ.
205 Comparar abordagem de Greenaway com a de Orson Welles, em Citizen
Kane (1941), a de Fassbinder, em Querelle (1982), e a de Lars von Trier, em Dogville (2003).
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continuidade do filme, interferindo na percep•‹o do espa•o das a•›es e dos
comportamentos. Essa interferncia intensifica a sensa•‹o de que tudo ali Ž
constru’do, Ž um arranjo para sua recep•‹o. Da’ os fatos mais cruentos, na
exorbit‰ncia de sua oferta, do estupro ao despeda•amento ritual, organizarem-se como
eventos teatralizados, e manifestando a sua configura•‹o em cena206.
Com as mudan•as de plano e dos palcos, na coreografia da c‰mera, que vai do
centro da cena aos bastidores, rompe-se com a clausura do mundo representado em
um filme, como uma pe•a filmada, como um texto ilustrado por imagens. A trama
narrativa contrap›e-se ˆ trama multimidi‡tica, como espet‡culos dentro do espet‡culo.
A hist—ria sucumbe ao mito, ao encenar o acontecer da cren•a, do como acreditar em
algo sem fundamento que se torna o fundamento dos atos.
Em M‰con Ž preciso acreditar. Seus habitantes precisam crer. E n—s, que tudo
vemos, tambŽm. O terr’vel e o sublime grotescamente se encontram, e a mentira
assumida como verdade depois se completa no desmascaramento vingativo.
Quando tanto o omitir, a mentira, quanto o revelar s‹o modos rec’procos e
falhados, a existncia da comunidade se articula nessa pletora do vazio, na
superabund‰ncia do limite. N‹o h‡ nada a esconder. Toda a m‡quina de Greenaway
fabrica e ergue uma cidade que nos devolve seus escombros, seu cotidiano de
sobreviver ˆ m’ngua, nessa fome de mais vida, nessa misŽria da manipula•‹o, dos
embustes, do auto-engano, do gozo dos simulacros.
Os habitantes da cidade evidenciam-se como figuras, como tipos. N‹o h‡
justificativas de comportamentos, e, por meio de suas falas, outras vozes podemos
ouvir. Eles n‹o s‹o personagens definidos a partir de um programa de a•‹o e
verossimilhan•a. Eles s‹o objetos mostrados dentro dessa satura•‹o antiperspectivista.
N‹o h‡ como haver identifica•‹o emocional com eles, pois as figuras em cena s‹o
partes dessa cidade, como o movimento da c‰mera e as coisas que se mostram. Ofilme Ž uma experincia audiovisual que n‹o se confina nas categorias aristotŽlicas ou
neo-aristotŽlicas de unificar a representa•‹o por meio de uma narrativa207.
206 Sobre o conceito de ÒmoldurasÓ, ver Erving Goffman, Frame analysis: an essay on theorganization of experience (2» ed., Boston: Northeastern University, 1986; 1» ed. em 1974).
207 Roberto Tietzmann, ÒLeituras mœltiplas de filmes plurais: interpretando o cinema de PeterGreenawayÓ, em Sess›es do imagin‡rio (Porto Alegre: Famecos/PUCRS, vol. 1, n. 17, 2007), p. 14:ÒPara Greenaway os realizadores teriam se acomodado ao basearem seus filmes em arquitramas
textuais vindos de outros suportes, ao invŽs de experimentarem jogos experimentais de imagem econteœdo que permanecem Ñ segundo ele Ñ amplamente inexplorados no cinema. Portanto o diretorafirma que Ôprovavelmente n‹o vimos nenhum cinema ainda, vimos um pr—logo de 100 anosÕ, sendo
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Por um cinema n‹o exclusivamente narrativo208
Peter Greenaway em suas obras esfor•a-se pela explora•‹o de hibridismos de
modo a enfatizar, como tantos outros fizeram, que arte cinematogr‡fica n‹o se resume
a contar hist—rias. Acima de tudo, o filme mostra o filme, demonstra-se como evento
organizado e percept’vel. Ao recusar a exclusividade diegŽtica, Greenaway
problematiza a hist—ria do cinema e nossos modos de conceber e definir eventos
multidimensionais. O que est‡ em jogo s‹o nossas estratŽgias para compreender obras
cuja especificidade se expressa na amplitude de seus meios e efeitos.
Da’ a import‰ncia da teatralidade: na cultura ocidental a situa•‹o de
performance, o ato de dispor para uma audincia materiais e habilidades in loco,
encontra-se insepar‡vel de sua inteligibilidade209. Tanto que pode ser ensinada,
comunicada, reconhecida. Esta tecnologia das representa•›es implicada em uma
situa•‹o performativa tem como correlato nocional uma abertura ao simult‰neo, ao
mœltiplo, ao heterogneo210. Contra a ilus‹o do uno, œnico, unificante, tal tecnologia
oferece-se a processos criativos os mais diversos. As decis›es em um processo
criativo atualizam o drama da express‹o, a encena•‹o de suas possibilidades, o roteiro
de suas escolhas e exclus›es.
Por meio de uma generalizada situa•‹o de observ‰ncia, de uma moldura
cnica, O beb de M‰con (des)monta nossos h‡bitos de assistir a obras
que o que ter’amos visto agora Ž apenas Ôtexto ilustradoÕÓ. Para uma cr’tica do aristotelismo comomodelo dramatœrgico e pressuposto interpretativo de obras multidimensionais ver Florence Dupont,
Aristote ou Le Vampire du thŽ‰tre occidental (Paris: Flammarion/Aubier, 2007).
208 Um esbo•o de defesa de um cinema n‹o exclusivamente narrativo pode serencontrado em M‡rcio Carneiro dos Santos, ÒO paradigma n‹o-narrativo: do cinemade atra•›es ˆ realidade virtualÓ (S‹o Lu’s: Intercom, X Congresso de Cincias da
Comunica•‹o na Regi‹o Nordeste, 2008). Seguindo Tom Gunning, vemos que orepert—rio para a esta defesa n‹o se reduz ao early cinema. As implica•›es de umÒcinema heterogneoÓ n‹o se restringem ao efeito sobre o espectador (atra•‹o).Temos quest›es de dramaturgia, ideologia e operacionaliza•‹o tŽcnica, entre outras.J‡ AndrŽ Parente, em Narrativa e modernidade: os cinemas n‹o-narrativos do p—s-
guerra (Campinas: Papirus, 2000), ressalta outro repert—rio (p—s-guerra) e diversoarcabou•o conceptual (Deleuze).
209 ƒ preciso que algumas posturas e equa•›es sejam revistas, como, por exemplo, cinema =narra•‹o, teatro = emo•‹o, personagem = pessoa. Ver Marcus Mota, A dramaturgia musical de ƒsquilo (Bras’lia: UnB, 2008).
210 Da’, seguindo Deleuze, a tentativa de se definir o cinema de Peter Greenaway comoÒcinema barrocoÓ. Ver Susana Dobal, Peter Greenaway and the baroque: writing puzzles with images (tese de doutorado, The City University of New York, 2003).
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cinematogr‡ficas; por est’mulos diversos e contra a narrativa, para que se veja que h‡
diversos modos de se contar uma hist—ria, como aquela com peda•os, os nacos de
carnes de um anjo, nosso desejo por um cŽu.
Este teatro que se abre em outros teatros, que se dobra sobre si mesmo,
e se destr—i, ruminando espa•os mœltiplos, alŽm da pe•a sobre a pe•a, expande a
contingncia de sua espetacularidade, oferecendo figuras fantasmag—ricas, entre luz e
sombras, que apenas subsistem no refazer suas verdades, em um cotidiano de aderir
intensamente ˆquilo que as fascina, sem conseguir ir alŽm daquilo que em frente delas
cresce de valor pelo sopro do desejo.
Mise-en-scne, mise-en-cadre, mise-en-abyme. M‰con Ž a cidade-caverna em
que se celebra o esteticismo cruel, œnica inst‰ncia em que se engendram os sons e as
imagens da tribo, as quais s‹o a comida e moeda, o que se quer e o que existe. Pois
estamos e n‹o estamos em um teatro. O beb Ž e n‹o Ž divino. Tudo n‹o passa de
encena•›es, no sentido de que tudo Ž exibido, inclusive sua construtividade: do teatro
ˆ teatralidade211. O recurso a molduras cnicas manifesta a materialidade do impulso
metaficcional que rege as obras de Peter Greenaway, que s‹o ao mesmo tempo obras
e teorias sobre atividades representacionais212.
Enfim, implodindo a pretensa unidade representacional do cinema e a
normativa ortodoxia da Ôespecificidade da obra cinematogr‡ficaÕ, a diversidade
material e estŽtica do cinema de Greenaway ratifica a busca por paradigmas
pluralizados na compreens‹o e realiza•‹o de eventos multidimensionais.
211 Ver Marcus Mota, ÒO teatro como metaestŽtica: subjetividade e jogo segundo H-G.GadamerÓ, em ReVISta (Bras’lia, 2005, p. 86-94).
212 Ver Wolfgang Iser, ÒWhat is literary anthropology? The difference between explanatoryand exploratory fictionsÓ, em Michael P. Clark (ed.), The revenge of the aesthetic: the place ofliterature in theory today (Berkeley/Los Angeles: University of California, 2000, p. 157-179).
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10- AS IMPLICA‚ÍES PERFORMATIVAS DA ESCRITA FUGAL:
UMA LEITURA DE A ARTE DA FUGA DE J.S. BACH
As chamadas formas musicais exibem mais que uma convencionalidade na
escolha de seus tra•os caracter’sticos. AlŽm de justificativa puramente musical, h‡
uma tradi•‹o de procedimentos relacionados com a rela•‹o entre obra e sua
inteligibilidade que, sob os par‰metros englobantes de uma estŽtica dram‡tica, ou do
teatro como meta-estŽtica, melhor se explicita.
Para tanto, a partir do exame de uma tradi•‹o de obras art’sticas que encontra
no limite de determinadas formas a sua possibilidade de experimenta•‹o e constru•‹o
de referncias, procuramos contribuir para o debate te—rico acerca de abordagens n‹o
formalistas de uma obra de arte.
Por abordagens n‹o formalistas denominamos pr‡ticas de abordagem e
reflex‹o sobre objetos culturais levando em conta a efetividade da situa•‹o de
compreens‹o que reœne a obra com seu intŽrprete (GADAMER 1987). A diferen•a
entre o mundo da obra e o mundo da recep•‹o n‹o Ž anulada, e sim indexada ˆ
totalidade da compreens‹o realizada.
Trata-se da recusa da dicotomia texto/contexto e de suas restri•›es. A
dicotomia texto/contexto sugere que o texto somente se explique pelo seu contexto,
conduzindo a pretensa insuficincia explicativa da obra para a atividade explicativa e
tradutora do intŽrprete. O desn’vel e a diferen•a entre o mundo da obra e o da
recep•‹o Ž reordenado em fun•‹o de um ponto de vista privilegiado, que se articula
pelo coment‡rio do analista.Assim, o texto Ž o reposit—rio de dados que s‹o decifrados e ganham
inteligibilidade a partir de sua autonomiza•‹o. O contexto, por conseguinte, Ž esse
esfor•o de inteligibilidade que determina as raz›es da obra. O sentido da obra est‡
nessa moldura explicativa que n‹o Ž posta em questionamento. Trabalha-se com
evidncias indiscutidas, pois o contexto tudo explica. A evidncia de que uma obra se
utiliza de dados extratextuais em sua representa•‹o consigna a atividade do intŽrprete
a tomar estes dados sobre a forma da representa•‹o como fatores para explicar a obraque analisa. A explica•‹o pela evidncia do contexto Ž o privilŽgio do extratextual
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sobre o textual. O contexto extratextual, explicando a obra, descontextualiza-a,
substituindo as raz›es da obra pelas raz›es do analista.
O refinamento da rela•‹o texto/ contexto, ao fim, Ž a uniformiza•‹o do
contexto intelectual de todas as obras, meta da abordagem formalista. Aqui o contexto
explicativo Ž a metalinguagem do intŽrprete, ato de se renomear os dados encontrados
por meio uma estreita taxonomia.
Abordagens formalistas s‹o aquelas que descrevem, por meio de uma
nomenclatura prŽvia, a estrutura•‹o de um objeto-alvo. O rigor da nomenclatura Ž
complementar ˆ redu•‹o do observado ˆ metalinguagem do analista. Ao fim,
coincidem objeto de observa•‹o e metalinguagem. O objeto-alvo s— ganha foros de
existncia a partir de tra•os relevados e apontados pela linguagem do analista. A
realidade do objeto est‡ circunscrita ˆ linguagem que o descreve.
O sucesso das estratŽgias formalistas se d‡ na confirma•‹o de suas
observa•›es a partir de dados que a obra analisada oferece, ou seja: a obra Ž
transformada em um conjunto de informa•›es que ratificam a metalinguagem do
intŽrprete. Quando mais uma obra se reduz ao espa•o de um gnero ou de uma forma
protot’picos - como se fosse o resultado da aplica•‹o de uma lei de sua estrutura•‹o -
mais e melhor tais estratŽgias se refor•am. Dada a obviedade de ser imposs’vel dar
nome a tudo que tem sentido em uma obra de arte, resta ˆ formaliza•‹o selecionar
significa•›es mais importantes e reduzir a aten•‹o para fen™menos mais evidenciados
em virtude de sua recorrncia.
Desse modo, pode-se notar que a descri•‹o formalista, funcionando como uma
metalinguagem, explicita a organiza•‹o material de uma obra, esclarecendo como as
partes se disp›em em sŽries e estas sŽries na estrutura geral. O ‰mbito do formalismo
Ž o das m’nimas unidades resultantes de seccionamento descontextualizador.
Substitui-se o contexto de produ•‹o pelo contexto taxon™mico de reestrutura•‹o. Otexto, sem seu contexto de produ•‹o, Ž pulverizado em dados que s‹o utilizados para
exemplos da classifica•‹o.
A descri•‹o estritamente formalista, pois, reordena um material que estava
disposto segundo sua singularidade em certa apresenta•‹o de sŽries relevantes por sua
recorrncia. Para tanto, privilegia-se a normaliza•‹o das atividades em um conjunto:
h‡ a preferncia por enumerar e classificar procedimentos comuns que possuem uma
alta taxa de ocorrncia.
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A descri•‹o formalista Ž uma ferramenta de trabalho e n‹o pode coincidir com
o alvo de uma reflex‹o. N‹o se pode confundir posse de ferramentas com seu uso
(LIMA 1981). Quanto mais o estudo se restringe ˆ descri•‹o, mais nomenclatura
temos, e menos teoria, ou individua•‹o de uma interpreta•‹o. Quem apenas descreve
a partir de uma nomenclatura j‡ sistematizada somente aplica uma mnemotŽcnica.
Os termos da pesquisa
Apesar de esfor•os hercœleos de reflex›es de H.G.Gadamer, L.Pareyson,
L.Treitler , entre outros, pesa ainda a anacr™nica tentativa de cientificiza•‹o dos
estudos art’sticos. A descri•‹o estritamente formalista Ž resultante dessa apropria•‹o
indiscutida de uma t‡tica comum aos estudos qu’mico-f’sico-matem‡ticos do sŽculo
passado (GADAMER 1998). Mas a obra art’stica n‹o Ž exclusivamente um inerte
objeto de observa•‹o e conhecimento. Ela n‹o se confina ao seu imanentismo. A
estrutura•‹o estŽtica de uma obra leva em conta n‹o s— uma causalidade formal. Ela
coloca o problema da interpreta•‹o, a quest‹o do modo como sua compreens‹o se
possibilita, a interatividade fundamental entre obra e intŽrprete. Em nossa proposta,
sem abrir m‹o dos dados formais, mudamos o enfoque, e procuramos explicitar quais
perguntas a estrutura•‹o estŽtica nos faculta.
Em virtude disso, Ž preciso que se veja uma obra de arte como conjunto de
procedimentos singulares dentro de um espa•o de exibi•‹o de suas escolhas estŽtico-
materiais, as quais orientam sua interpreta•‹o, sua recep•‹o.
Dentro de nossa pesquisa, escolhemos uma tradi•‹o que leva a forma ao seu
limite - o Barroco - oferecendo tens›es que ultrapassam o imanentismo ou uma
dimens‹o internalista autocontida . A dimens‹o receptiva Ž refor•ada pelo cont’nuo
entrechoque entre apelo e reorienta•‹o de expectativas.O recurso ˆ dimens‹o receptiva da obra Ž melhor visualizado no recurso ˆ
cena como mediador estŽtico. O que Ž isso? Esta senten•a-conceito dialoga com a
tradi•‹o estŽtica que objetivou ultrapassar os limites de uma descri•‹o puramente
formal e internalista do texto da obra de arte, posicionando-se contra Óuma defini•‹o
puramente sem‰ntica de texto(CHARTIER 1994:13,27)Ó. Para tanto, a atividade da
recep•‹o Ž determinante para essa ruptura com o autofechamento do texto.
Ampliando mais a determina•‹o receptiva, sugerimos um modelo integrado do eventoestŽtico a partir de uma matriz dram‡tica, a media•‹o dram‡tica.
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Para este senten•a-conceito converge n‹o s— uma mudan•a nos estudos
liter‡rios, de onde recep•‹o foi mais elaborada teoricamente. A dramatiza•‹o da
estŽtica n‹o Ž meramente a importa•‹o de um vocabul‡rio das artes de cena para
oxigenar os excessos de h‡bitos descritivos formalistas. Antes, a dramatiza•‹o da
estŽtica torna-se uma inst‰ncia quase que obrigat—ria quando se trabalha com
objetivos de conciliar e integrar v‡rias atividades e exigncias na observa•‹o:
1- conhecimento da linguagem da arte que se investiga e sua formaliza•‹o;
2- procedimentos textuais reiterados que demonstram a coerncia e coes‹o de
atos e efeitos interligados;
3- historicidade da estŽtica;
4- integridade da obra de arte;
5- compreens‹o de processos composicionais;
6- incremento da percep•‹o estŽtica do pesquisador;
Observando como a estŽtica barroca reivindica a integra•‹o dessas atividades -
o que chamamos de orienta•‹o de cena, fundamento da estŽtica teatral - a
compreens‹o da escritura da fuga se tornou necess‡ria e fundamental. A estŽtica
dram‡tica encontra na escritura fugal n‹o s— uma transposi•‹o de atividades cnicas
para a mœsica como tambŽm a visualiza•‹o de procedimentos estŽticos utilizados para
essa concretiza•‹o. Quando a mœsica se dramatiza, ela n‹o se torna um drama, n‹o
deixa de ser mœsica: vai pesquisar em sua linguagem procedimentos para tornar
poss’veis efeitos dram‡ticos. Os suportes dram‡ticos utilizados pela mœsica s‹o
inscritos e redefinidos nas formas escolhidas e adotadas. A alta dialogiza•‹o da fuga Ž
amostra disto. Ou seja, a dramatiza•‹o da mœsica se torna uma reflex‹o sobre o
drama. A mœsica n‹o s— incorpora elementos dram‡ticos em sua pr‡tica comotambŽm a escrita registra esse esfor•o e, disso, as solu•›es estŽticas para essa
incorpora•‹o. Aqui a escritura da fuga nos Ž important’ssima pois, no operar das
formas, as solu•›es encontradas n‹o s‹o somente musicais, pois a estŽtica n‹o Ž um
conceito e sim um fazer (Pareyson). A escritura fugal Ž uma reflex‹o sobre a cena,
sobre a orienta•‹o dram‡tica da estŽtica.
Em virtude disso, nos detemos na fuga como maneira de tornar mais
explicitados os procedimentos que possibilitam uma estŽtica dram‡tica, matriz parauma abordagem n‹o formalista e sim interpretativista de obras de arte.
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A composi•‹o contrapont’stica denominada fuga, em sua pr‡tica altamente
explorada por Bach, principalmente em A arte da fuga, possibilita-nos o acesso a
processos de textualiza•‹o que, se melhor explicitados, produzir‹o grandes
dividendos para a compreens‹o a respeito da cena e suas matrizes.
Para tanto, Ž preciso superar algumas restri•›es. Tradicionalmente duas
componentes tm demarcado o campo de estudos da mœsica (TREITLER 1990: 299):
uma perspectiva formal, preocupada com a descri•‹o e estabelecimento do c—digo de
sua linguagem, cuja nomenclatura cerrada e universalizante procura eliminar as
ambigŸidades e as flutua•›es interpretativas; e uma perspectiva hist—rico-estil’stica,
baseada na periodiza•‹o estŽtica das Artes Visuais, que busca preencher o contexto
das formas. Ou seja, em suma temos uma forma autofechada cercada pelo anedot‡rio
sobre os compositores e refor•ada pela classifica•‹o estil’stica.
Dessa maneira, prevalece aquilo que se denomina situa•‹o sincr™nica da
mœsica (TREITLER 1990:300), na qual o texto musical se confunde com sua
descri•‹o formal, e o contexto da express‹o se confina a um elenco de caracter’sticas
comuns de uma Žpoca art’stica (MOTA 1997:162-166), resultando na descri•‹o de
uma coisa, de um objeto aut™nomo e n‹o de um evento (TREITLER 1990: 303,306).
Nicolaus Harnoncourt, em seus estudos sobre o barroco, reagiu
veementemente contra essa elimina•‹o da historicidade da mœsica atravŽs de sua
redu•‹o formal. Ele popularizou o estudo da chamada 'mœsica hist—rica' para a
forma•‹o musical contempor‰nea. Vamos nos concentrar um pouco mais em suas
afirma•›es.
Refutando a atemporalidade das grandes obras (HARNONCOURT
1990:20213), refletida na uniformiza•‹o dos estilos musicais (1990:20) e na forma•‹o
musical demasiadamente tŽcnica - a qual Òn‹o produz mœsicos, mas acrobatas
insignificantes(31)Ó - Harnoncourt advoga a compreens‹o da mœsica hist—rica, amœsica do passado a partir de suas pr—prias leis e regras. Pois ÒŽ certo que tocamos a
mœsica de cinco sŽculos, mas na maioria das vezes em uma œnica l’ngua, em um s—
estilo interpretativo. Mas, se come•‡ssemos a reconhecer as diferen•as essenciais de
estilo e abandon‡ssemos o infeliz conceito de mœsica como linguagem universalÓ
(122), ser’amos obrigados a compreender exigncias particulares e objetivos
composicionais espec’ficos.
213 Seguem-se cita•›es da mesma obra e autor.
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Nesta escuta das diferen•as, a mœsica barroca ocupa uma posi•‹o estratŽgica.
Desde cerca de 1600 atŽ ˆs œltimas dŽcadas do sŽculo XVIII nota-se que Òa mœsica Ž
uma linguagem de sons, que nela se trava um di‡logo, uma discuss‹o dram‡ticaÓ(29).
Aplicando princ’pios ret—ricos ao contraponto, adota-se a ÒidŽia de se fazer da pr—pria
palavra, do di‡logo , o fundamento da mœsica. Tal mœsica deveria tornar-se
dram‡tica, pois um di‡logo j‡ Ž em si dram‡tico. Seu conteœdo Ž argumento,
persuas‹o, problematiza•‹o, nega•‹o, conflito(164)Ó.
O imperativo dram‡tico objetiva uma apropria•‹o criativa do material
extramusical, encontrando procedimentos estŽticos que expressem proje•›es
representacionais. Assim, procura-se com o maior cuidado Òuma express‹o musical
para cada emo•‹o humana, para cada palavra, e para cada f—rmula de linguagemÓ
(168)
O modelo lingŸ’stico ret—rico de base para o Barroco evidencia-se na
possibilidade de orientar a linguagem para alŽm de uma estŽril classifica•‹o de
signos: ÒA mœsica barroca quer sempre dizer alguma coisa, ou pelo menos representar
e suscitar um sentimento geral, um afeto(151).Ó
Este querer dizer, esta eloqŸncia do barroco aponta para algumas
unidades(25):
1- a unidade mœsica-linguagem em torno do texto. A mœsica Ž organizada
retoricamente segundo padr›es de textualidade. Sua escrita mesma n‹o Ž
autosuficiente, mas fornece pontos de orienta•‹o para o intŽrprete. O texto Ž o
controle da performance, veiculando marcas para a sua interpreta•‹o. O texto musical
assume este car‡ter englobante n‹o s— de registro de sons como tambŽm de
explicita•‹o dos atos envolvidos na representa•‹o e interpreta•‹o de um evento. O
texto Ž o contexto de sua performance(63);
2- a unidade ouvinte-artista, decorrente dessa concep•‹o expandida de texto, por meio da qual os sons se organizam na puls‹o de representar, de proporcionar um
efeito, de promover a imagem acœstica do que se quer referir.
A dramatiza•‹o da mœsica no Barroco proporciona o incremento de suas
exigncias e fun•›es. A necessidade do extramusical, de um contexto e objetivo n‹o
somente sonoros, exige o esfor•o composicional que capacita a linguagem musical
para tamanhas tarefas. A dilata•‹o dos horizontes corresponde ao desenvolvimento do
detalhe. A mœsica como discurso sonoro agora se vale das microdin‰micas da pronœncia, aplic‡vel ˆs s’labas e palavras isoladas (60). A mœsica eloqŸente do
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barroco reivindica tambŽm uma Òinterpreta•‹o eloqŸente, articula•‹o de palavras em
pequenos grupos de notas, nuan•as que se aplicam ˆs notas isoladas, concebidas como
meio de articula•‹o(119).Ó
Ao invŽs de grandes linhas mel—dicas (30) ou belas colunas sonoras bem
alinhadas(56) - passagem da ret—rica para a pintura que o Classicismo operou(30) -
ouvimos o acontecer de diversas coisas ao mesmo tempo(56), superposi•‹o de
hierarquias, mœltiplos n’veis (58).
Essa alta diferencia•‹o, contudo, n‹o Ž ca—tica pois Òna mœsica barroca tudo Ž
ordenado hierarquicamente(50)Ó. A representa•‹o Ž altamente configurada, exigindo
suportes representacionais para a realiza•‹o das inten•›es expressivas. O barroco
ratifica a descontinuidade entre realidade e representa•‹o, operando uma m’mesis que
toma das representa•›es j‡ existentes o material para novas representa•›es. A forte
diferencia•‹o Ž proporcional ˆ intensa formatividade. A forma Ž uma media•‹o que
registra n‹o uma c—pia de um ideal, uma transposi•‹o do que existe, mas sim a
reestrutura•‹o do prŽ-existente em rigorosos suportes de orienta•‹o.
Aqui se compreende como o Barroco n‹o Ž formal, autocontido, apesar de se
valer de suportes altamente recorrentes. Todo novo acontecer de sentido Ž situado no
contexto de sua determina•‹o estŽtica. A obra barroca torna-se a produ•‹o de um
conjunto de procedimentos que proporcionam a compreens‹o de algo que se quer
enunciar atravŽs dos suportes de sua enuncia•‹o. A dificuldade est‡ nisso: a
inseparabilidade entre mensagem e contexto de express‹o e as decorrentes confus›es
entre a literalidade do que se afirma e a efetividade do modo como se diz. Para um
formalista o barroco ter‡ assimetrias, irregularidades, flutua•›es. Para um conteudista
o barroco ser‡ hermŽtico, extracotidiano, excntrico. Em todos os momentos, a
unilateralidade com que se trata o Barroco exp›e a incompreens‹o de rela•›es de
texto e contexto, da historicidade da estŽtica.Assim, o descontextualismo formal sincr™nico, produzindo um eterno presente
das formas, Ž in‡bil para o entendimento das implica•›es dessas formas ou
formatividade ( PAREYSON 1984 e 1993). A atividade estŽtica realiza conjuntos
cuja referncia se situa no modo como s‹o configurados e dispostos os elementos
utilizados em uma express‹o. O que est‡ escrito Ž a representa•‹o do modo como
esses elementos se organizam e s‹o recebidos. A escrita estŽtica, pois, n‹o Ž a
reprodu•‹o do conteœdo dos elementos, e sim a individua•‹o das rela•›es entre esseselementos.
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Esse impulso configurador que estabelece uma ordem, organiza•‹o de uma
estrutura, Ž sinalizado e praticado pela fuga. Como veremos, o modo de estrutura•‹o
da fuga est‡ diretamente relacionado com os procedimentos que a possibilitam. As
distin•›es encontradas apontam para seu contexto de produ•‹o.
Leitura de A arte da Fuga
Agora vamos fazer um exerc’cio te—rico-anal’tico que objetiva, pela
ultrapassagem compreensiva da carateriza•‹o puramente formal, promover tanto a
explicita•‹o dos processos de representa•‹o que a fuga atualiza quanto a carateriza•‹o
de suas implica•›es dram‡ticas. A dramaticidade do barroco , esperamos, ser‡
concretizada por uma obra em a•‹o.
Escolhemos A arte da fuga por ser um livro, ter um projeto composicional
bem delineado. Bach assim o quis. Ele escreveu e disp™s as fugas em um livro. A
emergncia do Barroco far‡ desenvolver a chamada met‡fora do livro, t—pica utilizada
para demonstrar a centralidade da linguagem na organiza•‹o das rela•›es do homem
consigo mesmo e com o cosmo. O livro sempre visou instaurar uma ordem
(CHARTIER 1994:8). Validando experincias de mundo atestadas e exploradas em
suas p‡ginas, o livro declara um saber estruturado pelo autor. N‹o Ž em v‹o que A
arte da fuga Ž um livro no qual o autor se faz presente, representado, como veremos.
Segue-se a leitura desse livro, a tentativa de compreender seus mecanismos de
reprodu•‹o e agrupamento, a materialidade da linguagem utilizada e configurada
(DUBOIS 1996:62), o que evidencia a poŽtica dram‡tica da mœsica p—s-renascentista
empreendida por Bach. O livro A arte da fuga Ž um meta-livro, um livro sobre uma
forma altamente especificada: mais que um livro sobre a ret—rica musical, Ž uma obra
sobre a cena musicalizada. Mesmo sem um texto verbal, A arte da fuga tem seu texto:o contexto de sua efetiva•‹o, a partir de suportes dram‡ticos. ƒ o que perseguimos.
A arte da fuga Ž um conjunto de fugas sobre a escritura fugal. ƒ Òuma cole•‹o
de varia•›es contrapont’sticas, todas baseadas na mesma idŽia e todas no mesmo
tomÓ(GEIRINGER 1985: 330). Bach disp™s assim a obra com o objetivo de explorar
as possibilidades da escritura fugal. Um mesmo tema Ž variado r’tmica e
melodicamente atravŽs de diferentes graus de complexidade. A varia•‹o tem‡tica ou
mot’vica perseguida atŽ sua satura•‹o Ð procedimento que fundamenta uma fugaindividual - Ž agora estendida a um conjunto de fugas. O ciclo de A arte da fuga
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##S
tematiza assim uma grande fuga que se comp›e ela mesma de fugas individuais
agrupadas em se•›es. Assim como funciona uma fuga individual, tambŽm o ciclo se
estrutura. O car‡ter fugal do ciclo amplifica a realidade c’clica de uma fuga. Se a fuga
apresenta e desenvolve um motivo, o ciclo se estrutura em grupos de fugas que
apresentam e desenvolvem um motivo. Assim como uma fuga se comp›e de se•›es
relacionadas com a varia•‹o mot’vica, o ciclo de fugas tambŽm se comp›e de
conjunto de fugas como se•›es que pontuam as varia•›es tem‡ticas. O ciclo de fugas,
desenvolvendo possibilidades de dramatiza•‹o de uma fuga, explicita os
procedimentos de escritura de uma fuga particular. As possibilidades de uma fuga
individual s‹o tematizadas pelo ciclo das fugas. As quatro se•›es do ciclo, e suas
divis›es internas, esclarecem os procedimentos utilizados pela fuga em sua
autorepresenta•‹o e dramatiza•‹o .
A arte da fuga, pois, Ž uma poŽtica da escritura fugal,( como se v desde o
t’tulo- A arte de). Ao invŽs de um conjunto de regras para a composi•‹o, A arte da
fuga, explorando os recursos de uma forma altamente praticada, converte-se em
ilumina•‹o de procedimentos que fundamentam a textualidade da mœsica. E quais s‹o
estes procedimentos de textualidade?
1 Inicialmente, vemos que a fuga, para fazer variar o motivo, divide-se em
se•›es, assim como em se•›es divide-se o ciclo tem‡tico de A arte da fuga. Trata-se
de uma forma multisetorial, descont’nua, na qual a tens‹o entre todo/parte Ž assumida
previamente. O projeto de A arte da fuga prev se•›es onde agrupamentos de fugas
individuais ter‹o uma determinada fun•‹o em rela•‹o ao ciclo. O ciclo n‹o Ž o
somat—rio de fugas, mas a totalidade dividida, a totalidade configurada por se•›es.
A divisibilidade do todo em se•›es, advista em uma fuga individual e
intensificada no ciclo, cria uma aparente tens‹o entre unidade do motivo a ser variado
em uma fuga e a descontinuidade das partes da fuga. Se a fuga tematiza um motivo primeiro expondo-o e desenvolvendo-o Ž porque a unidade do todo n‹o Ž exterior ˆ
rela•‹o que se performa nas partes entre as partes. A varia•‹o tem‡tica que a fuga
efetiva, reivindica de antem‹o um tratamento descont’nuo do material a ser disposto.
A continuidade da fuga se alcan•a pela exibi•‹o dos cortes, das inst‰ncias. A varia•‹o
demarcada por se•›es Ž fator intr’nseco ao perfazer-se da fuga.
Tal demarca•‹o por se•›es amplia-se pelas lentes de A arte da fuga. O que Ž
determinante para a fuga Ž tematizado pelo ciclo. A grande fuga que Ž A arte da fuga pressup›e esta divisibilidade como maneira de ratificar a varia•‹o do tema proposto.
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##V
Ratificando o descont’nuo, supera-se a estreita oposi•‹o entre tema e varia•‹o.
Se a escritura fugal elabora a varia•‹o tem‡tica, ela n‹o o faz como refor•o do tema,
como confirma•‹o do tema. Sen‹o, a fuga seria igual ao tema que ela prop›e. Essa
n‹o coincidncia entre tema e fuga faz com que as implica•›es dessas divis›es sejam
buscadas.
Pois, se o que varia Ž o tema e a fuga Ž a varia•‹o tem‡tica levada ˆ sua
satura•‹o e tudo o que a fuga efetua j‡ Ž varia•‹o tem‡tica, ent‹o o tema Ž uma
varia•‹o. Na exposi•‹o mesma do tema temos j‡ varia•‹o do tema. O tema Ž proposto
e variado. Assim, a se•‹o expositiva de uma fuga j‡ n‹o Ž simplesmente uma unidade
baseada no tema, n‹o havendo tema sem varia•‹o.
Por isso compreendemos as partes que comp›em a exposi•‹o de uma fuga. A
pr—pria exposi•‹o Ž divis’vel. Em A arte da fuga isso Ž tornado bem claro no grupo de
fugas que comp›e a se•‹o-exposi•‹o. Assim como em uma fuga individual a
exposi•‹o Ž demarcada pelo aparecimento do sujeito em todas as vozes, da mesma
forma quatro fugas simples comp›em a se•‹o- exposi•‹o de A arte da fuga.
Retornando: a textualidade da fuga advŽm da produtividade em torno de
procedimentos descont’nuos que configuram a sua referncia. SŽries de exposi•›es e
desenvolvimentos constituem-se em macrose•›es que demarcam a atividade da
varia•‹o mot’vica. No interior mesmo dessas macrose•›es encontramos mais
divisibilidade ainda. A exposi•‹o de uma fuga Ž a aplica•‹o da varia•‹o mot’vica
sobre um tema escolhido.
Em virtude disso, vamos ver mais de perto como se faz a varia•‹o mot’vica j‡
na exposi•‹o. O material da fuga Ž apresentado e introduzido pelo sujeito. Essa
entrada isolada, cercada pelo silncio das outras vozes, converte-se em orienta•‹o
para os posteriores procedimentos contrapont’sticos da exposi•‹o. Note-se que a
entrada do sujeito Ž altamente marcada. Promove a execu•‹o de um material r’tmico-mel—dico gerador. Seu exposto isolacionismo Ž contrastado com a apari•‹o das vozes
subsequentes.
Esse sujeito Ž respondido, ou melhor, duplicado pela imita•‹o feita por outra
voz. Desta maneira, justap›em-se materiais aproximadamente semelhantes. A
semelhan•a se produz atravŽs da aproxima•‹o e contraste. A percep•‹o do mesmo se
faz em fun•‹o do novo. A dialŽtica sujeito-resposta da exposi•‹o n‹o Ž o refor•o de
uma unidade tem‡tica, mas a produ•‹o de um contexto de varia•›es.
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Novamente A arte da fuga. A parte expositiva comp›e-se de quatro fugas que
retomam um mesmo motivo e o variam. Os procedimentos de varia•‹o, ao mesmo
tempo eque se ligam ao material tem‡tico, exercem sobre ele um esfor•o de
diferencia•‹o. Se a primeira fuga apresenta o tema, as demais modificam ritmica e
melodicamente este tema, de forma a se estabelecer uma cont’nua rela•‹o entre o
motivo que Ž variado e o refor•o do motivo pela varia•‹o.
Essa atividade na exposi•‹o da varia•‹o determina que, ao mesmo tempo em
que se retome a orienta•‹o do motivo, sejam tambŽm pontuados componentes desse
mesmo motivo. O prosseguir da fuga ser‡ a desconstru•‹o da pretensa
homogeneidade do tema e sua reconstru•‹o e apropria•‹o subseqŸentes. A exposi•‹o
do tema na dialŽtica sujeito/resposta mostra como o motivo tambŽm Ž divis’vel,
demonstra sua composi•‹o em unidades que ser‹o posteriormente trabalhadas. A fuga
n‹o Ž o monotematismo de um sujeito, mas a produ•‹o de um campo de expectativas
continuamente revisitado e descontinuamente constitu’do. O reenvio cont’nuo ao tema
Ž feito para que se evidencie a varia•‹o mot’vica. N‹o se pode produzir varia•‹o
tem‡tica sem um suporte tem‡tico. Eis um pouco da l—gica fugal.
Se a entrada do sujeito Ž extremamente marcada e demarcada, gerando o
horizonte de recep•‹o da exposi•‹o, o mesmo se pode dizer do que se segue. As
imita•›es e justaposi•›es do sujeito nas vozes, procedimentos que caracterizam a
exposi•‹o, retomam essas marcas, expandindo-as. Demonstra-se, pois, que n‹o pode
haver uma reatualiza•‹o ipse literis de uma forma anterior. Produz-se um padr‹o de
reconhecimento por contextos extensos (K.Pike). O espa•o de entradas, sa’das,
simultaneidades, relacionados com o car‡ter antecipativo e program‡tico do sujeito,
ratifica o princ’pio de simetria como conseqŸncia da atividade de varia•‹o mot’vica.
Na exposi•‹o, as reinser•›es do sujeito, seja nas respostas, seja nas imita•›es,
configuram o efeito de uma semelhan•a continuada, a simetria que aponta para avaria•‹o.
Dessa forma, confirma-se que a simetria Ž produzida, Ž induzida por artif’cios
e t‡ticas descont’nuas. O espa•o mœltiplo da representa•‹o fugal Ž que possibilita uma
perspectiva, uma imagem de semelhan•a. A varia•‹o mot’vica, agindo sobre um
material escolhido previamente para ser potencialmente configurado, transformado
tematicamente, produz a simetria das formas. ƒ preciso ter em mente esta
prerrogativa. A semelhan•a entre as partes se funda em sua diferen•a. A diferen•aorientada para a produ•‹o de uma continuidade Ž que produz a simetria. A simetria Ž
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##l
a resultante de toda essa atividade descont’nua. Temos, pois, uma tendncia ˆ
simetria realizada por procedimentos de varia•‹o mot’vica e n‹o uma simetria
absoluta, genŽrica.
A rela•‹o todo/parte, inscrita na evidncia multisetorial da fuga, necessita da
tendncia ˆ simetria n‹o para confirmar o idntico, e sim para ratificar a
heterogeneidade das divis›es. A rela•‹o com o idntico presente na varia•‹o mot’vica
fornece um reconhecimento do diferente modo de tratamento do motivo pela
referncia ˆ disposi•‹o do motivo. ƒ preciso compreender essa distin•‹o. A varia•‹o
sobre o motivo, a reatualiza•‹o do motivo incide sobre o contexto diverso atravŽs do
qual o motivo Ž reapresentado. No contraste entre as situa•›es de apresenta•‹o e
reapresenta•‹o, n‹o Ž o mesmo tema que se depreende como material fugal, mas sim
os novos contextos de elabora•‹o do material. A se•‹o- exposi•‹o n‹o serve apenas e
t‹o somente para alertar a recep•‹o sobre qual Ž o tema da fuga. Demonstra o modo
como vai ser efetuada a varia•‹o mot’vica. O tema da exposi•‹o Ž a varia•‹o tem‡tica
por semelhan•as mel—dicas que demarcam contextos de distanciamentos sobrepostos.
Exibe-se a configura•‹o da varia•‹o. Foi o que Bach levou ao extremo em A arte da
fuga. Um mesmo tema Ž variado n‹o em uma fuga individual, mas em um ciclo, no
qual , na verdade, s‹o tematizadas as pr—prias possibilidades da varia•‹o tem‡tica. A
retomada programada do tema nas diferentes texturas exibe n‹o o tema, mas o que se
faz com ele. A arte da fuga Ž o espet‡culo dos procedimentos de sua possibilita•‹o.
Entramos, ainda na exposi•‹o, na natureza perform‡tica da fuga. O conceito
de performance Ž fundamental para que se ultrapasse uma descri•‹o formalizada da
mœsica. As implica•›es das formas procuram explicitar o porqu das marcas formais
de uma estrutura. O que se exibe nessa exposi•‹o? Por que essa exibi•‹o se faz na
reapresenta•‹o do tema nas variadas vozes?
Sendo a exposi•‹o uma exibi•‹o reiterada do tema, tendo sua extens‹o eordena•‹o demarcadas por meio de controle e previs‹o das entradas e as sa’das,
promove-se, por esta formatividade exibitiva, o suporte para sua recep•‹o. A imita•‹o
da resposta e a reinser•‹o do sujeito nas vozes demarcam os come•os da mesma
situa•‹o de varia•‹o mot’vica proposta na exposi•‹o. A performance Ž um programa
de experincias que concatenam a exibi•‹o de algo para alguŽm. Para durar e
constituir-se, a performance precisa atualizar constantemente orienta•›es para sua
recep•‹o. Uma se•‹o que se configura atravŽs da prŽvia e finita exibi•‹o de ummotivo proposto e reatualizado orienta a recep•‹o para sua performance. Ela n‹o
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##m
exibe algo, ela se autoexibe. A exposi•‹o de uma fuga intervŽm como proposi•‹o do
modo como ser‹o articulados e definidos a distribui•‹o de seus elementos. E enuncia
a ÔleiÕ de seu movimento. A fuga Ž uma modaliza•‹o de sua performance, que orienta
a recep•‹o para o modo de sua produ•‹o. Insere, em seu texto, seu metatexto. As
partes da escritura fugal coordenam o esfor•o compositivo de expor a inteligibilidade
de sua estrutura•‹o ao mesmo tempo em que realizam sua representa•‹o. Desde o
in’cio o tema Ž ’ndex, ele refere-se ao que se vincula, os modos de sua produ•‹o. A
varia•‹o mot’vica aponta para a estrutura•‹o da fuga. A alta reitera•‹o de
procedimentos da fuga, logo em sua abertura e exposi•‹o, demonstra como a
atratividade de sua performance se articula com a proposi•‹o para audincia do
conhecimento do modo de constru•‹o da obra.
Paradoxalmente, ent‹o, uma fuga que come•a com a exibi•‹o de seu projeto
de realiza•‹o, prolonga-se com a recusa de representar, frente a este momento
metatextual reiterado. Ao invŽs de seguir e prosseguir na realiza•‹o do
desenvolvimento de um tema, a escritura fugal demora-se na dialŽtica sujeito-
resposta. H‡, pois, a frustra•‹o ou reorienta•‹o da imediata expectativa de
representa•‹o, quando a fuga se demora em focalizar os nexos receptivos atravŽs da
exibi•‹o de sua construtuvidade. A assincronia entre performance fugal e recep•‹o
patenteia essa ret—rica. N‹o se exibe algo, mas o modo da realiza•‹o. A fuga n‹o
exp›e o tema e imediatamente o desenvolve.
A extrema formatividade da se•‹o-exposi•‹o, ausente na se•‹o-
desenvolvimento, encontra aqui suas raz›es. Momento fundamental da fuga, a
exposi•‹o valida-se n‹o apenas como did‡tica do reconhecimento do tema, na qual se
facultaria, ˆ recep•‹o, o horizonte de inteligibilidade da obra. Temos tambŽm fun•›es
de excedncia ao se conduzir o tema. Explora-se o efeito do retardo interacional,
como se v na dialŽtica sujeito/resposta. Aqui, contrariamente aos termos, n‹o h‡di‡logo. As vozes n‹o dialogam diretamente. Ao se remeterem a um tema que ser‡
retomado para ser variado, as vozes precisam cumprir o programa de sua exibi•‹o
para que a exposi•‹o seja delimitada. Elas precisam repropor a tendncia ˆ simetria
como forma de configurar a se•‹o. A marcada exibi•‹o da organiza•‹o de sua
atividade evita que apressadamente se fa•a analogia com uma conversa. As vozes n‹o
se reportam para o tema, mas realizam a varia•‹o tem‡tica. Isso patenteia o fato que,
ao invŽs da fala, estamos lidando com sons. E ainda mais: demonstra que a
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##n
dramatiza•‹o, mesmo an‡loga a atos comunicativos cotidianos, n‹o se confunde com
eles.
Tal analogia baseia na rela•‹o entre arte e discurso. Segundo o pressuposto da
distin•‹o estŽtica que caracteriza essa rela•‹o214, a arte Ž um discurso que comenta
um referente. Para compreender a arte, ent‹o seria preciso apoiar-se no referente deste
discurso. Essa substancialidade da arte a caracterizaria estruturalmente. A arte como
discurso redundaria na representa•‹o de uma proposi•‹o tem‡tica. A partir disso, a
identifica•‹o do tema e de suas varia•‹o no decorrer do discurso da arte acabariam
por ser a atividade mais digna de se realizar. A obra de arte, ao fim, seria constitu’da
de partes que retomam e referendam sua homogeneidade tem‡tica. A coes‹o de uma
obra, sua estrutura formal, o esfor•o de representar sua coerncia, a confirma•‹o da
referncia tem‡tica. Assim, uma obra acabaria por possuir come•o, meio e fim, planos
do discurso que apresentam, desenvolvem e concluem um tema, com total privilŽgio
do todo sobre as partes.
Contudo, essa discursividade da arte, impresso no pressuposto da
diferencia•‹o estŽtica, n‹o Ž suficiente para caracterizar a fuga. A imagem linear de
come•o, meio e fim de uma ret—rica org‰nica n‹o Ž a forma da fuga. A escritura fugal
n‹o parte da homogeneidade do tema como condi•‹o e pressuposto de sua
representa•‹o nem pontua essa homogeneidade com pausas. O aspecto multisetorial
de sua escrita exibe a produ•‹o do contexto da fuga. N‹o h‡ um exclusivo modo de
estabelecer nexos e referncia, mas sim a preocupa•‹o de coordenar a retomada do
tema ao suporte para se visualizar os procedimentos de sua modifica•‹o. Temos a
elabora•‹o de uma contextura perform‡tica e n‹o de uma ret—rica discursiva, restrita e
adstrita ˆ literalidade formal do texto.
A escritura fugal exp›e a legibilidade dos modos os quais o compositor se vale
para proporcionar as referncias de sua atividade perform‡tica. O texto fugalapresenta n‹o um tema em sua transforma•‹o, e sim os recursos carateriz‡veis de uma
pr‡tica representacional. A varia•‹o tem‡tica Ž o suporte da orienta•‹o da recep•‹o
para estes procedimentos. A fuga se vale da cont’nua referncia ao motivo, mas do
motivo reinserido em uma configura•‹o que lhe Ž anterior e determinante. S‹o
produzidos distanciamentos em rela•‹o ao motivo atravŽs de sua recursividade. A
dialŽtica sujeito/resposta das vozes na exposi•‹o vai demarcando este distanciamento,
214 GADAMER 1997.
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esse espa•o que passa a existir entre a confirma•‹o do tema e seu uso em fun•‹o das
prerrogativas fugais. A varia•‹o mot’vica n‹o Ž a homogeneidade do tema, mas a
integridade da configura•‹o da fuga que orienta a recep•‹o. A cont’nua referncia ao
motivo na exposi•‹o n‹o Ž a redund‰ncia tem‡tica, e sim a eficincia estrutural da
performance da fuga.
Por isso a dialŽtica sujeito-resposta demarca um conjunto previs’vel de
entradas e sa’das e n‹o um di‡logo democr‡tico progressivo. A n‹o progressividade
deste dialogismo refere-se ˆ exibi•‹o que domina a exposi•‹o. Porque aqui n‹o se
comunicam palavras ou um tema: exibe-se a situa•‹o interpretativa da obra, seu
horizonte metatextual.
A formatividade das vozes na exposi•‹o preenche o campo de expectativas da
recep•‹o, possibilitando o horizonte de sua orienta•‹o. A tendncia ˆ simetria Ž
produzida e o revezamento esperado na reatualiza•‹o do sujeito Ž efetuado. Com essa
mimŽtica, a recep•‹o Ž conduzida a seguir o que se prop›e e se exibe em sua
exposi•‹o. H‡ a transferncia da identidade do tema para a formatividade da obra. A
simetria que as entradas exibem refor•a os procedimentos contextuais da varia•‹o
mot’vica. O revezamento das vozes na moldura da exibi•‹o situa a recep•‹o dos
procedimentos da varia•‹o mot’vica.
As vozes s‹o os ve’culos e operadores da fuga. Mudam de fun•‹o nas se•›es
da fuga. Na exposi•‹o, introduzem e interpretam a varia•‹o mot’vica em sua
performance. Seu delineamento e programa demarcados s‹o os meios pelos quais a
escrita fugal se vale para se (auto)representar. No desenvolvimento, focalizam
aspectos do tema e n‹o mais sua inteireza.
2 Vimos, ent‹o, que em conjunto com a exposi•‹o do tema, a fuga prop›e-se,
autorepresenta-se. A se•‹o-desenvolvimento abandona a indexa•‹o mot’vica comoagente privilegiado para a autoexposi•‹o da fuga, para a exibi•‹o de contextos de
estrutura•‹o musical para o audit—rio. A interrup•‹o da referncia ˆ integridade do
tema do tema Ž proporcional ˆ performance da musicalidade do compositor. Aumenta
a taxa de indetermina•‹o e, consequentemente, de reconhecimento do que se mostra.
Tal fato, que j‡ estava presente na exposi•‹o,agora Ž assumido completamente. Se na
exposi•‹o t’nhamos a varia•‹o mot’vica indexada ˆ nfase tem‡tica, neste momento
temos a varia•‹o sem o motivo integral, temos a integral varia•‹o. Pois, sendo o temada fuga a varia•‹o, temos a possibilidade de fazer a varia•‹o com ou sem uma
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domin‰ncia tem‡tica. N‹o que o tema desapare•a, mas altera-se a hierarquia por meio
da qual a varia•‹o se referenda. A quest‹o aqui n‹o Ž de vocabul‡rio, mas de sintaxe.
A se•‹o-desenvolvimento registra essa mudan•a na nfase da varia•‹o. N‹o Ž
um corte com a estrutura geral da fuga, mas o enfoque de um movimento que se
realiza antes. A fuga trabalha com a irreversibilidade temporal , perseguindo sempre
uma presen•a. N‹o possui passado, mas uma atualidade constru’da. Fazer durar uma
presen•a para alŽm de seus contornos - eis a perspectiva temporal da fuga. Para que
isso se realize, o espa•o de representa•‹o precisa ser estruturado em v‡rios n’veis
sobrepostos, o que exige uma diferencia•‹o contextualizada. A se•‹o-
desenvolvimento vai contextualizar, na atualidade cont’nua de sua exibi•‹o, a
varia•‹o sobre o tema praticada na se•‹o-exposi•‹o. Contra o fantasma da
literalidade, a disposi•‹o variacional do desenvolvimento atua como inteligibilidade
de procedimentos j‡ expostos anteriormente e agora focalizados.
Para tanto, vejamos A arte da fuga. As fugas que comp›em sua se•‹o-
desenvolvimento valem-se de procedimentos que esclarecem a se•‹o-
desenvolvimento de uma fuga particular.
Ap—s o grupo de quatro fugas que realizam a exposi•‹o, temos um segundo
grupo de fugas em stretto, composto por trs fugas. Um distanciamento maior em
rela•‹o ao tema Ž efetuado, e este distanciamento ser‡ o tema das varia•›es
desenvolvidas, o tema mesmo do ciclo subseqŸente. A ambincia com maior simetria
estrutural proporcionada pela referncia ao tema nas fugas-exposi•‹o Ž perturbada
pelas fugas stretto de trs maneiras (GEIRINGER 1991:332): 1, modifica-se a textura,
a dialŽtica sujeito Ð reposta, trabalhando-se na invers‹o do sujeito na resposta,
contrariamente ˆ imita•‹o do material do sujeito nas vozes, como se fez nas fugas-
exposi•‹o; 2, apresenta•‹o pelas vozes do material do sujeito Òem uma sucess‹o t‹o
compacta que um novo enunciado principia antes de o prŽvio estarconclu’doÓ(GEIRINGER 1991:332). 3- Dimini•‹o e aumento do motivo.
A mudan•a do eixo de orienta•‹o da recep•‹o para a performance variacional
Ž realizada em um espet‡culo de desfigura•‹o da identidade dos padr›es pelos quais o
tema Ž atualizado. A imita•‹o do tema n‹o Ž o regular provimento de mesmos
contextos enunciativos, pois a reposta altera a disposi•‹o do material do sujeito.
Sujeito e reposta n‹o coincidem totalmente em padr‹o de referncia, em seu
movimento de apresenta•‹o. A invers‹o do sujeito na resposta Ž a inclus‹o de umaassimetria dentro da previsibilidade por semelhan•a anterior.
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#S"
O streeto, sobrepondo entradas, modifica o espa•o de representa•‹o da fuga,
retirando a condu•‹o do reconhecimento do tema por sua comp—sita homogeneidade
para a perda das marcas que o diferenciam e o delimitam. A focaliza•‹o redistributiva
do stretto atinge a integridade do tema como motivo condutor da fuga. Veja- se a
passagem de um modo de tratamento do material para um modo de exibi•‹o de
procedimentos estruturais.
A diminui•‹o e o aumento incidem sobre a modela•‹o do material, alterando
as prerrogativas de seu tratamento uniforme, descrevendo sua maleabilidade e
flexibilidade. Exibem a interven•‹o sobre o material fugal.
Estes atos dissimŽtricos determinam a preponder‰ncia de sua disposi•‹o sobre
seu conteœdo. As altera•›es ainda tomam por base o tema. S‹o altera•›es de material
fugal, como se o tema comentasse a si mesmo. A dissolu•‹o da fixidez do material Ž
acompanhada pela produ•‹o da estrutura•‹o da obra. Incrementa-se o fato que a fuga
vai enfatizando cada vez mais as rela•›es com o material que o pr—prio material. A
imediata abstra•‹o proporcionada Ž a concretiza•‹o da performance da composi•‹o
em sua autorepresenta•‹o, como de uma composi•‹o em performance215. ƒ a
revela•‹o para o audit—rio dos contextos e suportes expressivos da obra.
A fuga, na medida em que se desmaterializa, converte-se em metatexto, em
atualiza•‹o de procedimentos composicionais. A desestrutura•‹o tem‡tica Ž o
espet‡culo da diferencia•‹o dos atos expressivos. Por entre as brechas da integridade
do material tem‡tico irrompem os modos de produ•‹o de contextos e padr›es pelos
quais as formas se individualizam, demonstrando que a emergncia do que se exibe Ž
uma ordena•‹o constitutiva e integrada ̂ sua representa•‹o.
Mas n‹o h‡ a elimina•‹o do motivo nessa diversifica•‹o de motivos. A
varia•‹o tem‡tica Ž produzida por outros meios. H‡ a varia•‹o do sujeito por ele
mesmo. O desdobramento da identidade tem‡tica Ž a expans‹o de suas potencialidades. N‹o coincidindo consigo, mas constantemente refigurado, o tema
estabelece o otimiza•‹o dos n’veis de organiza•‹o interligados. As rela•›es s‹o
maximizadas, enquanto que o material Ž minimizado, como vimos.
Aqui entramos na tens‹o que fundamenta a fuga e a qual o desenvolvimento
refor•a. Essa tens‹o Ž estrutural, ou seja, inscrita no modo como um fuga se efetiva.
Essa tens‹o sem resolu•‹o se d‡ no entrechoque entre metatexto e tema. A partir do
215 LORD 2003.
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#S#
desenvolvimento, temos a sobreposi•‹o do cont’nuo abandono da integridade
tem‡tica e o incremento da performance variacional. ƒ como se houvesse o conflito
entre os modos de orienta•‹o da obra e a unidade compositiva estivesse em risco.
Assim, a recep•‹o Ž submetida a um contato inicial com o mundo da obra atravŽs do
delineamento de um padr‹o altamente configurado. Ap—s, Ž conduzida para a
variedade de procedimentos que fogem deste padr‹o. O centro de orienta•‹o muda de
domin‰ncia. O suporte inicial da recep•‹o perde o grau decisivo para seu
reconhecimento da representa•‹o enquanto Ž deformado. Na se•‹o-exposi•‹o temos o
estabelecimento do contato entre representa•‹o e audincia. Na se•‹o-
desenvolvimento temos a cont’nua reorienta•‹o desse contato a partir da redefini•‹o
da mem—ria do que se exibe.
Dos peda•os do material utilizado como centro de orienta•‹o da fuga, a se•‹o-
desenvolvimento ofertar‡ n‹o uma reconstitui•‹o, e sim novos padr›es de referncia,
novas recursividades.
A desorienta•‹o pela recusa de representar na demora da dialŽtica sujeito-
resposta acopla-se ˆ desorienta•‹o na perform‡tica exposi•‹o de procedimentos
variacionais. Vemos como a escritura fugal registra, desse modo, a impossibilidade da
semelhan•a total, da fus‹o entre representa•‹o e representado. A repeti•‹o do tema Ž a
ultrapassagem da literalidade e n‹o a aplica•‹o de um modelo composicional r’gido.
4 O grupo de fugas stretto de A arte da fuga, fazendo a transi•‹o para a
se•‹o-desenvolvimento, anunciou muitos atos exemplares dessa mudan•a de
orienta•‹o na fuga. A representa•‹o agora, ao invŽs de tematizar um sujeito, encena
as possibilidades de varia•‹o. Seguem-se dentro da se•‹o-desenvolvimento de A Arte
da Fuga , dois grupos, confirmando a constitui•‹o multisetorial da fuga. O primeiro
deles reœne quatro fugas, duas duplas e duas tr’plices. O segundo grupo nos ofereceduas fugas duplas.
O streto, justapondo entradas, prefigurava combina•›es e intercruzamentos
funcionais sob um tema œnico, que desfigurado, partido, somando, dividido promovia
a possibilidade de se formar um novo tema. Desse modo, ratifica o car‡ter projetivo
da formas na fuga, pois o tratamento fugal da se•‹o exposi•‹o deixava patente a
varia•‹o na se•‹o desenvolvimento.
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#SS
Essa fratura no seio do mesmo abre a possibilidade de, a partir da parte
refigurada, ir produzindo novas partes, movimento no qual uma totalidade maior que
os elementos, mas desenvolvida a partir deles, Ž almejada.
A se•‹o-desenvolvimento assume essa complexa rela•‹o todo- parte, na qual
realiza-se a antecipa•‹o de uma totalidade em elabora•‹o. O monotematismo atŽ aqui
resistente Ž modificado em prol de um pluritematismo especial. A horizontalidade
mel—dica acolhe a desigualdade da textura. AlŽm dos temas novos adicionados, o
motivo atŽ aqui utilizado Ž submetido a redefini•›es r’tmicas (aumento, invers‹o),
estabelecendo distanciamentos reconhec’veis e fixos em rela•‹o aos novos temas. As
fugas duplas Ž que pontuam essa mudan•a de padr‹o de exibi•‹o. Os novos temas
colocam-se em dist‰ncia fixa abaixo ou acima do tema principal. Ao mesmo tempo
em que temos uma refigura•‹o do tema, os novos procedimentos interligam-se,
submetendo-se ˆ pluralidade de n’veis que caracterizam a fuga. O novo fator Ž
orientado pela constitui•‹o da escrita fugal. O novo refor•a a hierarquia observ‡vel da
obra. A audincia n‹o se perde na imediata aparncia de perda de orienta•‹o: ela
observa o refor•o da integra•‹o de sŽries. A atualidade da fuga Ž a da presen•a de
uma representa•‹o por suportes expressivos. A varia•‹o intensifica a necessidade da
estrutura•‹o. A audincia substitui a expectativa via tema pela familiaridade com os
procedimentos metatextuais.
O pluritematismo da se•‹o desenvolvimento de A arte da fuga, elevando a
tens‹o fugal Ð altera•‹o do centro de orienta•‹o da obra - efetiva o car‡ter epis—dico
da representa•‹o. Denominamos Ôepis—dicoÕ para refor•ar o car‡ter de acontecimento
impresso na diferencia•‹o da fuga. Suspendendo uma l—gica atomizadora que s— v
elementos onde temos situa•›es e contextos de express‹o, o car‡ter epis—dico da
representa•‹o induz a recep•‹o a entrar em contato com organiza•›es sonoras bem
demarcadas com as quais agora se trabalha. N‹o se trata de situar o material tem‡tico,mas de individuar algo alŽm do
material sonoro de um tema. Temos unidades organizadas maiores que uma
modifica•‹o do tema dentro de uma fuga. O pluritematismo amplia o espa•o fugal
para uma varia•‹o de contextos expressivos em estrutura•‹o. A varia•‹o encontra
aqui seu alvo: a configura•‹o de suportes que contextualizam o horizonte de uma
recep•‹o. Um epis—dio Ž a integra•‹o dessas t‡ticas representacionais que
concretizam orienta•›es para sua recep•‹o. A dramaticidade da fuga reside em seucar‡ter epis—dico por meio do qual as vozes se assentam. O epis—dio e a possibilidade
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#SV
de uma nova fuga dentro da fuga de agora s‹o o efeito alcan•ado. Quando o
pluritematismo age, temos um novo in’cio. Assim como uma fuga Ž gerada pela
exposi•‹o de um tema, um novo tema e mais outro, por conseguinte, justap›em n‹o
mais material fugal, e sim fugas, ou possibilidades de fugas. Uma varia•‹o de fugas
dentro de uma fuga amplia o espa•o representacional de uma fuga individual,
rompendo com a indexa•‹o da referncia ˆ decomposi•‹o de um material tem‡tico ou
a uma unidade tem‡tica.
Dessa forma, uma maior intera•‹o da audincia com a performance Ž
efetivada pois o audit—rio agora relaciona-se com a visualiza•‹o de totalidades. H‡ a
confirma•‹o do movimento representacioal da fuga em dire•‹o ˆ autorepresenta•‹o
organizativa atravŽs dessa expans‹o de seu contexto de produ•‹o. O trabalhar com
temas e n‹o com um material fugal œnico diversifica a varia•‹o tem‡tica empregada
na escritura fugal. O distanciamento em rela•‹o ao tema de base, a diminui•‹o de seu
reconhecimento por confirma•‹o Ž levado cada vez mais ao limite, de modo que
processo de orienta•‹o fundamenta-se nesse afastamento. A orienta•‹o movimenta-se
n‹o no reconhecimento da fuga pela unidade de seu tema œnico, mas no
reconhecimento atravŽs do afastamento em rela•‹o a este tema.
Com as fugas duplas e depois as tr’plices, chegamos ao fim do vŽrtice oposto e
simŽtrico da estrutura•‹o da fuga. Da varia•‹o do tema ˆ tematiza•‹o da varia•‹o
ganhamos uma familiaridade com estrutura•‹o em partes que v‹o se totalizando, na
amplia•‹o dos contextos e exibi•‹o de procedimentos. Na medida em que vamos
ouvindo A arte da fuga vamos observando a constru•‹o de uma fuga das fugas, uma
meta-fuga. O ouvinte Ž contempor‰neo da constru•‹o desse extenso contexto.
Daqui em diante essas duas metades v‹o se reunir. Parte e todo v‹o se
encontrar e medear a integratividade de tema e varia•‹o. Os dois pr—ximos grupos de
A arte da fuga realizam essa exposi•‹o do que foi desenvolvido, tematizando agora a pr—pria varia•‹o mot’vica.
5 ƒ o que se pode observar no conjunto das fugas duplas. Temos dois grupos
de fugas na qual cada uma do par se relaciona com a outra atravŽs de sua reexposi•‹o
por invers‹o. A fuga rectus (A) Ž acompanhada da fuga inversus (B) em todos os seus
momentos. (A) s— adquire existncia por sua par—dia (B). O inverso aqui Ž o
coment‡rio do modelo, e o modelo somente atinge sua plenitude quando relacionado
com seu coment‡rio. A insuficincia da fuga individual Ž aqui caracterizada. Naverdade, temos uma fuga desdobrada em sua apresenta•‹o e em sua reestrutura•‹o. A
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#S;
releitura da rectus pela inversus retoma as implica•›es representacionais da varia•‹o
mot’vica, ao propor que se veja a rela•‹o entre identidade e diferen•a n‹o na imediata
compara•‹o de elementos, e sim na produ•‹o de conjuntos que possibilitem o
contexto dessa compara•‹o. A representa•‹o Ž dependente do contexto de sua
produ•‹o. A rela•‹o (A) Ð(B) n‹o Ž de modelo-c—pia. As fugas guardam sua
individualidade por remiss‹o ao modo como interagem. Uma Ž espectadora da outra.
As fugas duplas espelhadas anunciam o c—gito de sua interpreta•‹o. Apontam para o
que as reœne e distingue.
6 E , finalmente, A arte da fuga termina com a assinatura do autor. Na œltima e
incompleta fuga, Ž introduzido, na terceira se•‹o, um material sonoro com as letras de
BACH. Da par—dia ˆ ironia, pois, ironicamente a fuga termina incompleta com a
entrada do autor. A arte da fuga, encaminhando-se pela amplia•‹o das implica•›es da
varia•‹o mot’vica, direcionar-se-ia para uma totalidade das totalidades. A suspens‹o
do fim, marcando o retorno do tema, Ž um fechamento c’clico para uma obra c’clica,
onde o fim n‹o coincide com o come•o. A autorepresenta•‹o da obra fulgura agora no
tema BACH. A personifica•‹o do autor ratifica a vontade de abrangncia da obra
interrompida quando tudo parecia incluir.
Conclus›es
A escritura fugal permitiu delinear fatores b‡sicos que determinam a cena:
1- correla•‹o entre procedimentos estŽticos e orienta•‹o da recep•‹o. A
recep•‹o Ž antecipada e inscrita na obra como resultante da individua•‹o da obra
mesma efetuada na disposi•‹o dos materiais utilizados. Como esses atos s‹o finitos e
expostos, a formatividade da obra engedra sua compreens‹o.2- a dramatiza•‹o n‹o Ž pontual . Ela precisa de uma diferencia•‹o que se vale
da media•‹o entre um pretenso todo e partes. Efetiva-se a partir de suportes de
express‹o que v‹o sendo explorados e executados durante a representa•‹o.
3- pluralidade de n’veis da representa•‹o. Dada a natureza descont’nua da
dramatiza•‹o, em virtude da constru•‹o do audit—rio, a obra necessita se
autorepresentar na medida em que Ž executada. A n‹o literalidade das formas
demonstra que a obra exibe-se nos procedimentos que se vale para se representar.
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#Sl
Assim, suas referncias proporcionem a compreens‹o do modo como se estrutura:
algo a ser recebido por alguŽm.
4- marca•‹o da obra. O reconhecimento da representa•‹o Ž realizado na
varia•‹o de estratŽgias de identifica•‹o dos contextos expressivos da obra,
proporcionando constantes reestrutura•›es do representado.
5- O incremento da pluralidade de n’veis preconiza a atividade multisetorial
da representa•‹o, havendo dependncia e mœtua implica•‹o da partes cada vez mais
definidas e individualizadas.
A escritura fugal, enfim, exibe para a audincia as habilidades do compositor
em organizar sons em fun•‹o de estratŽgias melhor compreens’veis por uma meta-
estŽtica, uma dramaturgia musical.
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#Sm
11- NOTAS SOBRE O DRAMA MUSICAL DE CLAUDIO
MONTEVERDI
O drama musical desenvolvido por Claudio Monteverdi (1567-1643)
prolonga-se atŽ n—s como um conjunto de experimentos e solu•›es estŽticas em um
per’odo onde palavra e mœsica se integram em drama. A motiva•‹o dram‡tica d‡ a
hierarquia para a utiliza•‹o de materiais musicas e poŽticos.
Dessa maneira, a instrumenta•‹o, a tessitura vocal, os andamentos, a
roteiriza•‹o dos eventos e a ordem das partes recitadas e cantadas se faz em torno de
procurada unifica•‹o cnica. As formas poŽtico-musicais procuram evidenciar a
presen•a de um audit—rio em potencial. Para representar o drama, Monteverdi
necessita ultrapassar o autofechamento do material utilizado, dotando-o de uma
orienta•‹o representacioal. Como n‹o h‡ transparncia das formas, Monteverdi
precisa medear os efeitos representacionais atravŽs da constru•‹o de um contexto
expressivo que produza tais efeitos. Em suas —peras temos n‹o s— a musicaliza•‹o de
temas mitol—gicos, liter‡rios ou hist—ricos, como tambŽm uma discuss‹o de
possibilidades expressivas. A unifica•‹o extramusical de um fazer musical j‡ se
constitui em inser•‹o de uma conscincia das formas pela complementaridade entre
material e procedimentos composicionais.
Por isso, estudar a obra oper’stica de Claudio Monteverdi n‹o se reduz a uma
atividade museol—gica curiosa e pedante. A aproxima•‹o com a chamada mœsica
hist—rica evidencia a fragmenta•‹o e o formalismo de nossos h‡bitos investigativos os
quais, presos ˆ literalidade da escrita musical, n‹o problematizam os procedimentos
de composi•‹o efetivados. O feito musical em Monteverdi n‹o se confinado somenteˆ decodifica•‹o de realidades noŽticas (puramemente intelig’veis). O drama musical Ž
uma a•‹o integradora.
Trabalhando com esta produtiva dist‰ncia hist—rica, o pesquisador se inicia
tanto em distinguir fontes (dados das obras, autor, gnero, materiais utilizados,
coment‡rios cr’ticos) como em formular uma vis‹o mais integrada e cr’tico-reflexiva
de uma pr‡tica autoral.
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#Sn
O pr—prio Monteverdi em textos escritos (cartas e pref‡cios) procurou pensar o
que realizou. As suas cartas s‹o coment‡rios que acompanham parte do processo
criativo de suas obras, explicitando a problem‡tica de se realizar algo que ainda n‹o
existia em sua amplitude. O drama musical situa-se como confluncia do fim da
antiga mœsica e destina•‹o da mœsica futura. Recusando a estreiteza dogm‡tica dos
c‰nones da camerata, que propunham a subordina•‹o da mœsica ˆ palavra como
imita•‹o ideal do drama grego e reutilizando o material polif™nico anterior como
forma de traduzir realidades e verossimilhan•as para personagens, Monteverdi
apresenta-se como dramaturgo musical, como um autor cujas obras s‹o elas mesmas
reflex›es sobre problemas concretos de express‹o.
O estudo de uma fun•‹o autoral como forma de se esclarecer a rela•‹o entre
obra, procedimentos e projeto realizacional atualiza a din‰mica entre passado e
presente inscrita em uma atividade de pesquisa nas Humanidades. Sem a
operatividade hist—rica da tradi•‹o, sem a utiliza•‹o de conceitos operat—rios, sem o
recurso ˆ interpreta•‹o de obras, Ž extremamente improdutivo perceber o impacto de
uma interven•‹o autoral espec’fica assim como a intensidade desse impacto. O autor
n‹o Ž uma abstra•‹o, mas uma contextura de proposi•›es e quest›es espec’ficas. A
experincia monteverdiana de resolver as quest›es de continuidade e verossimilhan•a
de um drama musical continua hoje como um ponto de partida para quest›es
relacionadas a formas musicais e suas possibilidades representacionais. Os atos
pioneiros e inaugurais de Monteverdi n‹o s‹o apenas cronol—gicos, mas registram a
forma•‹o de uma tradi•‹o que se vale de solu•›es e indecis›es frente ao drama
musical. Ao coordenar a forma musical a uma m’mesis, Monteverdi n‹o restringiu a
mœsica, mas suscitou uma experimenta•‹o que, consciente da diferen•a de status
entre palavra e som, soube impulsionar o material sonoro para explora•‹o de suas
orienta•›es e usos. A aprendizagem aqui Ž um saber transformado em obra. Arealiza•‹o Ž uma teoria de sua pr‡tica
Monteverdi, pois, Ž produtor de um saber, de um conhecimento que pode ser
identificado, esclarecido, interpretado, discutido e apropriado. Um fato historiogr‡fico
transforma-se em feito hist—rico- expressivo.
A dramaturgia musical de Monteverdi dimensiona uma compreens‹o mais
ampla da chamada 'Seconda pratica'. A 'Seconda paratica' Ž comumente definida
como preponder‰ncia da palavra sobre a mœsica, invertendo-se grande parte da l—gicacomposicional de sua Žpoca. Contudo, mais que uma invers‹o, para Monteverdi a
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#S:
'Seconda pratica' Ž a explora•‹o de potencialidades representacionais inscritas na
integra•‹o entre palavra e mœsica em uma situa•‹o de representa•‹o. O drama, pois, Ž
o terceiro termo entre palavra e mœsica.
De modo que temos o seguinte rol de quest›es:
1-quest›es estŽticas: qual a rela•‹o entre a utiliza•‹o do material em uma obra
e a produ•‹o de sentido dessa mesma obra? Como tal produ•‹o de sentido Ž
refor•ada? Como tal refor•o desenvolve padr›es de observa•‹o? Como se relacionam
a variedade de materiais utilizados com cada momento de sua realiza•‹o? Frente ˆ
escrita mais aberta da partitura (baixo cifrado, marca•›es de instrumenta•‹o n‹o
escritas) como selecionar poss’veis interpreta•›es?
2-quest›es historiogr‡ficas (passagem do Renascimento ao Barroco) Qual era
a proposta da Camerata Florentina e sua cr’tica ˆ tradi•‹o madrigalesca? Qual era o
horizonte musical de seu tempo, a nova mœsica? Como eram as rela•›es entre palavra
e mœsica? Como se estruturava seu idioma musical - texturas, coerncia tonal?
3-quest›es te—rico-metodol—gicas. Como citar obras estŽticas? Como traduzir
dados estŽticos em reflex‹o sobre seu fazer? Como integrar dados musicais e dados
composionais a dados extramusicais? Como relacionar dados estŽticos e bibliografia
de apoio?como trabalhar com tradi•›es e gneros? Como usar conceitos em reflex›es
sobre obras estŽticas?
4- quest›es dramatœrgicas. Como se constr—i uma audincia? Como se efetiva
uma atividade imaginante atravŽs em um drama musical? Como se desenvolve um
ritmo representacional pela sucess‹o de partes cantadas e recitadas? Como se constr—i
a cena? Como se organizam aberturas e conclus‹o de atos e obras? Como se realiza a
m’mesis dram‡tica, rela•‹o entre eventos encenados e produ•‹o de um imagin‡rio a
ser compreendido pela recep•‹o? Como se d‡ a produ•‹o de contextos de cena atravŽs
da descontinuidade musical?
A partir disso, a situa•‹o de se deter em torno de uma Ôdramaturgia musicalÕ Ž
um desafio a nossos h‡bitos intelectuais. Na express‹o mesma texto e mœsica
comparecem como apontando para um fazer que vai alŽm dos termos envolvidos.
O que mais provocativo surge disso Ž que este encontro problem‡tico acontece
em uma moldura liminar, regi‹o de limites lim’trofes. N‹o se trata s— da
descontinuidade entre dois termos, mas a impossibilidade de s’ntese, da co-presen•ado heterodoxo.
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#VL
De fato o impulso de integra•‹o do diferidos Ž contrabalan•ado pelo impulso
de sua viabilidade. ƒ ao dar-se conta da diferen•a de materiais e da precariedade de
sua convivncia que o processo criativo de uma dramaturgia musical come•a assumir
sua individualidade, sua longa hist—ria de experimenta•‹o, pesquisa e realiza•‹o. Em
sua liminaridade, os limites da palavra e da mœsica v‹o ser manipulados e exibidos
como meios de fazer perdurar suportes expressivos extensos a partir do uso intenso
desses limites. De modo que a dramaturgia musical Ž um caso-limite de fic•›es
elaboradas e compreendidas como tal e, ao mesmo tempo, o modo como tais fic•›es
s‹o poss’veis. A sua efetiva•‹o Ž a busca dessa possibilidade, Ž o argumento de sua
realiza•‹o.
O enfrentamento da tarefa de realizar uma fic•‹o audiovisual para a cena
envolve problemas expressivos que demandam determinados atos como forma de
coordenar a dificuldade ao esfor•o. A representa•‹o que sucede a este enfrentamento
nos esclarece e muito a respeito de tais problemas e atos correlativos.
Ainda mais que a cena, a situa•‹o de performance comparece n‹o como meio
transparente216. O Ôfator performanceÕ, se bem enfrentado e explorado, Ž modificador
de toda e qualquer esfor•o de representa•‹o. Se a forma de apresenta•‹o do
espet‡culo Ž um primeiro ’ndice de como os problemas compositivos foram
enfrentados, sua realiza•‹o d‡ o acabamento de sua inteligibilidade. Ao se expor
como fic•‹o, esta fic•‹o exibida para os olhos e para os ouvidos Ž atravessada por
uma cont’nua linha de avalia•‹o e remodela•‹o, que se converte no horizonte
interpretativo do espet‡culo.
Ocupando um espa•o e proporcionando o tempo de seu entendimento e
aplica•›es posteriores, a fic•‹o encenada corrige qualquer estrito mentalismo,
fornecendo escalas que integram o que Ž mostrado com os procedimentos mesmos de
sua exibi•‹o. Uma fic•‹o que se exp›e, exibe seus suportes expressivos, demonstra-secomo fic•‹o. Ultrapassados s‹o os obst‡culos do discurso, da atitude contemplativa,
216 Na pop-p—s modernidade argumentos antimimŽticos e formalistas tem procurado ampliar o car‡ter de artif’cio da fic•‹o como media•‹o de todos os nexosinterindividuais. A generaliza•‹o da representa•‹o como media•‹o epistem—logicafundamental acarreta a idealiza•‹o mesma da fic•‹o. A plasticidade da representa•‹o,expandida pelos produtos de entretenimento massivos - especialmente o cinema- n‹ocorrobora a elimina•‹o de sua elabora•‹o. Tal inst‰ncia produtiva Ž negligenciada naapressada conceptualiza•‹o da representa•‹o sem levar em conta um processo criativoque a elabore.Muitas vezes o processo criativo torna-se quase somente a aplica•‹o deuma conceptualiza•‹o. Veja-se DIXON 1998.
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#V"
dos programas estŽticos, estabelecendo-se o processo criativo na arena onde se
defrontam e se confrontam um esfor•o de representar e uma insistncia de
compreender.217 A mœtua implica•‹o entre composi•‹o e performance proporciona
um campo de experincias e aprendizagens onde o processo criativo Ž modificado
constantemente218. A integridade dos materiais e das concep•›es autorais prŽvias Ž
solapada na abertura de novas pressuposi•›es, de uma diferenciada referncia e
orienta•‹o desses materiais e de suas linguagens e formas de tratamento. A fic•‹o
audiovisual converte-se em uma metaestŽtica.
Monteverdi em suas cartas, alŽm de se lamentar as dificuldades econ™micas,
registra as implica•›es do fator performance. Muitas vezes criticando libretos e obras
e avaliando cantores e instrumentistas, Monteverdi aborda quest›es que n‹o se
reduzem ao puramente musical ou ao puramente textual, nem ainda se resumem ˆ
corre•‹o da atua•‹o. Para aquilo que n‹o tem nome, mas que pode ser percebido e
interfere drasticamente na organiza•‹o e na realiza•‹o de uma obra, temos uma
marcante aten•‹o nas cartas. Esta inominada presen•a n‹o Ž texto, nem mœsica:
vamos procurar melhor caracteriz‡-la.
Nestas quest›es o autor das cartas que vamos analisar teve como premente
exerc’cio por 23 anos de anos ser o diretor de espet‡culos da casa real de Mantua,
"sendo respons‡vel n‹o somente por organizar os concertos di‡rios e recrea•›es
musicais, mas tambŽm de providenciar mœsica para importantes eventos da corte"219 .
Em uma carta de dezembro de 1604, para o Duque de Mantua, seu patr‹o,
Monteverdi apresenta um esbo•o, para o carnaval de 1605, de um ballet, dan•a
cantada acompanhada por pequena orquestra. Nas indica•›es temos como se estrutura
este ballet, sendo descritas as seqŸncias de entradas e os grupos dan•antes e qual a
mœsica relativa para cada seqŸncia. A divis‹o do todo do ballet em subse•›es ocupa
um espa•o representacional, disposi•‹o de partes inteligivelvemente associadas aoque se est‡ procurando tornar imagin‡vel.
O ballet gira em torno da imagem pastoril de Endimi‹o220. A encomenda Ž
"compor duas entradas, uma para estrelas que seguem ap—s a lua, e outra para os
217 A argumenta•‹o aqui apresentada ser‡ ampliada na conclus‹o deste livro.218 Valho-me aqui da hip—tese Parry-Lord, sobre a composi•‹o em
performance. V. LORD219 Conf. KELLY 2000 e STEVENS 1980.220 Sobre o mito v. Apol™nio de Rodes 4.57. Karl KerŽnyi (KERENYI
1993:155-156) narra assim :"Dizia-se que quando Selene(a lua) desapareceu por tr‡s
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pastores que vem ap—s Endimi‹o, e duas dan•as, uma para os estrelas somente, outra
para estrelas e pastores juntos"221. Na falta de instru•›es precisas, como normalmente
as encomendas era solicitidas, Monteverdi prop›e correlacionar a forma de
apresenta•‹o do ballet com a representa•‹o do mito. Para tanto ele decomp›e o
movimento dos astros de forma a tornar reconhec’vies o efeito de sua presen•a no
tratamento de sua exibi•‹o. Uma varia•‹o instrumental Ž correlativa a uma
performance de dan•a-canto. Eis o plano somente para as estrelas:
Todos os instrumentos/dan•am e cantam todas as estrelas
Cordas/ primeiro par de estrelas
Todos os instrumentos/dan•am e cantam todas as estrelas
Cordas/ segundo par de estrelas222
A forma de apresenta•‹o distribui em subse•›es bem marcadas os materiais,
refigurando o que se quer mostrar ao atualizar um movimento das estrelas, estas
vis’veis e aud’veis proporcionalmente a sua individualiza•‹o. As referncias de
totalidade e parte s‹o interpretadas musica e pela dan•a em momentos definidos e co-
extensivos. O seqŸenciamento do que Ž mostrado, ao mesmo em tempo que registra o
modo como as referncias se organizam, projeta uma sobrepresen•a, um grau de
futuridade para o que se exibe. O interrelaciomento da recursividade do movimento
global e da individualidade do movimento espec’fico parece estabelecer uma proje•‹o
de continuidade dentro da sucess‹o descont’nua. De modo a procurar recobrir a
dispers‹o da audincia, em virtude da mœtua implica•‹o das retomadas de referncia
orientadoras que servem de contexto para distin•›es subsequentes.
da crista da montanha de Latmo, na çsia menor, estava visitando seu amante
Endimi‹o, que dormia numa caverna naquela regi‹o. Endimi‹o (...) recebeu o dom dosono perpŽtuo, de modo que ela sempre pudesse encontr‡-lo e beij‡-lo". Cam›es emode ˆ lua dramatiza o pastor : "J‡ veio Endimi‹o por estes montes,/O cŽu , suspenso,olhando,/E teu nome , com olhos feitos fontes,/Em v‹o chamando,/ Mercs ˆ tua
beldade,/ que ache em ti u‹ hora piedade."221 Para as cartas veja-se ed. de STEVENS 1980. Cito aqui a carta 3.222 No texto da carta 3 temos: primeiro de tudo uma curta e animada parte
instrumental (air)can•‹o tocada por todos os instrumentos e igualmente dan•ada portodas as estrelas; ent‹o imediatamente as cinco Ôviole de braccioÕ fazem uma parteinstrumental diferente da primeira (os outros instrumentos param) e somente duasestrelas dan•am pois (as outras n‹o participam) e ao fim desta se•‹o duo, tendo a
primeira parte instrumetal sido repetida com todos os instrumentos e estrelas, este padr‹o Ž continuado atŽ que todas as ditas estelas tenham dan•ado duas a duas".
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Este plano audiovisual, que substitui as amorfas idŽias e os materiais da
encomenda, Ž qualificado como arranjo dissipativo, novo, deleitoso, prazeiroso.
Grande parte das cartas s‹o respostas a solicita•›es de colocar, em mœsica,
versos. "Recebi uma carta de vossa excelncia com certas palavras para dispor em
mœsica"223, Ž o Monteverdi escreve em Agosto de 1609 para seu habitual destinat‡rio,
Alessandro Strigio, libretista de Orfeu. Orfeu mesmo Ž subintitulado "F‡bula em
mœsica". Mas no que Ž dito devemos ver o que Ž referido. A transforma•‹o do verso
em mœsica Ž indicada. Mas essa transforma•‹o n‹o Ž unidirecional. Nem Ž o verso
que deixa de ser verso para ser mœsica, nem Ž a mœsica Ž o œnico agente
transformador, posto que age em fun•‹o do que o verso assinala. Pode a mesma
senten•a dizer mais que seu enunciado?
As palavras que v‹o ser musicalizadas est‹o em versos de um libreto. Em seu
processo criativo Monteverdi submete o libreto, as indica•›es formais (gnero, partes
da obra, instrumenta•‹o, distribui•‹o de papŽis e vozes) e informa•›es
circunstanciais ( ocasi‹o da apresenta•‹o, dedicat—rias) a uma aprecia•‹o de seu
potencial representacional. Supress›es, acrŽscimos, extens›es s‹o feitas e negociadas
a partir de um material prŽvio.
Quando faltam estas indica•›es e informa•›es, temos algumas cartas.
Novamente para Alessandro Strigio, em dezembro de 1616, Monteverdi suplica:
"diga-me os nomes daqueles que v‹o fazer o papel das partes escritas, para que ent‹o
eu possa fornecer a musica apropriada para eles. Por favor me d a honra de saber
isso: quem vai fazer o papel de TŽtis, quem o de Proteu, quem o da Sirene"224. A
textualidade do libreto necessita do conhecimento da vocalidade dos intŽrpretes. O
nœmero, extens‹o, tessitura e cor das vozes do elenco Ð tudo ser‡ avaliado de acordo
com as referncias textuais e da’ a musica ser‡ composta. N‹o Ž em v‹o que umquarto dos temas das cartas relaciona-se a coment‡rios e julgamentos de performances
vocais.
Em outra carta, ao Pr’ncipe Vincenzo Gonzaga, a respeito de can•‹o de uma
f‡bula em mœsica, Monteverdi pede que "fa•a o favor de conceder conhecer quantas
vozes e como isso ser‡ performado, e se alguma sinfonia instrumental vai ser ouvida
223 Carta 7. As cartas 21,26,29 retomam esta express‹o colocar poesia, f‡bula,em mœsica.
224 Carta 23.
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antes da can•‹o, e de que tipo vai ser ela"... e se "a can•‹o que come•a{com o verso}
ÔO esplendor com o qual eles brilhamÕ vai ser cantada ou dan•ada - e sobre que
instrumentos vai ser representada, e tambŽm por quantas vozes vai ser cantada - para
que eu possa escrever mœsica apropriada para ela tambŽm"225.
De forma que a composi•‹o come•a com a considera•‹o dos materiais, com a
explora•‹o das possibilidades desses materiais a partir de limites identificados.
Quando o material proporcionado n‹o corresponde ao que Monteverdi chama de
estilo teatral de mœsica226, temos uma cr’tica integrativa que procura oferecer
solu•›es e op•›es. Come•amos aqui a entender a concep•‹o de uma dramaturgia
musical.
Por exemplo. Em carta a Alessandro Strigio , em Dezembro de 1616, ap—s
receber a analisar uma f‡bula mar’tima proposta para ser musicada para a cena,
Monteverdi exp›e alguns problemas representacionais que encontrou. Em jogo de
palavras, afirma que a mœsica em geral objetiva ser rainha do ar (can•‹o/ar), e n‹o da
‡gua. Ela reivindica sua audibilidade. As personagens prescritas no texto, requerendo
alturas graves para as vozes das grandes criaturas marinhas (Trit›es) n‹o se conjugam
com o uso de c’taras no baixo cont’nuo. A interpreta•‹o musical da figura n‹o
apreende seu diferencial representacional.
Em complemento a isso os interlocutores dos trit›es s‹o ventos cupidos e
zŽfiros e sereias. Frente a este mundo mitol—gico, Monteverdi se interroga: "Como,
querido senhor, eu posso imitar a fala dos ventos se eles n‹o falam? E como eu posso,
por quais meio, mover as paix›es? Ariadne comoveu-nos porque ela era uma mulher,
e similarmente Orfeu porque ele era um homem, n‹o um vento. Mœsica pode sugerir,
sem palavras, os ru’dos dos ventos e o balido de uma ovelha, e o relincho dos cavalos
e assim por diante. Mas n‹o pode imitar a fala dos ventos porque tal coisa n‹o
existe"227.M’mesis e afetos - dois par‰metros fundamentais para a dramaturgia musical
de Monteverdi. A fic•‹o dramatizada leva em conta uma interroga•‹o a respeito de
sua modalidade, da distin•‹o de realidades e referncia na representa•‹o. O exercer
um logos, a fala teatral, no drama, ganha um estatuto diverso de o estar presente em
225 Carta 30.226 Carta 53 "Eu n‹o devo passar um dia sem compor algo nesse estilo teatral
de can•‹o". Carta 96 "algo de natureza teatral". Carta 6 " mœsica para o teatro". Carta8 critica alguŽm que n‹o "comp™s mœsica teatral".
227 Carta 21.
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cena. O agente dram‡tico, mais que porta-voz de uma fala autoral, est‡ comprometido
com a ficcionalidade, a partir da qual ele passa a existir. A divis‹o e distribui•›es de
papŽis e as figuras corresponde ˆ an‡lise da pr—pria representa•‹o, dos focos
dram‡ticos que exibem situa•›es memor‡veis, impactantes e exemplares. Ë n‹o
homogeneidade das figuras corresponde ˆ diversidade de sua focaliza•‹o dessas
situa•›es. Homens e criaturas m’ticas distinguem-se distinguindo referncias e modos
de orienta•›es. A diversidade de n’veis de referncia da fic•‹o faz com que o que est‡
representado n‹o se confine em sua autoapresenta•‹o. O mundo ficcional Ž solicitado
a se transformar em espet‡culo de sua situa•‹o de representa•‹o. O que se mostra
demonstra a complexidade de seu realismo: fic•‹o com distin•›es para um olhar que
interpreta e procura a inteligibilidade dessas distin•›es. M’mesis aqui Ž apropria•‹o
de um nexo entre a forma de apresenta•‹o e sua compreens‹o. N‹o se imita a coisa,
mas se reprop›e o v’nculo entre representa•‹o e audincia.
A respeito da representa•‹o de outra f‡bula, Monteverdi discute a respeito de
trs can•›es de sereias : "se as trs tiverem de ser cantadas separadamente eu temo
que a obra vai se tornar muito longa para os ouvintes, e com pouco contraste.(...) Por
essa raz‹o, e por abrangente variedade, eu devo considerar os primeiros dois
madrigais cantados alternadamente, um por uma voz, outro pelas duas juntas, e o
terceiro por todas as trs vozes "228.
N‹o sendo o espet‡culo audiovisual uma inst‰ncia autoreferencial, e sim
postado frontalmente a uma avalia•‹o e entendimento, decis›es sobre o material e sua
forma de apresenta•‹o s‹o tomadas levando em considera•‹o sua situa•‹o de
representa•‹o. A extens‹o e diferen•a do que Ž mostrado n‹o se restringe ˆ natureza
estritamente musical do material. O que vai ser disposto Ž correlativo ao modo como
vai ser recebido. A contextualiza•‹o de sua receptividade Ž d‡ o acabamento ˆ forma
de apresenta•‹o. A dura•‹o, extens‹o, diferencia•‹o do que se mostra respondem aocontexto de espet‡culo atravŽs do qual o material Ž organizado como algo a ser
ouvido, visto, compreendido e apreciado. A separa•‹o das partes e o modo como elas
se interrelacionam sucessivamente ou em conjunto, marcando uma unidade de
apresenta•‹o - que Ž o que vai ser acompanhado pela audincia Ð situa a an‡lise de
sua configura•‹o. A sucess‹o do que se mostra torna observ‡vel a orienta•‹o de sua
realiza•‹o. Ou seja, a forma anal’tica de apresenta•‹o Ž um expediente de
228 Carta 24.
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contextualizar a recep•‹o do espet‡culo. A preponder‰ncia do espet‡culo sobre o
material a ser apresentado proporciona decis›es seletivas e continuadas.
Logo, pela li•‹o de Monteverdi, vemos que em obras dram‡tico-musicais, a
situa•‹o de performance torna-se um horizonte de esclarecimento da representa•‹o. A
amplitude de eventos fisicamente apresentados aponta para orienta•›es de integra•‹o
que ultrapassam a enumera•‹o dos materiais utilizados.
Desse modo, o Ôtrazer ˆ cenaÕ n‹o se resume a uma decorrncia, a uma
contingncia secund‡ria. A materialidade da performance constitui-se em contexto
atravŽs do qual rela•›es entre recursos e m’dias diversas adquirem uma compreens‹o
aplicada ˆ sua realiza•‹o. Na sucess‹o da performance, os intervalos e as diferen•as
entre ver e ouvir, entre sentido e a•‹o, cena e recep•‹o s‹o expostos e explorados. Um
ambiente para exibi•‹o e explora•‹o desses intervalos e diferen•as Ž desenvolvido por
atos performativos.
Em obras dram‡tico-musicais, este ambiente multimidi‡tico interfere em e
modela sons e palavras, exigindo abordagens que procurem descrever, analisar e
conceituar a estrutura•‹o e os efeitos desse ambiente. O fator performance, ent‹o, ao
mesmo tempo que melhor se compreende na amplitude de seus nexos e rela•›es exige
tambŽm estratŽgias amplas e complexas para sua racionaliza•‹o.
Em todo caso, o tal Ôterceiro fatorÕ coloca em evidncia a realidade multitarefa
tanto de quem executa tanto de quem investiga obras dram‡tico-musicais.
Assim, a proposi•‹o da performance como objeto de estudo para as rela•›es
entre mœsica e palavra em obras dram‡tico-musicais efetiva uma provoca•‹o ao
pensamento, um desafio para o intŽrprete, pois coloca em teste e exame pr‡ticas e
modelos interativos e integracionais.
Ou seja, a contextualiza•‹o que o fator performance possibilita Ž tanto de ados eventos estudados quanto do pr—prio investigador.
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12- DO îPERA STUDIO DE C. STANISLAVSKI AOS MUSICAIS DE
BRECHT: NOTAS POR UMA NOVA HISTORIOGRAFIA DO TEATRO.
O desafio de integrar diversas disciplinas e tradi•›es art’sticas Ž um elemento
constituinte de professores e estudantes de Artes Cnicas que se depararam
cotidianamente com projetos interar’sticos e multidisciplianres valendo-se de
pressupostos unificantes e estratŽgias de exclus‹o. Cria-se assim uma artificial
realidade na qual a sala de aula encontra-se divorciada da realidade pulsante que a
heterogeneidade dos eventos cnicos provoca.
Sob a press‹o de curr’culos cada vez mais autocentrados, que privilegiam
compatimentaliza•›es e falta de conex‹o entre profissionais diversos, o normal parece
perpetuar e reproduzir uma cena un’voca cujo contraponto Ž o individualismo
estŽtico. Com o incremento de processos dramatœrgicos colaborativos e a
popularidade de obras dram‡tico-musicais o descompasso entre a sala de aula e a
historicidade do teatro recrusdesce. Mas ser‡ que sempre foi assim mesmo? Antes de
se tornar disciplina, antes de se estabilizar em discurso, ser‡ que o ÔteatroÕ (ou os
estudos teatrais) explorou algum dia sua dimens‹o transacional e dissoluta? Vejamos
algus exemplos.
Em Minha Vida na Arte, Stanislavski dedica um cap’tulo de suas mem—rias ao
chamado îpera Studio (STANISLAVISVI 2008). A partir de um convite do Teatro
de îpera de Moscou(Teatro Bolshoi) para o Teatro de Arte de Mostou (TAM)
efetivou-se uma parceria em forma de workshops nos quais cantores e jovens artistas
poderiam encontrar um espa•o para ter mais conscincia da interpreta•‹o para a cena.
Em 1918 essa rela•‹o se institucionaliza, com a abertura do îpera Estudio, seguindo
o modelo de outros empreendimentos teatrais de Stanisl‡vski e Nemirovich-
Danchenko, que, tomando o TAM como modelo de incubadora de projetos art’sticos-organizacionais, multiplicavam oficinas-montagem em fun•‹o de novos objetos de
estudo e interesses. Em 1924 îpera Estudio Ž renomeado como Stanislavski îpera
Estœdio, ao se desligar do companhia estatal do Teatro de Bolshoi, acabando por se
fundir com a companhia musical de Nemirovich-Danchenko em 1941, formando o
Teatro Musical Stanislavski-Nemirovich-Danchenko, que funciona atŽ hoje
(www.stanmus.com). Note-se que tais estœdios eram atividades paralelas ao Tam,
demonstrando a amplitude e pluralidade de pr‡ticas e pesquisas, bem como a busca
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#Vn
por metodologias de ensaio e cria•‹o que efetivassem contextos para explora•‹o de
possibilidades expressivas (SCARDALORA 2006).
Seguindo as mem—rias de Stanislavski, o objetivo do îpera Studio era
promover uma melhora significativa nas atua•›es e na cultura dos cantores l’ricos.
Este foram recebidos como h—spedes no TAM. Nos primeiros dias foram promovidos
eventos mais ou menos improvisados com cada um dois grupos reunidos demonstrava
e partilhava suas habilidades. Depois dessa festiva aproxima•‹o, Stanislavski
come•ou a orientar e preparar pequenas cenas do repert—rio oper’stico. No ano
seguinte (1919) houve uma mudan•a: Stanislavki selecionou alguns participantes
desse workshop e para eles desenvolveu um programa completo de aulas n‹o mais
destinadas ˆs exigincias de repert—rio e sim relacionadas ao dom’nio das a•›es
f’sicas e da conscincia r’tmica do intŽrprete. Ou seja, os cantores profissionais
deram lugar ao estudantes. A partir de improvisos de um pianista acompanhador,
estes se exercitavam por horas aprendendo a andar, a explorar a plasticidade de seus
corpos, e a expor verbalmente o que apreendiam. Ainda uma sŽrie de exerc’cios sobre
a materialidade da palavra eram propostos.
Uma mais detalhada dessa li•›es se encontra em uma publica•‹o de um ex-
aluno do îpera Studio, Pavel Rumyantsev(STANISLAVSKI&RUMYANTSEV
1975). O livro apresenta as instru•›es de Stanislavksi para os exerc’cos e acompanha
os ensaios da montagem de 7 —peras , entre 1921 e 1932.
Com a publica•‹o de uma nova edi•‹o em nove volumes das obras completas
de Stanislasvi, entre 1988 e 1999, entre textos de troca de correspodncia,entrevistas
com assistentes e alunos, anota•›es de trabalho e textos pedag—gicos, ampliou-se o
contexto das rela•›es entre Stanislavski e a —pera. Esse di‡logo interart’stico agora
esclarece melhor a direcionamento de Stanisl‡vski para as a•›es f’sicas. Segundo
material traduzido e comentado por Marie-Christine Autant-Mathieu(AUTANT-MATHIEU 2007), temos transcria•›es de entrevistas/di‡logos de Stanislavski com
estudantes da primeira fase do îpera Studio(1918-1922) atŽ ensaios de montagens de
—pera em 1938, textos reunidos sobre o t’tulo de Ôformer une acteur chanteurÕ. Ainda,
s‹o recolhidos exercicios para se trabalhar o ritmo, aplicados no Studio L’rico-
Dram‡tico, entre 1934-1938, que demonstram a base comum entre experincias e
metodologias na forma•‹o de atores e cantores.
Este material demonstra a continuidade das liga•›es de Stanislavki com obrasdramatico-musicais, postulando o ideal de formar artistas diversificados e com
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mœltiplas habilidades. A chave para essa abordagem ampliada da arte da atua•‹o
encontra-se na aplica•‹o de par‰metros psicoacœsticos(MOTA 2009,BROWN 2010
em todos os momentos do processo criativo. A contrapartida dramatœrgica e
cenogr‡fica para este artista viria com as pesquisas de V.Meyerhorld.
Meyerhold n‹o s— desenvolve um treinamento de atores que demanda uma
efetiva musicalidade como tambŽm organiza seu espet‡culo segundo par‰metros
psicoacœsticos (PICON-VALLIN 2008, PICON-VALLIN 2010). Com forma•‹o
musical, Meyerhold dirige operas durante sua vida, desde Trist‹o e Isolda, de
Wagner, em 1909, atŽ conduzir os trabalhos no Teatro Musical Stanislavski-
Nemirovich-Danchenko, por convite de Stanislavski, em 1938.
Essa fus‹o entre a musicalidade do ator e a musicalidade do espet‡culo
intensifica novas possibilidades dramatœgicas, recepcionais e atuacionais. Meyerhold
rompe com o limitado uso do som como efeitos de ambientes e mœsicas de fundo.
Diante da impossibilidade de se esconder o som, de tornar o som invis’vel em uma
situa•‹o audiovisual como o teatro, Meyehold enfatiza a manipula•‹o das
propriedades do som e dos materiais sonoros em cena. O enfrentamento do problema
da —pera lhe d‡ o horizonte para um novo teatro musical no qual a domestica•‹o das
rela•›es entre as partes musicais e n‹o musicais Ž superada e o agente cnico
materizaliza-se como ritmo. A composi•‹o ritmica do espet‡culo integra o ator e sons
produzidos e ouvidos em cena. O ator contracena com informa•‹o sonora, e pode, a
partir da configura•‹o que se apresenta para ele, sincronizar ou desincronizar seus
movimentos, gestos e fala. Os usos criativos dessa flexibilidade do material sonoro
estendem-se desde a encena•‹o e remontagem de dramas musicais atŽ obras sem
mœsica, na qual o desenho r’tmico Ž pensado e articulado em fun•‹o n‹o de um som
que ressoe na sala de espet‡culos e sim da explora•‹o das propriedades e
possibilidades do som em sim.Desse modo, n‹o h‡ um teoria da dramaturgia musical em Meyerhold, e sim a
proposi•‹o de um espa•o de intera•‹o entre a materialidade do som e seus efeitos,
revisando o conceito de obra dram‡tica como a unidade de representa•‹o em torno de
uma tema ou narrativa No lugar disso temos a organiza•‹o das a•›es f’sicas dos
atores e da resposta da audincia a partir da aplica•‹o de tŽcnicas de contraponto e de
formas musicais cl‡ssicas. A base ret—rica desses recursos mobiliza n‹o um recuo a
uma estŽtica da harmonia e forma org‰nica. Antes, Meyerhold ao colocar em cenaesse ret—rica agora atualizada no jogo do ator e na sequencia das coisas que s‹o
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encenadas explicita a Òmœsica abstrataÓde cada espet‡culo, exibe a metalinaguagem
de cada obra, aproxima a audicncia de uma experincia de contato com os processos
criativos. A cena Ž a generalizada exposi•‹o n‹o mais de temas e conteœdos, mas de
seus procedimentos. Ao resituar a musicalidade do espet‡culo em plano estratŽgico
no processo criativo, Meyehorld ratifica a heterogeneidade da cena, demonstrando sua
l—gica multitarefa, interart’stica e multidisciplinar. De sua censura a uma sonoplastia
realista, quando da montagem de A gaivota para a abordagem r’tmica dos eventos
cnicas temos um percurso que comprova o fato que Ò as revolu•›es cnicas do in’cio
do sŽculo (XX) n‹o est‹o ligadas somente ˆs revolu•›es cenogr‡ficas, elas est‹o em
rela•‹o direta com a reflex‹o direta sobre a mœsica no teatro (PICON-VALLIN
2008:19).Ó
A carreira de B.Brecht interage com uma dramaturgia musical desde seu
in’cio. No Brasil, h‡ um descompasso entre a recep•‹o dos textos teatrais e sua
musicalidade. Os textos apresentam algumas indica•›es musicais,quanto ao lugar e
modalidade da can•‹o de cena. Mas a predomin‰ncia da letra impressa sobre
amplitude do espet‡culo brechtiniano intensifica leituras conteud’sticas das obras,
reduzindo o conceito de estranhamento a um choque intelectual na audincia. Por
outro lado, as experincias com a descontru•‹o da —pera, a partir de parceria com o
compositor K.Weil em 1927, ap—s ter trabalhado como assistente de dire•‹o de K.
Reinhardt, entre 1924 e 1925, diretor e encenador de —peras, musicais e pe•as de
teatro. O conceito do teatro Žpico se desenvolve a partir do debate entre a montagem
ilusionista rica de recursos de Reinhardt e novas possibilidades aprendidas com
Piscator e parcerias com compositores como K. Weill(Mahagonny, îpera dos
VintŽns) e H. Eisler (Decis‹o, A M‹e), entre outros.
Discorrendo sobre seu mŽtodo de trabalho, j‡ em uma fase mais
madura(1940), Brecht relata que, ap—s elaborar a dramaturgia global de seespet‡culo(texto e can•›es), apresentava ao orquestrador as instru•›es sobre como o
material musical deveria ser produzido, chegando a assobiar as melodias que seriam
arranjadas(BRECHT 2002:134). Brecht era um cancionista, formado na escola do
Cabaret. A dissocia•‹o entre elementos, base do teatro Žpico, como uma resposta ao
conceito de s’ntese das, depreendido de Wagner, encontra na apropria•‹o art’stica da
can•‹o popular, cr’tica e ir™nica, o seu fundamento.
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#;S
13- Dire•‹o cnica de obras dram‡tico-musicais: O trabalho
de Matthew Lata no Florida State Opera
A encena•‹o de obras dram‡tico-musicais apresenta-se como um
campo interart’stico e multidisciplinar que demanda de seus intŽrpretes
um constante enfrentamento de redutoras sedu•›es: o elogio do mœltiplo
muitas vezes decai em profus‹o de estere—tipos; ou, diante de tanto,
muitas vezes basta reproduzir o suficiente229.
Em outras palavras, Ž no processo criativo de se montar umespet‡culo dram‡tico-musical que a pluralidade material e cognitiva vai
ser testada. Uma detida an‡lise de um caso concreto pode nos auxiliar em
clarificar intervalos entre expectativas e efetivas atualiza•›es.
229 Retomo neste artigo pesquisas desenvolvidas no LADI, parte
delas expostas em meus seguintes textos: A dramaturgia musical de
ƒsquilo. Investiga•›es sobre Composi•‹o, Realiza•‹o e Recep•‹o de
Fic•›es Audiovisuais. Bras’lia: Universidade de Bras’lia, 2009;
ÒDramaturgia musical: problemas e perspectivas de um campo
interart’sticoÓ In: Anais do III Encontro de Pesquisa em Mœsica da UFG.
Goi‰nia: UFG, 2003, p.18; Opera in Performance: Staging Interartistic
Works and its Theoretical and Methodological Implications. In: Annals of
Performance Matters. International Conference on Practical,
Psychological, Philosophical and Educational Issues in Musical
Performance. Porto, ESCOM, 2005. Site:http://www.escom2005.ese.ipp.pt; Compondo, realizando e produzindo
obras dram‡tico-musicais no Brasil: projeto îpera Estœdio ou Deus Ž
brasileiro: as complexas rela•›es entre laicidade e religiosidade a partir da
montagem de uma —pera com figuras b’blicas. Resumo in: Proceedings of
Ninth International Congress of the Brazilian Studies Association. New
Orleans: Brasa, 2008,p.37. V. www.marcusmota.com.br para acessar os
artigos..
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#;V
Entre agosto de 2007 e mar•o de 2008 acompanhei o trabalho do
professor Mathew Latta, no Florida State Opera (FSO), na Florida
University State, assistindo e anotando suas aulas de fundamentos cnicos para cantores (Opera Workshop) e, posteriormente, acompanhando a
montagem e apresenta•‹o de Falstaff, de Verdi230.
Ao realizar esta etnografia, procurei registrar contextos e
processos como forma de propor n‹o um modelo estŽtico ou operat—rio.
Antes, objetivei subsidiar poss’veis a•›es em projeto similar desenvolvido
na Universidade de Bras’lia. Ou seja, em um primeiro momento,
procuramos fazer um levantamento de quest›es e solu•›es presentes na
prepara•‹o e realiza•‹o de obras dram‡tico-musicais. Em seguida, e em
conjunto a esta etapa, partimos para comparar os resultados obtidos com o
que realizamos em assemelhado projeto na Universidade de Bras’lia.
Note-se que o desdobramento de observa•‹o e auto-aplica•‹o Ž
sucessivamente exercido: no texto que se segue, as duas atividades n‹o
est‹o separadas.
CONTEXTOS
O Florida State Opera Ž um programa de forma•‹o de cantores,
diretores e preparadores vocais do College of Music da Florida University
State, Tallahassee231 O programa da Florida State Opera existe h‡ quase
50 anos, com a apresenta•‹o de mais de 150 produ•›es cujo eixo do
tempo vai do barroco aos dias atuais. Alem de formar profissionais, as
—peras apresentadas dinamizam a vida cultural e intelectual da cidade e
vizinhan•a. As obras s‹o apresentadas semestralmente no prestigiado
Ruby Diamond Auditorium, com capacidade para 1500 pessoas sentadas.
230 Agrade•o ao prof. Stanley Gonstarski pelo convite e suporte durante minha estadiana Florida State University, a qual retornei em 2008 e 2009, para ministrar asdisciplinas Drama Techniques e Advanced Drama Techniques.231 Para um primeiro contato com o programa, http://music.fsu.edu/opera.htm.As informa•›es aqui arroladas foram tomadas de prospectos de apresenta•‹o do
programa e entrevista com a secret‡ria executiva do mesmo: Miss Dollar. Believe ornot...
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O montante do suporte financeiro do Florida State Opera advŽm
de fontes diversas: dinheiro do Estado (25%), venda de ingressos, doa•›es
e fundos de apoio ˆs artes. Dessa maneira, a continuidade do projeto esta
diretamente relacionada ˆ manuten•‹o de uma produ•‹o de qualidade e ˆ
busca de recursos.
O calend‡rio de apresenta•›es Ž estabelecido previamente, de
forma a se organizarem as audi•›es para os papŽis e as aulas-ensaios. Para
o ano letivo de 2006/2007, foram programadas as apresenta•›es de
Falstaff, de Verdi (dias 3,59,10 de novembro de 2006) e Don Giovanni,
de Mozart (dias 19,30,31 de Marco e 1o. de Abril de 2007).
A import‰ncia de mœsica oper’stica no College of Music da
Florida State Opera se faz presente na diversidade de op•›es que
estudantes e pesquisadores encontram ˆ sua disposi•‹o: desde a gradua•‹o
em performance musical, com nfase em performance vocal, atŽ
doutorado em performance vocal, com nfase em performance oper’stica.
A especializa•‹o de atividades e da cultura oper’stica reivindica que haja
dois diferentes focos de Master of Music: um em prepara•‹o vocal
(coaching ) e outro em dire•‹o.
Desde j‡, ao observar um programa consolidado, como muitos em
outras universidades estadunidenses, fica clara a diversa orienta•‹o
estŽtico-educativa quanto ao nosso caso: o programa ao mesmo tempo em
que educacional est‡ diretamente relacionado com uma demanda semi-
profissional. As a•›es formativas de cantores, preparadores vocais e
diretores de cena s‹o desenvolvidas dentro de uma ambincia voltada para
exigncias que n‹o se voltam exclusivamente para o ensino-
aprendizagem. Os estudantes s‹o inseridos gradativamente na
considera•‹o de um mercado. As montagens s‹o fundamentadas em
escolhas tanto estŽticas quanto econ™micas. A existncia de um
or•amento, de um calend‡rio de apresenta•›es e de um financiamento
privado para o programa determina um diferente pressuposto para os
membros envolvidos nas atividades oper’sticas: ˆ amplitude
multisensorial e interdisciplinar do trabalho art’stico aplicam-se press›es
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outras relacionadas com um empreendimento semi-profissional. Ë
generaliza•‹o exposi•‹o de habilidades mœltiplas corresponde a
explicita•‹o de co-presentes causalidades. A aprendizagem da amplitude
da cena oper’stica Ž enfrentada em sua diversidade estŽtica e material.
Do contexto das a•›es ao orientador das atividades: O professor
M. Lata Ž respons‡vel pela dire•‹o de cena do programa de opera. O
repert—rio do professor Lata abrange mais de cem obras, distribu’das entre
obras do Barroco ao contempor‰neo. Estudou com Jean-Pierre Ponnelle,
Frank Corsaro e Lofti Mansouri, ganhando experincia com a Orchestre
de Paris e outros teatros norte-americanos. AlŽm dos ensaios para Fastaff,
e depois, Dom Giovanni, ele ministra disciplinas para os trs n’veis de
performance oper’stica.
Dentro dessas informa•›es, podemos observar trs coisas: o
programa em quest‹o reafirma sua orienta•‹o voltada para o mercado ao
contratar um profissional orientar a forma•‹o cnica dos cantores. Em
seguida, a fundamental import‰ncia de um profissional de cena
especializado na forma•‹o de cantores e na orienta•‹o de montagem de
obras oper’sticas, evidenciando o car‡ter interart’stico dessas montagens,
o que atualiza o modus operandi de empreendimentos profissionais. E a
intensa carga hor‡ria que alguŽm na posi•‹o do Professor Lata deve
cumprir pois alŽm de preparar e ministrar estas aulas, ele define e discute
com outros profissionais todos os aspectos da produ•‹o e design visual
dos espet‡culos.
EM SALA DE AULA
Inicialmente, temos dois tipos de disciplinas: diariamente, com
dura•‹o de 50 minutos, h‡ classes de cada n’vel (introdut—rio,
intermedi‡rio e avan•ado) com mŽdia de 08 a 12 alunos. Nas tardes de
sexta feira h‡ um encontro geral, um grande audit—rio, com todas as
classes.
Nas aulas introdut—rias s‹o discutidos e experienciados alguns
conceitos b‡sicos de performance, como a diferen•a entre concentra•‹o e
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aten•‹o, foco, presen•a, por meio de exerc’cios b‡sicos de relaxamento.
Em um primeiro momento, trata-se de adapta•‹o da prepara•‹o
stanislaviskiana para a cena, em sua vers‹o estadunidense. Neste pa’s,
Stanislavski foi adaptado como o mŽtodo, uma tentativa de sistematizar
aspectos b‡sicos da prepara•‹o do ator, com nfase na caracteriza•‹o232.
Ao ser questionado sobre aporte stanislaviskiano, professor Lata informa
que h‡ sempre o cuidado de n‹o se transpor a situa•‹o do teatro para a
opera. Certos elementos da constru•‹o emocional da personagem podem
acabar trazendo estresse para os cantores, em virtude da tradi•‹o receptiva
da obra de Stanislavski nos Estados Unidos que enfatiza certos estados de
concentra•‹o e tens‹o emocional extremos. Isso pode prejudicar a
produ•‹o vocal e a performance, na medida em que n‹o h‡ um prŽvio
relaxamento e aquecimento vocal no desempenho de papŽis que
reivindicam habilidades musicais mais pronunciadas.
Nisso podemos observar como a adapta•‹o de exerc’cios de
prepara•‹o do ator em artes cnicas para cantores de —pera encontra o
limite de sua possibilita•‹o, revelando, ao mesmo tempo, a ‡rea lim’trofe,
as fronteiras entre as duas atividades, e as diferen•as. Parte do trabalho do
cantor est‡ encenar papŽis, na constru•‹o de figuras em cena, na ocupa•‹o
e explora•‹o do espa•o de representa•‹o, da contracena•‹o. De outro
lado, temos as diversas tradi•›es e estilos vocais e composicionais, com
suas exigncias espec’ficas. Os cantores s‹o submetidos a est’mulos e
demandas mœltiplas ˆs quais eles respondem sucessivamente em
diferentes momentos. As aulas de canto e as aulas de interpreta•‹o vocal
para a cena acentuam aspectos diversos da mesma atividade: o cantor em
situa•‹o de performance.
Ap—s os exerc’cios preparat—rios, a aula organiza-se em forma de
combina•‹o de uma audi•‹o did‡tica: cada aluno apresenta uma ‡ria, uma
232 Para as rela•›es entre Stanislaviski e —pera, v.
STANISLAVSKI, Constantin e RUMYANTSEV,Pavel. Stanislavski on
Opera. Nova York: Theatre Arts Books, 1975.
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cena, a qual por sua vez Ž comentada por todos, alunos e professor. O
desdobramento entre apresenta•‹o e avalia•‹o Ž exercitado.
A eficincia dos coment‡rios est‡ relacionada com a qualidade do
curr’culo: quem se prop›e a estudar —pera, alŽm de teoria musical erecitais e pr‡tica de conjunto,deve habilitar-se em muitas disciplinas de
l’nguas(italiano,alem‹o e francs) e em literatura vocal (repert—rio). Neste
œltimo quesito h‡ uma tendncia de o aluno possuir uma intensidade e
diversidade de experincias para forma•‹o de seu repert—rio, n‹o
privilegiando o sŽculo XIX,antes conhecendo as pontas da cadeia -
Renascimento,Barroco e SŽculo XX. Em virtude dessa forma•‹o, o
expediente uma participa•‹o coletiva Ž produtivamente enfrentado. Ao
invŽs de coment‡rio baseado no velho anedot‡rio sobre a vida pessoal dos
mœsicos, de um endeusamento adjetivo do compositor, de um mœtuo
louvor na aprecia•‹o das performances ou de reprodu•‹o de interpreta•‹o
registradas em dvds, os estudantes manifestam percep•›es da qualidade
do ato dram‡tico-musical em um contexto de apresenta•‹o de suas
habilidades, das interpenetra•›es entre texto musical e cena . Esta
correla•‹o entre performance e conscincia da performance integra
habilidades cognitivas muitas vezes consideradas separadas.
As audi•›es did‡ticas assim se organizam: primeiro o aluno canta,
apresenta o material que ele havia sido previamente designado a
performar. H‡ um calend‡rio de apresenta•›es. Ap—s sua apresenta•‹o,
ele Ž aplaudido com maior ou menor intensidade pela audincia de alunos.
Ou seja, a sala de aula Ž uma platŽia.
Esta aproxima•‹o entre sala de aula e sala de apresenta•›es Ž
fundamental. As performances efetivam-se dentro de um contexto
concreto de realiza•‹o e recep•‹o, n‹o s‹o atos descart‡veis. O aluno o
tempo inteiro Ž avaliado. Aquilo que ele faz, desde a prepara•‹o, Ž
orientado para uma contextura observacional.Com as aulas sendo de 50
minutos, cada encontro Ž uma oportunidade para que um trabalho
realizado fora da sala seja apresentado e orientado durante a aula. O
professor n‹o substitui o trabalho do aluno. Os 50 minutos produzem
repercuss›es extra-classe. H‡ todo um trabalho anterior ˆs aulas. Da’ o
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tempo e a qualidade das aulas presenciais s‹o ampliados. N‹o h‡
delega•‹o: cada um deve fazer aquilo que lhe est‡ assinalado. Tudo
acontece na frente de todos. O estudante vem com sua mœsica preparada
previamente, exibindo suas habilidades em l’nguas, compreens‹o de texto,
visualiza•‹o da cena, habilidades vocais e musicais.Ao mesmo tempo,
mesmo n‹o sendo sua vez de apresentar, ele deve habilitar-se a fazer
coment‡rio pertinentes frente ao que vem observando. Afinal de contas ,
estamos trabalhando com performance, uma generalizada e ampla
situa•‹o de presen•a. Todos devem passar pelo mesmo processo nos trs
n’veis de forma•‹o. Por meio da convivncia com o audit—rio, com a
explicita avalia•‹o n‹o h‡ desculpas, n‹o h‡ a sobrecarga no professor:
cada um Ž agente de sua a•‹o e de seu julgamento. Pois um dia voc est‡
vendo seu colega a performar; noutro, ser‡ a sua vez.
Ap—s as palmas, o professor Lata vira-se para a audincia e solicita
coment‡rios. Tal abertura ˆ participa•‹o da audincia n‹o se converte em
frivolidade. Pois quem comenta faz parte da classe, tambŽm est‡ em
avalia•‹o pelo que diz. Tanto cantando quanto falando todos s‹o avaliados
e respons‡veis pelos seus atos. Assim, o estudante v-se diante de uma
diversidade de atos: preparar-se para a performance, apresentar seu
material, ser avaliado, responder ˆ avalia•‹o e avaliar os colegas. Para
tanto, ele vale-se de habilidades musicais, vocais, corporais, teatrais e
verbais. Com isso, efetiva-se um horizonte cognitivo de seus atos
mœltiplos. O foco no fazer, em um programa semi-profissional como este,
Ž fundamentar no saber fazer, em um conhecimento advindo do
desdobramento do agente em diversas e integradas situa•›es que exigem
tanto desempenhos quanto conscincia dos atos.
Depois, dos coment‡rios discentes, professor Lata come•a uma
sŽrie de perguntas, e a partir dessas perguntas, sugest›es para que certos
elementos da performance sejam mais eficientemente enfrentados. As
perguntas iniciais dirigem-se ˆ compreens‹o do contexto da cena e da
constru•‹o da personagem. Ao lidar com fic•›es e palavras, algumas
delas muitas vezes de outras culturas, o cantor defronta-se com universos
que ele ignora. Uma abordagem que reduza o papel a uma genŽrica
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#lL
padronizada imagem limita o desenvolvimento das habilidades do
intŽrprete. Da’ frequentemente o territ—rio da tŽcnica musical parecer o
œnico solo habit‡vel, seguro para artistas dram‡tico-musicais. ƒ para este
elemento n‹o musical da performance da —pera que as perguntas do
professor Lata se dirigem: " O que est‡ acontecendo aqui?Ó ÒQuem ele Ž?
"
A partir dessas perguntas, temos outras, relacionadas com a
constru•‹o do espa•o de cena: " Com quem ele esta falando?Ó ÒPara
quem ele est‡ cantando ou olhando?" A estas perguntas, seguem-se
alguns coment‡rios relacionados ao texto, como ele foi pronunciado
durante o canto e algumas sugest›es para que se enfatize na performance
vocal as frases textuais-musicais, os sons. Assim, a conscincia da
articula•‹o Ž produzida pela compreens‹o do texto. Logo, o interprete Ž
posicionado diante de um objeto que possui mœltiplas e simult‰neas
referncias. Quando o aluno canta, performa sua ‡ria, ele Ž avaliado pelo
entendimento das referncias lingŸ’sticas, pela compreens‹o da
personagem e do contexto da cena, por sua tŽcnica vocal e pela rela•‹o
que ele estabelece entre o material lingŸ’stico-sonoro que o texto lhe d‡ e
o uso que ele como intŽrprete faz desse material, a partir de uma
interpreta•‹o que singularize certos aspectos de sua performance- as suas
escolhas diante do que a cena e o texto oferecem.
Depois disso, temos uma segunda performance do mesmo
estudante. Diferentemente da primeira, realizada sem interrup•›es, a
reperformance Ž o material para as interferncias minuciosas por parte do
professor Lata. Tanto que na maioria das vezes as coisas as interrup•›es
come•am antes da primeira palavra ser cantada. O piano d‡ as primeiras
notas e o professor Lata entra em cena e comenta os impulsos iniciais do
estudante. O impulso inicial Ž o material que vai determinar a rela•‹o
entre o cantor e seu audit—rio, ao mesmo tempo em que ser‡ alvo de
reapropria•›es durante toda a performance. O estudo dos come•os, das
primeiras a•›es Ž fundamental. ƒ preciso haver uma entrada clara, mesmo
quando a cena exige uma marca•‹o emocional complexa. Assim, o corpo
do cantor Ž escaneado nesses coment‡rios. A mesma frase de abertura Ž
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v‡rias vezes discutida, apresentada atŽ que o intŽrprete tenha material
suficiente para trabalhar em casa.
Dessa maneira, cada aluno possui uma dupla oportunidade de ser
apreciado - na dura•‹o de sua performance e no detalhamento de suareperformance. Visto no todo e no detalhe, ele pode ter elementos para
sua autoavalia•‹o. Assim, evita-se a pulveriza•‹o das informa•›es: as
sugest›es da orienta•‹o n‹o s‹o pontuais, moment‰neas. Uma grande
meta das sugest›es e avalia•›es da performance Ž lidar tanto com a
limita•‹o do material analisado, com os limites e possibilidades do
intŽrprete, quanto com a apropria•‹o dessas an‡lises, de forma que elas
mesmas efetivamente sejam um ganho para a performance. Em uma
senten•a: como fazer que a intensidade da avalia•‹o n‹o seja dissipada em
est’mulos verbais imediatos.
Digno de nota nas observa•›es do professor Lata Ž o fato de que as
sugest›es procuram aproximar o papel e as habilidades e materiais que o
discente disp›e ou pode efetivar. N‹o se trata de induzir o cantor a
materializar uma performance modelo, a atua•‹o ideal para aquele papel.
Entendendo o que est‡ escrito e explorando o que pode ser materializado,
o discente aprende as especificidades de interpreta•‹o de uma escrita
dram‡tico-musical, em sua tens‹o entre modalidade de efetiva•‹o e
negocia•‹o com as referncias registradas.
E h‡ a performance mesma da orienta•‹o. Em classes em que
ocorre uma generalizada situa•‹o de observ‰ncia, o pr—prio facilitador
exp›e-se como performer . Dentre as qualidade que o professor Lata
manifesta no objetivo de prover a avalia•‹o de performances dram‡tico-
musicais temos:
1- efetiva•‹o de um espa•o saud‡vel de aprendizagem atravŽs de
uma condu•‹o serena e objetiva. Ele nunca ergue a voz, nunca se exalta,
nunca ostenta excessos, mesmo diante de tantas fontes sonoras e um
excitante e multivocal ambiente. Regulando a textura e altura das vozes na
classe, o low profile do professor Lata responde a uma ilus‹o que excessos
e excentricidades significam garantia de excelncia. Os estere—tipos
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relacionados a mundo oper’stico s‹o ultrapassados, corrigidos na
aprendizagem de uma escuta atenta ˆ explicita•‹o dos atos.
2- h‡bil combina•‹o de conhecimentos e referenciais da cena, da
vocalidade, do texto musical. Ou seja, trata-se de uma abordagemcentrada na performance e em suas implica•›es cnicas, musicais e
cognitivas. O mesmo problema detectado pode ser investigado por esses
conhecimentos integrados. Nas reperformances o que Ž apresentado pode
ser redefinido em fun•‹o de um e outro aspecto dram‡tico-musical.
3- o papel do detalhe. O professor Lata busca o detalhe no sentido
de que o intŽrprete tenha a conscincia de suas escolhas, da relev‰ncia
daquilo que Ž explicitado na rela•‹o do cantor com seu papel, com o texto
musical e com sua voz.
A ENCENA‚ÌO DE FALSTAFF, DE VERDI
AlŽm das aulas, professor Lata Ž respons‡vel pela dire•‹o cnica
de espet‡culos semestrais. O acompanhamento dos ensaios e das
apresenta•›es corrobora e distende o car‡ter profissionalizante da
forma•‹o de artistas cantores no Florida State Opera .
Diante disso, a apresenta•‹o de uma obra dram‡tico-musical n‹o
apenas materializa as op•›es estŽticas, o processo criativo que efetiva o
espet‡culo, como tambŽm toda a cultura envolvida em sua produ•‹o e
recep•‹o. A montagem de Falstaff nos d‡ uma oportunidade para entrar
em contato com as op•›es e solu•›es locais e, a partir disso, refletir sobre
possibilidades quanto ao mesmo t—pico no Brasil.
Inicialmente, Ž bom tem mente que a realiza•‹o de Falstaff foi
marcada por sua orienta•‹o intensiva: primeiro tivemos as audi•›es.
Depois das audi•›es, duas semanas de prepara•‹o vocal ou passagem das
partes. Os ensaios come•aram em 30 de setembro e as apresenta•›es
foram nos dias 3,5, 9 e 10 de novembro de 2006. Praticamente 45 dias.
Uma loucura.
Para que isso fosse poss’vel, primeiro h‡ uma tradi•‹o por tr‡s
desses empreendimentos universit‡rios. Esta Ž 57a. temporada da Florida
State Opera. Como resultado, h‡ uma estrutura, uma organiza•‹o. Todos
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#lS
os cantores selecionados receberam a programa•‹o prŽvia dos ensaios,
com datas, hor‡rios e cenas que seriam trabalhadas em cada encontro. Os
ensaios foram realizados todos os dias, menos nas quartas-feiras, com
dura•‹o de trs a quatro horas - das 7 da noite atŽ ˆs 10,11, com pequeno
intervalo. Lembrar que havia dois elencos. Nos fins de semana, ensaio era
das 11 da manh‹ atŽ 6 da tarde nos s‡bados e das 3 ˆs 10 da noite nos
domingos. Seguindo este apertado cronograma, cada cena seria passada
somente duas vezes apenas por cada elenco
Os ensaios eram organizados da seguinte forma: inicialmente o
Professor de prepara•‹o vocal e regente da orquestra que iria acompanhar
as apresenta•›es, Douglas Fisher, passava as vozes e corrigia aspectos
vocais e lingu’sticos e a sincroniza•‹o canto-acompanhamento. N‹o se
tratava de ensinar o que deveria ser cantado. Ap—s as audi•›es e ensaio
das partes faladas, agora n‹o era momento de ser novi•o. H‡ um claro
comprometimento do estudante em uma produ•‹o semi-profissional como
essa. Na porta da sala da sede do Florida University Opera, alŽm de c—pia
do cronograma dos ensaios, voc encontra uma incisiva carta do professor
Fisher lembrando e cobrando este comprometimento. Ou seja, fora o
tempo dedicado aos ensaios, como o estudante possui programa•‹o em
suas m‹os, ele deve estudar em casa suas partes. AlŽm disso, h‡ dois
pianistas bolsistas integrados no projeto, com hor‡rios para estudo dos
papŽis.
Ap—s este aquecimento que retoma o que vai se cantado, come•a o
trabalho do professor Lata e trs assistentes Ð estudantes do mestrado em
dire•‹o cnica. Uma delas Ž assistente de dire•‹o, anotando todos os
coment‡rios, idŽias sobre interpreta•‹o, sugest›es, marca•›es que o
professor Lata compartilha com ela ou atravŽs da observa•‹o que a
assistente mesma faz da condu•‹o dos atores. Ao seu lado, outra assistente
se concentra na parte mais tŽcnica do espet‡culo, no espa•o da cena e nos
objetos. E, ao lado desta, sua assistente, detalhando mais as coisas que s‹o
necess‡rias, o que deve ser providenciado, comprado, refeito. Os cadernos
de anota•‹o s‹o blocos amplos com a c—pia da partitura. Tudo Ž
sincronizado com a dramaturgia musical do espet‡culo.
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#lV
Como se pode observar, h‡ um controle da representa•‹o tanto em
rela•‹o ˆs suas condi•›es materiais quanto ˆs suas op•›es interpretativas.
Se o estudante esquecer algo de sua cena, quiser rever uma marca•‹o ou
tiver de faltar ao ensaio (coisa rara e impens‡vel!), ele vai falar Ž com a
assistente, ver as anota•›es. Conforme professor Lata me disse, Ž
responsabilidade do cantor e n‹o do diretor rever ou repetir marcas. Tal
equipe Ž fundamental n‹o s— para manter a coerncia dos ensaios como
tambŽm a qualidade das apresenta•›es. Nos ensaios j‡ no teatro essa
equipe ajuda a estabelecer a continuidade, gradativamente toma a frente
do espet‡culo. Ao fim, essa equipe dirige o espet‡culo ap—s as primeiras
apresenta•›es. N‹o h‡ desperd’cio: as pessoas envolvidas na produ•‹o e
realiza•‹o do espet‡culo est‹o ali em uma aprendizagem concreta de todas
as etapas de encena•‹o de um espet‡culo. A sala de ensaios Ž uma grande
sala de aula. O espet‡culo se transforma em objeto de estudo e
conhecimento para diversos n’veis de ensino e aprendizagem.
Durante os ensaios, as cenas inicialmente s‹o esclarecidas pelo
professor Lata. Em virtude de sua larga experincia profissional, grande
parte de sua atividade Ž dispor os cantores no espa•o da cena e prover as
a•›es que eles executam durante sua presen•a no palco. O professor Lata
trabalha com o dinamismo da atua•‹o. N‹o Ž s— apenas cantar. Quem est‡
em cena sempre precisa estar fazendo alguma coisa, materializando o
contexto das a•›es, transformando-se eles mesmo na realidade da cena.
Tal orienta•‹o para a verossimilhan•a n‹o impede que estes corpos
tambŽm se redistribuam, colocando em movimento o espa•o. H‡ um
cont’nuo arranjo dos deslocamentos em cena, proporcionando uma
redefini•‹o temporal para os eventos e para as atua•›es. A agilidade
conquistada nessa movimenta•‹o faz com que a percep•‹o do espet‡culo,
sua frui•‹o mesma n‹o seja interrompida pelas dificuldades mesmas de
uma obra multidimensional como a —pera. Ao integrar mœsica, canto e
a•‹o atravŽs de deslocamentos de grupos e de indiv’duos em cena o
professor Lata acelera o tempo da cena, sobrepondo-o ao tempo do
pensamento sobre o que est‡ sendo realizado. Dessa maneira os
acontecimentos se imp›em sobre a percep•‹o, n‹o dando tempo nem para
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os atores nem para a platŽia desconectarem-se, afastarem-se do que est‡
sendo representado.
Esse dinamismo atuacional Ž importante para controle do grupo,
ainda mais frente a um cronograma apertado. A exigncia de tantosdeslocamentos faz com que haja um foco na cena e na contracena. Assim,
o estudante tem de se concentrar em sua presen•a e na interface com o
espa•o alheio. Ele n‹o possui alternativas. Conversando informalmente
com Lata, ele registrou bem, no come•o dos ensaios, que a constru•‹o das
personagens era algo a ser trabalhado mais. A prioridade naquele
momento Ž colocar no palco cantores que saibam onde est‹o e o que est‹o
fazendo. Tal dinamismo atuacional, quando compreendido e executado
eficientemente, dota o intŽrprete de uma confian•a maior em rela•‹o ˆ sua
atividade em cena. Para os menos inexperientes, trata-se de um caminho
r‡pido para estar no palco. Para os mais experientes, uma disciplina
corporal. H‡ os inconvenientes de n‹o haver uma discuss‹o intelectual
sobre o papel e muitas vezes o intŽrprete ficar atr‡s das marcas. Seja como
for, pelo menos uma coisa o estudante entra em contato: que sua
performance tem de ser espacializada, que ele Ž uma figura dentro de um
arranjo espacial, e que ele contribui para esse arranjo, desde que o
compreenda. A verbaliza•‹o dos workshops d‡ lugar uma rotina de
experimenta•‹o dos lugares da cena.
Da marca•‹o para a caracteriza•‹o: segundo a programa•‹o dos
ensaios, depois das cenas (1), temos trabalho com os atos da pe•a(2), com
a pe•a inteira(2), com a pe•a inteira e figurinos (3), dois ensaios gerais
tŽcnicos no teatro(4) e a pe•a inteira com orquestra (4). Como vemos o
cronograma de atividades Ž progressivo, mas cada etapa insere o estudante
em um desafio intenso de uma concreta situa•‹o performativa.
Ainda nos ensaios com as cenas, cada cena era marcada e
esclarecida primeiro verbalmente, junto com os deslocamentos, depois
com a mœsica. Digno de nota Ž a presen•a do pianista acompanhador e do
professor Fischer, que regeu a orquestra nas apresenta•›es. A presen•a do
preparador vocal e regente nos ensaios possibilitou a condu•‹o dos
cantores em situa•‹o de apresenta•‹o. Os intŽrpretes eram duplamente
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marcados Ð pelo espa•o e cenografia e pela orquestra-piano-maestro. A
constru•‹o das cenas era interrompida seja pela falta de qualidade ou
incompreens‹o tanto de um ou de outro aspecto. A sincroniza•‹o dos
movimentos, das linhas mel—dicas e das linhas mel—dicas com a orquestra
era buscada. Em uma encena•‹o universit‡ria este cons—rcio entre o
regente e o diretor de cena Ž poss’vel. Ambos s‹o professores da
institui•‹o promotora do evento. H‡ uma clara divis‹o de papŽis. Mesmo
que haja discord‰ncia com o conceito da montagem, os dois precisam
observar o trabalho do colega. Ainda mais que o professor Lata moderniza
obras do repert—rio, tornando contempor‰neas referncias n‹o s— no
cen‡rio como tambŽm nas falas233.
Uma obra como Falstaff exige um aplicado controle dos tempos e
das atua•›es. H‡ poucas ‡rias. A intera•‹o entre personagens durante as
artimanhas e sua realiza•‹o solicita grandes dificuldades de sincroniza•‹o
entre cena e orquestra. A obra, em trs atos, vale-se de situa•›es t’picas da
commedia dellÕarte, com perspectivas limitadas dos personagens frente ao
que est‡ acontecendo, planos simult‰neos, e recursos dram‡ticos como
esconderijos e revela•›es. As cenas mais complicadas s‹o as segundas
partes dos atos. Cada ato se divide em duas grandes seqŸncias. Na
segunda seqŸncia de cada ato temos cenas de grupos cada vez mais
complexas, com melodias diferentes e simult‰neas. S‹o estiliza•›es da
tŽcnica dos fins de ato da —pera bufa. Grande parte do humor reside nessa
explora•‹o do excesso dos grupos. Outra parte est‡ no conteœdo de
algumas frases e no jogo de esconde-esconde dos personagens.
Um diferencial da produ•‹o de Falstaff foi a presen•a de um
profissional com larga experincia, Jake Gardener, vindo de Nov York.
Com isso fica mais do que clara a defini•‹o da proposta educacional aqui
desenvolvida. Primeiro, essa separa•‹o entre —pera profissional e n‹o
profissional na verdade Ž um resqu’cio da guerra fria, e n‹o se aplica aqui.
O que na verdade existe s‹o produ•›es diferentes relacionadas ao
contexto de sua realiza•‹o e ao dinheiro envolvido. Pois n‹o h‡ esse
233 Como bem se pode observar em sua montagem de O Mikado, de Gilbert eSullivan, mar•o de 2008.
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neg—cio de amadorismo e falta de dinheiro. Voc precisa, para realizar um
espet‡culo como esse, de dinheiro. O financiamento da produ•‹o caminha
junto com a existncia mesma de um projeto dessa magnitude. N‹o se
trata de mercantilismo. Voc paga pelo curso universit‡rio que voc est‡
fazendo. Voc participa de uma produ•‹o que tem financiamento, que n‹o
Ž pœblico. A qualidade das produ•›es e a continuidade do projeto se
relacionam com os recursos que a viabilizam. Assim, o estudante-cantor
entra em um ambiente de aprendizagem rodeado por necessidades
financeiras, por um or•amento. Este diferencial Ž bem ausente em nossa
tradi•‹o universit‡ria de montagem de obras dram‡tico-musicais,
retalhada em parcos apoios institucionais e esparso benepl‡cito privado
(ˆs vezes o bolso dos membros envolvidos no projeto). Uma aten•‹o
nesse t—pico Ž esclarecedora.
A quest‹o do dinheiro fica bem clara quando o momento das
apresenta•›es vai chegando. Nos ensaios com o figurino, nas passagens
tŽcnicas mostra-se que h‡ um investimento pesado no que est‡ sendo
feito. Dessa forma, o comprometimento do estudante com a produ•‹o se
torna mais patente: ele pode observar que h‡ todo um conjunto de
recursos humanos e monet‡rios envolvidos no espet‡culo. E o espet‡culo
vai mostrar isso. No palco est‹o presentes n‹o s— os atores, os recursos
humanos, como tambŽm os recursos monet‡rios que efetivaram grande
parte das situa•›es ali performadas.
No dia das apresenta•›es isso fica muito exposto. Primeiro os
ingressos s‹o pagos. ƒ, isso mesmo: voc paga para ver o trabalho dos
estudantes. Mas isso n‹o Ž algo t‹o extraordin‡rio. A maioria dos recitais
finais n‹o Ž de entrada franca. Trabalhos de fim de curso e obras
produ•›es como esta, desenvolvidas ap—s longo processo criativo que
conta com a participa•‹o ativa do professores e da dire•‹o institucional,
s‹o apresentados ao grande pœblico como produtos tanto estŽticos, quanto
comerciais. O ingresso n‹o Ž abusivo e quem paga sabe que est‡
consumindo uma realiza•‹o de uma universidade.
Segundo, voc recebe junto com o ingresso uma lista de seis
p‡ginas com o nome das pessoas da comunidade que d‹o dinheiro para
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que a produ•‹o musical universit‡ria tenha continuidade. A lista se exibe
uma classifica•‹o de contribuintes em v‡rias categorias: Gold Circle,
Benefactors, Lifetime Members, Corporate Sponsors, Business
Sponsors,Patrons, Associates, Sponsors. A classifica•‹o procura reunir
grupos de pessoas e suas diversas formas de participa•‹o monet‡ria ou de
prest’gio. Assim, todo mundo pode ter seu nome na lista, desde que
especificada a sua forma de contribuir para as atividades musicais da
universidade. Esses recursos expostos no programa s‹o a auditoria pœblica
da produ•‹o do espet‡culo. AlŽm disso, toda a contabilidade da —pera Ž
fiscalizada pelas burocracias da universidade, da cidade e do estado, e da
burocracia federal (o imposto de renda dos doadores).
Estes membros da comunidade formam grande parte do pœblico
das apresenta•›es da —pera. Em sua maioria s‹o pessoas mais
experimentadas, entre 55 e 80 anos. H‡ o encontro dos jovens cantores
com a tradi•‹o, com pessoas que j‡ assistiram a muitos espet‡culos em
diversas partes do pa’s. Por certo lado, essa rela•‹o entre pœblico
financiador e artista parece estranha. Pois se canta para uma platŽia menos
diversificada, mais homognea socialmente, com o perigo de n‹o haver
renova•‹o de pœblico. Mas, para quem est‡ cantando e para os mœsicos da
orquestra Ž uma oportunidade de se colocar em risco, em situa•‹o
concreta de performance. Todos sabem que Ž uma produ•‹o com
estudantes. Mas isso n‹o significa que Ž uma produ•‹o com taxa de
toler‰ncia reduzida. O que existe Ž a diferen•a entre or•amentos e entre
experincia exibida. Cada apresenta•‹o Ž um julgamento n‹o s— dos
estudantes como da organiza•‹o.
Os elencos que se apresentaram tinham suas diferen•as
qualitativas. O primeiro elenco era o mais irregular. Nas cenas de grupo,
principalmente as mulheres, elas ficavam atr‡s das marcas, como que
executando algo dissociado de sua compreens‹o. Trata-se de aprender a
diferen•a entre fazer o correto e fazer melhor. A marca n‹o Ž uma camisa
de for•a. ƒ uma informa•‹o. Resta ao intŽrprete flexibilizar a informa•‹o
agregando possibilidades. AlŽm disso, o uso do elenco menos sintonizado
para a abertura acabou por produzir um teste de como a parte tŽcnica e o
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manuseio com os objetos podem ou n‹o funcionar bem. O segundo elenco
estava na platŽia, incentivando com muito excesso seus companheiros, e
aprendendo com os erros observados. Alguns problemas na hora da
mudan•a de cen‡rio e manipula•‹o de objetos de cena foram percebidos.
Esta quest‹o da manipula•‹o dos objetos de cena, de como pegar e
usar uma vassoura, uma cadeira, como, por qual raz‹o e para onde
movimentar um banco, Ž uma b‡sica quest‹o para os intŽrpretes. Em
algumas vezes, a qualidade de um movimento desses informa sobre a
personagem que o que ela canta. N‹o somos n—s que movimentamos os
objetos. S‹o os objetos que nos materializam em cena.
O cen‡rio era uma casa de bonecas, com dois lados, que era girado
em cena, revelando espa•os diferentes, ou era aberto revelando o interior
fabuloso de uma casa. Simples e eficiente. Mas ainda tanto as roupas
quanto o cen‡rio cheiravam uma novidade de recŽm-feito, recŽm
comprado. Eram mais coisas bem feitas que roupas e objetos que as
pessoas usam ou nas quais as pessoas vivem. Esse brilho reluzente das
coisas novas dava um aspecto meio artificial ao espet‡culo, no sentido que
era mais uma manifesta•‹o da qualidade do trabalho e do dinheiro gasto
que propriamente um mundo habit‡vel.
Com isso, em alguns momentos, a risada n‹o vinha. Em uma
comŽdia j‡ meio dif’cil de rir e mais f‡cil de sorrir, como Falstaff , a
provoca•‹o ao riso, as fontes da comicidade estavam nos gestos de cair,
correr, nos trejeitos do rosto, par—dias vocais com o cantor cantando como
mulher e vice-versa, e algumas piadas musicais, como Òdalle due alle tre.Ó
Outro problema presente n‹o s— na performance do primeiro
elenco Ž a chamada interpreta•‹o frontal. Mesmo com os deslocamentos
de grupo, o foco da cena e a maioria da produ•‹o vocal se desenvolviam
com os intŽrpretes meio alinhados e fixos no centro do palco. Esse ponto
centr’fugo situado em frente ao maestro Ž um grande problema. Ainda
mais com as complica•›es de sincroniza•‹o presentes em Falstaff . Ora,
essa interpreta•‹o frontal como padr‹o engessa o espet‡culo. Os
intŽrpretes parecem que n‹o performam tendo um pœblico em sua frente,
limitando as contracena•›es. Com pouca diagonalidade e lateralidade, a
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interpreta•‹o frontal reduz a varia•‹o das a•›es e das trocas. Canta-se
para o maestro. E isola-se, sobrecarrega-se o cantor que desempenha o
personagem-t’tulo.
Agora, a orquestra de alunos Ž excelente, o dueto (terceiro ato)entre Nannetta e Fenton do primeiro elenco, foi maravilhoso, os atores
n‹o cantores integrados ao espet‡culo como Oste e Robin contribu’ram
muito para o cotidiano das cenas e v’nculos entre as personagens entre si e
com a platŽia, e o fim do terceiro ato realmente com sua bela cenografia e
figurino encanta, junto com o auge do tutti final, quando h‡ quebra da
Ôquarta paredeÕ e os cantores se dirigem a n—s, a platŽia.
Com uma organiza•‹o destas e profissionais de alto gabarito os
estudantes tm a possibilidade de desenvolver suas habilidades dentro de
um ambiente o mais favor‡vel poss’vel. H‡ uma boa sala de ensaios e um
programa de atividades, um cronograma de eventos. E a comunidade
ganha com espet‡culos muito bem produzidos e academicamente
orientados. Departamentos e Institutos de Arte no Brasil podem valer-se
da produ•‹o de —peras universit‡rias como uma possibilidade para
estimulantes correla•›es entre pesquisa, produ•‹o de espet‡culos e
forma•‹o de intŽrpretes e platŽia234.
234 Entre 2005 e 2007 o LADI e o îpera estœdio produziram semestralmente umaobra dram‡tico-musical. Entre elas, Bodas de F’garo e O empres‡rio, de Mozart,Carmen de Bizet, e uma vers‹o de Cavalleria Rusticana, de Mascagni
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14- A realiza•‹o de —peras como campo interart’stico:
dramaturgia, performance e interpreta•‹o de fic•›es
audiovisuais.
Nas œltimas duas dŽcadas, o incremento da convergncia
entre teatro e —pera por meio da reencena•‹o\ reinterpreta•‹o obras
dram‡tico-musicais tem provocado polmicas e quest›es que
reivindicam um tratamento te—rico-reflexivo mais detido, capaz de
ultrapassar a arena das contingncias da opini‹o e do gosto235.
Neste trabalho, enfoco as implica•›es dessa convergncia tanto natradi•‹o oper’stica mesmo quanto no campo musical que acolhe
esta tradi•‹o. A teatralidade da —pera aponta para a relev‰ncia que
a performance ocupa no fazer musical. Desse modo, a discuss‹o
sobre a realiza•‹o de —pera transforma-se numa discuss‹o sobre
pressupostos sobre as complexas rela•›es entre texto, cena e
mœsica.
A aproxima•‹o entre atua•‹o e canto, exigida por obrasdram‡tico-musicais, parece —bvia. Mas Ž durante a prepara•‹o de
—peras que esta obviedade transforma-se muitas vezes em
tormento. Na forma•‹o do intŽrprete-cantor, como na forma•‹o do
mœsico-intŽrprete, a centralidade do texto refor•ada pela autoridade
e,algumas vezes, autoritarismo da orienta•‹o e condu•‹o do
desempenho, acaba por considerar performance como um ato
derivativo, subsidi‡rio, secund‡rio236.
235 BOLSTEIN 1994 discerne, na renova•‹o da —pera, dois fatores:a renovada nfase na atua•‹o e namovimenta•‹o em cena e a reconceptualiza•‹o de obras do repert—rio efetivada por diretores teatrais como PeterSellars. LEVIN 1997, a partir de uma an‡lise de produ•›es e dire•›es de —pera, procura encontrar fundamentoste—ricos para julgar o valor de uma encena•‹o. Tal postura, segundo TREADWELL 1998 n‹o situa a quest‹o da
performance como um ato interpretativo, mas reproduz em novos termos o mesmo eixo pseudocr’tico deoposi•‹o entre conservadorismo e inova•‹o. Nas palavras de TRADWELL 1999:601 Òa discuss‹o sobre a
produ•‹o de —peras precisa ir mas alŽm do argumento sobre se Ž certo ou errado que certos objetos possam ou n‹oestar em cena em certos momentos, ou que determinados eventos possam ser atualizados em determinados
espa•osÓ236 KERMAN 1987:257 chega a comentar que Ò surpreendentemente ou n‹o, o fato Ž que os te—ricos tonais est‹oquase totalmente silenciosos acerca do assunto Ôperformance musical.Õ Ó
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Esta abstra•‹o das condi•›es,habilidades e amplitude da
performance ocasiona uma espŽcie de fic•‹o metodol—gica da
Ômœsica sem mœsicosÕ(COOK 2001:242).
Um dos pressuposto desta abstra•‹o reside na mœsica comoum objeto aut™nomo, centrado em si mesmo, que gera seu pr—prio
significado e contexto, apreens’vel primordialmente atravŽs de
opera•›es mentais silenciosas237.
Seguindo tal reducionismo, o cantor-intŽrprete, mais que o
mœsico-intŽrprete, situa-se nos extremos entre o puramente musical
e a sua performance. Por isso muitas vezes preenche este entre-
lugar de extremos com excessos, com o desempenho estereotipadoe convencional, Ôoper’sticoÕ, marcado por proje•‹o da
individualidade do intŽrprete, estere—tipos de comportamento,
poses e rompantes Ð como se o excesso pudesse preencher ou
completar o vazio de performance que irreversivelmente se mostra
em cena...238
PorŽm, quando cantores s‹o tratados como atores, valendo-
se de procedimentos interpretativas das Artes Cnicas, a
prepara•‹o e realiza•‹o de obras dram‡tico-musicais se torna n‹o
somente a encena•‹o de uma —pera239. A quest‹o ultrapassa a
analogia entre o cantor-intŽrprete e o ator. N‹o se trata de mera
aplica•‹o de uma pr‡tica art’stica em outra pr‡tica art’stica. Sen‹o,
o resultado seria ainda a continuidade do pressuposto da
autonomia, s— que agora invertido. O que ent‹o a teatraliza•‹o da
—pera acarreta de t‹o mais provocador que a suplementa•‹o de uma
atividade j‡ bem definida?
Bem definida? Edward Cone tentou em um influente
ensaio, sem levar em conta a fisicidade da realiza•‹o oper’stica,
tratar da especificidade da —pera nesses termos: Ò Como o mundo
237 Para uma an‡lise do conceito de autonomia musical v. WHITTALL 2001.238 Em MOTA 2003 o excesso sem conscincia da performance de ostenta•‹o individual se distingue do excessodo contexto mesmo do articulador de cena em uma obra dram‡tico-musical, articular este envolvido em atividadese habilidades diversas e co-operantes.239 SHEVETSOVA 2004:348 defende que tratar o cantor como um ator Ž um imperativo da arte dram‡tico-musical, de forma a os habilitar a Ò encontrar nuances de personifica•‹o, situa•‹o, a•‹o, e, acima de tudo inter-relacionamento entre todos os participantesÓ
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da opera difere de outros mundos dram‡ticos? Quem s‹o as pessoas
que habitam esse mundo e que tipo de vida eles levam l‡? (CONE
1989:125).Ó
Ap—s esta quest‹o, que se vale da naturaliza•‹o de seureferente, E. Cone apresenta uma distin•‹o prŽvia entre Ôcan•‹o
realistaÕ e Ôcan•‹o oper‡ticaÕ como modalidades de performance
em uma obra dram‡tico-musical. A distin•‹o tem por base a
performance em uma pe•a de teatro n‹o musical. Em uma pe•a as
pessoas falam, tal como em uma —pera as pessoas cantam. Este tipo
de atua•‹o normal, dentro de um contexto de cena, torna-se o
padr‹o para a atua•‹o desviante, que se desliga das imediatas e
necess‡rias realidades que s‹o exibidas. Assim, na Ôcan•‹o realistaÕ
o que se mostra Ž a integra•‹o do intŽrprete ao seu contexto de
cena mais imediato, enquanto que na can•‹o oper‡tica, o intŽrprete
amplia seu tempo e seu espa•o e compartilha sua performance mais
com a platŽia.
No mesmo ensaio, este dualismo de n’veis de referncia Ž
posteriormente questionado pelo pr—prio E. Cone: ÒSer‡ que a
r’gida distin•‹o entre can•‹o realista e can•‹o oper‡tica se sustŽm?
(CONE 1989:126Ó Note-se a dificuldade de se sustentar a defini•‹o
de uma complexa atividade interart’stica em distin•›es prŽvias e
absolutas. A hesita•‹o de E. Cone aponta para outras vias de acesso
que vem no contradit—rio e no diverso a possibilidade de se pensar
o heterodoxo n‹o em termos abusivamente exclusivos, organicistas
e autoexcludentes.
Frente ˆ hesita•‹o de E. Cone, P.Kivy procura resolver esta
leve percep•‹o do mœltiplo(duplicidade de n’veis de referncia dos
atos performativos dos intŽrpretes-cantores) em uma coerente
explica•‹o. Ent‹o P. Kivy prop›e sua Fantasia filos—fica (KIVY
1991). Ao invŽs das distin•›es entre mundo da —pera e mundo da
vida, outro mundo qualquer, Kivy advoga a unidade de todos os
mundos, de todas as referncias atravŽs da criatividade dos atos
lingŸ’sticos. ÒSomos todos, em conversa•‹o, irm‹os e irm‹s em
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arte(KIVY 1991:71)Ó. As diferen•as e distin•›es s‹o solapadas em
prol de base comum das intera•›es: sua orienta•‹o perceptiva
unificada apenas pela pelo medium - a mœsica ,na —pera; a palavra,
na vida.
Esta defini•‹o unificada pelo medium j‡ havia sido utilizada
por P.Kivy como f—rmula para explicar o surgimento da
—pera(KIVY 1999). Questionando a produ•‹o dram‡tico- musical
de Monteverdi, P. Kivy argumentava que a tens‹o entre drama e
mœsica, entre coerncia musical foi quem gerou a —pera. Quando a
sem‰ntica da mœsica foi subordina ˆ sua sintaxe. O problema da
—pera, pois, torna-se um problema intelectual. Como um novo E.
Haslick, P. Kivy busca uma assepsia, uma esfera transcendental
sem os entraves de interferncias representacionais, sejam elas as
emo•›es, corpos e espa•os concretos de realiza•‹o(KIVY 1999:14-
15). Deslocando a —pera para esta esfera, ela se encontra livre das
necessidades de sua justifica•‹o no mundo, de intera•‹o com outras
referncias ou pr‡ticas de representa•‹o. ƒ pura mœsica.
Tanto que em sua Ô fantasiaÕ, P. Kivy afirma: Ò N—s todos
sabemos que cantores raramente s‹o bons atores ou atrizes; Ž um
fato estat’stico. (...) Porque —pera Ž em seu mais essencial
(essential ) aspecto uma arte para se ouvir (heard art ), e n‹o para se
ver. Muita atua•‹o em cena acabar por trazer confus‹o sobre sua
natureza essencialmente(essentially) musical.(KIVY 1991:75)240Ó
Tanto que para preencher e substituir o movimento dos corpo
existe a orquestra. A orquestra Ž, Ò em termos simples, gesto
expressivo e movimento corporal(KIVY 1991:75).Ó Para n‹o haver
redund‰ncia, os corpos devem ficar inertes para que os
instrumentos possam fazer as vezes de corpos (KIVY 1991:75).
Desse modo, pressupondo-se a homogeneidade do medium,
suspende-se a interferncia de outras dimens›es da produ•‹o
oper’stica em prol da emergncia do puramente musical em sua
240 ROSEN 1992, em uma cr’tica a KIVY 1991, mostra, entre outros problemas, o reducionismo de P.Kivy na
leitura das distin•›es e hesita•›es de CONE 1989 inviabiliza a compreens‹o Òdo complexa intera•‹o entresistemas de arte que constituem a arte da —pera.ÓKIVY 1992 responde ROSEN 1992, reafirmando seus pontos emdefender uma l—gica para o Òbizarro mundo da —pera (KIVY 1992:180).Ó
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completa realiza•‹o. Somente assim, a —pera como mœsica, como
plenitude sonora pode acontecer.
Mas as outras referncias dificultam mesmo o acesso ˆ
inteireza musical? As habilidades e o esclarecimento da situa•‹o de performance s‹o obst‡culo para se efetivar a obra dram‡tico-
musical ? Por que a performance permanece como contra-exemplo,
como referncia negativa, como argumento a ser rebatido?
Uma das grandes contribui•›es que a teatraliza•‹o da —pera
tem trazido para o cantor-intŽrprete Ž a secular conquista das Artes
Cnicas de se deslocar o centro de orienta•‹o das teorias e das
pr‡ticas para o treinamento do ator, para suas habilidades e suaconscincia interpretativa. AtŽ o sŽculo XIX, as companhias
teatrais se gravitavam em torno da figura do primeiro ator e de toda
uma hierarquia alimentada pelo histrionismo do l’der. A
emergncia do teatro moderno Ž contempor‰nea da
descentraliza•‹o das prerrogativas interpretativas. ƒ para a
intera•‹o entre obra e intŽrprete que o trabalho interpretativo se
direciona241. N‹o h‡ uma interpreta•‹o can™nica, œnica e final de
um papel, de uma obra, mas uma negocia•‹o entre as marcas que a
obra registra e o processo criativo que transforma estas marcas em
um espet‡culo, a partir dos membros envolvidos no processo.
Na Universidade de Bras’lia, h‡ um projeto
interdepartamental Ð o projeto îpera Estœdio - que tem procurado
aplicar este pressupostos na encena•‹o de obras dram‡tico-
musicais. Dois espet‡culos foram realizados: As bodas de F’garo e
Carmen. O espa•o universit‡rio tem proporcionado a oportunidade
de se desenvolver uma rotina de atividades que dificilmente seriam
poss’veis em outros ambientes. Primeiramente, temos os cantores
desde o in’cio do processo criativo. Eles n‹o chegam ao fim de
tudo apenas com suas partes j‡ memorizadas. Com isto, refor•a-se
uma conscincia de grupo, fundamental para se come•ar a entender
241 Para este paradigma interacionista-interpretativista v. GADAMER 1998.
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concretamente a amplitude multidimensional de obras dram‡tico-
musicais.
As atividades preliminares de discuss‹o e compreens‹o das
linhas de atua•‹o e do conceito estŽtico da obra s‹o propostas eorientadas na correla•‹o entre dados musicais e dados cnicos. Ao
invŽs de se marcar deslocamentos em cena, acentua-se no cantor-
intŽrprete o conhecimento de seu desempenho, de onde ele est‡,
com quem interage - seja com outros personagens, orquestra ou
pœblico - como se reage ˆ sua linha de a•‹o, entre outros
esclarecimentos. Dessa forma, ele compreende a diversidade
material de referncias, m’dias e procedimentos aos quais sua
atua•‹o se vincula. Diante dessa multiplicidade de recursos, o
cantor poder‡ enriquecer sua interpreta•‹o, enfatizando a cada
momento aquilo que a cada momento precisa ser enfatizado.
Esta compreens‹o da amplitude de seu fazer em nenhum
momento se constitui em embara•o e nega•‹o da musicalidade da
obra. L. Treitler advertiu que h‡ o risco de se reduzir a obra
musical a seu contexto extra-musical ao n‹o se levar em conta o
espec’fico musical (TREITLER 2001:358). A advertncia de
Treitler n‹o Ž uma par‡frase de KIVY 1991. Como COOK 2000
postulou, a mœsica modifica-se em seus contextos de uso e
produ•‹o. E em situa•‹o intermidi‡tica que isso se torna
materialmente exposto. îperas s‹o justamente explora•›es dessa
possibilidade de contextos e referncias desdobradas, pois
apresentam acontecimentos que m’dias em separado n‹o tem a
mesma intensidade e abrangncia de representar (MOTA 2005). ƒ
necess‡rio ent‹o uma dramaturgia e uma sobreatua•‹o que parta
dessa tens‹o entre os limites particulares de cada m’dia para se
propor n‹o um medium de todos os outros, mas uma situa•‹o-
problema que se vale de materiais heterogneos e finitos que se
tornam um problema a realizar e a interpretar. Cada novo encontro
com o repert—rio oper’stico Ž uma renovada oportunidade para
explorar este campo interart’stico no qual a performance n‹o Ž
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somente um ve’culo, mais uma dica de bastidor, e sim fator de
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242 EINSTEIN 1971:167. KERMAN 1990:83 ÒO modo fundamentalde apresenta•‹o no drama Ž a a•‹o, e no drama musical o meio dearticula•‹o da imagina•‹o Ž a mœsica. Inevitavelmente, orelacionamento ou a intera•‹o entre as duas, a•‹o e mœsica, Ž o
problema central perene da dramaturgia oper’stica.Ó
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16- AN AMERICAN IN PARIS : CINEMA, MòSICA E TEATRO
Os musicais parecem n‹o ter sobrevivido ˆ cultura pop dessacralizadora p—s
anos 70. N‹o que tenham morrido, pois registram a constru•‹o de nossa mem—ria
f’lmica, na dif’cil conjun•‹o entre evento cinematogr‡fico e espet‡culo teatral.
PorŽm, a glamouriza•‹o da realidade que desenvolviam, rŽplica midi‡tica da
aura da obra de arte, n‹o encontra mais lugar em nosso mundo243. As contempor‰neas
rela•›es entre fic•‹o e realidade mergulhadas no niilismo praticante de sujeitos
fragmentados, s‹o incapazes de produzir transcendncia, mesmo atŽ uma
transcendncia que dure o tempo de um beijo. O que se exibe, o que se mostra guarda
as marcas de sua explicita•‹o. O olhar cada vez mais se condena ao atento e
minuncioso desnudamento do visto. Do mundo comemorado como sublime ao mundo
revelado e despojado pela violncia, percebemos que as imagens mudaram tanto
quanto os sujeitos que as vem. Mas o nosso hipernaturalismo, no entanto, n‹o seria
um desejo de ir mais alŽm do vis’vel?
Vamos nos acompanhar de An American in Paris244 para abrir uma brecha em
um espa•o alŽm de nossa recusa e desconfian•a a respeito de tudo que Ž memor‡vel e
efetivo. Tentar entender um musical pode ser um ant’doto para a universaliza•‹o de
um fasc’nio unificante pela anomia.
A grande cr’tica que se pode fazer a um musical Ž o efeito de artificialidade e
afeta•‹o que nos sobrevm em virtude da quebra de continuidade na representa•‹o
quando das partes de canto/dan•a. O sacrif’cio das partes n‹o musicais (di‡logos,
contracena•‹o, contexto de cena, faticidade dos conflitos entre os agentes) em prol doÔmomento art’sticoÕ do drama (a can•‹o, os nœmeros dan•ados) resultaria na m‡
243 Note-se, por exemplo, como os filmes musicais recentes como Dan•andono escuro(2000), De Lars Von Trier , Moulin Rouge (2001), de Baz Luhrman eChicago, de Rob Marshall (2002) valem-se de tanto de humor, ironia, par—dia, cr’ticae negativismo quanto de atores cantores n‹o virtuoses para n‹o circunscrever omundo representado ˆs habilidades dos intŽrpretes e, consequente, estreitamento dov’nculos dramatizados.
244 Filme de 1951,dirigido por Vincente Minnelli e estrelado por Genne Kelly,Leslie Caron, Oscar Levant e Georges GuŽtary. T’tulo brasileiro: Sinfonia de Paris,Videoarte, 113 min.
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estrutura•‹o do ritmo do fime. ƒ como se a fita fosse constru’da para o momento
especial que se destaca. Logo, todos os outros momentos n‹o possuem import‰ncia e
especificidade, a n‹oser figurarem como prepara•›es para as partes musicais. Desse
modo, um musical seria o amontoado de cenas de liga•‹o em volta de pontos de
ilumina•‹o centrais. Esta l—gica bin‡ria, mas una (pois trabalha com hierarquia e
antecipada valora•‹o), funciona como a simplifica•‹o de um processo dram‡tico.
Trata-se de administrar as puls›es para um cl’max. Para enfatizar eventos isolados,
negligencia-se a integra•‹o dram‡tica.
Desde j‡, vendo o todo emergente desta l—gica, facilmente identificamos as
diferen•as qualitativas que d‹o coes‹o ao que se representa. Esta economia expressiva
baseada no par de opostos prepara•‹o/ cl’max constitui fator de restri•‹o dos atos
recepcionais, pois trabalha com a cria•‹o de um mesmo regime de expectativas que
s‹o sempre cumpridas. Sabendo a pequena novidade entre as partes ,a recep•‹o se
confina a confirmar o j‡ sabido, a espera o que conhece, a sentir o j‡ sentido.
Foi assim que a era dos musicais entrou em est‡gio terminal. Filmes que
apenas reeditavam a exposi•‹o de habilidades n‹o conseguiam integrar atos
recepcionais diversificados. A convencionalidade da distribui•‹o de suas partes
acopladas a fun•›es fixas de recep•‹o determinou o esgotamento de uma concep•‹o
culin‡ria do musical (Brecht). A redu•‹o das partes n‹o musicais ˆ prepara•‹o para o
espetaculoso promoveu o fasc’nio pelo indiv’duo, a substitui•‹o do efeito pelo
artif’cio, a exacerbada subjetiva•‹o de uma obra que se define justamente por sua
multidimensioanalidade.
Note-se: Ž um tipo de racionalidade compositiva que produz tal expurgo da
multidimensionadalidade, ao preferir a normaliza•‹o do representado como forma de
proporcionar ao audit—rio o imediato encontro com um imagin‡rio comum e geral. A
redundante informa•‹o visual, o destaque das partes performativas, a fragilidadesituacional das partes n‹o musicais, a apressada disposi•‹o un’voca e central de um
agente dram‡tico, tudo, enfim, orienta o espectador a decodificar sem esfor•o o que
diante dele est‡.
Em An American in Paris as artes dialogam, fazendo um espet‡culo
intersemi—tico, interart’stico. O fato de um pintor (Jerry Mulligan), um pianista
(Adam Cook) e um cantor (Henri Baurel) participarem das cenas, integra a•›escotidianas das partes n‹o musicais ao extracotidiano das partes performativas.
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A abertura do filme, como num document‡rio, narra espirituosamente o
espa•o a ser visto, detendo-se na fonte que mais tarde ser‡ protagonista do ballet
final245. A narra•‹o inicial continua na apresenta•‹o das personagens, selecionando a
diferencia•‹o de referncias que orienta a atividade recepcional. Tanto que a
c‰mera/narrador corrige alguns 'equ’vocos' de apresenta•‹o, t—picos metareferenciais
que demonstram os limites entre fic•‹o e contexto de cena como forma de dilatar e
experimentar a tens‹o entre este desdobramento ficcional e sua recep•‹o. As
brincadeiras da c‰mera e as falas c™micas da narra•‹o exercitam a autopar—dia do
filme, refor•ando n‹o o encantamento, mas a construtividade do que se mostra. O riso
doa-nos o tempo de uma intera•‹o.
Desde o in’cio, ent‹o, o filme volta-se para a representa•‹o, para viabilizar
uma experincia de assistncia, para correlacionar a constru•‹o da cena com a
constru•‹o da recep•‹o do espet‡culo. O que Ž visto volta-se para quem observa. Mas,
para isso, necessita criar os meios, as condi•›es para que haja esta reflexibilidade.
Tudo que se coloca em cena depende de sua possibilita•‹o. Ao invŽs de meramente
reduzir o ato de representa•‹o ˆ irrup•‹o do modelo prepara•‹o/cl’max, a realidade do
que se exibe Ž a ultrapassagem das dificuldades de sua atualiza•‹o. Como ver o que se
v torna-se a meta dos atos da audincia.
Desse modo, o conceito de contexto de cena Ž estendido. O que se coloca
diante de n—s n‹o Ž a redund‰ncia do tema. O contexto de cena n‹o se restrinje a
exigncias de um modelo composicional prŽvio ali aplicado. O contexto de cena
aponta para seu horizonte, para algo que vincule o momento de sua ocorrncia a
eventos translocais. ƒ preciso que a recep•‹o interaja com o ritmo de representa•‹o
que perpassa eventos representados e os insera no todo do espet‡culo. A abertura do
filme amplia-se no desnudamento da ficcionalidade mesma da representa•‹o.
Sen‹o, vejamos: logo ap—s apresentado nosso trio de artistas, Adam Cook eHenri Baurel v‹o conversar. Mas ninguŽm conversa como eles, ninguŽm conversa
assim cotidianamente. O mote desde di‡logo Ž pergunta 'como ela Ž?', abrindo e
fechando a contracena•‹o entre os artistas. Dois homens falando de uma mulher. Um
contexto de cena, mas, ao mesmo tempo, uma situa•‹o para se focalizar a pr—pria
245 An American in Paris pode assim ser dividido em 8 partes subseqŸentes:1-apresenta•‹o multiperspectivada dos agentes dram‡ticos; 2-par—dia da tipifica•‹o doideal feminino; 3- did‡tica comicidade do sentido das palavras; 4- debate antil’ricosobre afetos; 5-show musical no Clube; 6- devaneio de Adam Cook; 7-festa em Pretoe branco; 8- del’rio multisensorial do ballet final.
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materialidade audiovisual. ƒ preciso mostrar este desdobramento metaficcional. E tal
desdobramento s— acontece e Ž mostrado a partir do momento que se ultrapasssa a
localidade do contexto de cena.
Dessa maneira, a normaliza•‹o do olhar Ž refutada. Pois o ilusionismo
referencial confude aquilo que v com aquilo que Ž realizado, mostrado, resumindo,
assim, o acontecido ao visto. Omite a interatividade que fudamenta a representa•‹o,
interatividade esta que n‹o existe s— na proposi•‹o de imagens para alguŽm, mas no
fato que a pr—pria representa•‹o prop›e imagens para alguŽm a partir de si mesma. Os
atos em cena duplicam atos extracena. O audit—rio, a fun•‹o recep•‹o, n‹o Ž um dado
exterior ˆ realiza•‹o. Esse olhar avaliador e discriminat—rio perpassa a cena, dando
acabamento ao que se representa. A cena mesma Ž este acompanhamento e co-
construtividade que se desloca em rela•‹o ao que se exibe. A cena Ž o espet‡culo de
sua interatividade.
Diante disso, Ž imprescind’vel perceber a heterogeneidade de n’veis que uma
cena faz irromper em sua performance. Duas pessoas conversando sobre uma mulher
s‹o dois espectadores de uma imagem que se concretiza no decorrer do di‡logo. Eles
est‹o vinculados n‹o somente entre si, mas ˆ figura para a qual remetem suas falas.
Durante a conversa a figura evocada mais e mais se especifica e especifica os
dialogantes. A dialogiza•‹o efetiva os nexos entre as figuras em cena e fora de cena.
A cena medeia a intera•‹o pluralizada em seus v‡rios nexos simult‰neos e extensivos.
A cena n‹o Ž a representa•‹o de algo: n‹o se cancela o meio para fazer irromper outra
ordem de realidade. A cena representa as condi•›es de sua inteligibilidade, de seus
suportes, a desdobrada e simult‰nea exibi•‹o dos homens, da mulher e da audincia
implicada nesta intera•‹o entre assimŽtricas presen•as.
No caso deste di‡logo, as palavras, em sua brincadeira n‹o designativa, os
trocadilhos, suspendendo toda exclusividade final’stica referencial, conjugam dizercom mostrar. A fala em um espet‡culo adquire um estatuto performativo. Uma fala
que n‹o informa, uma fala que forma a tens‹o entre o que Ž e o que se deseja
atravessa a cena. O pianista pergunta: 'Como ela Ž?' A c‰mera focaliza um espelho. A
partir deste, seis seqŸncias da mesma mulher em diversos aspectos s‹o projetadas.
Cada uma delas tem seu quadro, sua dan•a, seu cen‡rio vazado, como um devaneio.
Cada quadro comentado. Quadro e legenda correlacionam-se, n‹o se podendo saber se
Ž a palavra que comenta a seqŸncia ou se Ž a seqŸncia que ultrapassa a palavra. Nasucess‹o da mesma/outra mulher, as vozes dos dois amigos parecem ver o que dizem.
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Enquanto falam, n—s assistimos ao filme, s— os escutamos, tomada que est‡ a tela com
a sucess‹o da mulher ora ideal, excitante, t’mida, moderna aculturada, alegre.
Defrontamo-nos com duas perspectivas duplas: a presen•a eloqŸente de quem n‹o
vemos e a presen•a muda de quem dan•a, ambas as perspectivas interpretando-se
mutuamente sem se referir. O di‡logo das personagens amplia-se, prolifera. Outros
di‡logos s‹o vinculados: o di‡logo sem intera•‹o das personagens com a seqŸncia
das mulheres e o di‡logo da comprens‹o dos di‡logos em cena por parte da audincia.
H‡ uma descontinuidade fundamental entre a a•‹o da conversa e o devaneio. Na
conversa dialoga-se, mas o pr—prio bate-papo Ž comicamente a figura•‹o de uma
desconversa. Na seqŸncia de quadros, a dan•a da bailarina ironiza os tipos que s‹o
propostos pelos amigos. Os amigos mesmo divergem quanto ao ajuste entre a mulher
que eles adjetivam e a mulher efetiva. Ou seja, nem eles conversam, nem a mulher
dan•a. A comicidade comparece aqui como fator de suspens‹o do nexo entre a cena e
sua explica•‹o causal, para que desta forma fique claro e intelig’vel: o que se mostra,
o que coloca em cena diante de n—s s‹o figura•›es que possuem sua raz‹o de ser no
modo mesmo como s‹o dispostas. O fazer Ž a raz‹o do que eu vejo e compreendo. Eu
vejo o que Ž feito adquirindo sentido nessa realiza•‹o.
Retomando: a totalidade da cena possui duas partes distingŸ’veis - di‡logo e
dan•a. O di‡logo aqui n‹o Ž prepara•‹o, aperitivo para a parte performativa. Ambas
s‹o partes, desempenhos configurados em fun•‹o de interatividade. S‹o duas
maneiras de mostrar a mesma e diversificada produ•‹o de nexos. Eis o 'segredo' da
continuidade deste musical: radicaliza-se a descontinuidade mesma de obras
dram‡tico-musicais atravŽs da homologia entre desempenhos diferenciados,
englobados pela duplica•‹o das rela•›es entre cena e platŽia. Perspectivas que
atualizam os nexos recepcionais constituem-se como orienta•‹o da cena, efetiva•‹o
de uma continuidade n‹o do enredo,e sim da intera•‹o representada. A continuidadese faz atravŽs de atos descont’nuos que constr—em o presente de cena como presen•a
efetiva do audit—rio. Isso s— pode ser visto se demonstramos:
1- a complexidade dos atos personativos;
2-a variedade de n’veis de referncia de uma cena;
3- o acabamento recepcional do espet‡culo;
4- a representa•‹o em sua totalidade como horizonte de integra•‹o de atos e
suportes representacionais.
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O musical tem um papel basilar em quest›es representacionais. Quando h‡ a
can•‹o, deixa-se de promover nexos para se fundir pœblico e espet‡culo? S— se
imagina quando a performance configura-se atrativamente como nas partes n‹o
musicais? Se for assim, temos a mera invers‹o de valora•‹o (antes as partes
performativas eram as mais solicitadas. Depois de sua convencionalidade, vivemos o
dom’nio da prosa f’lmica) resolveria a quest‹o. Como podemos observar, n‹o se trata
de uma ÔessnciaÕ da diferen•a dessas partes, mas sim no modo como se realiza a
integra•‹o dram‡tica. A intera•‹o e configura•‹o das partes n‹o s‹o quest›es
meramente formais, decididas sem a considera•‹o de outros par‰metros que os
realizacionais. N‹o h‡ um circuito fechado entre composi•‹o e realiza•‹o.
A amplitude do espet‡culo dram‡tico-musical situa-se na amplitude de seu
processo criativo. O mistŽrio da produ•‹o da continuidade aponta para uma poŽtica da
recep•‹o. Continuidade para quem? Para a tela, n‹o h‡ continuidade, mas atos
descont’nuos que convergem para orientar o tempo e a experincia de um audit—rio.
Para quem v, a continuidade Ž produzida pouco a pouco, Ž uma tendncia. O car‡ter
assimŽtrico, diversificante, heterogneo, descont’nuo do que Ž proposto para o
espectador Ž que vai constituindo algo que n‹o existia e passa agora a existir - a
continuidade. Quando a can•›es se tornam mais importantes que as outras partes,
quando os clichs abundam e a redund‰ncia impera, a quest‹o n‹o Ž tanto de
continuidade, mas de simplifica•‹o, de elimina•‹o do descont’nuo. Estruturas em
anticlimax desenvolvem e devolvem o ritmo de representa•‹o.
Contra uma ditatura de efeitos e recursos unificantes, o musical vale-se de um
logos heterodoxo, no qual falas, can•›es e dan•as reivindicam que haja a
representa•‹o significativa de algo que se integre no limite de sua express‹o. Neste
limite, o diz’vel, o enunci‡vel n‹o Ž propriedade particular da fala. Movimentos,
luzes, sons, gestos, cores s‹o referncias que invalidam a normaliza•‹o do que semostra.
Dois homens conversam sobre uma mulher. O que ela Ž? Ao fim da cena, eles
pr—prios est‹o no mesmo quadro que projetava as v‡rias faces de Eva. Quanto mais a
atividade representacional Ž desempenhada e configurada nesse desempenho, mais os
distintos n’veis se efetivam e contracenam. A dialogiza•‹o generalizada contextualiza
a metaforiza•‹o realizada. O musical faz interagir n’veis representacionais diversos e
concomitantes com performances variadas de modo promover a contextualiza•‹o doque mostra. O heterodoxo viabiliza a comprees‹o. A coreografia da palavra ou o
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corpo eloquente que dan•a exibemm a perten•a de cada diferen•a ˆ integratividade
que os especifica. Nessa cena, das falas aos quadrod, a pluralidade de perspectivas e
meios impulsiona nexos e v’nculos bem caracteriz‡veis.
Tudo com muito humor. A comicidade presente em An American in Paris Ž
mais que um expediente de roteiro. Mais que piada, o humor aqui Ž sempre uma
interpreta•‹o de seu contexto de cena, sobrepondo fato e interpreta•‹o.
Ainda mais que a comicidade faculta-nos uma antil’rica, evitando a
indiferencia•‹o afetiva do espet‡culo. A comicidade distingue emo•›es representadas,
ao produzir o intervalo entre as respostas emocionais das personagens e o coment‡rio
mesmo destas respostas.
Com isso, o humor Ž perspectivador: intensifica a multiplanaridade de n’veis
do espet‡culo, a faticidade ficcional do que se exibe. A partir desse intervalo sempre
retomado por novas interven•›es c™micas ou paracoment‡rios, desenvolve-se uma
semiose ilimitada atravŽs da qual uma referncia atribui uma revis‹o de contexto para
outra, e assim indefinidamente. Dessa maneira, na medida em que h‡ a sucess‹o de
cenas e a sucess‹o da comicidade, nenhuma referncia Ž absoluta, mas remete-se ao
contexto de reapropria•‹o que a sobredetermina. A comicidade vai orientando a
recep•‹o para estruturas de longo alcance do espet‡culo. Logo, a comicidade revela a
ficcionalidade mesma do que se encena, a materialidade da representa•‹o.
Quando os trs artistas se encontram, fechando a primeira parte de
apresenta•‹o, eles contracenam em uma brincadeira musical satirizando a valsa. O
aspecto did‡tico Ž salientando, enfatizando a paidŽia referencial do humor. Como
depois ser‡ utilizado na cena com as crian•as - quando Jerry Mulligan ensina ingls
para elas - humor e didatismo estabelecem a participa•‹o das personagens em um
evento dentro do evento onde interagem. Eles se excedem, v‹o alŽm de umreconhecimento, de um aperto de m‹os. Eles cantam uma valsa, falam da valsa na
can•‹o, dan•am o estere—tipo da valsa, performam e parodiam homens e mulheres
que valsam, valsam com os que est‹o em volta deles - o audit—rio sempre presente.
A valsa, pois, j‡ n‹o Ž a valsa, diante de tantas utiliza•›es e desfigura•›es. A
varia•‹o da aplicabilidade da valsa tudo envolve e todos participam. A cena Ž
constitu’da por varia•›es em torno da valsa. Assim como antes perguntaram o que Ž
uma mulher, agora interrogam, dan•ando, o que Ž uma valsa. S— se pode saberfazendo. A performance Ž uma compreens‹o efetivada na intera•‹o entre a meta de
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conhecer e os part’cipes. Mas a intera•‹o suplanta a meta, e o espet‡culo Ž a exibi•‹o
dessa supera•‹o. Espetacular Ž este novo saber, atual, impresso no decorrer da
contracena•‹o. Os agentes dram‡ticos performam a inteligibilidade de nexos que se
ampliam, diversificam e se contextualizam.
O saber advŽm do envolvimento, do v’nculo. Brincar com algo Ž promover o
deslocamento da coisa para situa•›es espec’ficas, Ž retirar a coisa de sua invari‰ncia
genŽrica. Esse manuseio atento ao que se joga retoma a vig’lia atenta da platŽia em
rela•‹o ˆ tela. Fazendo varia•›es sobre a valsa para os que est‹o em cena, dan•ando
uma valsa com essa platŽia, vincula-se o desempenho com o ato de participar, paidŽia
modelar para quem est‡ fora de cena. O que se mostra adquire sua volumŽtrica e
ampla dimens‹o atravŽs dos nexos exibidos e performados. O humor devolve-nos o
horizonte variacional da coisa. O espet‡culo, diversificando o que mostra, conecta a
audincia com o mundo representado. O que era previamente dado ou existente
transforma-se pelo que Ž atualmente exibido.
Qual Ž a matŽria disso que vemos ent‹o se a todo instante o musical exerce
uma ininterrupta atividade de descontinuidade, a comicidade diversifica qualquer
const‰ncia referencial, a representa•‹o revela-se em seus suportes participativos e os
contextos de cena n‹o se reduzem ao seu tema ou esquema narrativo ?
O n‹o factual n‹o necessariamente Ž o sem realidade. O espec’fico realismo
de An American in Paris exige que se considere isso, que se reconsidere as exigncias
de continuidade. O realismo de sua representa•‹o Ž o objetivo do que se exibe.
A partir da segunda metade do filme, nos reveses do caso entre Jerry Mulligan
e Lise Bouvier, Ž que podemos compreender melhor este realismo dram‡tico-musical.
Jerry, feliz com seu encontro de logo mais a noite com Lise, vai para o quarto
do ranzinza e ocupado pianista. AlguŽm feliz com ser amor procura expressar seussentimentos para alguŽm determinado a continuar a ensaiar seu concerto. Na mesma
cena, a assimetria entre os part’cipes. Perpectivas divergentes efetivam o acontecer da
cena. Jerry n‹o s— tem de mostrar sua felicidade como tambŽm fazer que Adam
participe dela.
A cena, pois, Ž um debate, uma disputa de performances, um duelo entre a
insistncia de Jerry Mullygan e a resistncia de Adam Cook. E duela-se. Ou seja,
Adam participa, mesmo que resistindo, e sua nega•‹o vai perfazendo umassentimento. Sua recusa em interagir, seus atos antirepresentacionais s‹o integrados
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ao espet‡culo, s‹o o espet‡culo mesmo exibindo-se atŽ sem seus limites. As can•›es
ao piano e as dan•as ocupam o heterogneo espa•o desse debate. A cena Ž a figura•‹o
de uma intera•‹o ˆ avessas. Adam toca piano para o outro dan•ar, Ž ele quem faz as
rŽplicas sarc‡stivas para as falas apaixonadas e nem tanto de Jerry. A ambivalncia
est‡ tambŽm no que ama, divertindo-se com seus sentimentos, realizando-sos
caricaturalmente. O apaixonado feliz vira um bobo, par—dia mesmo da
emocionalidade dos musicais.
Para alŽm da simples oposi•‹o entre o alegre e o rabugento, modelos de
participa•‹o ou n‹o em eventos, a afetividade do contexto de cena Ž desprovida de seu
magnetismo e afeta•‹o. A transforma•‹o dos sentimentos em espet‡culo passa pela
correla•‹o entre modalidades de intera•‹o e atos personativos.
Um apaixonado que brinca com suas emo•›es e um amigo que reluta, mas
acompanha o show do colega inserem a atratividade da performance em um contexto
n‹o reduzido a unificar-se em prol de uma patŽtica marca•‹o afetiva. O entrechoque
de perspectivas enfatiza uma reciprocidade que desloca do centro da representa•‹o a
manuten•‹o e celebra•‹o de um pathos extremo. Do deslumbramento com o amor
passamos para o deslumbramento com a fic•‹o realizada em cena, com o desempenho
de nexos.
Um perigo ronda o musical: o gradualismo, a cont’nua passagem de um
contexto de cena est‡vel para um menos naturalizado.
An American in Paris estrutura-se como um pr—logo ao ballet final,
pantomima que recupera as tens›es entre a realiza•‹o ou n‹o do amor de Jerry
Mulligan (hom—logo do devaneio de Adam Cook com sua orquestra particular, como
platŽia dele mesmo). Jerry, em seu del’rio crom‡tico passando pelo impressionismo
de Tolouse Lautrec, se v submetido ˆ busca de sua amada por entre tipos, amea•as,Žpocas, fic•›es dentro de fic•›es, frente ˆ fonte dos apaixonados da abertura do filme.
Os dezessete minutos do ballet seriam um estranho cl’max do filme. Sua
extens‹o modifica todas as dura•›es e expectativas atŽ aqui produzidas.
Misto ent‹o de climax e anticlimax do espet‡culo, este ballet fant‡stico Ž a
interpreta•‹o e radicaliza•‹o de tudo que o filme realizou, com as mesmas e mais
intensas estratŽgias c™micas e did‡ticas. A sobreposi•‹o de momentos, ritmos,
agentes, materiais Ž um problema a resolver para qualquer ideal de continuidade. Ofilme Ž rasgado nesse ballet , jorrando em profus‹o met‡foras dentro de met‡foras, um
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movimento de vertigem que em grande parte abate qualquer tentativa de se unificar o
que se mostra a cada momento tanto com a seqŸncia posterior quanto com a parte
anterior do filme. Somos arremessados completamente em outro mundo onde suas
dimens›es se alteram drasticamente a cada passo de Jerry Mulligan. O espet‡cuo
toma conta do sonhador, ultrapassando marca•›es e referncia atŽ aqui produzidas. O
americano est‡ em Paris, numa Paris ao mesmo tempo perigosa e atrativa, um jogo
onde irresistivelmente nos entregamos sem metas e programas.
Este filme dentro do filme, del’rio multisensorial a partir de um desenho,
vindo ap—s uma festa em preto e branco, coloca em quest‹o a articula•‹o entre as
partes de uma obra dram‡tico-musical, a unidade mesma de um espet‡culo
audiovisual. A integra•‹o dram‡tica exige uma flexibilidade que n‹o se defina em
termos de convencionalidade dram‡tica. O ballet final de An American in Paris apela
para a comprens‹o dos limites e possibilidades de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o
de fi•›es audiovisuais. Uma obra dram‡tico-musical parece sempre estar rondando os
limites de express‹o e inteligibilidade.
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17- DRAMATURGIA, COLABORA‚ÌO E APRENDIZAGEM: UM
ENCONTRO COM HUGO RODAS
O que motiva as considera•›es que aqui se seguem encontra-se no fato de a
organiza•‹o desses dois semin‡rios sobre o teatro no Distrito Federal tenha partido da
iniciativa de professor e aluno do Departamento de Artes Cnicas da UnB. Mais que o
ponto de origem, quero fazer notar o v’nculo entre a produ•‹o cnica brasiliense e a
academia. Como se sabe, o Departamento de Artes Cnicas foi constitu’do a partir da
incorpora•‹o de artistas da cidade e o espa•o acadmico convida e abriga as diversas
manifesta•›es teatrais da cidade para refletir sobre sua hist—ria e seus problemas.
Tal v’nculo, no entanto, n‹o se faz sem interferncias, sobreposi•›es e
confronta•›es. J‡ de longa data as rela•›es entre arte e academia s‹o problem‡ticas e,
em Bras’lia, uma espec’fica faceta dessas rela•›es ser‡ bem evidenciada: ao mesmo
tempo em que tempo h‡ uma produ•‹o cnica cada vez mais diversificada e em ritmo
de profissionaliza•‹o, temos uma solidifica•‹o do curso superior em Artes Cnicas,
com espa•o f’sico renovado, maior qualifica•‹o de seus docentes e abertura de p—s-
gradua•‹o na ‡rea. Um paradigma que une realiza•‹o com pesquisa se apresenta
como horizonte convergente de pr‡ticas e estŽticas teatrais. Eis, pois, o artista
pesquisador.
Dentro dessa espec’fica faceta, onde as coisas se tornam mais claras e
mensur‡veis, estere—tipos e ressentimentos sem fundamento carecem de continuidade.
O tr‰nsito de professores-artistas nas manifesta•›es teatrais da cidade tem assegurado
uma circula•‹o e mœtua apropria•‹o de referncias as quais favorecem, mesmo que
muitas vezes imperceptivelmente, movimentos paralelos entre as variadas pr‡ticas
teatrais em Bras’lia. De fato, os campos de interse•‹o n‹o s‹o do tamanho das figuras
que se aproximam. Mas Ž fundamental perceber que antinomias estreitas outotalmente excludentes entre as diversas manifesta•›es teatrais na cidade s‹o casos de
dif’cil identifica•‹o. Na verdade, todo mundo em algum momento trabalha ou j‡
trabalhou com todo mundo e, com isso, mesmo que n‹o se conhe•a os pontos do
encadeamento, j‡ se est‡ dentro dele. ƒ uma estranha ordem de assimila•‹o,
fortalecimento e sobrevivncia do fazer teatral em Bras’lia, uma tradi•‹o que se
articula, se enriquece e se mantŽm atravŽs das transforma•›es em uma situa•‹o de
constante contato.
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Para expandir esse argumento ou mesmo refut‡-lo, pe•o permiss‹o de contar
uma hist—ria, ou refletir sobre o encontro que venho tendo com Hugo Rodas. Creio
que ninguŽm mais que ele para exemplificar esse perfil de transforma•‹o em contato.
Sua presen•a em Bras’lia tem ajudado a definir trajet—rias de atua•‹o e produ•‹o do
pr—prio teatro na cidade. Uma hist—ria do teatro em Bras’lia passa por Hugo Rodas
n‹o somente como homenagem ˆ sua pessoa como tambŽm por meio da compreens‹o
de sua ‡gil presen•a, capaz de exibir caracter’sticas e orienta•›es que se tornaram
comuns a outros artistas.
Parece que nele e a partir dele, motiva•›es plurais do fazer art’stico
encontraram um ponto de partida e uma pauta de realiza•›es. Contradi•›es, excessos,
extremos de um lado e racionalidade, percep•‹o e aprendizagem de outro, um rol de
intui•›es que demanda uma atenta observa•‹o Ð tudo signos de uma deliberada
persegui•‹o por algo maior e melhor Ð comp›em uma imagem ampla e estimulante
que Hugo Rodas tem delineado n‹o s— para si. E Ž sobre essa imagem ampla e
estimulante que quero me deter como forma de contribuir para a discuss‹o sobre as
estŽticas teatrais em Bras’lia e tambŽm como uma homenagem.
Antes, um pouco de conhecimento sobre o parceiro menos ilustre desse
encontro - eu. Com a aposentadoria em massa de docentes universit‡rios em 1994,
tivemos na Universidade de Bras’lia umas poucas vagas de reposi•‹o em 1995,
atreladas ˆ abertura dos cursos noturnos. Foi nesse per’odo que entrei no
Departamento de Artes Cnicas, vindo das letras, uma estranha presen•a digna de
desconfian•a por quem j‡ h‡ algum tempo trabalhava na ‡rea. Logo percebi que meu
papel era b‡sico para forma•‹o dos profissionais em Artes Cnicas: desenvolver a
intera•‹o com textos. Havia sempre uma dificuldade com a leitura das obras
dram‡ticas, dificuldade essa em grande parte por haver uma massiva metodologia
adaptada da leitura de obras liter‡rias. Com ferramentas da literatura, o acesso ˆcarpintaria teatral, ao processo criativo implicado nos textos, era bloqueado. Dentro
de um sŽculo (sŽculo XX) onde foram geradas posi•›es antag™nicas e confusas entre
texto e espet‡culo, o curso de ÔLiteratura dram‡ticaÕ poderia funcionar como
reprodu•‹o dos bloqueios de leitura ou reprodu•‹o de posturas unilaterais.
Como me iniciava dentro dessas quest›es, resolvi partir de algumas posturas
que se tornaram pressupostos importantes para que a reprodu•‹o de tais bloqueios n‹o
fosse efetivada. Inicialmente, fiz quest‹o de privilegiar a bibliografia prim‡ria emrela•‹o ˆ secund‡ria. TragŽdias gregas, Shakespeare, Brecht possuem uma tradi•‹o de
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leitura e interpreta•‹o que, muitas vezes, sobrep›e-se aos pr—prios textos. Os manuais
e as historiografias repetem incansavelmente determinadas avalia•›es que alcan•am
status de verdade, substituindo a intera•‹o mesma com as obras. Desse modo, ler
torna-se ratificar o j‡ lido, ou o pior, as generaliza•›es de corredor e boteco. Ao
contr‡rio, o incentivo ao contato direto com a p‡gina e todas as dificuldades inerentes
a este contato foram determinantes tanto para minha maior aproxima•‹o com a
enormidade de obras do repert—rio da tradi•‹o teatral, quanto para o aprimoramento
da percep•‹o estŽtica dos alunos frente a estes textos. Ao invŽs de perpetuar
estere—tipos sobre obras e autores ou informa•›es cronol—gicas e biogr‡ficas, houve o
enfrentamento das dificuldades de leitura de textos sobrecarregados de interpreta•›es.
Pois, quanto mais um texto cronologicamente se afastava do momento presente do
leitor, mais um processo de idealiza•‹o das obras se estabelecia, mais e mais a leitura
dissolvia-se em abstra•›es e acumula•‹o de nomes e datas. Tudo que escapasse ˆ
atualidade do leitor era normalizado nas brumas de valores absolutos e inef‡veis.
Preso a um presentismo intermitente, este leitor sonegava qualquer altera•‹o da
invari‰ncia que atribu’a para as obras do passado. E o passado continuava passado e
inacess’vel dentro desta clausura do sujeito ensimesmado. Enfim, o ato de leitura era a
confirma•‹o do sujeito em sua esfera de atua•‹o. Assim agindo, o leitor n‹o se
corrigia, n‹o apreendia realidades alŽm da que j‡ possu’a.
Por isso, logo me pareceu uma estratŽgia b‡sica para as aulas de Ôliteratura
dram‡ticaÕ essa desconstru•‹o da pretensa homogeneidade do ato da leitura, essa
seguran•a do leitor acostumado a repetir esquemas e informa•›es. Pois, na verdade,
de posse desses esquemas, n‹o ele precisava ler. Era um leitor sem leitura, t‹o virtual
quanto seu conhecimento das obras ˆs quais ele se referia246.
Pensando sem refletir, s‹o tantos textos, tantos procedimentos nesses textos
que a melhor maneira de n‹o enfrentar a multiplicidade de tarefas impl’citas nessasobras Ž emoldur‡-las na eternidade, no vazio dos estere—tipos.
Houve muita resistncia em rela•‹o a isso. Quando as pessoas tiveram de ler e
analisar as obras, interagir com os textos, a coisa foi ficando dif’cil. A maior
reclama•‹o era a necessidade de contexto, de idŽias que gerassem e notabilizassem os
textos. Nesse momento, compreendi uma estranha tendncia no campo das Artes
Cnicas: a carncia por uma legitimidade pr—pria, a necessidade de uma legitimidade
246 Sobre a subjetividade do ato da leitura, ver segunda parte deste livro.
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bastarda, vinda de outro lugar, de outra tradi•‹o de pensamento. De um lado vinham
bravatas contra toda e qualquer forma de justificativa intelectual do que realizavam.
De outro, a compuls‹o por suprir a baixa estima intelectual com apressada
apropria•‹o de mŽtodos e concep•›es de outras disciplinas. O pr—prio curso
repercutira isso ao ser organizado em uma dicotomia entre matŽrias pr‡ticas e outras
te—ricas.
Ent‹o sempre era preciso enfiar algum ismo na hora de discorrer sobre os
textos, como forma de tornar palat‡vel o enfrentamento da p‡gina impressa.
O vocabul‡rio mesmo dos alunos (de fato, vocabul‡rio que possu’am, que
reproduziam...) era eivado de Ôser teatralÕ, ÔessnciaÕ, toda uma cultura
pseudofilos—fica e informal que precisava sempre engrandecer o que era feito. E a
paix‹o por essa cultura e pelo contexto e pelas idŽias era tanta que nem tinham tempo
de ler o texto do dia... E essncia Ž coisa de perfume!
Assim, era muitas vezes um aborrecimento para alguns detectar determinadas
marcas, distin•›es, padr›es que o texto apresentava. A divis‹o das partes da obra,
suas diferen•as e interrelacionamentos, afirmativas e contextos de cena, imagens que
retornavam, metareferncias, descontinuidade, continuidade, montagem, constru•‹o
de personagens por contracena•‹o, enfim, muitos procedimentos tomavam o tempo
dos encontros em sala e o tempo da minha vida fora da sala de aula.
Pois era brutal: logo que entrei tinha de lecionar nas manh‹s teatro grego e
moderno e, ˆ noite, SŽculo de ouro espanhol e Shakespeare. Primeira dificuldade: as
tradu•›es. AlŽm de velhas, elas repousavam sobre uma concep•‹o monumentalizante
desses textos. Quando mais antigo, mais cl‡ssico, e mais o vocabul‡rio utilizado era
artificial, parnasiano, impedindo que se vislumbrasse a din‰mica cnica desses textos.
Ora, se esses textos que tenho em m‹os s‹o os melhores, os modelos, os cl‡ssicos, e
eu n‹o entendendo nada, e n‹o servem para ser performados, mas apenas lidos, ent‹ose refor•a o fosso entre o meu presente e o passado, entre texto e cena, fato j‡
encontrado na subjetividade da leitura que reproduz estere—tipos. Realmente era
dif’cil querer mostrar a qualidade dos textos a partir dos textos mesmos, a partir de
tradu•›es que enfatizavam os estere—tipos contra os quais uma melhor intera•‹o da
leitura poderia superar.
Ao mesmo tempo, a pr‡tica de lidar com textos de v‡rias Žpocas e estabelecer
as conex›es entre esses textos foi de fundamental import‰ncia para ultrapassar aminha posi•‹o em sala de aula como um leitor privilegiado, a 'autoridade' sobre as
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obras. Pois a integra•‹o dos textos na tradi•‹o teatral, preconizando a incessante
apropria•‹o e transforma•‹o de procedimentos e realiza•›es, descentrou a pr‡tica de
leitura de uma dimens‹o meramente constatativa, descritiva, ao mesmo tempo em que
atacou os estere—tipos de interpreta•‹o relacionados com as produ•›es mais pr—ximas
do tempo do leitor.
Dentro de um eixo de tempo mais flu’do, o leitor atua tanto sobre sua Žpoca
quanto sobre o passado, ao reconhecer as limita•›es mesmas de sua atividade
cognitiva. E com isso o ato de leitura e o conhecimento adquirido com esse ato n‹o se
restringem ao manuseio de textos: Ž uma atividade interpretativa, uma habilidade
utilizada em outras situa•›es que a leitura.
Essa dimens‹o mais ampla da leitura defrontava-se com os h‡bitos discentes.
Ao ler, havia a premente necessidade de indexar outra coisa ao lido, seja informa•›es
genŽricas, seja idŽias profundas legitimadoras do escrito. A estratŽgia mais comum
era ler para explicar o texto a partir de temas. Todo texto seria a atualiza•‹o desses
temas fixos, uma repeti•‹o de conteœdos que transcendem tempo e lugar. E era assim
que se lia os textos: para encontrar os temas, os conteœdos e discutir esses temas e
conteœdos. O teatro era pr‡ isso, para apresentar e provocar a discuss‹o desses temas.
Ent‹o, discutir esses temas em aula era como fazer j‡ teatro. N‹o havia diferen•a.
Todo mundo quer discutir, todo mundo quer falar. Essa seria a fun•‹o do teatro:
apresentar idŽias profundas sobre as coisas, uma percep•‹o melhor e mais autntica
da realidade.
As pessoas passam a vida sem conhecer a verdade. Da’ vem alguŽm e diz pra
elas como as coisas s‹o. E tudo melhora. Ser‡ que melhora mesmo ?
Era incr’vel como certas concep•›es de leitura e certas posturas andavam
juntas. Estere—tipos de comportamento duplicavam estere—tipos de pensamento. O
teatro como uma utopia sem restri•›es, como um outro lugar alŽm deste, umatranscendncia vazia ao mesmo tempo fascinante Ð pois produzia uma liberta•‹o e
uma energia incontrol‡veis - e frustrante, j‡ que precisava se renovar constantemente
pela elimina•‹o de todas os empecilhos e dificuldades, essa concep•‹o nivelava todos
os atos, impedia qualquer continuidade e conex‹o alŽm do gozo imediato.
A p‡gina, sempre ela, ali diante de seus olhos, era um testemunho real e
intranspon’vel de algo outro irredut’vel a essa l—gica de nega•‹o e autosuficincia.
A voz de alguŽm que n‹o Ž voc, as muitas vozes que escapam a violncia deuma œnica voz. As palavras que n‹o s‹o suas, dispostas de um modo que n‹o Ž o seu.
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Mas sempre era preciso explicar, enquanto o mais necess‡rio era tentar ouvir,
mostrar na obra n‹o o feito, mas o fazer. Mesmo atŽ que venha alguŽm e diga que o
que voc diz sobre um texto Ž o texto mesmo, Ž o meu texto e n‹o existe nada alŽm
disso...
Com o passar do tempo, o cont’nuo contato com os textos dram‡ticos foram
me impulsionando a diversificar minhas atividades. Inicialmente, escrevi sobre as
obras lidas em sala de aula247. Em sincronia com isso passei a escrever textos
teatrais248. Essa natureza desdobrada entre o analista e o criador muitas vezes n‹o era
t‹o desdobrada assim. Nos primeiros textos havia muito do pensador, do literato, do
escritor e n‹o do dramaturgo a servi•o da cena. ƒ um ran•o que carrego, uma certa
rela•‹o com a palavra, com a habilidade em v-la fora de uma comunica•‹o cotidiana,
de seu prolongado uso informativo. Pois, desde meu trabalho como poeta, o que me
cativava era a tentativa de dominar,violentar, conhecer a l’ngua, e n‹o dizer coisas.
Pegar a l’ngua e revira-la, descobrindo diferenciados modos de me valer dela era para
mim uma maneira de n‹o chegar ˆ œltima palavra, ˆ palavra definitiva, que me faria
calar, que tornaria inœtil a minha presen•a. Mas minha atividade de descobrir e
violentar a l’ngua n‹o se movia na dire•‹o da atomiza•‹o da palavra, de sua
desconstru•‹o, como no Concretismo. Meu alvo era o dito, a frase, a senten•a, um
sentido de constru•‹o colocado em primeiro plano frente ao referente das palavras.
Em meu caso, a escritura teatral veio corrigir meu percurso de esteta de escombros
anticomunicacionais.
O primeiro texto meu encenado foi O filho da costureira, um poema
dram‡tico encomendado pelo ent‹o aluno William Ferreira para seu projeto de
diploma•‹o. Apenas escrevi o texto. Discuti o texto com o William uma vez s—.
O processo criativo do William era bem pessoal e experimental. Ele vinha de
uma tradi•‹o mais corporal, e o manuseio com a palavra, principalmente uma palavraem situa•‹o extrema como a do texto, foi um grande desafio, no que se refere ˆ op•‹o
ou n‹o de se prover alguma inteligibilidade para a cena, j‡ que o texto determinava-se
247 Reuni estes textos no livro A imagina•‹o dram‡ticaBras’lia, Texto&imagem,1998.
248 Reuni parte desses textos teatrais no livro A idade daTerra, Bras’lia, Texto&Imagem, 1997. Reuni todos os textos textosteatrais que atŽ ent‹o escrevi no livro ainda inŽdito A tr‡gica
virtude. Hoje todos est‹o disponibilizados no sitewww.marcusmota.com.br.
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em um hermetismo poŽtico. Para mim que apenas escrevi, entre a sŽrie impactante de
imagens produzidas pela performance de William Ferreira, ficou a cena real de um
homem na platŽia o qual, em um dos dias de apresenta•‹o da pe•a, n‹o parava de
chorar. E a sensa•‹o de ouvir e ver as palavras alŽm do papel tendo um efeito sobre
alguŽm, eu ali, n‹o s— como espectador, mas como observador, me impulsionou a
escrever mais e mais, febrilmente. Eu queria aprender aquilo, queria saber mais sobre
essa experincia.
E, em menos de um ano havia escrito 12 textos curtos para a cena, o que junto
com alguns textos poŽticos, constituiu meu primeiro livro publicado, A idade da terra.
Logo depois, junto com alunos que formavam o grupo Quinta Cnicas ( Guto ,
Suail, Magno, Cristiane, Cl‡udia, Let’cia, Marcelo), come•amos a fazer uma pesquisa
sobre comicidade no cinema norte-americano dos anos 20-30.
Assistimos e analisamos filmes de Buster Keaton, Chaplin, Gordo e o Magro,
H. Loyd, entre outros, e, ap—s as discuss›es sobre cenas e personagens, fui escrevendo
o roteiro tendo em mente os atores espec’ficos para cada papel. Depois do roteiro
pronto, a profa. Br’gida Miranda orientou e desenvolveu a encena•‹o e interpreta•‹o
junto com os alunos. Algumas vezes fui aos ensaios, mas procurava n‹o me
posicionar como o guardi‹o das palavras escritas. Mas tambŽm n‹o tinha muito o que
fazer sen‹o confirmar ou n‹o algumas solu•›es de cena. O espet‡culo Aluga-se
estreou no anfiteatro 09 na UnB, depois foi para o interior de S‹o Paulo e retornou a
Bras’lia e se apresentou em v‡rios lugares. A melhor apresenta•‹o e a que me
entusiasmou como autor foi a durante um congresso de Psicodramistas na sala Villa
Lobos. Fazer aquela imensa sala rir foi uma das maiores alegrias que tive.
Neste ’nterim, comecei a ter maior contato com Hugo Rodas. Fui como
expectador a v‡rias de suas obras. Ele foi ver a pe•a Aluga-se logo em um dia ruim e
n‹o gostou. A sua rea•‹o e coment‡rio foram breves. Na minha cabe•a ficou essareprova•‹o. Ele nem gastou muito tempo falando do que achou ser uma bobagem.
Realmente, estava ruim nesse dia, uma comŽdia sem for•a. Quando da viagem para o
interior de S‹o Paulo, eu havia feito uma lista de sugest›es que tenho atŽ hoje escrita.
Eram coisas que eu tinha dito, mas sem muita autoridade.
Ap—s as rea•›es negativas, a Br’gida mexeu justamente em grande parte
daqueles pontos da lista. E a pe•a ficou —tima. Bom para os que viram.
Essas coisas foram ficando em minha cabe•a, essa sensa•‹o de que o trabalhoda escritura era uma pequena parte de algo maior, mas que, por minha disposi•‹o ou
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’ndole, eu me abstinha de avan•ar, de sair dessa pequena parte. Eu percebia
interpreta•›es e atos que tornavam improdutivo o processo de encena•‹o. Entretanto
resistia, preferia a c™moda situa•‹o de n‹o interferir mais veemente no estava sendo
realizado, a n‹o ser quando era solicitado. Na verdade, o que eu tinha era um modelo
da imagem do escritor em minha mente, aquela imagem da isolada criatura aferrada
ao seu trabalho solit‡rio. E a sa’da desse gabinete me dava uma sensa•‹o de perda, de
esvaziamento de minha presen•a. O que me era aborrecido estava na tal da repeti•‹o,
na infind‡vel atividade de sempre fazer as mesmas coisas sempre outra vez. Isso para
mim era o fim249. Eu calculava em silncio que, com o tempo investido nos ensaios,
para cada ensaio, eu escreveria tantas e tantas p‡ginas. Eu idealmente me colocava no
in’cio e no fim do processo criativo Ð no roteiro e na apresenta•‹o. E, suspenso entre
essas duas margens, nem conseguia obter maior rendimento dos textos que escrevia,
nem nos espet‡culos que eram realizados. Pois essa suspens‹o n‹o conseguia dar um
senso de perten•a ˆquilo tudo.
Este confuso e hesitante autor com o passar do tempo foi sendo solicitado a
participar mais veementemente do fazer teatral. Com a proximidade do centen‡rio de
nascimento de Federico Garcia Lorca (1898-1936), tanto Hugo Rodas quanto eu nos
envolvemos em atividade paralelas de homenagem ao dramaturgo espanhol. Entre
meados de 1997 e in’cio de 1998 eu traduzi para a Editora UnB as pe•as A Casa de
Bernalda Alba, Yerma e Assim que Passarem Cinco Anos e conferncias de Garcia
Lorca, bem como textos curtos dele, pouco conhecidos. O texto de Yerma foi
utilizado em projeto de Diploma•‹o de Gisele Santos, a qual se tornou minha
assistente de tradu•‹o. Hugo Rodas valeu-se de minha tradu•‹o de Assim que
passarem cinco anos para turma de Interpreta•‹o 04 de 1998.
Essa intensa atividade de tradu•‹o, alŽm da Les‹o por esfor•o repetitivo
(Dort) em minha m‹o direita, me mostrou que uma das melhores maneiras de seaprender dramaturgia Ž traduzir textos teatrais. Eu j‡ lidava com textos
demasiadamente ÔdespragmatizadosÕ em sala de aula, com suas marcas performativas
quase que eliminadas, e a tradu•‹o me possibilitou o acesso a procedimentos
dramatœrgicos mais espec’ficos. Ainda mais que eu tinha a oportunidade de ver
encenados os textos traduzidos.
249 Anos depois, perguntei ao Hugo se ele n‹o se cansava da repeti•‹o nosensaios(em l’ngua francesa, ÔensaioÕ Ž ÔrepetitionÕ. Ele me respondeu: ÒN‹o me canso.Isso Ž meu trabalho. Estou trabalhando.Ó
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AlŽm dos procedimentos, comecei a identificar uma coisa que faltava em
minha escritura para cena: f™lego. Meus textos eram pequenos, intensos, breves,
refugiados e ilhados apenas na palavra e na minha determina•‹o antiga de encontrar
um universo referencial outro que o mundo em meu derredor. Com as tradu•›es, pude
ver largas estruturas que ultrapassavam a ocorrncia do agora, do momento imediato
de sua elocu•‹o.
Ainda, Lorca era um poeta que se tornou dramaturgo. Possu’a um arsenal de
procedimentos liter‡rios, de manipula•‹o da palavra. Sua poesia apropriava-se de
procedimentos de desorienta•‹o do leitor atravŽs da met‡fora de met‡fora250. Esse
afastamento da normalidade comunicativa, esse hermetismo era atravessado pela
musicalidade, pela defini•‹o aural de seu verso. Desde suas pe•as de maturidade essa
luta entre o poeta e o dramaturgo se fez presente. Odramaturgo em Lorca corrigiu o
seqŸestro do poeta das garras do festim in—cuo dos vanguardismos. Tanto que Assim
que passarem cinco anos Ž uma par—dia do pr—prio Lorca como d‰ndi e artif’cio.
Ent‹o Lorca me fazia aproximar de Hugo Rodas, o mesmo Lorca que tanto foi
determinante para a paix‹o mesma de Hugo pelo teatro, e pelo teatro universit‡rio,
visto que Lorca, como se sabe, havia fundado um grupo, La Barraca, que percorria a
Espanha representando cl‡ssicos e pe•as modernas251.
Para um espet‡culo- homenagem a Lorca no Espa•o Cultural Renato Russo,na
508 sul, Hugo convocou v‡rias pessoas, incluindo a mim. O grupo era enorme e
confuso. Havia muita indefini•‹o e intempestividade. Ao mesmo tempo, os trabalhos
de tradu•‹o precisavam ser conclu’dos a tempo para publica•‹o pela editora UnB,
publica•‹o que saiu apenas em 2000. Mas saiu. Com o natural esvaziamento de minha
presen•a, aquela primeira parceira entre mim e Hugo n‹o foi algo muito satisfat—rio.
ÒN‹o confio nos te—ricos, n‹o confio!Ó foi o que ele me disse com seus olhos em
mim. Eu n‹o tinha tempo para explicar e nem queria. Mas o som de sua voz e a vis‹odele dizendo o que ele me disse continuaram em mim, lentamente, profundamente.
250 Para este t—pico, v. textos de Lorca como ÒA imagem poŽtica de Dom Luis G™ngoraÓ em Conferncias (Editora UnB,2001) e o livro Estrutura da L’rica Moderna de H. Friedrich ( DuasCidades, 1978).
251 Para mais detalhes, v. Biografia de Garcia Lorca, de IanGibson ( Globo, 1989).
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Se algo nos trouxe t‹o pr—ximos e ao mesmo tempo t‹o separados, Ž porque
havia uma raz‹o, uma raz‹o que em 1998 n‹o entendi, mas que n‹o deixou de me
solicitar. Eu queria n‹o desistir daquilo, queria que ele n‹o desistisse de mim.
Com a necessidade premente de parar de dar aulas e estudar mais detidamente
um problema espec’fico de dramaturgia, entrei no doutorado. Com as tradu•›es de
Lorca, ficou claro para mim que, tanto como autor, quanto como ensa’sta precisava
urgentemente me reciclar, confrontar processos criativos mais espec’ficos. Ent‹o fui
estudar ƒsquilo e o teatro grego. Dramaturgia musical. E descobri e entendi muita
coisa e o escopo de minha compreens‹o da cena se expandiu vertiginosamente252.
Sem o compromisso das aulas, consegui adquirir um saber que era uma habilidade, e
n‹o uma prescincia.
Durante o doutorado, envolvido com as pesquisas e com os gastos com
compras de livros, tive uma pe•a minha encenada no CCBB, Docenovembro, em
2001.
Foi uma vergonha para mim, pois como n‹o participei de nada, tive de me
contentar de ver um resultado n‹o muito satisfat—rio, resultado este que poderia ter
sido outro se eu de alguma forma tivesse participado do processo criativo.
Escrever e n‹o proporcionar uma m’nima contribui•‹o com o escrito isso era
vergonhoso. Quanto mais eu conhecia dramaturgia, mais incorporava outras
dimens›es que o ato da escrita. E esse caso da pe•a foi emblem‡tico.
Enfim ap—s o doutorado, durante o qual fiquei trs anos sem escrever um
œnico texto dram‡tico, fui convidado pelas alunas formandas, Andrea Araœjo, Knia
Dias e L’via Fraz‹o253, para junto, com Hugo Rodas, orient‡-las no projeto de
diploma•‹o, e ainda por cima o texto escolhido era meu, Idades. Lola. Esta dupla
orienta•‹o me reunia novamente com o Hugo Rodas e me dava a oportunidade de
participar mais detidamente pela primeira vez de um processo criativo para cena.Mas, de in’cio, os papŽis eram bem definidos, em fun•‹o das exigncias do
projeto de diploma•‹o. Era pressuposto que minha colabora•‹o estava mais alinhada ˆ
orienta•‹o da monografia final e que o trabalho de orienta•‹o da interpreta•‹o ficaria
252 A tese de doutorado foi defendida do Departamento deHist—ria da UnB em 2002, com o t’tulo ÔA dramaturgia musical deƒsquilo: investiga•›es sobre composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o defic•›es audiovisuais.Õ
253 Com participa•‹o especial de Alex Souza.
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a cargo do Hugo. Esta divis‹o mesma, esta necessidade de dois orientadores para uma
mesma e global atividade, encerrava as dif’ceis rela•›es entre arte e academia.
Mas, ao mesmo tempo, por meio das pr—prias exigncias e distin•›es do
projeto de diploma•‹o, tal divis‹o era confrontada com sua integra•‹o, na medida em
que os dois orientadores estavam ali,sempre presentes. Bastava uma mudan•a de
atitude para que as coisas se tornassem mais produtivas.
Ao mesmo tempo, havia os resqu’cios das comemora•›es em torno de Lorca.
Pois eu era alguŽm agora desconfi‡vel e ainda mais um te—rico titulado!!!
Minha maior preocupa•‹o era reverter esse julgamento. A minha repetida
situa•‹o c™moda de autor acabou por ser tornar inconfort‡vel.
Eu percebi o inc™modo causado pela escolha de um texto meu. Era um texto
antigo Ð Idades. Lola. Escrito antes das preocupa•›es com maior f™lego e qualidade.
Eu nem me lembrava mais dele. J‡ n‹o era autor, mas um leitor.
Acho que o Hugo naquele primeiro momento n‹o apreciava muito fazer um
texto meu. Digo isso porque eu esperava dele alguma aprova•‹o, algum elogio.
Afinal eu achava que era preciso isso, gostar mais explicitamente do texto para
o realizar. Mas, diante de mim, diante um outro professor, sua postura ,Come•amos a
discutir o texto. E eu comecei a falar do texto, de como ele foi escrito. Hugo me
interrompeu, e disse que nesse primeiro momento isso n‹o era importante. O autor
precisava morrer, pensei. E foi me dando aquela vontade louca de voltar para o
computador, de ficar escrevendo , pois era s— o que eu sabia fazer. Por dentro eu me
perguntava o que estava fazendo ali. Ent‹o todos foram falando e falando sobre o
texto. E diziam coisas que n‹o faziam muito sentido e especulavam, associavam tudo
com tudo e eu me via me encolhendo dentro mim, buscando uma sa’da para longe
dali. Mas insisti. N‹o iria desistir. N‹o iria repetir erros do passado. Respirei melhor e
fui observando como Hugo conduzia o ensaio e, dessa observa•‹o, fui procurandoentender o que estava acontecendo, o que ele fazia.
Ent‹o fui entendendo que essa primeira etapa de contato com o texto, apesar
de sua aparente informalidade e caos, possu’a uma l—gica. AtravŽs de est’mulos, de
impulsos, de tentativas, de propostas e revis›es de propostas, o Hugo ia constituindo
uma sŽrie de aproxima•›es com o imagin‡rio implicado no texto. Hugo se valia de
referncias as mais d’spares poss’veis, das mais variadas fontes, do sublime ao
grotesco, para poder oferecer linhas de orienta•‹o para o padr‹o estŽtico da pe•a e dainterpreta•‹o dos personagens. Tudo vinha ˆ cena - sons, rostos, figuras,
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personalidades, filmes, can•›es. Esse exerc’cio da mem—ria, essa mem—ria para
imaginar e fisicizar era perturbadora porque sobrepunha uma enormidade de dados
que logo e logo mais iam sendo substitu’dos por outros.
Isso exigia demais dos intŽrpretes, pois, nas novas solicita•›es, substitui•›es,
era preciso ver n‹o s— o que era alterado e sim o que ia permanecendo.
Ent‹o, valendo-se de mœltiplas referncias para se aproximar do imagin‡rio da
pe•a e da constru•‹o dos personagens, Hugo exigia demais dos intŽrpretes,
transformando-se tanto em motivador quanto alvo de nega•‹o. A condu•‹o do
processo criativo era desenvolvida a partir de uma cont’nua atividade sobre a inŽrcia
dos intŽrpretes, suas tendncias de encontrarem respostas e a•›es imediatas ou
reprodutivas. ÒIsso n‹o Ž teatroÓ dizia quando algo era feito dentro dessas tendncias.
Ou ÔDas theaterÕ quando havia a ultrapassagem das seguran•as, dos apoios, das
comodidades.
Realmente, a figura excessiva de Hugo, sua condu•‹o intensa e
multireferencial, muitas vezes desorientava os intŽrpretes. Diante da constitui•‹o de
algo, de algo ainda em devir e por vir, da criatividade exposta e em expans‹o,
realmente muitas vezes algumas afirmativas mais veementes causavam desconforto.
Mas, dentro do contexto, do amplo contexto do que estava sendo realizado, dessa
busca sem concess›es do melhor, da qualidade do movimento, das a•›es tudo
encontrava seu porqu. Pois, em virtude do processo criativo, da realiza•‹o do
espet‡culo, tudo era comissionado, tudo era levado em conta, tudo era preciso para se
encontrar o que se procurava.
Algo que inicialmente me perturbou e que em seguida tornou-se fascinante foi
a atua•‹o mesma de Hugo diante da dificuldade do intŽrprete. Um fator de
fundamental import‰ncia para a condu•‹o operada por Hugo reside no fato que ele Ž
um grande ator, vers‡til na voz, nos movimentos e na m‡scara. Ao incluir em suacondu•‹o desempenhos dos papŽis , ele explicita certos tra•os que procura extrair,
tornar claro para os intŽrpretes, coisa que muitas vezes verbalmente n‹o se consegue
atingir. Assim, o intŽrprete tanto verbal quanto performativamente Ž disponibilizado a
se integrar totalmente no processo criativo. Em outras situa•›es, Hugo n‹o somente
performava o papel, como parodiava alguns desempenhos dos intŽrpretes. E, em um
primeiro momento, poderia alguŽm pensar em deboche. Mas para quem estava
sintonizado com o que estava sendo realizado ali, essa par—dia n‹o era para diminuir oator, pois detinha-se justamente n‹o no papel mas na atitude do ator em sobrepor, ao
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seu trabalho, as suas resistncias, ou repetidos subterfœgios ou atos j‡ visados em
coment‡rios anteriores.
Estes dois œltimos pontos muitas vezes n‹o ficavam claros nem para mim nem
para os intŽrpretes. Mas, com o cotidiano dos ensaios, pude constatar que
determinados julgamentos sobre esse tipo de condu•‹o n‹o eram v‡lidos. Na boataria
de corredor, a qual estamos t‹o acostumados que julgamos natural e n‹o intervimos
criticamente, em alguns momentos ouvi certos coment‡rios desabonadores quanto a
uma poss’vel condu•‹o desp—tica ou cruel de Hugo Rodas. N‹o sei de antes, n‹o sei o
que houve, n‹o sei se ele mudou ou se todos aprendemos. Sei apenas, pelo que
presenciei, que, em prol da qualidade do processo criativo e mesmo de sua
efetividade, certos esfor•os precisam ser feitos, e, dentro de um ambiente de
forma•‹o, de aprendizagem, justamente o medo de errar, o medo de se expor, o
mentalismo cnico, o excesso de nega•‹o existente produzem tantos obst‡culos,
tantas inibi•›es que resta apenas a proporcional a•‹o contra esses obst‡culos. Ao fim,
e isto Ž um grande segredo, toda a exorbit‰ncia presen•a de Hugo nos ensaios Ž uma
doa•‹o, uma rara oportunidade de encontro com uma doa•‹o, ato para qual se
formulam raz›es e julgamentos sem que muitas vezes seja interrogado o que Ž
possibilitado nesse impressivo ofertar.
Durante a caosmese inicial, onde se inaugura o processo criativo e o universo
imaginativo da pe•a Ž conhecido por meio de intermitentes aproxima•›es, muito
tempo Ž utilizado nas cenas iniciais. Muitos e muitos ensaios n‹o ultrapassam os
limites das primeiras p‡ginas do texto. Confesso que diante dessa situa•‹o eu me
exasperava. Sob a press‹o institucional de prazos, n‹o prosseguir, n‹o avan•ar
produzia uma certa sensa•‹o de desperd’cio e inutilidade, principalmente para quem
achava, como eu, que poderia resolver coisas apenas no papel. Mas justamente essa
demora, essa dificuldade de ir adiante Ž que ia criando um outro tempo, o tempo noqual se circunscreviam outros marcos, outras necessidades, outras disposi•›es frente
ao ritmo habitual de nossas vidas. Impor um outro ritmo ao que j‡ carregamos,
fundamentar um ritmo atravŽs da compreens‹o e decorrentes descobertas daquilo que
est‡ sendo vendo, era uma atividade basilar na condu•‹o do Hugo. N‹o se trata de
promulgar um outro mundo, um outro tempo m’stico, mas de proporcionar uma certa
continuidade de atos e atitudes cada vez mais comprometidas com o processo criativo
que ali estava sendo desenvolvido e que precisava da participa•‹o ativa de todos osenvolvidos. Ao tempo do mundo, vai surgindo cada dia o tempo do trabalho, o
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trabalho impondo seus ritmos de manipula•‹o dos instrumentos para produzir coisas
de se ver e ouvir.
Dentro desse tempo detido e melhor direcionado para os ritmos do trabalho,
um procedimento que me chamou a aten•‹o foi o de o Hugo solicitar que os
intŽrpretes lessem o texto para ele. A partir desse texto lido, orienta•›es e comandos
eram proferidos. Para um professor de texto como eu, esse era um procedimento que
me instigava. Ao contr‡rio de Hugo, eu lia bastante o texto e ia para a sala de aula e
comentava e orientava sua compreens‹o. Ës vezes eu achava que ele pedia para que
alguŽm lesse porque ele n‹o tinha lido ou teria esquecido. Coisas de autor iniciante.
Depois fui observando com mais precis‹o esse procedimento. O que era pedido ao
intŽrprete Ž que ele apresentasse o texto, como numa audi•‹o, e, a partir das pr—prias
palavras ditas, a partir do desempenho do intŽrprete, as orienta•›es eram colocadas. A
leitura de sala e a leitura de cena eram coisas diversas, seguindo mŽtodos diferentes,
porque tm objetivos dissimilares. Essa leitura do 'papel' era uma exposi•‹o de
material a ser trabalhado pela experincia e senso de atualidade cnica de Hugo
Rodas. A integra•‹o do texto lido nas amplas dimens›es de seu desempenho
desencadeava uma sŽrie de comandos e exerc’cios que refiguravam, desfiguravam e
configuravam o que fora dito. A forma•‹o de musicista que Hugo possu’a favorecia
esse tipo de escuta para a representa•‹o. N‹o se trata apenas de uma intui•‹o
privilegiada, de uma natureza extraordin‡ria sem ra’zes. O extraordin‡rio nisso
justamente Ž o uso da escuta, do ouvir mais que o som, mais que o dito, mais que a
l’ngua. Do ouvir para ver, para o concretizar . Mesmo que Hugo Rodas seja muito
conhecido por suas habilidades visuais, essa dimens‹o aural Ž determinante e pouco
comentada. As propriedades do som, que reverbera, localiza e Ž mixado, creio s‹o
habilmente coordenadas na percep•‹o dos horizontes de atua•‹o e constru•‹o do
espet‡culo a partir do texto lido em voz alta. Ao certo, temos a conjun•‹o dehabilidades sonoras e visuais, uma audiovisualidade que se determina em fun•‹o das
implica•›es do trabalho de sua concretiza•‹o.
Com isso, Hugo Rodas dentro do processo criativo vale-se tanto de
procedimentos amplos, que vinculam contextos imediatos de cena ˆ totalidade do
espet‡culo, quanto de adi•›es, de detalhes significativos inseridos na obra.
Trabalhando nos detalhes ao mesmo tempo em que na amplitude, Hugo vai
proporcionado uma mem—ria que prossegue e se efetiva a partir de renovados atos de
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conserva•‹o e mudan•a, evitando que dispersos pontos sem tratamento ou revis‹o
deixem de ser considerados e enfrentados.
Posteriormente, tivemos a etapa de se erguer o espet‡culo, montar todas as
cenas atŽ chegarmos a um certo todo, uma totalidade que seria objeto de novas
incurs›es depois. Nessa etapa, eu comecei a ser mais solicitado a opinar.
Lembro que as pr—prias intŽrpretes algumas vezes manifestaram o desconforto
com minha presen•a. A raz‹o apontada era o fato de eu ser o autor. Mas para mim era
outra coisa. Eu ainda n‹o estava integrado ao processo, nem possu’a tradi•‹o nisso. A
minha estranha posi•‹o de nem condutor nem intŽrprete desenvolveu um espa•o
indefinido dentro dos ensaios. Mesmo com minha maior participa•‹o, ainda eu era o
terceiro espa•o. Com o prosseguir do processo criativo, mais contribui•›es eram
incorporadas. Diante dessa transversalidade, o meu terceiro espa•o foi incrementando
a pluralidade dos atos envolvidos no processo criativo254.
Durante essa etapa, Hugo comentou comigo sobre as deficincias do texto:
poucas situa•›es de intera•‹o entre os personagens, falas longas e autocentradas e seu
inacabamento. De fato, era um texto meu mais antigo, elaborado durante os febris e
intempestivos descarregos de experincias imaginativas no papel. Tinha uma
apressada macroestrutura atravŽs da qual um dado universo ficcional se direciona para
sua desestabiliza•‹o. Sempre tive avers‹o a escrever como se anotasse a banalidade
dos atos cotidianos. Todas as defesas da banalidade do cotidiano que eu lia
repercutiam um contexto europeu de rea•‹o ˆ queda de grandes valores e ideais. Eu
n‹o vivia na Europa, apesar de conhecer mais dramaturgia europŽia que brasileira. A
pe•a Idades.Lola era um conjunto de trs cenas de uma vidinha interiorana, altamente
estilizadas em sua express‹o. A minha avers‹o ao retratismo me impediu de ter maior
f™lego, maior extens‹o de desenvolvimento de situa•›es. Entre o hermetismo e o
reconhecimento parcial das referncias a pe•a se debatia. Mas, mesmo assim, produzia certas falas, certas cenas belas, na beleza de um dizer constru’do e triste,
triste porque incompleto. Mas nunca uma ru’na. Assim, minha postura impedia o
avan•o do material que eu tinha em m‹os. Para tanto, Hugo solicitou que eu
escrevesse mais para um momento de embate entre os personagens.
254 Na ficha tŽcnica do espet‡culo Idades. Lola temos: figurino/cen‡rio -
Hugo Rodas e elenco; confec•‹o perucas Ð Guto Viscardi; ilumina•‹o -Marcelo Augusto; programa•‹o. Visual - Emir Godinho.
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Tal solicita•‹o de escrever mais para um texto em processo de realiza•‹o, tal
necessidade de escrever foi algo muito confortante. Acho que atŽ me recompensava
pelo que havia feito, pelo que havia deixado de fazer. Ali mesmo, em cena, enquanto
ensaiavam, peguei o papel e escrevi. Frente ˆ pronta solicita•‹o, a imediata resposta,
como se Hugo tivesse me pedido algo como intŽrprete, e assim o era.
Na distribui•‹o dos papŽis, Hugo havia optado por dar oportunidades iguais
para os intŽrpretes. Achei isso fundamental, mesmo que durante a apresenta•‹o
causasse uma certa desorienta•‹o ver a mesma personagem central Ð Lola Ð sendo
performada por trs atrizes bem diferentes. Foi fundamental esta op•‹o, pois me
esclareceu um ponto b‡sico hoje para mim ao escrever textos teatrais: voc escreve
para pessoas que v‹o atuar e voc deve levar isso em considera•‹o, o tempo dessas
pessoas em cena, as cenas em que elas contracenam e as cenas em que est‹o s—s.
Oportunidades iguais levam voc a pensar que tudo que voc mostra Ž avaliado e
voc deve levar em conta isso.
N‹o que se crie uma democracia, uma simetria quantitativa na distribui•‹o.
Mas as personagens precisam ser consideradas no tempo de sua apresenta•‹o e
julgamento, concretizando uma realidade de avalia•‹o que formata a obra, como eu
havia estudado nas tragŽdias gregas.
Ao mesmo tempo, essa distribui•‹o acarretava a necessidade de contracena•‹o
dos intŽrpretes n‹o entre si, mas com o modelo, com a figura da personagem Lola,
para que fosse reconhecido minimamente que se tratava dessa figura. Assim, tornou-
se premente orientar os desempenhos para essa nfase na mœtua perten•a ˆ uma figura
compartilhada. Essa sincroniza•‹o de referncias creio foi o maior desafio
interpretativo da pe•a, gerando nfase em outras atividades que a constru•‹o
veross’mil do papel.
Nos trabalhos que as intŽrpretes escreveram como requisito para o projetodiploma•‹o, havia uma luta conceptual entre mŽtodos de interpreta•‹o realistas e n‹o
realistas. Uma (Andrea) optou por discutir para alŽm da oposi•‹o e a outras duas
valeram-se e descri•›es n‹o representacionais, como mŽtodo Laban ou colagem.
Estava em xeque a necessidade de haver (se Ž que alguma vez existiu) uma defini•‹o
homognea da interpreta•‹o do espet‡culo, correlato atuacional da idŽia de
homogeneidade da representa•‹o, paradigma dos artistotelismos em todas as suas
modalidades de manifesta•‹o. Hugo Rodas valia-se de mŽtodos e de procedimentosde v‡rias defini•›es, muitos deles atŽ excludentes, tudo em fun•‹o das exigncias do
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processo criativo. A œnica coisa que ele frisava bem Ž que n‹o queria que o intŽrprete
estivesse ÔrepresentandoÕ, o que pode ser compreendido como uma postura de n‹o
aderncia ao trabalho realizado em cena.
Nesse momento, dois procedimentos foram sendo mais empregados: o da
c‰mara lenta e o da coreografia. Este œltimo veio em decorrncia do jogo entre atores
e personagens, mas generalizou-se como padr‹o. A coreografia afigurou-se mais que
mera marca•‹o de gestos ou movimentos e posturas. A espec’fica rela•‹o entre
palavra e movimento dentro do espet‡culo reivindicou a prevalncia de atos mais
autoreferenciais, que expusessem para a platŽia a orienta•‹o construtiva da cena.
Assim, desde os primeiros contatos com o texto, o objetivo foi sempre ampliar o
escopo da presen•a do ator, sua densidade. A constitui•‹o das figuras individuais era
revertida para a elabora•‹o de outras referncias e atos cont’guos. O intŽrprete era
confrontado com seus mecanismos de defesa durante a realiza•‹o de seu trabalho ao
mesmo tempo em que o enfrentamento desses mecanismos tornava mais
compreens’vel para ele as tŽcnicas e os procedimentos utilizados neste trabalho. Cada
vez mais a condu•‹o se propunha a interrogar a personagem, os atos de viabiliza•‹o
da cena e n‹o mais o indiv’duo ator. A coreografia se manifestava como momento
decorrente dessa maior conscincia da cena, de sua constitui•‹o. Pois a compreens‹o
de simult‰neos atos espec’ficos ora para o primeiro plano do intŽrprete, ora para
segundos planos estabelecia uma clara correspondncia entre desempenho e
entendimento. O incremento da percep•‹o art’stica, atravŽs do enfrentamento dos
bloqueios existenciais e tŽcnicos, atingia uma dimens‹o mais integral nos
desempenhos mutuamente dependentes, situados e temporalizados. Para ouvir e ver
esta mœsica, somente possuindo o ganho da desconstru•‹o anterior.
Na verdade o que chamamos de 'coreografia' pode ser entendido como
Ôafina•‹o em performanceÕ. Fazer soar juntos os diversos, reuni-los, Ž uma opera•‹ocomplexa, cujo efeito n‹o explica sua realiza•‹o. A simples motiva•‹o de a tudo
coreografar pode se converter em um esteticismo abstrato e sem fundamento. Pelos
corredores Ð novamente os corredores Ð ouvia-se que uma das marcas do estilo de
Hugo Rodas residia nas marcas coreografadas. Mas, pelo que entendi e presenciei, a
coreografia aqui n‹o Ž um molde, uma meta que anula, uniformiza tudo em prol de
sua aplica•‹o. A produ•‹o de um tipo de l—gica de exibi•‹o, no qual os intŽrpretes
sobrecarregam-se de atos alŽm do refor•o de uma continuidade de primeiro plano,demanda tanto controle e compreens‹o do que se faz que n‹o se pode definir a priori.
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Pois essa marca•‹o multiplanar vem justamente dos materiais empregados, dos
intŽrpretes e do espa•o de cena e do universo ficcional. A resistncia que esses
materiais exp›em frente ˆs marcas n‹o Ž eliminado durante a atividade de
composi•‹o. A composi•‹o e sele•‹o do padr‹o estŽtico do espet‡culo articulam essa
resistncia, essa impossibilidade de fluxo dos materiais com sua elabora•‹o.
Logo, a marca n‹o Ž algo em si, como uma entidade. E a marca da marca, essa
marca em segundo, grau, como met‡fora de met‡fora, Ž o ganho da inteligibilidade
mesma do que se est‡ fazendo, do trabalho do intŽrprete. A coreografia Ž a exposi•‹o
mesma da compreens‹o dos padr›es estŽticos, Ž a composi•‹o mostrada e revelada, Ž
a metaferncia, a caixa preta. A eficincia dos atos coreogr‡ficos reside nesse
desempenho dos suportes cognitivos. Enfim, mostrar Ž mostrar-se, compreender para
se fazer compreender, irrup•‹o das raz›es e dos porqus.
Assim, a capacidade do intŽrprete de n‹o vincular imediatamente a palavra a
a•‹o, e, ent‹o, investigar este intervalo, descobrir novos nexos e v’nculos para seus
atos e, dentro desse esfor•o, diferenciar e ampliar sua express‹o foram momentos
encadeados rumo a uma compreens‹o ampliada da densidade de sua presen•a em
cena. Dessa maneira, todo aquele impulso, seja excessivo, seja desprovido de
relev‰ncia e ‰nimo, vai dando lugar a um empenho de saber manipular a intensidade e
foco de sua atua•‹o. Sendo trs intŽrpretes no revezamento de um mesmo e diverso
papel, essa manipula•‹o da atua•‹o, essa marca•‹o multiplanar exibia para os agentes
e para o pœblico o entendimento e a apropria•‹o da cena.
A c‰mera lenta foi um procedimento conseqŸente dentro desse trabalho de
incremento da percep•‹o estŽtica. Exerc’cios que intervinham no tempo do
desempenho completavam os que modificavam sua intensidade. Possibilitar aos
intŽrpretes a sobrextens‹o de sua atua•‹o, para que acompanhem, observem e sintam
seus atos, medindo-os no arco de seus fins e in’cios, capacita-os a aproveitar a energiade uns para viabilizar outros. Desobrigar-se da pressa de encerrar logo as a•›es ou
ainda, pior, deter-se em apoios de descanso entre os atos, transformou-se em um
exaustivo trabalho. Pois h‡ sempre a recusa da suspens‹o, do entre-mundos, da
demora. E ap—s tantas solicita•›es de renovadas tentativas de se ritmar os
movimentos, essa recusa ascende muitas vezes ˆ uma nega•‹o mais febril e passional.
Mas esse tempo, esse outro tempo que n‹o o dos rel—gios, o tempo do qual n‹o tenho
sen‹o lembran•a, pois se afasta de mim, esse tempo Ž o tempo de uma conquista, dasabedoria dessa conquista.
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Hugo enfaticamente denunciava o que ele chama de Ôponto mortoÕ como
tempo nenhum, sem expressividade que surgia durante os procedimentos de c‰mera
lenta e a coreografia. Como essa conquista produz uma certa continuidade em cena, a
continuidade constru’da pela compreens‹o e manipula•‹o dos atos e dos tempos dos
atos muitas vezes n‹o est‡ bem determinada. Entre um ato e outro tempo, esses
instantes de n‹o resolu•‹o, hesita•‹o, n‹o delineamento ou trabalho. Pois a platŽia
acompanha a continuidade dos atos, e a continuidade dos atos que mutuamente se
reenviam. E ela tambŽm percebe e v os momentos em que esse esfor•o encontrou
seus dep—sitos de entulho, os tempos n‹o exercitados ou amadurecidos. E a condu•‹o
de Hugo procura alertar os intŽrpretes para a compreens‹o desses obst‡culos e
resistncias, para que, por seu enfrentamento, a amplitude de todo o desempenho
alcance uma melhor efic‡cia.
Ap—s o levantar do espet‡culo, com o espet‡culo em suas m‹os, Hugo
procedeu a intervir diretamente nos momentos n‹o resolvidos da obra e nos pontos
potencialmente perigosos como passagens, coreografias, can•›es, contracena•›es,
tŽrminos de se•›es. Para tanto, ele passava sem interrup•‹o o espet‡culo, anotando no
papel v‡rias observa•›es que mais tarde, ao fim do ensaio, eram apresentadas e
debatidas.
Este procedimento registrei bem em minha mente, pois, depois em outro
espet‡culo que juntos orientamos, eu, logo do in’cio do ensaios, fiz uns coment‡rios
que n‹o se relacionavam com o momento do processo criativo. Para cada etapa desse
processo h‡ um tipo de procedimento, de observa•‹o, de coment‡rio, de exigncia. De
in’cio, n‹o havia necessidade dos figurinos e objetos de cena. Ap—s a introdu•‹o
destes, era imprescind’vel sua utiliza•‹o. De in’cio, o texto era discutido e lido. Sem
seguida, n‹o mais. Os intŽrpretes deviam j‡ trabalhar a partir de decis›es criativas
realizadas. No caso das anota•›es de Hugo, justamente nas semanas que antecediam a
primeira apresenta•‹o, eis a folha de papel, o texto em suas m‹os...
Algumas vezes eram renovadas solicita•›es a respeitos de atos que
aparentemente n‹o iriam encontrar melhor rendimento nem na estrŽia. Outros
coment‡rios eram modifica•›es, acrŽscimos e elimina•›es de atos. Quanto mais se
aproximava o tempo da exibi•‹o para o pœblico ainda a composi•‹o da obra era
desenvolvida.
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E o que me conquistou definitivamente foi na noite de vŽspera da primeira
apresenta•‹o, o Hugo, aquele senhor de 62 anos, aquele menino fabulador, sem
camisa, meio irritado e apreensivo na sala Saltimbancos, martelando tachinhas,
ajustando figurinos, instruindo o iluminador, falando em suas v‡rias l’nguas, rindo e
xingando atŽ tarde da noite.
E eu estive ali com ele e com todo mundo, e as apresenta•›es foram muito
boas e como eu aprendi255.
E tenho aprendido. No mesmo ano orientamos juntos As partes todas de um
benef’cio, um musical que escrevi solicitado por alunos que participaram da pe•a
Aluga-se. Este musical inaugurou o teatro do Complexo das Artes, apresentado entre
8 e 11de Fevereiro de 2003.
Em julho de 2003 Hugo e eu orientamos a tragŽdia musical Salve o prazer, de
Zeno Wilde, e estivemos juntos em outro texto meu, Salada para trs256 . Uma
an‡lise do processo criativo desses œltimos espet‡culos nos daria oportunidade para
outras hist—rias.
Em todo caso, eu gostaria de deixar meu agradecimento e homenagem a Hugo
Rodas em forma dessa reflex‹o-depoimento. Todo o seu trabalho em prol de um
teatro de qualidade, de um teatro universit‡rio criativo e atuante tem impulsionado e
deslumbrado pessoas dos mais variados campos e atividades. Entre tantas dificuldades
e carncias e falta de apoio, o intermitente furor realizacional de Hugo Rodas pode
nos ajudar a focar no que Ž importante, no que devemos almejar. Pois se para ele essa
longevidade art’stica tem sido t‹o saud‡vel, para os que pensam na hist—ria do teatro
tal produtividade Ž renovadora e atrativa.
255 As œnicas cinco apresenta•›es da pe•a foram entre 4 e 8 de setembro de2002.
256 Estreou no mesmo teatro do Complexo das Artes em 2003. Trabalhei comHugo em montagens de Quem tem medo de Viginia Wolf, de Albe, em Navalha naCarne, de Pl’nio Marcos, em 2006. Com o impulso de sua fant‡stica figura, comecei adesenvolver,a partir de 2004, um trabalho de dire•‹o, produ•‹o e composi•‹o deDramas Musicais, em um projeto interart’stico îpera Estœdio, resultando namontagem de Bodas de F’garo, de Mozart, em 2004; Carmen, de Bizet, e O Telefone,de Menotti, ambas em 2005; Cavalleria Rusticana, de Mascani, O Empres‡rio, deMozart, e Saul ,a minha parceria com Guilherme Girotto, todas em 2006. E Calib‹,
parceria com Ricardo Nakamura, em 2007. Como se v, muitas de minhas posturas etemores prŽ-hugo foram posteriores modificadas.
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18- TODOS OS TEATROS DE HUGO RODAS
As obras de Hugo Rodas possuem uma assinatura, um rosto. Depois de assistir
a v‡rias delas e participar de diversos processos criativos com ele, creio que o
mistŽrio de sua pulsante criatividade pode ser compreendido, sem, Ž claro, a supress‹o
de seu impacto e beleza.
Para tanto proponho que se pense em 4 elementos fundamentais que, juntos,
explicitam o qu‹o distinto Hugo Rodas Ž e o qu‹o atrativo ele continua a ser.
A motiva•‹o para uma abordagem mais ensa’stica deste texto advŽm de se
procurar valer dessa situa•‹o celebrat—ria para propor que se comece mais
incisivamente usufruir pensar Hugo Rodas. Creio que a atra•‹o que suas obras e
personalidade exercem sobre todos Ž um trabalho que pode bem ser esclarecido, pois
se apresenta organizado e acess’vel, como que nos informando sobre sua pr—pria
realiza•‹o. Por mais elaborados e complexos que se efetivam os jogos cnicos de
Hugo, eles perduram como um convite para sua participa•‹o festiva e decodificadora.
1- A utopia liberadora.
A hist—ria pessoal e art’stica de Hugo Rodas se sobrep›em sob o horizonte
daquilo que depois ficou identificado como contracultura, popularizada sob o
emblema de sexo, drogas e Rock and Roll. Mas a vers‹o uruguaia disso, alŽm de
pouco discutida,possui diferentes facetas que a brasileira. A rejei•‹o de normas
sociais, o choque de gera•‹o entre pais e filhos teve um car‡ter distinto em cada pa’s.
A busca por liberdade por jovens de cl‡sse mŽdia, essa puls‹o por novasexperincias, impulsionada por livros e representada pelo cinema, encontrou no
Uruguai um espa•o estratŽgico. Em um pa’s com estabilidade econ™mica e social
durante dŽcadas, com uma democracia que somente foi interrompida em 1973, a
pr‡tica e os efeitos da ruptura foram t‹o intensos, quanto espec’ficos. Pois,
diferentemente de outros pa’ses, como EUA ou Fran•a, n‹o havia um inimigo, um
grande antagonista externo e localizado contra o qual se opor. ƒ na tens‹o entre a
l—gica das fam’lias e o impulso individual que temos um perfil da utopia liberadorauruguaia.
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Desde j‡ o novo, o que se quer como mudan•a, Ž algo que responde a uma
vontade de querer mais, de se conectar ao mundo, de seguir est’mulo a est’mulo e
viver e conhecer mais. Em um pa’s formado por imigrantes, as conquistas sociais e
econ™micas da primeira metade do sŽculo XX, que criaram o mito do Uruguai como a
Sui•a da AmŽrica, possibilitaram a forma•‹o de indiv’duos liberais, livre pensadores,
atualizados, querendo se integrar com e participar de conquistas tŽcnicas e culturais
do mundo. A ideia Ž que move, n‹o um Vietn‹. Trata-se de uma utopia que n‹o Ž
atropelada pelos fatos. O inc™modo, a insatisfa•‹o Ž impulsionada dentro de
condi•›es favor‡veis para o pleno desenvolvimento dos indiv’duos. Por que quanto
mais se tem, mais se quer; quanto mais se sabe, mais se quer saber.
Essa espiral ascencional, essa escalada move o sujeito do conhecido para o
desconhecido. A ruptura ent‹o n‹o Ž uma completa nega•‹o do passado, do que j‡ se
Ž.Antes, Ž uma decorrncia. Pois foi justamente esse passado, essa base que proveu as
condi•›es da mudan•a. Jovens instru’dos, bem nutridos, bem informados s‹o jovens
capazes de realizar grandes coisas, orgulhosos de si e abertos ao mundo em constante
renova•‹o. O paradoxo Ž apenas aparente - por que mudar se j‡ se tem tudo?
A utopia liberadora que vem da ex-Col™nia de Sacramento motiva-se
justamente nessa riqueza, nessa abund‰ncia. ƒ uma utopia que se alimenta do excesso.
Quando a economia e a ordem social apresentavam ’ndices satisfat—rios recorrentes, o
acesso a bens culturais e simb—licos estava n‹o s— enra’zado na gera•‹o p—s-grerra
como n‹o foi superado pelo consumo de bens materiais. No lugar de um r‡pido e
instant‰neo crescimento econ™mico que se traduz em uma explos‹o de bens de
consumo, t’pico de emergentes e Ônovos ricosÕ, o Uruguai est‡vel foi palco de uma
vis‹o de futuro: organiza•‹o e institui•›es s—lidas projetam para cada nova gera•‹o a
amplia•‹o e manuten•‹o das conquistas. S— se continua ganhando quando se avan•a.
N‹o Ž a riqueza do pai que me torna rico.Para Hugo essa utopia liberadora inicialmente se constr—i sob o est’mulo de
leituras: Walt Whitman, Herman Hesse, AndrŽ Gide, entre outros. A ordem era de se
estar conectado a tudo, ler tudo, como Hugo mesmo afirma: ÒVoc n‹o podia se
sentar em uma mesa de bar se voc n‹o tinha lido o œltimo livro, visto a œltima pe•a
de teatro e todos os jornais. voc n‹o se sentava.(...) Ser adolescente em 1957 era ler
tudo. Tudo. Porque, alŽm disso, o teu pai lia tudo, lia o jornal inteiro, todo dia. Lia a
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not’cia de Europa, via a not’cia, via a televis‹o todo mundo estava aparentado com
tudo isso. Era familiar.257Ó
Dez anos depois do momento referido nessa cita•‹o, a utopia liberadora
eclode com toda sua for•a na maior ruptura existencial e art’stica no m’tico ano de
1968. Nas palavras de Hugo: ÒEm 1958 a gente estava disposto a tudo. Por que a’
realmente Ž que est‡ a divis‹o das coias. Em 1963 a gente come•ou na
clandestinidade. Em 1960 come•ou-se a ter conscincia da revolu•‹o. (...) Para mim
revolu•‹o tem a ver com algo assim, na minha cabe•a, n‹o me importam as
defini•›es. Revolu•‹o para mim significa isso: c‰mbio violento, Ž r‡pido. N‹o Ž pelo
voto, n‹o Ž democr‡tico. Abre sua cabe•a e pense o que quiser, mas revolu•‹o para
mim tem esse significado. Vamos nos rebelar contra algo, h‡ uma necessidade maior,
que n‹o Ž pol’tica e Ž pol’tica, a verdadeira. Ent‹o nesse momento estava
absolutamente farto de tudo, porque j‡ vinha de uma maturidade de toda essa lida
louqu’ssima , muito louca, o final dos anos cinquenta e a entrada dos anos
sessenta.(...) Ent‹o, tem que vir uma palavra revolu•‹o. Para ver o que era meu
pensamento quando eu tinha vinte e oito anos Ð e j‡ tinha dez procurando
desesperamente alguŽm. E a’ apareceu Graciela, que era uma promessa vinda de Nova
York com dan•a contempor‰nea.258Ó
As implica•›es dessa utopia liberadora v‹o se tornar mais claras quando
avan•armos em nossas considera•›es.
2- Conhecimento em contato
A segundo elemento fundamental para compreender Hugo Rodas Ž sua pr‡tica
de conhecimento em contato. Algumas informa•›es antes de prosseguir nossoargumento. Em sua hist—ria art’stica, Hugo participou de diversos tipos de
teatralidade, formais e informais, cotidianas e extracotidianas259: 1-Dos jogos cnicos
com os parentes, 2-encontramos Hugo depois frequentando cinemas, casas de
espet‡culo (teatro,balet,—pera), restaurantes, festas do ano, reproduzindo o que via e
ouvia; 3- em seguida, integrando grupo de cultura popular, com professores de dan•a
257
SOUZA 2007:XXXVII.258 SOUZA 2007: LII, 53,XLV.259 SOUZA 2007:29-51.
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que se apropriavam movimentos tradicionais, transformando-os esteticamente; 4-
ainda, teatro amador;5-a seguir um passo maior, assumindo as artes cnicas - 10 anos
(1958-1968) de escola de teatro e companhia teatral no Teatro Circular de
MontevidŽu, com aulas formais, projetos de montagem, pesquisas de express‹o,
realizando performances e interven•›es ,happenings e depois teatro de repert—rio e
teatro profissional, com entrada na companhia; 6- dessa forma•‹o entre a escola e
grupos experimentais, radicaliza sua op•‹o no (re)encontro com a dan•arina Graciela
Figueiroa, e uma pr‡tica h’brida, movimento/dan•a/teatro/tudo, ele com 28 anos,
1968, constituindo com ela uma comunidade que partilhava processos
criativos,vivncias e intimidades, apresentando-se em espa•os pœblicos; 6- ap—s
viagens por Argentina e Chile, Hugo fixa residncia em Bras’lia, em 1975, tendo aqui
trabalhado com artistas de diversas tendncias e formado gera•›es de artistas, desde
de suas oficinas montagens atŽ seu trabalho na Universidade de Bras’lia,iniciado em
1989, na qual se aposentou em 2009, j‡ com o t’tulo doutor pelo reconhecimento de
seu saber, isso sem deixar de estabelecer v’nculos criativos com S‹o Paulo (JosŽ
Celso Martinez Correa e o teatro Oficina, Antonio Abujamra), Rio de Janeiro,
Goi‰nia e Portugal.
Como se v nas resumidas linhas acima h‡ momentos dessa trama que muitos
interessados ou n‹o no teatro poderiam ter passado. Que mudan•a Ž essa de uma
crian•a divertida em um core—grafo? Ou de um costumaz espectador de filmes e
—peras em um premiado diretor, ganhador, entre outros, do prmio Shell em 1996,
mesmo morando fora do eixo Rio-S‹o Paulo, pela dire•‹o de DorotŽia260? Como se
v, h‡ um diferencial, algo que acompanha e distingue uma carreira excepcional. No
caso de Hugo, trata-se de uma habilidade de participar e transformar experincias
interpessoais. Essa habilidade n‹o reside em um estilo œnico de representa•‹o, em
uma estŽtica monol’tica. Aprender a fazer coisas quando se est‡ junto parece ser umdos tra•os de Hugo Rodas, esse tipo de conhecimento em contato.
Para tanto ele se formou passando por diversos modos de produ•‹o art’stica,
assimilando todos, fazendo de tudo. Mesmo que durante algum tempo possa ter se
demorado em uma determinado modo de produ•‹o, sempre esteve aberto ao est’mulo
de possibilidades outras de processos criativos. No lugar de se interrogar em torno de
uma pureza abstrata do que seria ÔarteÕ ou da melhor maneira de realiz‡-la, Hugo
260 Dire•‹o de A DorotŽia, de Nelson Rodrigues, partilhada com Adriano e Fernando Guimar‹es.
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Rodas optou, com todos os riscos, ™nus e alegrias, por se libertar da monomania de se
definir em virtude do que tal obra ou liga•‹o poderia representar. Ele poderia sem
dœvida fazer o mesmo do mesmo e consolidar-se como um guru ou uma franchise. No
lugar disso, preferiu engajar-se cada vez mais em nœmero maior de montagens e
produ•›es. S‹o impressionantes seus nœmeros: normalmente Hugo Rodas v seu
nome relacionado anualmente a mais de 9 realiza•›es. O imenso volume de trabalhos
nos mais diversos tipos de atua•‹o (dire•‹o, consultoria, cenografia,
figurino,dramaturgia,etc) ultrapassa a capacidade de algum dia um texto ou livro
poder conter tudo o que Hugo faz.
Durante os ensaios, as cenas se alternam vertiginosamente em mudan•as de
mudan•as, provocando um estado ampliado de insights criativos entre os membros do
processo. Durante o tempo em que Hugo se encontra junto com os atores a oposi•‹o
entre ensaio e apresenta•‹o Ž derrubada. Ao conviver, ao partilhar, ao estarem
conectados, Hugo e o grupo estabelecem um espa•o de troca e orienta•‹o de
referncias e atos que se efetiva em encontros inesquec’veis e trocas riqu’ssimas. A
complexidade e controle dessas experincias interindiviuais foram se elaborando
durante todas os diversos encontros de Hugo com seus mestres,colegas e estudantes.
H‡ uma certa medea•‹o entre aleartoriedade e precis‹o nisso, como no improviso do
jazz, como tocar junto, afinar-se, dan•ar com alguŽm. O nœcleo desse horizonte
improvisacional reside no complexo dan•a/mœsica. Os ritmos da tribo/taba e os
movimentos dialogantes de seus coristas parecem ser uma imagem fundamental da
poŽtica de Hugo Rodas. Mesmo na cena realista mais empedernida desloca-se
diagonalmente o rumor dos pŽs sobre o ch‹o, movendo as dimens›es do tempo e do
espa•o de agora para a tela em que se projetam os cantos imemoriais da ra•a.
Mas isso se torna poss’vel somente porque h‡ uma troca e modifica•‹o de
saberes. Podem haver desequil’brios e flutua•›es nessa situa•‹o, em virtude dos presumidos papŽis que seriam atribu’dos a um e outro part’cipe. ƒ assim que se
formam mal-entendidos e lendas. O medo de errar pode nos fazer projetar no outro
nossas inseguran•as. PorŽm, ninguŽm ficaria tanto tempo no mercado, trabalhando
durante anos com tanta gente e formando artistas de qualidade se n‹o produzisse
algumas hist—rias e traumas. Para cada modalidade de contato, um perfil de atua•‹o.
O que precisa ficar bem colocado Ž que a complexidade de grupos criativos gera seus
efeitos e conhecimento em fun•‹o da totalidade de seus membros. Sempre Hugo vairenovando seus la•os com o grupo, refazendo e propondo novas a•›es durante cada
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projeto. Essa persistncia e tenacidade Ž ambivalente: pode ser recebida negativa ou
positivamente. No entanto, Ž um par‰metro para todos: n‹o h‡ uma completa
concord‰ncia entre aquilo se prop›e no in’cio e aquilo que se apresenta ao fim. Os
marcos iniciais e finais s‹o apenas posi•›es de uma experincia que se fortalece sob o
signo de sua mutabilidade. Sabendo as transforma•›es, conhecendo as din‰micas, os
membros integrantes dos processos criativos se apropriam daquilo que
empreenderam.
Hugo ao fim se torna n‹o s— alguŽm com uma vis‹o de mundo inusitada,
religiosa capacidade de transmudar as coisas: o criador Ž um gestor de pessoas e
situa•›es. Ele precisa administrar conflitos,crises,euforias e medos. Ao mesmo tempo,
necessita sensibilizar o grupo para o fazer. E como fazer isso? Conhecimento em
contato significa que arte e pessoa est‹o interligados. ƒ que o aprendizado de uma
tŽcnica espec’fica como forma de resolver problemas expressivos e que espec’ficas
formas de abordagem das quest›es de relacionamento s‹o procedimentos que n‹o se
excluem261. Tendo passado por processos criativos e formas de conv’vio e modos de
produ•‹o diversos, Hugo pode constatar que cada contato Ž œnico porque manifesta
seu grau de tens‹o e resolu•‹o durante o tempo de seu pulso e irradia•‹o. Ao ter
experimentado formas de conv’vio e cria•‹o t‹o diversos quanto quase antag™nicos,
como de uma companhia teatral e o dos grupos-comunidades experimentais, Hugo
sabe que as situa•›es podem ser combinadas, como casos possiveis, como arranjos de
possibilidades. Com isso, n‹o se trata de acœmulo de conhecimento, como um estoque
de truques para usar aqui e ali. Antes, o de uma desenvolvida habilidade para
compreender cada acontecimento como constru’do, e, disso, pass’vel de uma
interven•‹o modificadora.
3-Imagina•‹o sonhadoraO terceiro aspecto que bem nos esclarece a criatividade de Hugo Rodas Ž o da
intensidade de uma imagina•‹o sonhadora. Hugo habita o mundo com seus
devaneios constantes, renovados, intermitentes, como um coito sem fim. Essa fus‹o
entre o onirismo e a vida n‹o Ž um emblema escapista. Imaginar n‹o Ž um ato de
261 Segundo Hugo ÒToda minha educa•‹o foi assim. Minha educa•‹o Ž tŽcnicamesmo. As pessoas ensinavam coisas: o que voc vai fazer com o corpo, o que vocvai fazer com a voz. O que voc vai fazer com sua conscincia? Com sua cabe•a, comseu pensameno?Ó (SOUZA 2007: XXXII).
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excepcionalidade fortuita. A qualidade desses sonhos advŽm de muito trabalho e de
uma hist—ria de tantas realiza•›es. Ainda, n‹o Ž o caso de apenas estabelecer rela•›es,
superficiais analogias. Por sua imagina•‹o sonhadora Hugo pensa, sente e faz. Os
objetos,atos e desejos deslumbrados na mente de Hugo possuem dimens›es bem
definidas e encen‡veis. Do menino com a luz do cinema no rosto, vivenciando
lugares,pessoas, sons e tramas da tela, ao artista que avan•a sobre n—s com suas
audiovisuais cria•›es efetiva-se uma longa hist—ria de aprendizagem e excelncia na
fus‹o da matŽria dos sonhos com a materialidade da vida.
A experincia operativa do sonho precisa melhor ser estudada. As obras de
Hugo s‹o documentos dessa disciplina on’rico-realizacional. No senso comum,
multiplicam-se f—rmulas como a de Disney (ÒDreams come TrueÓ) ou da patologia
(sonho=perturba•‹o). Contudo, tais valoriza•›es se baseam em uma marcada ant’tese
entre sonho e realidade, um jogo dicot™mico que de antem‹o celebra a vis‹o de uma
hierarquia, de um elemento da d’ade ser melhor que o outro. No caso de Hugo, a
inf‰ncia solit‡ria de filho œnico n‹o explica o potencial criador de sua imagina•‹o. O
ato imaginativo n‹o se explica por nada: antes Ž ele que torna tudo significativo,
compreens’vel. Imaginar para Hugo Ž reorganizar os m—veis de sua sala, Ž sonhar
todo um espet‡culo antes de sua montagem pelos atores, tŽcnicos e pœblico, Ž ouvir
uma hist—ria e ampl‡-la. N‹o h‡ oposi•‹o entre vida e sonho pois a vida est‡ sendo
sonhada para existir. Somente a vida sonhada Ž a vida vivida, pois n‹o Ž mais apenas
vida, Ž mais outra coisa, Ž sua revis‹o, Ž sua forjada forma de aparecer, Ž vida-sonho
tudo junto.
Nesse sentido, n‹o Ž uma ideia ou uma simula•‹o. A experincia operativa do
sonho Ž a articula•‹o da existncia em seus detalhes mais habituais e extempor‰neos.
ƒ um di‡logo acordado com as coisas em suas possibilidades. O devaneio cont’nuo
liberta o sonhador, cativa-o para fontes da descoberta incessante de tudo que Ž ouexiste. Pois tudo Ž ato criado, Ž esfor•o de se fazer vis’vel e aud’vel pelo toque da m‹o
que descerra a manta da inŽrcia que cala nossos sentidos.
Sonhando, Hugo pensa e faz. O excesso do sonhador se manifesta no excesso
das coisas sonhadas. As obras de Hugo projetam esse devaneio avassalador que
consome atores e audincia. H‡ todo um surgir de sons, imagens e movimentos
s’ncronos e ass’ncronos, interrup•›es, mudan•as de expectativas, sobreposi•›es, em
suma, um espa•o movente mesmo na tridimensionalidade daquilo que imediatamentese revela sobre nossos olhos. Mas se o sonho altera as posi•›es, os lugares de quem
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sonha e de quem Ž sonhado, n‹o poder’amos, seguindo Bachelard, experimentar a
possibilidade de o sonho nos sonhar, de a obra nos fazer, de nos permitir avan•ar
sobre a pele do mundo e desossar nossas defesas t‹o seguras que o pavor ao devaneio
implode262?
Esse sonhar ent‹o Ž corp—reo, f’sico: traduz-se no espa•o de seu acontecer. A
descoberta e dom’nio da corporeidade transformou a imagina•‹o em uma coreografia
total, n‹o s— reduzida aos eventos art’sticos. O exerc’cio das imagens mentais
encontra seu corol‡rio nessa gin‡stica consciente. Arrumar os m—veis da casa, pensar
um cen‡rio, andar Ð tudo transparece o encontro de conhecimentos explorat—rio, que
ao mesmo tempo atualiza e renova o que j‡ existe.
O car‡ter assombroso e provocador das obras de Hugo pode ser compreendido
por essa imagina•‹o atlŽtica, que funde em um s— ato o devanear e o pulsar da
matŽria. Tal fus‹o n‹o gera uma recinto confort‡vel nem para o criador nem para a
audincia. A perturba•‹o reside justamente nisso: na dissolu•‹o da distin•›es prŽvias
e dos obst‡culos que buscam neutralizar os efeitos de uma imagina•‹o em a•‹o,
aberta para suas possibilidades.
Nesse sentido, Ž preciso avan•ar na compreens‹o dessa atividade imaginante
criadora de forma a desmistific‡-la, sublimando-a de seu oculto mistŽrio. As obras de
Hugo s‹o claras aplica•›es de tŽcnicas que articulam a cada momento esses devaneios
materiais. Em cena s‹o expostos os sonhos como indu•›es aos sonhos. Se o que se
mostra l‡ n‹o Ž como a vida, Ž por que na maior parte da vida vivemos a resistir ao
clamor profundo do que nos lan•a para o abismo. Hugo Rodas n‹o s— caiu - jogou-se
nesse abismo, como fez o caos se esparramar. E de l‡ ele vem, trazendo os
vislumbres de algo que insistimos em enterrar no mais distante de n—s: em nosso
desconhecimento de n—s mesmos. Ent‹o,para Hugo, o devaneio criador Ž a articula•‹o
do autoconhecimento.Do menino bem educado da pequena cidade de migrantes italianos ao setent‹o
celebrado de agora temos n‹o apenas uma trajet—ria art’stica, mas express‹o de
alguŽm que foi medindo, a partir da vis‹o de futuro da classe mŽdia da ex-col™nia de
sacramento - e contra essa mesma vis‹o- e da inumŽr‡vel rede de trocas e contatos, o
alcance de seus atos a partir da contradan•a dos devaneios realizadores. Com seus
sonhos, efetuados de v‡rias maneiras, com v‡rias pessoas em v‡rios lugares, Hugo
262 Para Bachelard, ver nosso trabalho ÒA poŽtica das raz›es e as raz›es da poŽticaÓ in Revista Humanidades, n. 29, 1993.
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pode saber fazer o que podia fazer. E sempre quis fazer mais. Tudo que se colocava
como obst‡culo deveria e foi ultrapassado. Mas o primeiro e o maior de todos era
ultrapassar compreensivamente a si mesmo a partir do momento que se conectava
com o mundo. Esse desejo de querer mais e mais saber, essa puls‹o de possuir e
deixar-se possuir pelo aquilo que o fascina Ž da inser•‹o do sonhador na realidade
atravŽs do sonho, sonhando e sonhando-se, sensibilizando e sensibilizando-se.
Da’ o efeito multiplicador, improvisat—rio dessa atividade on’rica. N‹o se
sonha contra ou alŽm dele. Hugo Rodas consegue transmutar o que sonha em matŽria,
a matŽria sonhada n‹o fica inernete, engavetada: antes ganha sua solidez por ser
flu’da, reelaborada, como um presente que se refaz e desfaz sem cessar.
Essa plasticidade imaginativa Ž proporcional ao seu ’mpeto configurador:
sonha-se para se realizar. O perfil realizacional da imagina•‹o de Hugo encontra na
cena espacializada seu campo de experincias e sensa•›es fundamental. Temos poetas
da cor, da luz, da l’ngua, dos sons, do movimento. Para alguŽm que se disponibilizava
a se apoderar de tudo, de ter uma fun•‹o c—smica em seu onirismo, o palco como
fronteiras de fazeres,artes,of’cios e conhecimentos Ž um correlato dessa percep•‹o
expandida. A op•‹o pela multidimensionalidade da cena viabilizou a saciedade
insaci‡vel de Hugo por querer participar de realidades mœltiplas e correlacionadas.
Para alguns, o palco serve de v‡rios modos para diferentes prop—sitos: surge como
pœlpito para os castrados ou tribuna para dŽspotas. No caso de Hugo a cena foi a festa
multiorg‡smica, lugar da qualidade da a•‹o, do corpo e mente integrados em que tudo
faz sentido porque Ž realizado, configurado, exposto como esfor•o, habilidade e
conhecimento. Hugo nos chama para ver como as coisas s‹o feitas. O palco Ž lugar
para demonstra•‹o de sua oficina.
4- Audiovisualidade
Em raz‹o disso, chegamos a œltimo aspecto que gostaria de destacar: a
audiovisualidade. Hugo Ž um artista e pensador audiovisual. O teatro Ž o lugar da
emergncia de sons e imagens que articulam uma imagina•‹o que se fisiciza. H‡ um
piano branco na sala de Hugo, como uma b’blia aberta. Quem o visita sempre d‡ de
cara com ele. Um piano branco! As teclas est‹o amareladas, h‡ partituras antigas na
estante. Por si s— o piano branco de Hugo Rodas nos faz sonhar. E no sonho ouvimosmœsicas. O objeto piano, essa m‡quina de sons, p›e-se a cantar. Em sua mudez de
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objeto, de arm‡rio de cordas e teclas, o piano se torna grandiloquente, dan•arino,
ruidoso, e conduz nossos olhos, passos e ouvidos. No silncio ou na sinfonia, o piano
branco de Hugo Rodas cintila na sala e faz convergir para si todas as aten•›es.
Nas pe•as de Hugo Rodas h‡ sempre mœsica, e de v‡rios tipos, comos tantos
os olhos que tudo observam. H‡ can•›es que ele mesmo comp›e durante o processo
criativo. H‡ os atores tocando instrumentos de percuss‹o e cantando. H‡ o ritmo dos
movimentos, a rela•‹o entre as coisas em cena, os atores e o pœblico. H‡ o silncio,
prenhe de espectativas, em uma c‰mera lenta. H‡ os tempos da luz recortando o que
deve ser visto.
Nos œltimos 10 anos essa rela•‹o com obras dramatico-musicais parece ter se
intensificado, com as montagens,entre outras, de Salve o Prazer, Rosanegra, îpera
de trs vintŽns, Macufagia e No Muro.îpera Hip-Hop. Mas a maior presen•a de
musicais Ž uma demanda de hoje: Hugo sempre trabalhou, desde seus trabalhos em
que se formava como ator no Teatro Circular, de MontevidŽu, com obras
interart’sticas263. No lugar da cena homognea, centralizada no ator ensimesmado em
seu discurso sobre o mundo, Hugo aderia a pr‡ticas que estebelecem canais v‡rios de
comunica•‹o do artista com seus sentidos e do artista com a platŽia. Ent‹o essa
cultura hodierna dos musicais, da musicaliza•‹o do teatro, do jogos audiovisuais, de
eventos sinestŽticos que rompem com a linearidade do efeitos e de sua organiza•‹o,
ou seja, toda uma cartilha que agora se apresenta atrativa a uma nova gera•‹o de
artistas, tudo isso, mais que moda, vem sendo enfrentado em diversos modos de
produ•‹o e teatralidade desde os fins dos anos 50 do sŽculo passado. A abertura do
artista ao di‡logo entre tradi•›es expressivas diversas como cinema,teatro,dan•a,
mœsica e literatura n‹o deveria ser encarada apenas como uma alternativa, uma outra
maneira de se formar criadores. Vendo Hugo trabalhar entende-se que o impacto
plural de suas obras Ž complementar ˆ heterogeneidade de sua feitura. Entremeandouma variedade de est’mulos audivisuais, Hugo prov ao pœblico um contexto
multimidi‡tico de experincias. A tecnologia est‡ no modo como as coisas s‹o
dispostas e n‹o simplesmente mostradas. As l—gicas muitas vezes n‹o coincidentes
entre som e imagem s‹o manipuldas em fun•‹o daquilo que se realiza. Com mais de
50 anos participando de obras interart’sticas, Hugo domina muito bem procedimentos
263 Segundo Hugo, ÒTodas as pe•as minhas s‹o musicaisÓ(SOUZA 1997:XXXII).
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n‹o s— dos intŽrpretes e sim do espet‡culo inteiro. A dom’nio da audiovisualidade
integra o ator Hugo ao dramaturgo Hugo.
A dimens‹o audiovisual em Hugo desenvolveu-se e amadureceu a partir do
momento em que as demandas da autoconscincia do intŽrprete que ele sempre foi se
tornaram maiores. Uma coisa Ž cuidar de sua cena, da qualidade de seus movimentos.
Outra Ž a ordem da composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o da totalidade da obra. No
instante em que o ator amplia seus horizonte, floresce, insere-se em um todo, h‡ mais
que uma diferen•a de amplitude. A mœsica, com seus par‰metros acœsticos, com seu
controle temporal dos eventos, contribuiu para uma clarifica•‹o dessa complexidade
presente no tr‰nsito do intŽrprete ao diretor. Na verdade a arte do sons fundamentou
para Hugo a plasticidade do imagem, do movimento. Ele passou a tratar o som como
imagem, e a imagem como som. ƒ a musicalidade que torna poss’vel ˆ percep•‹o a
interven•‹o modificadora das coisas em seu ritmo de configura•‹o. A musicalidade
aplicada ao que se altera tanto exibe por quais processos a modifica•‹o foi realizada,
quanto se transforma na pr—pria mudan•a, na pr—pria realidade alterada. Em outras
palavras: n‹o se usa a mœsica para adornar uma cena, e sim a cena adquire sua
espec’fica configura•‹o por meio do poder estruturador da sonoridade, dos atributos
do som. Assim, n‹o se trata de ter mœsica em um espet‡culo. A mœsica n‹o vem a
reboque, como um complemento. A musicalidade da obra Ž sua poŽtica, Ž a
exposi•‹o de suas rela•›es e efeitos e de como esses efeitos escolhidos nos remetem a
um arranjo dado.
Em raz‹o disso, temos o car‡ter de festa, celebrat—rio como uma marca da
poŽtica audiovisual de Hugo Rodas. Festa dos sentidos, festa da carne, da liberdade da
boca que prorrompe em mil can•›es, do corpo batuqueiro, das coreografias
contrapont’sticas. As v‡rias artes conjugadas em suas tens›es e complementaridades
facultam-nos esse ritual multiorg‡smico que transcende o arranjo das configura•›es eas tŽcnicas de sua realiza•‹o. E o que se celebra nessa festa de sons e imagens? - a
vincula•‹o de ordem e caos, do desejo de querer saber com a experincia de se perder
na vertigem do fruir.
Em processos criativos que se valem de pr‡ticas interart’sticas, as exigncias
dos intŽrpretes e da condu•‹o s‹o mœltiplas. Esse excedente de demanda motiva uma
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maior controle da express‹o264. Pois sempre h‡ o perigo da sobreatua•‹o decair em
atua•‹o afetada,confundido os v‡rios efeitos que produz com as habilidades que
necessita atualizar. O dom’nio sobre essa excedncia s— Ž poss’vel por uma longa
experincia com a heterogeneidade, de forma explorar suas potencialidades, a
entender a linguagem da varia•‹o.
Hugo Rodas em sua forma•‹o de espectador teve a oportunidade de consumir
est’mulos de obras multidimensionais como filmes e —peras. AlŽm disso, em sua
educa•‹o seguindo modelos da classe mŽdia europŽia, teve forma•‹o em l’nguas e
piano. Superestimulado, deu o passo seguinte: envolveu-se na firme decis‹o de n‹o
esmorecer, de n‹o ceder ao impulso de se dar por satisfeito no resultado de suas
experincias sens—rias. Antes, transformou a pr—pria percep•‹o em objeto de
investiga•‹o e amplia•‹o. Ao tra•ar a identidade entre percep•‹o e realidade,
entendeu que Ž preciso ir alŽm dos resultados, dos produtos. Eventos interart’sticos
s‹o bombas de est’mulos variados. E a sensa•‹o de se valer de todos os sentidos faz
com que as obras seja canais e possibilidades para se reconectar percep•‹o a
percep•‹o, vontade a vontade.
Em virtude disso, a audiovisualidade em Hugo Rodas n‹o se confina ˆ
ilustra•‹o de ideias ou narrativas a priori. As obras est‹o vinculadas a processos
criativos nos quais percep•›es expandidas s‹o pacientemente trabalhadas. Os sons e
as imagens s‹o os modos pelos quais as trocas criativas s‹o efetivadas. N‹o n‹o Ž o
caso de afirmar que Hugo se vale de recursos audiovisuais em suas pe•as e sim que o
processo criativo Ž sens—rio e articulado por inteligncias mœltiplas. Can•›es e
movimentos conectam os integrantes do processo: sons e imagens s‹o ao mesmo
tempo o que se percebe e como se percebe o que est‡ se fazendo.
A partir do mitico nœcleo dan•a-mœsica, Hugo Rodas torna denso o espa•o
em que se arremessam intŽrpretes e pœblico. Nunca o vazio, o v‡cuo absoluto. Tudose encontra habitado por elaboradas estratŽgias de se fazer vis’vel e aud’vel a trama
das experincias sens’veis. Justamente Ž em rela•‹o a este pretenso lugar vazio que
Hugo age. A contextura audiovisual da cena de Hugo Rodas n‹o se detŽm em n‹o s—
alterar o que havia como tambŽm propor algo para o que atŽ o momento era
264 Discuto essas quest›es em ÒA realiza•‹o de —peras como campo interart’sticoÓComunica•‹o apresentada ao XV Congresso da ANPOM. link:www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2005/sessao20/marcus_mota.pdf.
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desprovido de forma. Por sons e imagens Hugo tanto refaz quanto inaugura a
realidade. O que se ouve e o que se v agora Ž o que se deve pensar e sentir. Como
coisa imaginada e realizada audiovisualmente, a cena transforma-se em algo que vale
por si, como alguŽm que celebra sua pr—pria vida e vontade.
5- Proje•›es finais
Estes s‹o quatro aspectos, quatro pontos de partida para se entender o mistŽrio
Hugo Rodas. No lugar de uma resenha de seus feitos, a proposta desse artigo foi
iniciar um debate sobre as implica•›es de um criador t‹o not‡vel como Hugo se
converter em provoca•‹o para os afetos e pensamento. Preparado o campo, podemos
nos mover em outra dire•‹o Ð a de Hugo Rodas como pensador.
Uma das carater’sticas mais marcantes na modernidade do sŽculo XX foi o
fato de artistas ocuparem o lugar que antes parecia ser privilŽgio de comentadores n‹o
artistas. Shakespeare n‹o deixou nenhum livro sobre sua dramaturgia, mas editoras
inglesas todos os anos abarrotam o mercado com as mais diversificadas teorias e
explana•›es da obra e biografia do bardo. L‡ na GrŽcia antiga, S—focles teria sido o
primeiro a se expressar sobre seu processo criativo em um livro sobre o coro, que se
perdeu, e Arist—fanes se valia de interrup•›es no espet‡culo (par‡base) para se dirigir
diretamente ao pœblico e debater a rela•‹o entre a comŽdia e os espectadores. J‡ no
sŽculo passado, Stanisl‡vski, Meyerhold, Brecht, Grotowski, entre outros, atingem
uma enorme repercuss‹o de seus trabalhos por meio de textos publicados. Com a
abertura de cursos superiores de teatro n‹o mais relacionados a departamentos de
letras e filosofia, a autonomia das artes cnicas se manifesta em um maior nœmero de
publica•›es e infla•‹o de conceitos. Novos tempos: o artista Ž quase intimado a se
expressar textualmente sobre seus atos. De uma tradi•‹o ‡grafa, que encontrava umaoscilante validade apenas em um discurso de segunda m‹o, o teatro irrompe como
objeto de conhecimento multidisciplinar, com artistas cnicos cada vez mais
interessados em consumir conceitos e produzir eventos.
Hugo se encontra na encruzinhada de dois in’cios de sŽculo: os albores do
sŽculo XX, intempestivos, com r‡pidas mudan•as, uma multiplica•‹o de experincias
e estŽticas, e o in’cio do sŽculo XXI, reciclando o passado, procurando ainda uma
orienta•‹o em como escapar das ortodoxias da modernidade (Òo mellhor teatro Ž oexperimentalÓ) e enfrentar a pluralidade de conceitos e experincias art’sticas.
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Essa encruzilhada Ž evidente a partir do momento em que se observa como
Hugo Rodas se apresenta como um caso inusitado: tendo travado contado com as
mais diversas tendncias e propostas cnicas, n‹o se enclausurou em nenhum r—tulo,
em nenhum estŽtica particular, valendo-se de tudo, para, em fun•‹o disso, atingir uma
identidade, uma assinatura. O fato de ter feito uma escola de teatro em sua fase de
forma•‹o, dos 18 aos 22 anos, e depois concluir um ciclo avan•ado em sua carreira
como integrante de uma escola superior de teatro- UnB - Ž revelador. No ambiente do
teatro de estudantes h‡ a exigncia de leitura de textos outros que os dos autores
teatrais. Na Žpoca do Teatro Circular, em 1958 em MontevidŽu, com foco em projetos
de interpreta•‹o, o autor da vez era Grotowski,Ótodo mundo na minha escola era
grotowiskiano,todos os meus professores eram grotowskianos.Mas utilizavam
diversas tendncias, uns eram mais stanislavskianos, outros mais artaudianos, e todo
mundo sonhava em fazer Brecht.265Ó Tendncias teatrais eram discutidas pela leitura
de ensaios, pela circula•‹o de ideias, que se convertiam em est’mulos para o processo
criativo. E, como se depreende da cita•‹o, Hugo formou-se em uma abordagem
eclŽtica de recep•‹o das teorias: havia a possibilidade de se combinar autores que
poderiam se contradizer no discurso mas que convergiam em fun•‹o de est’mulo a
modos de percep•‹o abertos ˆ expans‹o e maior autoconscincia dos intŽrpretes
criadores.
Tal leitura aplicativa de autores teatrais enfatiza um determinado tipo de
perfil intelectual: o de transformar a obra como um discurso sobre si mesma no lugar
de produzir discursos paralelos, coment‡rios ˆ cria•‹o. O que Ž para ser dito Ž o que
se encontra expresso na contextura audiovisual da obra. Toda obra fala de si mesma j‡
em sua realiza•‹o. Pois, havendo um processo criativo no qual a sensibiliza•‹o dos
intŽrpretes Ž uma experincia cognitivo-perceptual, aquilo que se mostra no palco s‹o
as op•›es, a reflex‹o desse processo.Mais de cinquenta anos ap—s ter desenvolvido este modo de integrar teoria e
realiza•‹o, Hugo Rodas se apresenta tanto como criador, quanto como pensador
cnico. As fontes para abordagem te—rico-pr‡tica encontram-se nas intera•›es verbais
durante processos criativos, em entrevistas nas quais ele comenta seus trabalhos e
exp›e suas ideias e nas obras encenadas. Todas essas modalidades de produ•‹o e
difus‹o de conhecimento partilham de seu contexto gerador: uma imagina•‹o
265 SOUZA 2007:XLV.
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operativa interart’stica que se efetiva e se aprimora em situa•›es de trabalho
expressivo coletivo. Por isso muitas vezes em Hugo h‡ uma express‹o verbal que Ž
t‹o performativa e explorat—ria quanto ˆ condu•‹o dos ensaios, marcada por
renovadas redefini•›es de referncias anteriormente propostas. Pois para Hugo h‡ o
hoje, o agora, a atualidade das coisas sendo feitas e desfeitas, no frescor do seu
surgimento. Desse modo, a palavra velha ou absoluta, o pensamento prescritivo e
fechado em si mesmo Ð tudo isso se desvanece diante da constante investiga•‹o por
diferentes arranjos do que fora dito, pensado e sentido.
Essa mobilidade de pensamento, esse atletismo intelectual de Hugo transita
tambŽm entre as fronteiras de gneros e situa•›es discursivos. Ao se comunicar com
os artistas ou ao se expressar sobre seu trabalho, Hugo Rodas pode agir de v‡rias
formas: ora vale-se de conceitos, argumentos, descri•‹o clara dos fundamentos
determinados exerc’cios e o porqu de cada movimento adotado, ora pode jogar o
jogo do mestre de cerim™nias ou do buf‹o, entretendo quem dele se aproxima. Do
sublime ao grotesco, Hugo move-se entre extremos de extremos transformando uma
aula em performance e vice-versa, pois tudo est‡ conectado a tudo. O excesso, a
dispers‹o,o cercar por todos os lados, a interrrela•‹o entre esclarecimento discursivo e
persuaviva sedu•‹o s‹o procedimentos que se alternam, sobrep›em e se fundem,
fazendo com que, ap—s o desligamento do contato, n‹o saibamos distinguir onde
come•a ou termina aquilo que era um debate intelectual ou uma irrup•‹o de
comŽdien.
Talvez por isso n‹o h‡ livro que possa conter Hugo. Bibliotecas poderiam se
abarrotar com an‡lises de suas realiza•›es. Os mœltiplos est’mulos que suas
realiza•›es provocam, a heterogeneidade como s‹o elaboradas, o pluralismo
fundamental no modo como se processa a condu•‹o do processo criativo, entre outras
percept’veis e mensur‡veis manisfesta•›es de Hugo pensador, sustentariam pesquisasque proporcionaram uma melhor compreens‹o n‹o da pessoa de Hugo, mas sim de
varia•›es metodol—gicas para se enfrentar a complexidade de uma imagina•‹o
interart’stica e fisicizada.
Por exemplo: neste livro que ora se publica h‡ fotos e textos baseados em
algumas das montagens de Hugo. Isso Ž um primeiro exerc’cio de aproxima•‹o.
Posteriormente, usando mŽtodo da cr’tica genŽtica aplicados aos estudos teatrais,
pesquisadores poderiam se debru•ar sobre algumas dessas montagens e, por meio deentrevistas com Hugos e dos participantes do trabalho estudado, juntamente com
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registros jornal’sticos e visuais, reconstruir n‹o a totalidade do espet‡culo e sim o
processo criativo, suas op•›es, suas etapas, seu resultado audiovisual. Imagino que
ap—s fazer isso com montagens ’cones de Hugo Rodas poderiam ent‹o ter acesso n‹o
s— a uma imagem mais completa de sua carreira, quanto se embrenhariam em uma
hist—ria cultural que n‹o se limitasse a uma historiografia das artes cnicas em
Bras’lia, nem em uma louva•‹o do mito huguiano. E os v’deos? O que dizer do
material em VHS e digital que registra diversas das montagens de Hugo Rodas?
Quanto se pode desentranhar dos sons e imagens desses registros, justamente de um
artista/pensador audiovisual?! Ou mesmo acompanhar remontagens de mesmas
obras? Analisar esses registros como feitos de uma racionalidade criativa Ž um campo
de estudos fundamental.
Para alguŽm que cada vez mais nos solicita por mais publica•›es,parece algo
t‹o paradoxal que haja poucou livros e artigos realizados sobre si. H‡ tanto o que
fazer, tanto o que observar. ƒ preciso enfrentar algumas resistncias ˆ a•‹o positiva.
Poderia vir o argumento que Hugo mesmo n‹o publicou nada - o que Ž mentira. Ele
vem tornando pœblica sua abordagem multimodal de teatral h‡ dŽcadas, seja por
montagens, seja por entrevistas. Ora, se Hugo n‹o escreveu um imposs’vel tratado
sobre a arte do teatro mulltidimensional Ž que ele esteve muito tempo ocupado
realizando esse teatro. No arco entre hero’smo fundador do modernismo teatral e a
melanc—lica reciclagem de conceitos e teorias de nossa Žpoca, o perfil intelectual de
Hugo Rodas se apresenta como alternativa, como ’ndice de um outro caminho. Pois,
em sua envergadura e extens‹o, ajuda-nos in loco a desidealizar essa vers‹o Žpica das
artes cnicas, feita de rupturas que se consolidam em teorias, e teorias que prescindem
de rupturas, tudo certinho para caber em um manual de hist—ria do teatro.
Ainda, esse mesmo perfil contribui para que n‹o se confunda informa•‹o com
conhecimento. Como sabemos, nunca dispusemos de tanto acesso ao que as pessoas podem fazer como hoje. Um artista hoje pode filmar todas as etapas de seu processo
criativo, disponibilizar na internet, produzir mesmo uma obra coletiva com artistas do
mundo inteiro em tempo real. Hoje podemos ler os textos de todos os pensadores e
artistas e ampliar a recep•‹o deles por meio de teses e pesquisas e investiga•›es que
publicadas em livro ou disponibilizadas na rede mundial de computadores parecem
nos oferecer uma imagem mais completa daquilo que procuramos conhecer. Mesmo
assim, o eloquente silncio em torno de Hugo( e dele pr—prio), esse silncio n‹oexpresso em tratados, mas transformado em babel por meio de suas obras e
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entrevistas e colaboradores e parceiros de trabalho, esse silncio enfrenta a erudi•‹o
de nossa Žpoca, a hipervaloriza•‹o de uma postura que confunde o status de estar
antenado com as mudan•as, de consumo e coment‡rio de mudan•as sem saber como
se realiza de fato o que se modifica.
Talvez por isso seja inesperado encerrar este ensaio de um livro que celebra
Hugo Rodas enfatizando diversos aspectos de um Hugo pensador. ƒ com frequncia
que diante do fasc’nio com Hugo muitos tentem imit‡-lo, reduzindo-o. E nessas
vers›es diluidas do demiurgo de Juan Lacaze o que parece consenso Ž o lema Ôpara
saber basta fazerÕ. Isso nem Ž meia verdade. H‡ uma impactante racionalidade no
modus operandi de Hugo. As dicotomias entre teoria pr‡tica, pensamento/a•‹o,
raz‹o/emo•‹o, muitas delas impressas nos textos dos mestres do modernismo, s‹o n‹o
s— insuficientes como incapazes de formular uma aproxima•‹o ˆ riqueza intelectual
de Hugo Rodas. N‹o adianta tentar ser Hugo. Seu modo de abordagem busca
autonomizar o sujeito. Tentar ser Hugo Ž falsificar essa rela•‹o de base. Ës vezes
queremos ser como ele pois queremos poder fazer as coisas que ele faz. No caso, a
identidade n‹o Ž de pessoa, e sim de afinidade art’stica. PorŽm, de todo jeito, o que
precisa se ter em mente Ž que n‹o se pode separar a atra•‹o de sua raiz. E o que gera
essa querer ser ou essa vontade de pertencer demonstra-se na clara conscincia do
saber fazer, no conhecimento seguro de como proceder nas diversas demandas e
etapas de um processo criativo.
No lugar do culto, o conhecimento. Com um maior esclarecimento do que
Hugo faz, tornam-se r’diculos certos comportamentos possessivos e etiquetantes.
Ali‡s, uma caracter’stica pouco comentada de Hugo Ž justamente sua comicidade,
tanto na condu•‹o dos ensaios, quanto na organiza•‹o de suas obras. ƒ um tra•o
sempre presente, cheio de varia•›es, com diversos matizes e efeitos, como
contrapartida do pr—prio processo criativo: construir, destruir e rir o tempo todo. MasŽ um tipo de humor que acompanha o fazer da obra sem ser completamente mordaz
ou ir™nico. ƒ a proje•‹o de um rosto que se diverte no que se encontra ocupado,
oscilando entre o jœbilo da realiza•‹o e a tortura do bem fazer. Eis um tema para
futuros desdobramentos.
Outro ainda, cultural, relacionado a este humor, Ž o do entrechoque entre as
matrizes expressivas e vivenciais de Hugo, tens›es do migrante: o carnaval
brasileiro e tradi•‹o platina. Brasil e Uruguai, como culturas que reciclaramlocalmente a Europa, de diferentes modos, e Hugo entre essas modalidades de
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apropria•‹o e transforma•‹o do legado colonial. O brasilguaio Hugo refazendo-se ao
aportar o Brasil. O Hugo de muitas l’nguas, pluril’ngue, lingua alguma, a fala e o ato.
E, sem mais querer dizer mais, a ’ntima rela•‹o de Hugo com o cinema, com
seu grande repert—rio de obras f’lmicas, intertextualmente comentadas e redispostas
em suas obras teatrais.
Disto, chegamos no œltimo t—pico de nosso artigo: a pessoa de Hugo. Deixei
para o final, pois Ž o primeiro e mais imediato aspecto a chamar aten•‹o. O fato de
Hugo, de uma fam’lia e um pa’s de migrantes, ap—s de deixado seu pa’s
sucessivamente para Argentina e Chile e depois de algumas andan•as entre Bahia, Rio
e S‹o Paulo ter fixado sua moradia em Bras’lia Ž algo bem significativo. Uma cidade
aberta, em forma•‹o - Bras’lia, que esse ano completou 50 anos. Fixar residncia n‹o
significa fixar-se, mas h‡ um senso de const‰ncia, algo que reserva um desejo de
permanecer. Hugo quer ser lembrado por Bras’lia. Hugo e Bras’lia, a cidade e seu
artista.
Principalmente agora que, mais de 30 anos depois de sua chegada, a cidade e o
teatro vivendo seus impasses: em Žpoca de editais e teatros institucionais, como
ampliar a imensa demanda por teatro diante das amarras e limites de n‹o termos
espa•os privados de teatro nem de tamanho mŽdio? J‡ temos condi•‹o de oferecer boa
forma•‹o para atores, diretores, encenadores. Mas temos pouca abertura para reflex‹o
cr’tica, circula•‹o de ideias e possiblidade de temporada. A estada de Hugo
consolidou um teatro de qualidade por meio de oficinas-montagem. Agora o grande
desafio Ž termos temporadas mais extensas, Ž ultrapassar o desperd’cio com projetos
que demandam trs meses de ensaios para no m‡ximo 6 apresenta•›es em diferentes
salas de espet‡culo. Isso se dar‡ quando bras’lia tiver mais teatros privados de
dimens›es como por exemplo da sala Martins Penna. Pois como h‡ muitos grupos e
muita produ•‹o para poucos espa•os, para abrigar todo mundo, fatora-se os lugares deapresenta•‹o, dando poucos dias para todos mundo apresentar. Com a diversifica•‹o
da demanda por novas formas de teatro, que Hugo tanto colaborou a fortalecer com
seu trabalho com artistas de diversos estilos e propostas, h‡ a premente necessidade
de se trabalhar com teatros e temporadas, sair do modelo estatizante-institucional.
Esse passo Ž um indicador de crescimento e solidifica•‹o de uma cultura cnica na
capital.
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Entre ficar e transitar- oximoro? Irresolœvel contradi•‹o? Hugo em Bras’lia
desde 1975. Uma pergunta: como viabilizar esse desejo de permanncia, dessa
vontade de perdurar de alguŽm que passou a vida a se consolidar como um agente de
transforma•›es? Creio que junto com o aplauso, com o sorriso, com os elogios
transbordantes devemos come•ar a estudar Hugo Rodar, aprender com ele, interrog‡-
lo. Para tanto devemos dar o passo seguinte: a mesma disposi•‹o em amar precisa ser
extensiva ao bem cuidar. Precisamos multiplicar o acesso ao patrim™nio de suas
realiza•›es: neste livro publica-se parte desse material, como um ponto de partida
para ulteriores projetos. H‡ diversas entrevistas, cr’ticas de jornal, programas de
pe•as, fotos e v’deos de apresenta•›es. H‡ ainda as anota•›es e observa•›es de
parceiros de trabalhos criativos e de estudantes. AlŽm disso, Hugo tem desenhos,
can•›es, croquis, poemas, cadernos de anota•›es e auto-observa•‹o. Tantos arquivos,
tantas fontes podem resultar na cria•‹o de um centro de documenta•‹o n‹o apenas
catalogar registros e dep—sito de informa•›es, e sim para estimular metodologias de
processos criativos e novos grupos. Um centro de informa•‹o e pesquisa a partir de
Hugo Rodas em Bras’lia Ð eis um desafio para aqueles que tm partilhado de sua
desafiadora presen•a.
A hist—ria de Bras’lia e da arte de Bras’lia s‹o atravessadas pela renovadora e
clara instiga•‹o chamada Hugo Rodas. Com o Grupo Pitu (1977-1981), Companhia
dos sonhos (1999-2005) e com o TUCAN (1992-2008), em trabalhos de forma•‹o de
artistas e platŽia, Hugo tem initerruptamente projetado para si e para cultura brasiliera
um compromisso de qualidade e radiante brilhantismo que atravessar‡ gera•›es.
Espero que este livro que ora se publica se transforme em um impulso para
confirma•‹o exponencial desse compromisso.
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20- DRAMATURGIA MUSICAL E CULTURA POPULAR:
APROPRIA‚ÌO E TRANSPOSI‚ÌO DE MATERIAIS SONOROS
PARA A CENA
Uma festa Ž sempre para todos
GADAMER 1985:61.
Desde o in’cio dos anos 2000, a partir de alunos e professores do
Departamento de Artes Cnicas da UnB, tem havido uma tendncia ˆ apropria•‹o e
transforma•‹o de formas da cultura popular 266.
Tal tendncia dentro de um teatro universit‡rio exibe, em um primeiro
momento, questionamento do conhecimento teatral e de sua transmiss‹o dentro da
academia. Predominantemente tanto teorias de interpreta•‹o quanto o repert—rio
ensinados nos cursos de gradua•‹o repercutem identidades e conceitos baseados em
processos criativos cuja refinada intelectualiza•‹o seleciona enfoques desprovidos da
considera•‹o de teatralidades tradicionais267.
Exemplificando: em teoria da interpreta•‹o, uma abordagem mais
stanislavskiana centra-se em uma situa•‹o isolada do ator, reproduzindo os dilemas
do individualismo europeu. No forte contexto reativo antinaturalista que se seguiu
ap—s, temos uma negatividade cada vez mais radical, preponderando dissocia•›es,
fragmenta•›es e uma not‡vel recusa da m’mesis.
O dualismo m’mesis-antim’mesis configura o arco dentro do qual se
distendem as parcialidades e hegemonias nos estudos teatrais, bem como os libelos
contra qualquer forma de representa•‹o ou teoriza•‹o, acarretando uma desorienta•‹o
educada, uma conscincia limitada pela sedu•‹o que um ou outro extremismo proporciona. Quest›es e procedimentos mais integrais ficam sem contexto,
esclarecimento e exerc’cio. Como todo dualismo na verdade Ž uma prerrogativa de
exclus‹o, refor•o de perspectiva privilegiada adotada de antem‹o, as parcialidades
266 Lembro os espet‡culos Rosa Negra, sob dire•‹o de Hugo Rodas, O PresŽpio de Hilariedades, a partir da obra de Ariano Suassuna, ambos de 2002, e otrabalho de Diploma•‹o Entrama, orientado pela profa. Paula Vilas, de 2003.
267 Como os de Stanislavski ou de Grotowski. H‡ tambŽm os casos dasteorias amplas sem processo criativo, paradoxo da incorpora•‹o dos estudos teatraisnos centros superiores de ensino.
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mimŽticas e antimimŽticas entram em rota de colis‹o com paradigmas coletivistas e
interacionistas.
Desse modo, Ž como uma op•‹o para pr‡ticas, teorias e repert—rio que o
incremento de processos criativos que se apropriam de teatralidades tradicionais tem
se efetivado. E essa op•‹o que nos propomos a debater, a partir da apresenta•‹o de
algumas discuss›es do processo criativo de um espet‡culo.
Na elabora•‹o do espet‡culo ÒUm dia de festaÓ reunimos algumas
insatisfa•›es, desejos, hist—rias, procedimentos. Uma primeira quest‹o diz respeito ˆ
correla•‹o entre repert—rio, interpreta•‹o e identidade. Tanto o grupo de estudantes-
atrizes, quanto os professores orientadores convergiram para uma rea•‹o ˆ cansativa e
extenuante (embora sempre regenerada) a•‹o da cultura de massa na determina•‹o do
cotidiano. Vivendo em cidades, podemos observar que cada vez mais se amplia a
homogeneiza•‹o das identidades, ao passo que se reduzem espa•os outros de
figura•‹o.
A possibilidade de um outro mundo que n‹o este, de um outro rosto, de
realidades n‹o t‹o mentais como alternativas aos mundos variados e repetidos, aos
rostos e mentes indexados ˆ reprodu•‹o de um rosto e mente enredados em uma trama
convencionalizada e imposta foi se tornando uma provoca•‹o e uma meta para os
membros do espet‡culo. Pois, se a capacidade efabuladora da cultura de massas reside
em sua oferta de virtualidades apraz’veis, por que n‹o efabular tambŽm, como forma
de se descolar da esquematiza•‹o dos atos de pensar, agir e sentir?
A partir dessa motiva•‹o de se buscar outras referncias que as habituais
consagra•›es do mesmo, de nosso regime de fascina•‹o e encantamento com
contextos privados e imediatistas da experincia humana, n—s nos dirigimos para as
teatralidades tradicionais.
Inicialmente, interrogamos nossa mem—ria, pois a maioria dos membros dogrupo pertence a uma primeira gera•‹o urbana. Parentes, agregados, conhecidos, entre
outros, foram sendo narrados e analisados. Gestos, modos de vestir, falar, olhar, ouvir,
responder, corpos inteiros, multidimensionais, em nexos e atos. Esses quadros sem
moldura foram anotados e dissecados. Sem trama alguma, eles se impunham por meio
do conjunto, amplitude e atratividade.
Sem seguida aos quadros, desenvolveu-se uma discuss‹o sobre a identidade e
interpreta•‹o. A academia privilegia a encena•‹o de cl‡ssicos ocidentais europeuscujas tradu•›es, por sua vez, frequentemente valem-se de molduras liter‡rias na
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sele•‹o de seus materiais verbais. A fala estrangeira duplica-se nessa moldura
liter‡ria, ratificando uma dissocia•‹o entre voz e corpo do ator. Sem lugar de onde
falar, ou falando de um lugar j‡ definido e definitivo por suas exclus›es, a
interpreta•‹o muitas vezes procura suplementar esse alheamento, insistindo em um
encaixe entre a pessoa do papel e a pessoa que o representa. A mem—ria biogr‡fica Ž
movida para promover a biografia de uma figura.
Ora, assim agindo, a interpreta•‹o aproxima-se dos mŽtodos propagand’sticos
da cultura de massifica•‹o. N‹o Ž ˆ toa que existe uma estŽtica da m’dia enquanto
persiste uma estŽtica de figuras isoladas. Eis o estranho paradoxo que unifica
atividades diversas: o paradoxo do individualismo hodierno, no qual temos a
socializa•‹o das inst‰ncias privadas, um coletivismo que torna comum o mesmo, a in-
diferen•a.
No caso da prepara•‹o do espet‡culo ÒUm dia de festaÓ, essas quest›es sobre
identidade e interpreta•‹o ganham maior evidncia em virtude de os articuladores da
cena ser todos do sexo feminino: seis mulheres268.
Na manipula•‹o de materiais sonoros, frente aos h‡bitos hodiernos de se
subordinar o som ˆ imagem, t’nhamos na forma•‹o de atores um obst‡culo a
enfrentar: a separa•‹o entre voz e corpo. Vendo e ouvindo os materiais sonoros das
teatralidades tradicionais, era mais do que preciso focalizar a dimens‹o aural da
representa•‹o. Mais que uma limpeza de ouvidos269, tornou-se imprescind’vel
acompanhar a produtividade do som em um contexto performativo. Tal fato tem sido
continuamente ratificado durante o processo criativo. N‹o h‡ exce•‹o ou alternativa
diante disso. Tornou-se necess‡rio enfrentar uma dramaturgia que levasse em
considera•‹o essa situa•‹o clara e definida sem o recurso a desvios e adapta•›es.
Afinal, a confronta•‹o com esse limite e possibilidade desdobra a busca por
referncias que ultrapassem esquematiza•›es prŽvias e estere—tipos de a•‹o. Amem—ria de figuras atrativas em contextos n‹o urbanos acopla-se ˆ unanimidade
actancial feminina. Pois, dentro do repert—rio ocidental Ž reconhec’vel uma tendncia
hegem™nica na distribui•‹o assimŽtrica entre fun•›es e sexualidade, havendo tanto
268 As alunas-atrizes Ana Paula Barbosa, B‡rbara Tavares dos Santos,Fabyola Rebbeka Barbosa Del Aguila, Mariana Nunes Baeta Neves, Luciana MouraBarreto, Silvia Beatriz Paes Lima Rocha.
269 SCHAFER 1992:67-68, SCHAFER 1997:291-294.
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uma reduzida esfera protag™nica feminina, quanto uma defini•‹o desse protagonismo
ou n‹o por oposi•‹o ou dependncia a uma agentividade masculina.
Tal tendncia no repert—rio disp›e estere—tipos de a•‹o que, dentro de uma
trama, adquirem o status de eventos resolvidos, constantes. Da’ resulta a seguinte
genŽrica equa•‹o como expediente dramatœrgico: a contracena•‹o entre sexos
diferentes Ž igual a elimina•‹o de suas diferen•as por meio de uma expectativa de
enlace a ser ratificada. Os encontros e desencontros entre os sexos diferentes apenas
protelam ou reafirmam uma l—gica de enredo. O feminino sobrevive como elemento
subsidi‡rio, como ÔrecompensaÕ.
Na verdade, para alŽm das quest›es de gnero, prevalece a vit—ria do esquema
sobre os elementos na representa•‹o, sendo o masculino o ve’culo do esquema. A
representa•‹o Ž um meio de exibi•‹o, simula•‹o e aprendizagem de uma perspectiva
sem contradi•›es que tudo explica por que se demonstra inflex’vel a caracter’sticos.
Assim sendo, a presen•a de um grupo de seis mulheres como articuladores de
cena intensifica a reivindica•‹o de um universo ficcional e de uma dramaturgia que
n‹o se limitem a reproduzir esquema e estere—tipos actanciais t‹o despejados e
reproduzidos nos grandes centros urbanos.
Aos exerc’cios de mem—ria, seguiram-se exerc’cios de a•›es dentro de
situa•›es de produ•‹o tradicionais270. Para o grupo de atrizes foi proposto a
elabora•‹o de improvisos a partir da mem—ria e da observa•‹o de rotinas de
sobrevivncia presentes em um cotidiano n‹o urbano. Os improvisos foram
posteriormente escritos como cenas, mas cenas sem referncias a uma macro-estrutura
dramatœrgica.
Dentro desse cotidiano de experimenta•›es, uma outra atratividade foi
ganhando relevo: o calend‡rio das festas. A altern‰ncia entre trabalho e festa revela
uma organiza•‹o c’clica bem diferente da dicotomia ocupa•‹o/lazer presente nassociedades urbanas. O trabalho da festa Ž apropriado diferentemente por seus
realizadores e possui diversas orienta•›es de intera•‹o e participa•‹o.
A complementaridade festa-trabalho transformou-se em um eixo de macro-
estrutura•‹o do espet‡culo, nominando-o. Para esse eixo e seu imagin‡rio implicado
270 A prepara•‹o do espet‡culo Um dia de Festa inicialmente foirealizada no espa•o de duas disciplinas optativas no primeiro semestre de 2003:ÔCorpo tr‡gicoÕ, orientada pelo prof. Jesus Vivas, e ÔTŽcnicas experimentais em ArtesCnicasÕ, orientada por mim. No segundo semestre de 2003 foram incorporadas asorienta•›es dos professores Ces‡rio Augusto e S™nia Paiva.
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foram agregados procedimentos e op•›es de representa•‹o e interpreta•‹o: intera•‹o
cena/platŽia a partir de atos que se direcionem para e exibam rotinas em seu n‹o
acabamento simult‰neas ao cotidiano que envolve tais rotinas. Por isso Um dia de
festa. A correla•‹o entre fazer e contracenar permitiu-nos pensar em uma defini•‹o
integrativa para o espet‡culo. Frente ao particularismo e restri•›es dos esquemas e
estere—tipos, a integra•‹o dram‡tica se apresenta como corretivo e proposi•‹o de
percurso investigativo.
Nesse ponto, ampliou-se a manipula•‹o e apropria•‹o de materiais da cultura
tradicional e o eixo trabalho-festa, por haver a passagem da mem—ria e exerc’cio de
improvisos para a sua observa•‹o. As atrizes participaram de eventos nos quais
puderam analisar e compreender in loco performances festivas em suas
audiovisualidade e dramaturgia, realizadas no entorno de Bras’lia e em Recife.
Em seguida a essa participa•‹o e seu estudo com os conceitos desenvolvidos
por M. Schaffer, consolidou-se a prerrogativa da configura•‹o aural -
sobredetermina•‹o do som em um processo criativo que interroga teatralidades
tradicionais.
Historicamente, a equa•‹o vis‹o = conhecimento tem produzido sŽrias
distor•›es na compreens‹o de atos auralmente orientados em situa•‹o de
representa•‹o. Ora, os sons s‹o vistos somente em rela•‹o ˆ imagem visual, como
desdobramentos ou construtos da vis‹o, ou s‹o progressivamente eliminados frente ao
papel protag™nico da visualidade. E a hegemonia da visualidade, pelo menos nas
teorias herdeiras do platonismo, incrementa a predomin‰ncia de estŽticas mentalistas,
e o h‡bito ds e trabalhar com pr‡ticas dram‡ticas sem referncia ˆs suas marcas
performativas ou ao seu processo criativo.
Na manipula•‹o de materiais sonoros, em confronto aos h‡bitos hodiernos de
se subordinar o som ˆ imagem, t’nhamos na forma•‹o dos atores um obst‡culo aenfrentar: a separa•‹o entre voz e corpo. Ver e ouvir os materiais sonoros das
teatralidades tradicionais era mais do que preciso para que se enfatizasse a dimens‹o
aural do espet‡culo que estava sendo constru’do271. Mais que uma Ôlimpeza de
271 AlŽm do material gravado nos laborat—rios etnogr‡ficos j‡ citados,consultou-se a seguinte discografia: Mœsica popular do Norte, vols 1-4. DiscosMarcus Pereira, Brasil, 1976; Os negros do Ros‡rio. Lapa Discos, Oliveira-MG,1986-1987; Da idade da pedra-Dona ZabŽ da Loca. Ensaio Discos, Pernambuco,1995; Cantos de devo•‹o-Coco de Cabedelo. Terrero Discos, Cabedelo-PB, 1996; Liade Itamarac‡. Ciranda Produ•›es, Recife, 1997; Sert‹o Ponteado: Mem—rias musicais
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ouvidos272Õ, tornou-se imprescind’vel acompanhar a produtividade do som em um
contexto performativo.
M‡rio de Andrade, procurando definir e descrever os eventos dram‡tico-
musicais tradicionais nota, que apesar da variedade de suas designa•›es273, temos uma
composi•‹o ou divis‹o em partes bem distintas : o cortejo e a embaixada274.Essa
divis‹o bipartide caracteriza-se por diferentes nexos entre os articuladores do
espet‡culo e espa•os de intera•‹o. No cortejo, temos a locomo•‹o dos articuladores,
promovendo a movimenta•‹o e acompanhamento do pœblico. Durante o percurso, o
espa•o de representa•‹o n‹o localizado generaliza a presen•a do som das cantigas
como fator organizativo das performances. A can•‹o situa os performers e a
audincia.O percurso expande a realidade aural do espet‡culo entre o acaso dos
incidentes do caminho e a configura•‹o do material sonoro. J‡ durante a embaixada, o
espa•o de representa•‹o Ž fixo, mesmo que a partir desse espa•o os epis—dios ou
jornadas desempenhados abarquem situa•›es de tempo e espa•os outros que o tablado
de agora. A fluidez f’sica do espa•o no cortejo Ž desdobrada na fluidez imaginativa do
espa•o da embaixada275.
A atratividade do som desempenhado pelos articuladores de cena, reunindo e
mobilizando sua audincia, estabelece distin•›es para a compreens‹o e realiza•‹o dos
eventos276.
do Entorno do DF . Roberto Corra Discos, Bras’lia e Goi‡s, 1998; Mœsica do Brasil,vols. 1-4. Editora Abril, Brasil, 1998. Coco Ra’zes de Arco Verde. Terrero Discos,Arco Verde-PE,1999; Comadre Florzinha. CPC-UMES, Recife, 1999; BoizinhoTucum-Vit—ria de Mearim. Associa•‹o Boizinho Tucum e Prefeitura Municipal deVit—ria-ES, 2000; Mestre Salustiano-Cavalo Marinho. Toni Braga Produ•›es, Olinda-
PE, 2001.272 SCHAFFER 1992:67-68 e SCHAFFER 1997:291-294.273 ANDRADE 1982 a : 33 Ònunca houve um nome genŽrico designando
englobadamente todas as nossas dan•as dram‡ticasÓ274 ANDRADE 1982 a: 57.275 ANDRADE 1982 a : 82 Òo que h‡ de mais caracter’stico nas dan•as
dram‡ticas como cen‡rio Ž o uso imemorial do processo de aglomera•‹o de lugaresdistintos. (...) O tablado, a frente da casa, enfim a arena em que dan•am a partedram‡tica Ž suposta representar este e aquele lugar indiferentemente , e ˆs vezes doislugares distintos ao mesmo tempo.Ó
276 ANDRADE 1982 a: 61Òo princ’pio da mœsica nesses cortejoseuropeus Ž nitidamente de encanta•‹o atrativa, pois os instrumentos de sopro s‹omais comumente empregados como chamamento m‡gico dum qualquer benef’cio.Ó
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De forma que a disposi•‹o e arranjo dos materiais sonoros s‹o selecionados
por sua ocasi‹o, por sua situa•‹o de representa•‹o. Assim, ouvir essas mœsicas Ž
analisar seus procedimentos de organiza•‹o do espet‡culo, ao invŽs de se ocupar do
autofechamento das formas, sua exclusividade e alheamento frente ao contexto de
execu•‹o.
Para tanto, uma opera•‹o intelectual afigura-se inadi‡vel: trata-se da
ultrapassagem da moldura. Para ouvir o som e compreender suas referncias e
implica•›es performativas, Ž necess‡rio integrar som, palavras e movimentos em sua
mœtua complementa•‹o, mœtua complementa•‹o que n‹o Ž uma s’ntese a priori,
forjada intelectualmente, mas o resultado da manipula•‹o dos materiais em fun•‹o de
sua situa•‹o de representa•‹o, levando em conta a diferen•a desses materiais e a
descontinuidade decorrente de sua apresenta•‹o.
Os materiais sonoros escutados harmonicamente eram simples, baseados em
reiterados horizontes de tens‹o e relaxamento que dividiam o texto musical. Mas esse
binarismo reiterado acarretava o princ’pio de repeti•‹o como fator estruturante das
performances. Por meio da repeti•‹o do padr‹o harm™nico eram providas
determinadas expectativas de configura•‹o e abarcamento dos desempenhos - fins e
in’cios, a possibilidade do encaixe, expans‹o e montagem de partes dentro das partes.
A repeti•‹o situa a marca•‹o b‡sica a partir da qual diferencia•›es outras ser‹o
efetivadas.
Dentro desses arcos de tens‹o e relaxamento harm™nico, temos a
instrumenta•‹o. Em simultaneidade ou n‹o com o canto, o acompanhamento
atravessa a performance e sua instrumenta•‹o, a escolha de seus materiais, determina
o que se representa. Principalmente o sistema percursivo. Os instrumentos escolhidos,
combinados e os ritmos desempenhados interpretam e especificam, mais que o car‡ter
da mœsica, referncias tanto para universo imaginativo concretizado quanto para osmovimentos dos articuladores de cena. A dan•a e o canto valem-se desses padr›es
para elaborar sua coreografia e sele•‹o vocabular. Pois o sistema percusivo exibe
m—dulos que em sua combina•‹o e varia•‹o s‹o escutados durante os cantos e dan•as,
seja durante as pausas do canto, o que demonstra o fato que Ž a partir de um
continuum sonoro, de um espa•o organizado ritmicamente que a performance se
organiza. As varia•›es da textura s‹o os cont’nuos atos de se repropor o espa•o
sonoro e seus suportes materiais. A correla•‹o entre figura e fundo aqui mais seentende: ao invŽs de uma dicotomia simplista entre principal e secund‡rio,
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observamos que a reitera•‹o de padr›es r’tmico-sonoros n‹o se faz com o objetivo de
refor•ar um primeiro plano da palavra cantada. Antes, Ž a simultaneidade de atos
representacionais in loco para mobilizar a audincia e configurar o espa•o de
desempenhos que fundamenta esse encadeamento de atividades que se interpenetram.
ƒ sempre para alŽm da moldura, para uma repercuss‹o que os sons se dirigem.
Do mesmo modo, o texto cantado e a coreografia realizada n‹o se definem por
suas inst‰ncias individuais. A altern‰ncia entre os desempenhos e suas materialidades
insere a continuidade sonora na continuidade da varia•‹o do que se mostra e integra.
A co-ocorrncia ou separa•‹o entre as modalidades de performance que
analiticamente podem ser descritas e mapeadas n‹o se justifica formalmente. A
altern‰ncia entre as modalidades de performance Ž movimento de amplitude da
configura•‹o dos desempenhos. Contra a atomiza•‹o de seus constituintes, a
dramaturgia musical avan•a na promo•‹o de sua perspectiva de integra•‹o. Ouvir e
ver as performances auralmente orientadas Ž participar da extens‹o de uma a•‹o sobre
materiais diferentes integrados justamente na forma•‹o de amplos contextos de
recep•‹o.
Ap—s estes estudos, discuss›es e improvisos, a prepara•‹o do espet‡culo
chegou a um momento crucial: o da elabora•‹o de um roteiro de representa•‹o. J‡
dispœnhamos de diretrizes do imagin‡rio a ser representado, dos materiais sonoros, da
constru•‹o de personagens e cenas, da macro-estrutura•‹o do espet‡culo.
Para essa etapa, solicitou-se que as atrizes compusessem dois exerc’cios
escritos que seriam retrabalhados pela orienta•‹o de dramaturgia. O primeiro
descrevia um dia, o arco que se distende da madrugada atŽ a noite, um dia e suas
ocupa•›es. O segundo exerc’cio era o da escritura de um roteiro a partir das
discuss›es j‡ realizadas.
Esses exerc’cios funcionavam como aproxima•›es a uma maior concretiza•‹ode um roteiro base para a fase posterior da encena•‹o, principalmente no que diz
respeito ˆ ordem e seqŸncia dos eventos e na sele•‹o e nomina•‹o das figuras.
De posse desses exerc’cios de roteiro, a orienta•‹o de dramaturgia passou ˆ
escritura do roteiro base. A tarefa de escrever para um elenco definido dentro de
diretrizes comuns e com a necessidade de facultar momentos de igual destaque para
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avalia•‹o das atrizes, constitui-se em uma situa•‹o-problema277. Partindo desses
limites e determinantes, procedeu-se ˆ roteiriza•‹o como incorpora•‹o mesma da
situa•‹o-problema.
Eis alguns procedimentos dramatœrgicos utilizados na elabora•‹o do roteiro de
Um dia de festa: como medium das performances, exibindo seu controle r’tmico e
expondo as materialidades sonoras do espet‡culo e v’nculo com as dramaturgias
tradicionais, adotou-se o verso. Uma dramaturgia em versos, dominante na cultura
popular, foi hegem™nica na erudita e liter‡ria atŽ o sŽculo XVIII. O reino da prosa
encontrou seu auge no sŽculo XIX com propostas realistas-naturalistas278. A
necessidade de legitimar os conteœdos e referentes de uma representa•‹o, de
transformar o espet‡culo em produto do pensamento, de uma idŽia, cada vez mais,
desde o Iluminismo, foi expurgando atos e referncias que demonstrassem a
teatralidade da representa•‹o. A busca da transparncia das representa•›es279,
cancelando as perturba•›es do medium, proporcionou a separa•‹o de atividades
verbais e musicais, cabendo ˆ fala sem marcas de uma configura•‹o audiofocal mais
expl’cita uma domin‰ncia nunca antes vista nos palcos. Entre o pœblico e os atores,
n‹o h‡ mais a diferen•a que a palavra contracenando com sua organiza•‹o r’tmico-
sonora e com a organiza•‹o r’tmico-sonora do espet‡culo produz, tanto que drama
versificado tornou-se exce•‹o presente apenas nos autos populares, em obras antigas
ou em isoladas cria•›es modernistas.
A op•‹o por uma dramaturgia em versos, ao mesmo tempo em que se insere
dentro de uma grande tradi•‹o teatral como a de Shakespeare e a do teatro grego,
retoma e transforma dramaturgias tradicionais. Essa dupla perten•a ˆ cultura
tradicional e erudita, determinou a modela•‹o dos versos. Dois tipos de versos foram
utilizados no espet‡culo: um verso recitado cont’nuo que fisiciza espa•os de intera•‹o
entre os personagens, e o verso cantado.
277 N‹o esquecer que todo o processo criativo Ž articulado dentro doespa•o institucional e did‡tico de um Projeto de fim de curso em interpreta•‹o teatral.
278 Note-se a despropor•‹o: se tomamos os documentos do sŽculo V a.C(tragŽdia grega) como ponto de partida e o intervalo entre sec. XVIII e sec. XX comoin’cio e auge do reino da prosa, temos vinte e dois sŽculos contra trs, vinte e doissŽculos de drama versificado, o que nos mostra uma outra escala temporal digna deser pensada. Note-se que Ž durante esse mesmo intervalo (sŽc. XIX-XX) que temosuma separa•‹o de atividades, com a dramaturgia musical mais associada a espet‡culosoper’sticos.
279 Como veremos no cap’tulo final deste livro.
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No verso caso do cont’nuo, optou-se pelo verso de 11 posi•›es mŽtricas, ao
invŽs do verso de 10 posi•›es, este de imensa produtividade liter‡ria, e dos versos de
7 e 5 posi•›es, t‹o eficientes na dramaturgia tradicional280.
A motiva•‹o de tal escolha deu-se em raz‹o da busca por desenvolver uma
dramaturgia em versos impusesse seus padr›es r’tmicos por meio de sua concep•‹o e
estrutura•‹o musical e n‹o na transposi•‹o de padr›es j‡ t‹o reconhecidos. Frente ˆ
imediata correla•‹o entre os conhecidos metros de 10 e 7/5 posi•›es, preferiu-se
fundamentar a resposta da platŽia em um metro que incorpora as vantagens de ambos
os metros cont’nuos tradicionais e liter‡rios, sem as desvantagens de suas conven•›es
e familiaridade. Para que as palavras n‹o fossem acobertadas pela satisfa•‹o e
identifica•‹o do metro, optamos pelo mascaramento inicial da metrifica•‹o atravŽs do
verso de 11 posi•›es. Tal estratŽgia se apresenta v‡lida frente ao reino da prosa. ƒ
partir desse reino que nos movimentamos.
Ainda, alŽm do verso cont’nuo de 11 posi•›es, temos a rima. O desgaste do
uso da rima nas can•›es da cultura de massas e a rea•‹o anti-parnasiana que insufla a
forma•‹o da moderna experincia poŽtica brasileira, determinou a escolha de um
padr‹o de rimas que repercutisse o mascaramento utilizado na metrifica•‹o. Adotou-
se um esquema que alterna rima e ausncia de rima. Sempre temos um verso sem
coincidncia final de som com o verso seguinte, seguido por dois versos que tem
coincidncia: abbcddeffghhijjlmmnoopqqrss .... AlŽm disso, as rimas s‹o soantes,
somente as vogais coincidem Ð em nosso caso sons com as vogais ÔiÕ e ÔaÕ em s’labas
t™nicas.
A utiliza•‹o de um verso cont’nuo com termina•›es soantes e outras n‹o
marcadas para um drama em versos apresentou-se como solu•‹o para uma cultura
prosaica, ou de neutraliza•‹o aural, que engloba tanto as atrizes, quanto a audincia.
Tanto para quem ouve, quanto para quem atua o uso de organiza•›es r’tmico-sonorasŽ um obst‡culo. A prevalncia de esquemas actanciais veiculados em prosa incentiva
a ado•‹o de uma fala plena, hom—loga de uma unifica•‹o dos n’veis de realidade do
espet‡culo. J‡ com versos, h‡ os constrangimentos sint‡ticos, sem‰nticos, vocabulares
280 Segundo CåMARA CASCUDO 1984:339 Ò O metro do romance,fundado no tetr‰metro trocaico acatalŽtico, o octan‡rio trocaico, pie de romances,como lho diziam os espanh—is, determinou o setiss’labo, pela n‹o contagem de umas’laba no hemist’quio. O esp’rito do idioma, a ’ndole do ritmo popular fixou osetiss’labo como sendo o metro nacional. (...) O Povo n‹o cultivou as formas cultas dosoneto nem os versos de 12 s’labas.Ó
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e referenciais que sele•‹o e combina•‹o das palavras efetiva281. Quem atua e quem
participa do espet‡culo v-se confrontado com materialidades organizadas com as
quais ter‹o de contracenar para poder interagir com o que Ž representado. H‡ a
necessidade de um esfor•o, de um impulso para alŽm de uma normalidade
comunicativa. A dramaturgia musical vale-se de padr›es r’tmicos e sonoros para
modificar a situa•‹o do intŽrprete. Frente ao som, o espa•o de troca e intera•‹o Ž
transformado.
Dessa maneira, os procedimentos de metrifica•‹o n‹o se reduzem a
expedientes de ornamenta•‹o. Nessa pe•a, a ado•‹o de um verso cont’nuo com
constrangimentos r’tmicos e sonoros procura interpretar auralmente o movimento de
aproxima•‹o e estranhamento que perpassa tanto as situa•›es representadas, quanto o
evento mesmo de um drama musical. O verso atravessa a representa•‹o, indexando
referncias ao imagin‡rio encenado, ˆ constru•‹o das performances das atrizes e da
audincia e ao modo mesmo de articula•‹o das possibilidades n‹o prosaicas em uma
sociedade de consumo. Atravessando a representa•‹o, o verso correlaciona a
amplitude e organiza•‹o do espet‡culo com a amplitude e mœtua implica•‹o das
referncias. Como agente de repercuss‹o e horizonte de expectativas, o verso
cont’nuo de rima soante faz irromper sobre seus articuladores e receptores uma
coer•‹o que se traduz em recusa a h‡bitos e situa•›es comunicacionais
convencionalizadas282. Modelando a inteligibilidade do que Ž dito, as palavras deixam
de se justificar pela identidade entre papel e estabilidade psicol—gica, como se aquilo
que se diz em cena fosse exclusivamente propriedade de quem se Ž ou do que se faz,
uma ÔnaturezaÕ. O excesso que a configura•‹o sonora do verso cont’nuo realiza ao
281 Como nem todas as palavras possuem a mesma termina•‹o sonora, arestri•‹o aural acarreta a restri•‹o vocabular.
282 Sobre este ponto, R. Wagner (1995:231,233) comenta: ÒAtoresinteligentes, aos quais importava comunicar-se com o entendimento dos ouvintes,
pronunciaram {o iambo, verso cont’nuo}como simples prosa. Os insensatos, quediante do ritmo do verso n‹o eram capazes de compreender seu conteœdo,declamaram como melodia sem sentido e sem som, t‹o incompreens’vel quanto n‹omelodiosa. (...) a rima soante se estabeleceu como condi•‹o indispens‡vel do versoem geral. (...) O verso que conclui com rima consoante Ž capaz de determinar aaten•‹o ao —rg‹o sensorial do ouvido atŽ o ponto em que este possa sentir-se atra’do
pela escuta do regresso da parte rimada pela palavra. Pois com isso este —rg‹o est‡disposto ˆ aten•‹o, quer dizer, cai em um espera expectante (...) Somente quando ainteira capacidade sensorial do homem Ž estimulada plenamente ao interesse por umobjeto comunicado a ela por um sentido receptor, consegue a for•a para estender-sede novo.Ó
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modificar pr‡ticas e t‡ticas interpretativas impulsiona o som ao ato, fazendo uma
montagem entre palavra e a•‹o. ƒ a partir desse excesso de organiza•‹o da
performance que a performance mesma correlaciona suas diferentes modalidades em
seus diversos tempos e habilidades. A organiza•‹o r’tmico-sonora da performance em
cena abre-se para alŽm de seu registro escrito, exibindo a ampla contextura dos atos
representacionais e recepcionais, expondo a audiovisualidade do espet‡culo. Ao invŽs
do apagamento das marcas aurais, os quais revelam e orientam a fic•‹o
desempenhada e compreendida, a continuidade do padr‹o r’tmico-sonoro imp›e
justamente a sua configura•‹o. Ora, uma situa•‹o de representa•‹o audiovisual exige
meios audiovisuais e uma recep•‹o orientada para estes meios e situa•‹o.
O segundo tipo de verso utilizado no espet‡culo Um dia de festa foi o cantado.
As partes cantadas do espet‡culo sucediam-se as partes de verso cont’nuo. Essa
altern‰ncia encontra-se bem fundamenta na pr‡tica dramatœrgica ocidental283 e no
interior mesmo da organiza•‹o das performances tradicionais. O princ’pio de
altern‰ncia j‡ havia sido utilizado na metrifica•‹o das partes n‹o cantadas.
Macroestruturalmente, a altern‰ncia entre partes cantadas e partes de versos cont’nuos
encontra na organiza•‹o das performances cantadas sua matriz.
Assim sendo, os ritmos escolhidos para as partes cantadas, a composi•‹o
mesma das partes cantadas justifica-se em virtude da macroestrutura do espet‡culo.
Para tanto, foram escolhidos e refigurados materiais tradicionais previamente
escutados e analisados, materiais esses que se configuravam como interpretantes de
sua situa•‹o de representa•‹o. Logo ap—s o mon—logo de abertura da pe•a, temos um
canto de apresenta•‹o das personagens, constru’do a partir de um coco tambŽm
utilizado em abertura de performance. Ap—s a primeira cena de di‡logos, nos valemos
de uma composi•‹o que justap›e um coco e uma ciranda, para uma dramatiza•‹o de
um relato. Segundo a rubrica, ÒConta-se a hist—ria de Arminda em forma de umaciranda misturada com um coco. Com essa mistura de andamentos e ritmos,
deslocam-se os referentes: o coco, mais agitado e sincopado Ž usado para as partes
mais descritivas da cena e a ciranda para as partes mais impactantes.Ó
Durante o espet‡culo, cantos de trabalho alternam com di‡logos e, ao fim,
temos uma catira para fechar o espet‡culo, retomando e invertendo o canto de
apresenta•‹o.
283 V. MOTA 2002.
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Enfim, o que podemos atŽ aqui afirmar que o caminho rumo ˆs dramaturgias
tradicionais satisfaz e estimula uma apreens‹o mais global do fazer cnico, integrando
pr‡ticas e saberes que se caracterizam pelo enfrentamento de sua
multidimensionalidade e das problem‡ticas implica•›es dessa multidimensionalidade.
Fazer ver, fazer-se ouvir e mobilizar, crescer para alŽm de n—s mesmos 284 diante de
alguŽm s‹o diferentes e correlacionadas atividades e metas inspiradas na
aprendizagem de dramaturgias tradicionais. E Ž rumo a uma dramaturgia musical que
todas essas atividades e metas se definem e se compreendem.
284 GADAMER 1985:79.
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21- A DISCUSSÌO DA IDƒIA DE ESPA‚O EM KANT E SEU
CONTRAPONTO NA TEATRALIDADE
Na abertura de seu longo ensaio sobre cronotopias no romance, em nota de
rodapŽm, M. Bakhtin apresenta o diferencial de sua abordagem em rela•‹o a Kant
nesses termos: Ò Na sua ÒEstŽtica Transcendental Ó(uma das partes b‡sicas da Cr’tica
da Raz‹o Pura) Kant define o espa•o e o tempo como formas indispens‡veis de
qualquer conhecimento, partindo de percep•›es e representa•›es elementares.
Tomaremos a aprecia•‹o de Kant do significado destas formas no processo de
conhecimento, mas n‹o a compreendemos, diferentemente de Kant, n‹o como
transcendentais, mas como formas na pr—pria realidade efetiva. Tentaremos revelar o
papel destas formas no processo de conhecimento art’stico concreto.(BAKHTIN,
1988,p. 212.)Ó
O projeto investigativo de Bakhtin, pois, fundamenta-se em um jogo de
partilha e refuta•‹o da proposi•‹o kantiana. Tal proposi•‹o Ž o ponto de partida ao
mesmo tempo em que alvo cr’tico. O diferencial se encontra na recusa da abstra•‹o
que se pode depreender da ÒEstŽtica TranscendentalÓ. A produtividade do conceito de
cronotopia em arte, da Òinterliga•‹o fundamental de tempo e espa•oÓ, formando Òum
todo compreensivo e concretoÓ, no qual Òo pr—prio tempo condensa-se, comprime-se,
torna-se artisticamente vis’velÓ e Òo pr—prio espa•o intensifica-se, penetra no
movimento do tempo, do enredo e da hist—ria285Ó, est‡ diretamente relacionada com a
supera•‹o integrativa do apriorismo kantiano.
Assim, espa•o e tempo como condi•›es de conhecimento s‹o apropriados,mas espa•o e tempo n‹o permanecem como inst‰ncias absolutas. Antes, tanto s‹o
referncias para a apropria•‹o quanto para sua transforma•‹o em um processo
criativo. Logo, Ž para a flexibilidade da moldura que Bakhtin aponta. Tempo e
espa•o, ao mesmo tempo em que prŽvios, prŽ-existentes, s‹o redefinidos pela
interven•‹o modificadora da arte.
285 Todas afirma•›es em aspas deste par‡grafos provm de BAKHTIN1988:211.
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Voltando-se a Kant, podemos melhor compreender essa rea•‹o ˆ abstra•‹o do
tempo e do espa•o que caracteriza n‹o s— Bakhtin como o pensamento p—s-metaf’sico,
e que impulsionou uma pluralidade de manifesta•›es art’sticas modernas e
contempor‰neas.
Kant, procurando emancipar a ÔRaz‹oÕ de toda sua circunscri•‹o teol—gica e
tradi•‹o filos—fica em seus infind‡veis debates e especula•›es, empreende uma busca
pelos princ’pios atravŽs dos quais h‡ produ•‹o de conhecimento. Essa hip—tese
regressiva situa para alŽm e independentemente da experincia a fonte dos atos
cognitivos.
A arquitet™nica da raz‹o, constru’da em A Cr’tica da Raz‹o Pura, parte, pois,
da pressuposta separa•‹o entre Òdois troncos do conhecimento humano, porventura
oriundos de uma raiz comum, mas para n—s desconhecida, que s‹o a sensibilidade e o
entendimento. Pela primeira, s‹o-nos dados os objetos; mas pela segunda s‹o esses
objetos pensados.286Ó
Essa hier‡rquica divis‹o proporciona o mŽtodo e as tarefas da investiga•‹o
kantiana: primeiro haver‡ uma descri•‹o da sensibilidade, uma teoria transcendental
da sensibilidade; em seguida, uma descri•‹o do entendimento, uma teoria
transcendental do entendimento.
A precedncia da sensibilidade sobre o entendimento Ž ambivalente. A
sensibilidade aparece como momento da atividade de conhecer. Nesse momento, as
Òcondi•›es por meio das quais nos s‹o dados os objetos de conhecimento precedem as
condi•›es segundo as quais esses mesmos objetos s‹o pensadosÓ. Mas tal
proeminncia Ž secund‡ria. Pois o encontro da sensibilidade com os objetos Ž
configurado pela existncia prŽvia n‹o do objeto, mas da capacidade de pensar esses
objetos, pela intui•‹o que medeia a compreens‹o desses objetos. Ou seja, a
sensibilidade pensa, n‹o como o entendimento. Pensa por meio de intui•›es, um tipode quase-racioc’nio, uma apreens‹o. Antes da situa•‹o interativa com os eventos, h‡ o
intermŽdio desse pensar ainda n‹o formalizado em sistema.
Para melhor esclarecer racionalidade sens’vel, Kant advoga o isolamento da
sensibilidade, Òabstraindo de tudo o que o entendimento pensa com seus conceitos,
para que reste a intui•‹o emp’rica.Ó Depois, Òapartaremos ainda desta intui•‹o tudo o
que pertence ˆ sensa•‹o para restar somente a intui•‹o pura e simplesÓ E, finalmente,
286 Sigo neste e nos par‡grafos seguintes Introdu•‹o e Primeira parte daDoutrina Transcendental dos Elementos de A Cr’tica da Raz‹o Pura.
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ap—s essas duas exclus›es Ž que entra o espa•o: Òh‡ duas formas puras da intui•‹o
sens’vel, como princ’pios de conhecimento a priori, a saber , o espa•o e o tempoÓ. A
sensibilidade Ž constru’da em uma cadeia de exclus›es e redefini•›es primeiro
relacionados com a divis‹o das capacidades, depois quanto ao dom’nio de seus
objetos e, por fim, quanto ao seus fundamentos.
A conceptualiza•‹o do espa•o Ž decorrente dessa tentativa de isolar o que
determinaria uma sensibilidade pura, na qual n‹o h‡ nada que perten•a a sensa•‹o. ƒ
uma sensibilidade desprovida de sensibilidade, Ž a idŽia de uma sensibilidade sem a
experincia sens’vel. E a cincia de todos os princ’pios da sensibilidade a priori Ž
denomina EstŽtica transcendental. A estŽtica Ž compreendida aqui como um
empreendimento que busca conhecer o que n‹o Ž sens’vel na sensibilidade, o que se
extrai dela, o que dela se separa e se manifesta como idŽia.
As opera•›es mentais de se isolar os objetos da sensibilidade acarretam ainda
um res’duo de experincia concreta - a extens‹o e a figura. O repert—rio de produtos
do mundo Ž expurgado de sua diversidade infinita para se confinar na forma e no
nœmero. A independncia desses atributos genŽricos quanto ˆ sua materialidade e
manuseabilidade Ž o que importa.
ƒ a partir dessa abstra•‹o da sensibilidade que o conceito de espa•o Ž
discutido em Kant. Como uma comprova•‹o da existncia e necessidade de uma
estŽtica transcendental, de um conhecimento das coisas que n‹o passa pelas coisas
mesmas, Ž que o espa•o aparece.
Em decorrncia disso, o espa•o n‹o Ž espa•o. A primeira experincia do
espa•o como algo exterior a mim e suficiente em si mesmo deixa de existir. Para
Kant, Òa representa•‹o do espa•o n‹o pode ser extra’da pela experincia das rela•›es
dos fen™menos externos, pelo contr‡rio esta experincia externa s— Ž poss’vel, antes
de mais nada, mediante essa representa•‹o.Ó Antes de ser coisa, o espa•o Ž uma idŽia.E Ž somente como idŽia que temos conhecimento do espa•o. Pois somente
conhecemos a idŽia. A idŽia de conhecer Ž o pr—prio conhecimento. Logo, tudo tem
de se tornar idŽia para ser conhecido.
Por isso o espa•o torna-se, deixa de ser o que Ž, transforma-se em uma
Òrepresenta•‹o necess‡ria, apriori, que fundamenta todas as intui•›es externas.Ó Mas
como aquilo que Ž, deixa-se de ser em sua limita•‹o, para expandir-se em fundamento
de tudo que existe? Note-se como h‡ uma dupla l—gica de redu•‹o e infla•‹o. Quanto
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mais o espa•o perde matŽria, mais presente ele Ž. A desmaterializa•‹o do espa•o
acarreta sua generaliza•‹o.
N‹o estando em nenhum lugar, mas constituindo a idŽia de todos os lugares,
onde se encontra esse espa•o? Segundo Kant como intui•‹o, o espa•o Òdeve
encontrar-se em n—s a priori, isto Ž, anteriormente a toda a nossa percep•‹o de
qualquer objetoÓ Como uma idŽia nata, uma disposi•‹o a reagir e se sentir afetado por
objetos e da’ traduzir essa sensa•‹o em uma representa•‹o Ž que o espa•o se
esclarece. O que na verdade o espa•o Ž encontra-se na exposi•‹o de como a
sensibilidade funciona. As opera•›es da sensibilidade determinam a espacialidade.
Dessa maneira, tal como a sensibilidade, o espa•o Ž desprovido de um contexto
pr—prio. A partir das distin•›es e hierarquia propostas por Kant Ž que ele passa a
existir. A realidade do espa•o depende de sua Ôvalida•‹o objetivaÕ, produzida pela
arquitet™nica que Kant constr—i. O espa•o nada Ž se n‹o for possibilitado por essa
arquitet™nica. Para que o espa•o exista Ž preciso que se aceite a explica•‹o e a
sistem‡tica kantiana.
Assim, a dogm‡tica kantiana transparece como um interdito que somente acata
aquilo que previamente foi estabelecido. Da’ haver tanta negatividade: Ònada do que Ž
intu’do no espa•o Ž uma coisa em siÓ, Òo espa•o n‹o Ž uma forma das coisasÓ e,
finalmente, Ònenhum objeto em si mesmo nos Ž conhecido e que os objetos exteriores
s‹o apenas simples representa•›es de nossa sensibilidade.Ó
Essa dr‡stica invers‹o da situa•‹o cotidiana, na qual os objetos est‹o para n—s
e o contato com eles nos ensina a modelar modalidades concretas de sobrevivncia e
cria•‹o, correlaciona-se ˆ tentativa kantiana de sistematizar a capacidade de conhecer
em sua universalidade. Um modo b‡sico de conhecer, a sensibilidade, Ž a recep•‹o ao
mundo. PorŽm, tal recep•‹o Ž feita pelo est’mulo da coisa, para pela idŽia, pela
intui•‹o em mim dos objetos. O solipsimo kantiano refreia a espacializa•‹o mesma dosujeito cognoscente.
No teatro, em uma situa•‹o de generalizada fisicidade, essa distin•‹o entre o
sujeito e o espa•o, entre exterior e interior Ž solapada: tudo Ž expl’cito, tudo se
mostra, tudo se exibe como feito e fato de uma contextura observacional. Vejamos,
como exemplo, um caso concreto.
Acompanhando v‡rias montagens do premiado ator e diretor Hugo Rodas,
chama aten•‹o o que podemos denominar Ôinteligncia coreogr‡ficaÕ. Tal intelignciase demonstra atŽ as raias do virtuosismo: dificilmente ele repete uma configura•‹o
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espacial. Na vis‹o hodierna muitas vezes o espa•o de cena Ž um lugar para se colocar
coisas e pessoas, como se o espa•o j‡ estivesse ali, precisando ser apenas organizado,
como uma despensa ou um arm‡rio.
Mas tome-se a sua recente montagem (2006) de Navalha na Carne, de Pl’nio
Marcos. Primeiro, quando voc entra no teatro, o pœblico est‡ disposto nas
arquibancadas laterais, em volta do espa•o central de atua•‹o. Somente a parte do
fundo n‹o est‡ ocupada para o pœblico. Assim se forma uma quase arena, que limita a
perspectiva do que vai ser visto. Em cada lugar h‡ uma experincia de observa•‹o. O
espa•o de atua•‹o Ž um corredor com cadeiras marcando os pontos extremos das trs
linhas de movimenta•‹o dos atores. Os atores n‹o contracenam diretamente. O
publico observa as trajet—rias dos atores, completando os atos de restrita
contracena•‹o. Nesses pontos de convergncia entre as a•›es dos atores Ž que o
publico interage com o espet‡culo. Assim, o publico percebe o movimento como
movimento e ao mesmo tempo se apropria do que v. ƒ um jogo espec’fico entre o
n‹o realismo da cena, na estiliza•‹o dos movimentos, e o hiperrealismo do efeito, na
rea•‹o aos ataques, humilha•›es e golpes que nossa imagina•‹o completa. Assim,
todos est‹o atuando. Nisso, n‹o temos propriamente ÔmovimentoÕ no espa•o. Os
atores mostram a orienta•‹o de seus atos, mas o acabamento deles Ž realizado pela
platŽia. N‹o coincidem o ato e seu agente. O ato violento desloca-se do agente para a
audincia.
Ora, como isso Ž realizado? Simplesmente os atores desdobram-se em
personagens conectados a um mundo de referncias dos seus personagens e em
bailarinos, no qual seus corpos efetivam o contexto f’sico dos atos envolvidos na
atualidade da cena. Os atores disparam referncias intelectuais e org‰nicas para a
platŽia. E, por incr’vel que pare•a, esse desdobramento que enriquece e amplia a
presen•a dos atores em cena s— se faz poss’vel pela interrup•‹o da fus‹o entre atua•‹oe totaliza•‹o das referencias da personagem. Para alŽm do paradoxo, Ž justamente
nessa interrup•‹o, neste n‹o acabamento que a inteligncia coreogr‡fica de Hugo
Rodas se compreende. Porque os atores v‹o come•ar a apresentar em cena o processo
criativo que durante os meses anteriores ˆ apresenta•‹o possibilitou uma sele•‹o de
atos, gestos, olhares, a materialidade mesma dos atuantes e do espet‡culo. Quando o
mundo da pe•a se choca com o processo criativo, temos isso mesmo: o diferencial da
abordagem, da di‡ria e detida transforma•‹o dos atores, de seus corpos, de suasmentes. Sem o tempo dessa transforma•‹o, n‹o h‡ esse desdobramento.
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Assim, aqueles que se deslocam no espa•o colocam o espa•o em movimento -
a l—gica de op•›es firmemente estabelecidas e testadas durante o processo criativo. O
desdobramento do ator entre personagem e bailarino faz irromper esse corpo
preparado, aberto aos est’mulos da orienta•‹o, e capaz de saber o que fazer durante o
tempo de sua exibi•‹o. Em uma peca t‹o encenada como Navalha na Carne isso foi
fundamental. A premente consuma•‹o dos atos violentos deu lugar ˆ sua
redistribui•‹o para todos que vieram no teatro. A situa•‹o n‹o fica restrita aos atores.
As criaturas da sarjeta como Neusa Sueli, Vado e Veludo, o seu mundo n‹o Ž s— o
mundo deles.
Impressionantemente uma pe•a de quase quarenta anos (1967) ter suas
referncias ainda com muito apelo e efeito. Mas isso s— foi obtido n‹o somente por
causa das palavras, e sim pela inteligncia coreogr‡fica, espacial, performativa de
Hugo Rodas que, ao encenar a pe•a e distribuir os atores e o pœblico em cena e ao
orientar a din‰mica da contracena•‹o, soube enfatizar a abertura da cena ao mundo.
Com sua longa experincia de teatro, habilitado em trabalhos de teatro de rua, dan•a e
teatro convencional, Hugo Rodas conhece como poucos a amplitude do que significa
o design da cena. Como cada espet‡culo Ž œnico, cada espet‡culo deve resolver sua
materialidade de modo œnico. E, sem dœvida alguma, o melhor ponto de partida Ž
conferir aos atores uma flexibilidade que se pode encontrar na modela•‹o do espa•o.
Os atores modelam a si mesmo e a espa•o Ð e esse espa•o os modela. Os atores s‹o
agentes de espacializa•‹o, s‹o criaturas do espa•o.
Diante do trabalho de Hugo Rodas com Navalha na Carne, pude novamente
apreciar a beleza incisiva e terr’vel de Pl’nio Marcos, um verdadeiro teatro da
crueldade. Pude de fato estar em movimento.
Com o espa•o em a•‹o, com agentes espacializados, a conscincia do espa•oadquire diferentes prerrogativas. Em vez da unicidade do espa•o, baseada na redu•‹o
operada por restri•›es mentais Ð como se v em Kant Ð temos a ades‹o integral do
agente a uma situa•‹o espec’fica de produ•‹o de referncias, na qual negocias com
materialidades existentes e, a partir dessa negocia•‹o, h‡ uma redefini•‹o dos
elementos prŽvios em prol da atualidade de sua efetiva•‹o. A espacializa•‹o teatral Ž
o lugar de transforma•‹o de materiais in situ.
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22- DRAMATURGIA E COMIDADE: NOTAS DE PESQUISAS EM
CURSO
Pensar a comŽdia
Em uma imediata percep•‹o, tirando nome de autores, obras e programas
televisivos, um imenso conjunto de referncias pode surgir quando nos referimos a
comicidade. Logo vem ˆ mente uma infinidade de palavras: rir, riso, sorriso, rid’culo,
engra•ado, palha•o, bobo, palha•ada,piada, clown, bufo, buf‹o, Commedia delÕarte,
grotesco, deboche, humilha•‹o, ironia, s‡tira, sat’rico, bobagem, estœpido, tolo,
ignorante, intriga,boneco, desenho animado, sit com, stand up comedy,
gags,improviso esquete, escada, tombos, feio, duplas, velho, gordo, comŽdia de
situa•‹o, comŽdia de costumes... e assim vai.
Inicialmente, o escopo da lista reœne referncias as mais diversas, o que
mostra n‹o s— a alta produtividade da comicidade como tambŽm sua diversidade.
Assim a comicidade torna-se um objeto polifocal, que em suas mœltiplas
manifesta•›es pode ser observado,analisado, apreciado e discutido sob variadas
perspectivas.
Podemos come•ar a organizar este aparente caos reconhecendo que um grupo
dessas dispersas referncias diz respeito ao efeito que a comicidade produz Ð rir.
Assim, uma das caracter’sticas da comicidade reside em seu efeito na produ•‹o de um
desempenho, de atos em quem dela participa.
Tal caracter’stica, porŽm, apesar de t‹o evidente e fundamental, n‹o define
totalmente a comicidade. H‡ experincias c™micas, performances que n‹o fazem rir. E
h‡ v‡rios tipos de risos, desde a gargalhada espalhafatosa, uma convuls‹o e perda def™lego, atŽ um riso de constrangimento, o rir sem gra•a.
O efeito c™mico, ao mesmo tempo que revela grande parte da produ•‹o da
comicidade n‹o Ž seu fundamento, nem, muito menos o cl’max, a meta, a totalidade
do processo. Esta reflex‹o nos leva para tentar perceber a amplitude da comicidade.
Outras referncias na lista apontam para procedimentos, tŽcnicas e, disto para
estilos de interpreta•‹o e performance. A quest‹o n‹o s— est‡ em quem se apropria do
evento c™mico e responde a ele. De outro lado, h‡ o articulador da comicidade, aqueleque efetiva os est’mulos. Em situa•‹o de performance, a comicidade efetiva-se em
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uma intera•‹o entre certos est’mulos e os efeitos. Os efeitos s‹o produzidos pelos atos
do articulador. Suas a•›es e rea•›es modelam expectativas e experincias da
recep•‹o. A produ•‹o da comicidade Ž efetivada em um contexto de nexos, v’nculos e
atos que se reenviam. A interdependncia entre atos e desempenhos configura um
espa•o de produ•‹o da comicidade.
Tais procedimentos e tŽcnicas n‹o s‹o um estoque de ferramentas dispon’veis,
uma maquinaria de persuas‹o. A materialidade da comicidade, expressa na
manipula•‹o de situa•›es de intera•‹o, especifica-se em tradi•›es compositivas e
performativas que s‹o horizontes de expectativas tanto para os intŽrpretes quanto para
o pœblico. Dessa forma, h‡ diversas modalidades de produ•‹o de comicidade,
relacionados com pr‡ticas e situa•›es determinadas. Se a comicidade materializa-se
em situa•›es de
contato e intera•‹o e cada situa•‹o tem sua especificidade, fazer ir Ž explorar
essas situa•›es, Ž um estudo desses contextos. E a contextualiza•‹o da comicidade Ž a
compreens‹o do nexo entre procedimentos e estas situa•›es.
Quanto mais nos aproximamos dos termos que a lista consigna mais
conclu’mos que n‹o s‹o s— palavras, que existe uma brutal diferen•a entre a idŽia do
c™mico e sua produ•‹o. Assim partimos da redu•‹o do fen™meno por meio da
generaliza•‹o de um tra•o - o efeito- para a amplitude de sua configura•‹o Ð a
produ•‹o de comicidade.
Nessa amplitude, os termos designam agora v‡rios aspectos dessa produ•‹o:
composi•‹o, realiza•‹o, recep•‹o, produ•›es e materiais. ComŽdia de situa•‹o, por
exemplo. Diz respeito a um tipo de composi•‹o, a uma modalidade de organiza•‹o do
espet‡culo c™mico. A distribui•‹o das cenas, a rela•‹o das cenas entre si, a constru•‹o
de expectativas tudo isso faz de uma comŽdia de situa•‹o o que ela Ž, e n‹o outra
coisa. Isso do ponto de vista da composi•‹o. Ainda, tal composi•‹o Ž performada,materializada em cena por um tipo de interpreta•‹o, cen‡rios, ilumina•‹o.
Continuando, tal comŽdia seleciona materiais, idŽias, vivncias, que s‹o
reinterpretados em fun•‹o de sua estŽtica. O mundo representado articula o mundo
conhecido, redefinindo-o em fun•‹o do que vai ser mostrado. N‹o se pode dizer que
uma comŽdia de situa•‹o Ž definida somente pelos materiais que mostra, pela forma
como organiza suas cena, pela forma como Ž interpretada ou produzida ou por seus
efeitos. A comŽdia de situa•‹o Ž apreendida na amplitude de seus recursos e procedimentos.
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Mais ainda: h‡ tradi•›es diversas de espet‡culos definidos como comicidade
de situa•‹o. Pode ser entendida por oposi•‹o a uma comŽdia de personagem, com
predomin‰ncias de complica•›es da trama, como na ComŽdia de Erros, de
Shakespeare, ou em Sitcons, como Seinfeld, ou a comŽdia de Plauto.
AlŽm disso, a defini•‹o de um espet‡culo como comŽdia de situa•‹o n‹o
exclui a utiliza•‹o de procedimentos de outros tipos de espet‡culo. Do mesmo modo,
os nomes na lista ora se referem a elementos de composi•‹o, ou a procedimentos de
realiza•‹o, como escada.
De qualquer forma, a comicidade se constitui em desafio ao pensamento ao se
propor como objeto polifocal que em sua amplitude requer uma disposi•‹o
pluralizada e despojada por parte do intŽrprete.
Ainda mais que em nossos tempos t‹o pragm‡ticos e imediatistas tudo parece
ficar sens—rio demais, com a consagra•‹o de uma hegemonia dos resultados. Isso fica
bem not—rio na estranha unanimidade de que a grande parte dos espet‡culos esteja
convergindo para a busca da gra•a. ƒ preciso ser sempre engra•adinho. Propagandas,
filmes, telejornais, pe•as teatrais Ð cada vez a gente tem que se divertir. As coisas se
dividem entre divertidas e n‹o divertidas. E quem quer sofrer?
Essa obsessiva demanda por fazer rir compreende-se em parte pela fisicidade
do efeito c™mico. Quando voc faz rir, e rir espalhafatosamente, voc o resultado do
seu ato, voc ouve o pœblico. Esta ruidosa presen•a e nas casas e nos teatros satisfaz
tanto quem ri quanto quem faz rir. A causal e estreita conex‹o entre est’mulo e
resposta completa-se nesse circuito. Por alguns instantes h‡ uma proximidade, uma
fus‹o. Naquele momento, as pessoas se sentem —timas por participarem de uma
experincia de consumo na qual emo•›es podem ser expressas. E como quem manda
Ž o consumidor (a grande ilus‹o ), este bastar-se a si mesmo na gra•a e no corpo em
festa Ž o auge de uma cadeia de eventos que foram feitos s— para voc, meu amigo.Tudo o mais desaparece, pois teus olhos j‡ est‹o cheios de l‡grimas. Foi muito bom
pra voc. Mas acabou. Agora saia dessa cadeira, desligue a tv e volte para casa. Veja
agora onde voc est‡. As coisas continuam as mesmas. Continuam? Elas alguma vez
foram.
Como tudo fica engra•adinho somente nos produtos engra•adinhos, h‡ um
intervalo desproporcional entre tŽcnicas e est’mulos ao riso e o universo da audincia.
Essa unanimidade ris’vel do mundo perde a gra•a quando nos deparamos com acomplexidade do mundo e com a complexidade mesma da comicidade.
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Um desafio para pesquisas
H‡ um temor que certas coisas estudadas possam perder sua efetividade.
Assim, elas continuam a existir no ostracismo do elogio ou da condena•‹o. A
comicidade Ž um exemplo disso. Cifra um conjunto de pr‡ticas, produtos e tradi•›es
ampl’ssimo, uma variedade de nomes e fun•›es, uma imensa presen•a em nossa
existncia sem que, por isso, seja menos ambivalentemente defrontada com desejos de
saber ou n‹o saber.
Para alŽm do aspecto valorativo, diversas estratŽgias interpretativas em
procurado uma aproxima•‹o mais esclarecedora da comicidade. A compreens‹o
dessas estratŽgias e de seus limites possibilita n‹o s— um conhecimento da comicidade
e sim de nossas formas de apropria•‹o da realidade. Na verdade, tentar conhecera
comicidade mostra como produzimos conhecimento. Ao invŽs de um passivo algo de
investiga•‹o, este variacional e multifocal objeto explicita seu intŽrprete. Aprender a
comicidade Ž compreender atos e situa•›es e de conhecimento.
Na filosofia, como se v por exemplo em BŽrgson (O riso), h‡ a estratŽgia de
se definir previamente o objeto de investiga•‹o. Este mŽtodo aprior’stico estabelece
conceitos como defini•›es daquilo que se estuda. A identidade entre o conceito e sua
defini•‹o (A Ž B) acarreta a generaliza•‹o de um tra•o, de um atributo daquilo que se
examina. Ap—s, este tra•o ampliado Ž proposto como fundamento, explica•‹o do que
se observa.
Tal estratŽgia traduz o deslumbre do pensamento com uma descoberta. A
sobrevaloriza•‹o de um tra•o, sua eleva•‹o a essncia da coisa, acarreta para um
intŽrprete um foco em seu desempenho ao mesmo tempo que uma satisfa•‹o com o
achado. Esta proje•‹o do intŽrprete no objeto de investiga•‹o todavia interrompe a
amplia•‹o da descoberta. Como um espectador, ele se resigna ao produto e ilude-se
como sujeito do processo. Em atividades interativas, Ž preciso ir alŽm da fase dadescoberta, do fasc’nio da resposta e inserir-se mais na atividade de compreens‹o. A
expans‹o de um atributo como definidor do fen™meno n‹o passa da expans‹o de uma
certeza inicial tornada verdade final. Ao fim, d‡-se um salto, uma enorme acrobacia
no mŽtodo aprior’stico: a eleva•‹o do tra•o a essncia parece descrever uma
totalidade, uma apropria•‹o da inteireza do fen™meno. Na verdade, s— temos um
apressado salto.
Ora, se a comicidade para existir precisa ser produzida, se Ž necess‡rio haverum contexto de produ•‹o para sua efetividade, h‡ uma homologia entre este contexto
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de produ•‹o sobre a comicidade e a situa•‹o de se produzir conhecimento sobre a
comicidade. Tanto a comicidade quanto seu conhecimento se realizam em situa•›es,
em padr›es interativos . Os atos que neutralizam este escopo interacional neutralizam
a produ•‹o da comicidade e sua compreens‹o. Como objeto de investiga•‹o, a
comicidade exige que se aproxime dela comicamente. Rindo? N‹o s—: rir Ž o efeito. A
comicidade estrutura uma experincia que pode ser analisada em seus procedimentos.
O primeiro passo Ž a compreens‹o de sua performatividade.
Desse modo agindo, podemos reconhecer dois pressupostos para o estudo da
comicidade:
1- a comicidade como performance e como objeto
investig‡vel efetiva-se em um contexto de produ•‹o no qual
referncias, nexos v’nculos promovem uma situa•‹o interativa que
determina o horizonte de atos de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o.
Mais que um elogio ou condena, a comicidade se esclarece como em
sua atitude referencial, contextualiz‡vel;
2- sempre de olho na praga da contextualiza•‹o, reverso da
medalha do mŽtodo aprior’stico, tal atitude referencial n‹o se refere
somente a nexos entre atos c™micos e n‹o c™micos. A comicidade Ž
metareferencial, focaliza a si mesma durante sua performance.
Enfatiza os atos mesmos envolvidos em sua produ•‹o.
Ou seja, a comicidade reorienta referncias prŽvias para a
atualidade de sua produ•‹o, para a situa•‹o de sua
performance. Dessa maneira, mais que uma idŽia, a comicidade
manifesta-se como uma interven•‹o em nossas estratŽgicas de
compreender e modelar atos pessoais ou interpessoais, mas que
efetiva n‹o somente como uma conscincia desses atos e sim
como ato, ato de atos. Rimos e fazer rir, agindo. A a•‹o c™mica
Ž um desempenho aplicado aos seus efeitos.
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Comidade e Riso
A f—rmula acima, alŽm de ter sido t’tulo de grande livro sobre a quest‹o - de
V. Propp - revela uma op•‹o metodol—gica que aparentemente explica aquilo sobre o
qual estamos falando sem, contudo, tornar intelig’vel o que de fato est‡ envolvido na
atividade de sua compreens‹o. Trata-se de uma moldura causalista: um evento c™mico
produz riso. O riso Ž o efeito da comicidade. Se houver riso, h‡ comicidade.
Esta l—gica causalista situa no efeito a realidade do evento. H‡ uma hierarquia
entre procedimentos e produtos, entre fatores e resultado. ƒ o resultado que determina
a produ•‹o. A produ•‹o Ž o resultado daquilo que resulta. Nesta redund‰ncia
demarca-se a presen•a de algo por um determinado aspecto que Ž escolhido e elevado
a imagem geral do processo. A quest‹o n‹o Ž tanto uma vis‹o simplificadora que
iguala fim de atividade com sua finalidade. O que realmente Ž crucial reside na op•‹o
de se abster de acompanhar os mœltiplos e simult‰neos aspectos envolvidos da
realiza•‹o de alguma coisa em prol da consagra•‹o de um isolado componente.
No caso da produ•‹o da comicidade, o riso comparece como uma resposta que
acompanha, avalia e marca a participa•‹o naquilo que Ž exposto para recep•‹o. O riso
Ž um aud’vel, sonoro, material ato que confere a aquilo que serviu de est’mulo ˆ
resposta um certo diferencial. No entanto, esta percep•‹o pontual do riso n‹o
corresponde ao seu contexto de efetiva•‹o nem muito menos ˆ sua determina•‹o. H‡
v‡rias modalidades de riso. H‡ v‡rios objetos e modalidade de produ•‹o de
comicidade. Rimos de coisas diferentes e de modos diversos. Muitas vezes nem rimos
de algo que Ž c™mico. H‡ atŽ o riso de constrangimento, silencioso.
Ora, se rimos sempre diferentemente, o riso n‹o Ž a essncia da comicidade,
nem sua maior defini•‹o, pois o riso Ž vari‡vel, variante, produto e est’mulo de
diferen•as distingu’veis.Por isso, a f—rmula Ôcomicidade e risoÕ, com seu c—gito Ò Me alegro, logo dou
risadasÓ , obscurece uma atividade mais ampla, o que motiva a necessidade de se
pesquisar a produ•‹o de comicidade, e ir alŽm de uma verdade t‡cita, aceita sem
discuss‹o,uma obviedade Ð ÒMe alegro, logo dou risadasÓ.
Claro que n‹o estamos propondo uma investiga•‹o da comicidade sem o riso,
sem uma resposta c™mica. Como provoca•‹o fica o impulso de se ultrapassar o
circuito causa-efeito e uma atitude pontual em rela•‹o ao riso para que haja umamaior compreens‹o das implica•›es de se pensar e experimentar a comicidade em sua
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heterognea intera•‹o de atos e referncias. Como evento interativo, como produ•‹o
de um contexto de intera•‹o, situa•›es c™micas exploram atividades mesmas de se
estabelecer horizontes de interpreta•‹o. De forma que n‹o adianta aplicar ˆ
comicidade uma epistemologia esquem‡tica sendo que a comicidade se dirige
justamente para a constru•‹o desses esquemas.
Assim, como saber, como conhecimento da experincia de conhecer, a
comicidade amplia-se e integra habilidades, procedimentos e atos, exibindo tanto a
diversidade destes quanto sua plural convergncia. Ao rirmos, percebemos como ao
mesmo tempo somos foco e participantes de algo que n‹o se confina a n—s mesmos.
Contra o insulamento do sujeito, a experincia c™mica registra e correlaciona os
d’spares. Longe de propor um comunitarismo ideal, a comicidade Ž uma atividade de
integra•‹o, tanto naquilo que nos une quanto naquilo que nos separa.
Comicidade e cinema mudo
Entre realiza•›es e gneros do primeiro cinema, temos uma variedade enorme
de obras classicadas como c™micas. AlŽm do efeito c™mico, tais obras se organizavam
em fun•‹o de claros procedimentos dramatœrgicos, que correlacionam temas de
composi•‹o(como as partes s‹o elaboradas e conectadas) a problemas de recep•‹o.
O document‡rio When Comedy was King (1960), de Robert Youngson, Ž uma
colet‰nea de trechos de filmes da arte c™mica dos filmes mudos. Vou comentar dois
desses trechos.
No primeiro, a partir de A pair of Tights, de 1928, temos uma cena
aparentemente casual: dois amigos saem para tomar sorvete com suas amigas. N‹o h‡
como estacionar.. Ent‹o um das mo•as vai comprar sorvete, enquanto os outros, o
motorista e o outro casal, esperam por ela. Ora, Ž realmente a partir dessa cena de
reconhecimento, de contextualiza•‹o, que a comicidade vai operar. Como em umafuga musical, primeiro vem a apresenta•‹o do material que ser‡ posteriormente
transformado. A comicidade opera sobre referncias prŽvias,conhecidas. Essa cena, o
ponto zero do esquete, ser‡ o alvo, o foco de inverven•‹o e performance dos atos dos
agentes em cena.
Tal situa•‹o inicial consiste de a•›es das personagens: o esquete se abre com o
carro estacionando e a mo•a indo comprar sorvete. Se ela cumprisse com este
programa de a•›es, n‹o haveria comŽdia. Tudo que acontece se organiza agora emfun•‹o das dificuldades que s‹o interpostas entre o ato de comprar sorvete e ir
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embora. As a•›es propostas na abertura do esquete projetam um senso de
acabamento, de finaliza•‹o. Mas o n‹o cumprir este programa, este n‹o acabar Ž uma
a•‹o. ƒ nisso que consiste a opera•‹o c™mica: a passagem do programa de a•›es e
expectativas presentes na cena inicial para a redefini•‹o deste material prŽvio, que
passa agora a tem como contexto de sua produ•‹o os atos de sua transforma•‹o.
Assim, a complica•‹o de uma situa•‹o aparentemente banal desloca o olhar
para aquilo que Ž enfatizado nos obst‡culos da continuidade das expectativas.
De um lado temos o aparente fracasso da a•‹o: a mo•a falha ao n‹o conseguir
trazer os sorvetes. Mas essa l—gica s— Ž v‡lida no universo n‹o c™mico. Se o objetivo
do esquete fosse mostrar apenas uma mulher indo comprar um sorvete e voltar com
ele, tal avalia•‹o estaria correta.
Entretanto, o esquete Ž montado para explorar a n‹o realiza•‹o segundo o
senso comum, segundo aquilo se projeta sobre as premisas oferecidas na abertura do
esquete, mas sim em fun•‹o da construtividade que selecionou o que vai ser
mostrado.As dificuldades para que a a•‹o se realize segundo as expectativas dadas
v‹o orientar a recep•‹o para observar coisas se d‹o dentro do horizonte do esquete.
Os obst‡culos agem como filtros, que selecionam n‹o s— o que se v, mas o modo
como se percebe. Assim, na passagem do senso comum para o universo organizado
do esquete, as dificuldades detalham o universo imaginativo que est‡ sendo proposto
agora, a partir das carca•as do universo prŽvio. Tudo o que Ž mostrado enfatiza o
novo universo e seus procedimentos de efetiva•‹o.
Instalados nessa experincia que se organiza em uma l—gica outra de a•›es,
come•amos a nos surpreender com o que acontece e acabamos por rir. Tal resposta
relaciona-se ao fato de procurarmos explicar o que acontece segundo nossas
expectativas. PorŽm, diante de eventos com uma baixa taxa de ocorrncia, produz-se
uma resposta ambivalente frente ao que ambivalentemente Ž exibido. De um lado, osagente, os atos e os materiais s‹o comuns., conhecidos. De outro, o produto da
integra•‹o e utiliza•‹o desses materiais e atos n‹o o Ž. A baixa frequncia do que
ocorre sugere n‹o s— sua raridade como tambŽm seu ineditismo. As possibilidades de
alguŽm ir comprar sorvete e se defrontar com tantas complica•›es Ž sem dœvida algo
raro e inesperado.
A baixa frequncia desse excepcional evento, contudo, n‹o significa sua
escassez referencial ou de recursos. Antes, Ž dentro de uma perspectiva de excessoque o que se pressupunha comum Ž realizado: a dif’cil busca do sorvete se desdobra
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na dificuldade em estacionar o carro. Paralelamente temos as dificuldades de a mo•a
comprar e trazer o sorvete para seus amigos e as de seus amigos estacionarem o carro.
O desdobramento do esquete em a•›es paralelas e igualmente complicadoras amplia a
reorienta•‹o das expectativas de cumprimento de um programa de a•›es e
expectativas. Estas cenas dentro do esquete sobrep›e, distribuem e generalizam as
novas orienta•›es de recep•‹o dos eventos. No lugar de um genŽrica continuidade dos
acontecimentos, temos sua circularidade: a mo•a entra e sai da sorveteria; o carro
sempre retorna para busca a mo•a. As repeti•›es Ž que se tornam os marcos do
esquete, o come•o e fim de uma microsequncia. E tais marcos tornam-se, ao fim, os
referentes, as expectativas de acabamento do esquete.
Das certezas de cumprimento dos atos partimos para a certeza de sua
organiza•‹o: os atos n‹o se encontram motivados por pressupostos ou premissas
morais. N‹o que estejam livres Ð seguem um program de realiza•‹o que explora as
possibilidades de amplia•‹o e diversifica•‹o de seus efeitos e procedimentos. Pois, de
um lado, o universo imaginativo parece se organizar como a realidade, a partir de
padr›es. PorŽm, de outro, Ž a percep•‹o de padr›es que fica em segundo plano no
cotidiano, ou n‹o Ž enfatizada nos atos mesmos. Com o esquete filmado, por causa de
sua realiza•‹o cinematogr‡fica, mostra-se essa organiza•‹o que motiva os atos. Com
isso subverte-se nosso esquema de percep•‹o: n‹o s‹o as pessoas que fazem a
realidade, mas os acontecimentos que ultrapassam a vontade de a•‹o.
O segundo esquete Ž um trecho de Big Bussiness, performado por Stan
Laurel e Oliver Hardy, os nossos conhecidos O Gordo e O magro. Como no caso do
esquete anterior, o ponto de partida Ž simples, banal Ð a oferta de um pinheirinho de
natal. Tal qual no outro esquete, estamos diante do estabelecimento do contato Ð as
rela•›es entre a cena a platŽia se fazem a partir, como em um fuga musical, daexposi•‹o de uma situa•‹o identific‡vel, que ser‡ alvo das posteriores transforma•›es.
Ap—s esta breve abertura, temos as opera•›es c™micas Ð uma sŽrie de eventos
que cada vez mais se afastam da normalidade inicial. Esta Ž a fase de amplia•‹o do
contato, no qual o mundo da audincia se v confrontado com duas l—gicas
simultaneamente relacionadas aos mesmos eventos. Em uma situa•‹o normal, os
eventos que se seguem tm uma baixa taxa de ocorrncia, mas no universo da
comicidade eles se tornam recorrentes, abundantes. Da venda da arvorezinha partimos para um conjunto de destrui•‹o de propriedades Ð Laurel e Hardy arrasam a casa e o
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quintal do dono da casa que recusou a oferta e o dono da casa arrasa o carro e as
restantes arvorezinhas de Laurel e Hardy.
Em um primeiro momento, se referimos as a•›es que vemos ao mundo em que
vivemos, facilmente conclu’mos que h‡ claras e manifestas transgress›es de c—digos
m’nimos de civilidade, transgress›es estas pass’veis de ajuizamentos e penaliza•›es.
Contudo, nesta comŽdia as restri•›es legais ficam em segundo plano Ð h‡ a entrada de
um policial que apenas observa, intervindo apenas no fim, marcando juntamente o
tŽrmino do esquete, seu terceiro momento Ð o desligamento do contato.
Macroestruturalmente os dois esquetes se organizam do mesmo modo, como
articula•‹o de uma experincia c™mica em suas partes Ð estabelecimento do contato,
explora•‹o do contato e desligamento. A conscincia das partes nos clarifica a
dramaturgia c™mica. Deste modo, mais que o efeito de rir, come•amos a compreender
a amplitude da comicidade, o porqu de rirmos.
Come•amos a rir quando na sucess‹o das a•›es mostradas h‡ uma
incongruncia entre as l—gicas prŽ-c™mica e c™mica. O impulso de normalizar o
referente, de contextualizar o que est‡ acontecendo a partir do que se conhece, estes
atos da recep•‹o s‹o continuamente confrontados com o impulso de
desfamilizariza•‹o que a sucess‹o eventos em cena produz. Da venda de uma ‡rvore,
partimos para uma crescente sŽrie de retalia•›es, vingan•as. Inicialmente, nossa
rea•‹o Ž rir e abanar a cabe•a, censurando o ato. Mas como uma retalia•‹o Ž seguida
por outra, aquilo que era exce•‹o e proibi•‹o dentro de nossa l—gica prŽ-c™mica torna-
se agora a normalidade. A sobreposi•‹o de eventos que ultrapassam nosso impulso de
redu•‹o a padr›es prŽvios demonstra como a comicidade atua justamente sobre estes
padr›es, sobre uma estrutura pressupositiva.
Neste momento, no embate e embaralhamento entre as l—gicas temos a
oportunidade de bem compreender que a idealiza•‹o da comicidade, uma abordagemque a desvincula a modos de produ•‹o de conhecimento e realidade, pode acarretar
mal entendidos e generalidades sem fim. Atribuir ˆ comicidades valora•›es
extremamente positivas ou negativas em nada contribui para sua compreens‹o.
Rebaixada como arte menor ou glorificada como reveladora de todas as ideologias, a
comicidade perpetua-se em sua indefini•‹o.
Como observamos pela cena do esquete e sua recep•‹o, tanto configura•›es
n‹o c™micas quanto c™micas se organizam por padr›es de referncia que s‹ohorizontes de intera•›es. Ao invŽs de uma oposi•‹o polar ou complementaridade
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esotŽrica, vemos que em nosso cotidiano agimos com determinados padr›es, mas n‹o
os enfocamos, n‹o explicitamos estes padr›es. J‡ na comŽdia Ž a configura•‹o das
a•›es que vem para o primeiro plano. Por isso tanta duplicidade, repeti•‹o e expans‹o
como procedimentos de amplia•‹o e desempenho da premissa c™mica. Na
comicidade, a enuncia•‹o suplanta o enunciado Ð exp›e-se a materialidade, os
suportes expressivos dos atos.
No caso do esquete de Laurel e Hardy, observamos como a cena divide-se,
duplica-se entre a dupla que destr—i a casa do propriet‡rio e o propriet‡rio que destr—i
o carro da dupla. Essa biparti•‹o efetiva o come•o da amplia•‹o da coerncia c™mica
dos eventos. Inicialmente esta biparti•‹o Ž bem marcada, didaticamente apresentada:
indignado, o propriet‡rio vai para o carro da dupla, arranca um farol e o arremessa no
vidro do autom—vel. Por seu turno, a dupla, que observava tudo como platŽia dentro
da cena, dirige para a casa do propriet‡rio, arranca uma lumin‡ria e a arremessa na
vidra•a da casa.
A seguir, cada anjo exterminador fica demolindo sua por•‹o de realidade.
Assim como no esquete primeiro a dificuldade de agir era a a•‹o mesma da cena, aqui
tambŽm se constr—i o espet‡culo destruindo-se o cen‡rio. Esta l—gica negativa na
verdade, esta negatividade da comŽdia, tem sua efetividade, sua positividade:
interrompendo a teleologia dos atos, seu programa e expectativas de completa•‹o,
acabamento, tal circuito n‹o progressivo das a•›es ao mesmo tempo que interfere no
horizonte de compreens‹o dos atos chama aten•‹o para os pr—prios atos, para seu
contexto de produ•‹o. Uma a•‹o que se exibe dif’cil de ser realizada focaliza n‹o seu
resultado, mas a pr—pria a•‹o, sua construtividade,seu fazer, haja vista a imensa
produtividade e eficincia da tripla repeti•‹o/prepara•‹o dos atos.
Ap—s a duplica•‹o da cena, a repeti•‹o e a crescente intensidade dos atos
tomam lugar no esquete. Aquilo que em um primeiro momento era censur‡vel, proibido, ilegal e absurdo come•a a se tornar recorrente. Por meio da repeti•‹o,
refor•a-se a l—gica da comicidade, do contexto c™mico. Pois, por meio da repeti•‹o
somos levados a observar n‹o s— o referente imediato da repeti•‹o, seu conteœdo, mas
a pr—pria repeti•‹o, o pr—prio arranjo dos atos, dispostos em seqŸncias assemelhadas,
mas intensamente diferenciadas.
Por meio da repeti•‹o, ainda, os eventos que tinham uma raridade come•am a
se tornar comuns. Repetir Ž produzir padr›es, tornando-os observ‡veis. Vemos emconjunto a coisa e sua configura•‹o. A amplitude c™mica consiste nisso: em integrar
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eventos e sua produ•‹o.
Dessa maneira, tornando palat‡vel, percept’vel o modo de organiza•‹o de uma
realidade, a comicidade funciona com explicitadora da construtividade de v’nculos e
referentes. Em nosso mundo habitual tambŽm nos organizamos por padr›es,
repeti•›es e generaliza•›es desses padr›es. A comicidade vale-se dos mesmos
procedimentos de elabora•‹o de coes‹o e coerncia e coes‹o de nossa realidade.
Entretanto, a diferen•a esta em manifestar e tornar observ‡vel a co-existncia entre a
a•‹o e sua configura•‹o. E a comŽdia o faz isso a partir de eventos banais apropriados
nas fronteiras, nas margens de sua legitimidade ou sensatez, para que, a partir da
eleva•‹o do comum ao raro, e do raro ao comum, nossas capacidades de compreens‹o
e elabora•‹o de estratŽgias interpretativas sejam desafiadas em seus limites e limiares
Tanto que, ap—s a generaliza•‹o , temos a hipŽrbole c™mica, quando o
confronto entre l—gicas, entre impulsos de normaliza•‹o e ruptura s‹o superados em
prol de alguns momentos quando a comicidade Ž referente de si mesma. O ato de
constantemente referir-se ao j‡ conhecido Ž substitu’dos pelos pr—prios referentes que
a comicidade prov. No esquete de Laurel e Hardy isso acontece quando o
propriet‡rio desvincula-se de sua vingan•a e rivalidade quanto ˆ destrui•‹o da dupla e
acaba por quase ser engolido pelos farrapos das ‡rvores que, j‡ destru’das, ele tenta
destruir e pelas pancadas em um carro j‡ explodido e eliminado. Neste momento, a
seqŸncia de atos destrutivos chega ao seu ‡pice-n‹o h‡ mais que destruir, n‹o h‡
mais como ir alŽm, mas se vai, arrasando-se com o nada, com o vazio, pois, quando
n‹o h‡ matŽria suficiente nem combust’vel o bastante, inventa-se Ð o que importa Ž
que no sem mundo mesmo assim h‡ o mundo.
Conclus›es
A fenomenologia da comidade a partir dos esquetes de humor do cinema
mudo norte-americano iniciou-nos em uma mais atenta observa•‹o de produ•‹o e
recep•‹o de eventos c™micos. Em um primeiro momento, o ponto zero, o in’cio, Ž-nos
mostrado o mundo tal como ele Ž, ou como parece ser, por meio de uma a•‹o t’pica e
familiar. Neste momento o mundo dos espectadores e o mundo da cena est‹o em
equil’brio, quase s’ncr—nicos, partilhando assemelhadas referncias. Ent‹o o h‡ um
problema: a a•‹o programada ou proposta n‹o se cumpre. Inicia-se a ruptura entre omundo tal como ele se apresentava e a continuidade de adiamentos dos planos, do
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programa de a•›es prŽvio. Essa ruptura Ž esticada: aquilo que n‹o estava conforme ˆs
expectativas insiste em perdurar, projetando um outro conjunto de referncias. Essa
continuidade da ruptura Ž importante assinalar. Pois n‹o se trata de apenas
constantemente se referir ao que j‡ n‹o Ž, mas sim a intensifica•‹o da co-presen•a
entre aquilo que era, e aquilo que agora se imp›e. O erro, a falha, a interrup•‹o, o
deslocamento Ð tudo isso se em um primeiro momento estava ataviado ao forte
momento de abertura, depois de algum tempo demonstra-se em si mesmo. Assim, se
antes havia algo proposto como ÔnormalÕe em seguida a sua descontru•‹o, temos no
decorrer do tempo n‹o s— a sobreposi•‹o de duas l—gicas excludentes da realidade,
como o absurdo de aquilo que antes fazia sentido passa a ser ineficaz, e aquilo que era
a ruptura com a pretensa estabilidade transforma-se o padr‹o dos acontecimentos. Em
ultimo momento, quando n‹o se pode mais voltar atr‡s e estamos instalados no
familiaridade com absurdo, chegamos ao xtase c™mico, com o acœmulo de situa•›es
impoder‡veis, quando estamos libertos de buscar sentido fora do acontecimento
mesmo, em sua organiza•‹o.
Como se pode observar, posturar que idealizam a comicidade, vendo- a apenas
como momento de rutpura, de exce•‹o, de aberta a um novo e outro horizonte,
acabam por se interrogar limitadamente sobre seu modo de produ•‹o e recep•‹o.
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22- TEATRO E CONCEITOS: UM DEBATE ABERTO
Durante sŽculos o paradigma plat™nico ou a coer•‹o iluminista justificaram a
mœtua desconfian•a e concorrncia entre artistas e pensadores. Agora, com o
benepl‡cito de institui•›es de ensino superior, diversos cursos e p—s-gradua•›es s‹o
abertos, projetos de pesquisa s‹o propostos e desenvolvidos, em um natural curso das
coisas sem que, muitas vezes, haja o questionamento a respeito da modalidade de
conhecimento debatida e estudada. N‹o se trata de um saber sobre arte, mas um saber
desde j‡ artes‹o.
As reflex›es aqui esbo•adas dirigem-se francamente a esta exuberante e
fervilhante novidadeira produ•‹o intelectual em Artes Cnicas. Creio que este novo
momento nas rela•›es entre arte e pensamento naturaliza, muitas vezes, uma pretensa
opacidade entre os termos atravŽs da estratŽgia da mera aplica•‹o de conceitos.
Atualmente, em alguns centros de ensino e pesquisa, canoniza-se a forma•‹o de
reprodutores de teorias retiradas de seus contextos intelectuais.
Frente ˆ baixa estima do campo das artes de espet‡culo, a apressada aplica•‹o
de conceitos se imp›e bruscamente. N‹o Ž ‡ toa que grande parte dos conceitos
advŽm das Cincias Sociais ou de ferramentas burocr‡ticas-epistmicas como a
Semi—tica. Nessa babel s— se fala uma linguagem: a da importa•‹o de referentes que
justifiquem os atos estudados fora de seu contexto produtivo. N‹o Ž a importa•‹o de
conceitos o que se critica, mas a interrup•‹o das quest›es mesmas existentes nos
par‰metros de elabora•‹o de representa•›es. A importa•‹o apenas duplica a perda da
especificidade do que j‡ n‹o se trabalha. Em todo caso, Ž preciso sempre resistir ‡
sedu•‹o do a apriori.
Na base destas posturas est‡ o que podemos chamar Ôpressuposto detransparncia das representa•›esÕ. Segundo este pressuposto, a teatralidade Ž uma
constante homognea, evidente em si mesma, alheia ˆ necessidade de se interrogar
seu contexto de produ•‹o. Em virtude de se falar dela, existe enquanto fato mental.
Privilegia-se o acesso ˆ representa•‹o atravŽs do pensamento. A concretiza•‹o da
representa•‹o em uma forma vis’vel e aud’vel Ž extens‹o de uma idŽia. De maneira
que a materialidade do feito teatral Ž a ratifica•‹o do pensamento sobre sua
realiza•‹o. Este feito n‹o passa de ve’culo de um conteœdo inc—lume ao processo desua efetiva•‹o.
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Ora, assim raciocinando, o conceito Ž desvinculado de seu contexto produtivo
porque se pressup›e que n‹o h‡ saber, que h‡ conhecimento apenas imediatamente
ap—s o estudo de algo j‡ realizado. Durante sua realiza•‹o o que se efetiva n‹o Ž
cognitivamente v‡lido. Somente sua reconstru•‹o intelectual Ž que possibilita seu
entendimento. N‹o se faz e n‹o se pensa ao mesmo tempo. Da’ a Ôtransparncia da
representa•‹oÕ, com marcas cognitivas acess’veis somente por uma media•‹o
intelectual descontextualizada.
Assim, um feito cnico se legitima em virtude de sua apropria•‹o. O sucesso
da explica•‹o que separa evento e contexto produtivo Ž o sucesso do mŽtodo
empregado e n‹o do objeto estudado. Os processos criativos tm seu c—gito no
cogitatum alheio que se torna pr—prio.
ƒ incr’vel como se visualiza um entrechoque bastante esclarecedor nesse
mundo ao revŽs. Enquanto as chamadas Cincias Sociais procuram oxigenar suas
abstra•›es com categorias oriundas da teatralidade, a legitima•‹o de um pensamento
nas Artes Cnicas busca se fundamentar em outras disciplinas.
Nesse momento, surge a quest‹o: o que Ž isso que se quer conhecer e negar
tanto para que tenha sentido este esfor•o? Para que se estuda, analisa e se escreve
sobre artes? Ora, se se estuda, analisa ou se escreve simplesmente para aplicar uma
teoria sem levar em conta que um processo criativo Ž produtor de um saber teoriz‡vel
quando de sua realiza•‹o, ent‹o toda esta brilhante f‡brica explanat—ria Ž inœtil. Pois
se Ž poss’vel aplicar a teoria independentemente do objeto, ent‹o n‹o Ž preciso
aplicar.
Vendo deste modo, Ž mais trabalhoso amoldar o objeto, reduzindo-o ˆs
prerrogativas do modelo ou do sistema explicativo prŽvio. Mas como h‡ sŽculos os
processos criativos s‹o comentados por referncias surdas ao contexto produtivo,
ent‹o o que seria trabalho torna-se esfor•o arrefecido.De forma que o atual momento onde se integrou arte dentro da academia em
certas ocasi›es n‹o Ž um glorioso entrar pela porta da frente. Ainda mais com a
confus‹o cada vez mais brutal entre arte e misticismo, intensificada pela
democratiza•‹o de uma perspectiva n‹o estŽtica do fazer teatral. A intelectualiza•‹o
do entendimento do fazer teatral Ž complementada pela ritualiza•‹o dos espet‡culos e
da forma•‹o dos atores. O racionalismo de uns e o irracionalismo de outros desviam-
se das raz›es e das prerrogativas do processo criativo. Em pleno sŽculo XXI os
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tambores embalam a mesma cantinela m’ope e tr™pega do saber falar sem fazer ou do
fazer sem saber falar do que se fez.
Pois o saber teatral Ž operacionaliz‡vel, pode ser compreendido e transmitido,
produzindo novas realiza•›es. O conhecimento adquirido atravŽs de contextos
produtivos Ž diversificado atravŽs da continuidade de novas incurs›es criativas. ƒ este
conhecimento variacional e redimension‹vel, intimamente relacionado aos
procedimentos espec’ficos de realiza•‹o de espet‡culo, que precisa ser pesquisado.
N‹o adianta demarcar um terreno e n‹o colocar os pŽs nele.
O espa•o de cena Ž a contextualiza•‹o de um fazer que se disponibiliza pelo
espet‡culo. O espet‡culo encena suas escolhas, pensadas e debatidas durante seu
processo criativo. O processo criativo procurou explorar e definir a exibi•‹o destas
escolhas, resultantes de uma reordena•‹o de materiais em fun•‹o de sua exposi•‹o.
V-se, pois, como, ao nos atermos aos problemas relacionados diretamente com a
elabora•‹o de espet‡culos, sua complexidade torna-se mais patente, explicitando n‹o
somente temas para discuss›es, mas quest›es concretas relacionadas com a
especificidade do que se estuda.
A ausncia do enfrentamento da situa•‹o de representa•‹o tem promovido o
expediente de transferir apressadamente uma agenda cr’tica de temas e concep•›es da
hora para o centro da atividade intelectual em artes do espet‡culo. O teatro virou
tribuna, palco dos outros e n—s restamos estrangeiros em terra estranha e deserta. Sem
conhecimento e sem tradi•‹o, presos ao alimento de agora, vagamos mendigando
cita•›es das grandes correntes de pensamento sem termos pensamento algum.
Isso ainda mais se agrava em se tratando de um pa’s perifŽrico como o nosso.
A repetida afirma•‹o que n‹o temos um sistema intelectual forte e que apenas
reproduzimos e atualizamos concep•›es importadas Ž refor•ada atravŽs da n‹o
considera•‹o de uma teoria da pr‡tica teatral a partir da interroga•‹o de seu contexto produtivo.
Esta teoria n‹o Ž uma completa descri•‹o do que se analisa nem a imposi•‹o
de uma pr‡tica-modelo. Os atos mesmos de se constituir uma representa•‹o possuem
um horizonte te—rico em virtude da correla•‹o de v‡rias quest›es operacionais
concomitantes ao ato mesmo de sua realiza•‹o. A simultaneidade de perten•as
diversas reivindica a considera•‹o da amplitude envolvida neste fazer. A redu•‹o
conceptual baseia-se na recusa ou controle dessa inst‰ncia variacional do processocriativo para a cena. ƒ preciso ent‹o que a teoria da pr‡tica teatral d conta dessa
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realidade variacional basilar. E uma teoria que problematiza a varia•‹o ela mesma se
desabsolutiza. Assim, temos a reflexibilidade de teorias mais relacionados com o
processo criativo, pois elas mesmas n‹o apenas incidem sobre um objeto
transform‡vel como transformam-se em interpreta•‹o desse impulso diferencial.
Pois a especificidade do fazer cnico est‡ em como construir padr›es
vinculadores entre as varia•›es, entre os v‡rios n’veis de referncia apresentados
durante uma exibi•‹o. ƒ preciso distinguir as varia•›es das varia•›es e situ‡-las em
sua produtividade. A elimina•‹o de uma perspectiva privilegiada que monitora o
entendimento das referncias parece, desde j‡, um fator de efetiva•‹o de contexto
produtivo cnico e a explora•‹o de seus n’veis de referncia.
De maneira que a atividade de representar defronta-se com seus limites e
possibilidades. Os obst‡culos para sua elabora•‹o se tornam os vetores de sua
realiza•‹o. Um contexto produtivo Ž o enfrentamento de tarefas atravŽs de atos
diretamente relacionados com a possibilidade mesma de haver realiza•‹o. O
espet‡culo Ž uma meta que n‹o subsiste apenas como idŽia e planejamento. A
necessidade de sua realiza•‹o faz sucumbir todos esquemas prŽ-dados. O espet‡culo
torna-se a modifica•‹o de pressupostos, inten•›es e materiais prŽvios. Nessa
modifica•‹o exibi-se o espet‡culo mesmo. Altera-se para se fazer espet‡culo, para se
exibir aquilo que Ž espet‡culo.
Assim, acompanhando as modifica•›es realizadas durante o contexto
produtivo, podemos compreender a especificidade do fazer teatral. Sendo estas
modifica•›es interven•›es que redefinem e orientam tanto a disposi•‹o desses
materiais quanto sua recep•‹o, temos que a nova situa•‹o decorrente dessas altera•›es
singulariza sua apresenta•‹o, e sua apresenta•‹o Ž o seu horizonte compreensivo. As
modifica•›es integram-se em um contexto extenso que exibe o padr‹o das altera•›es,
sua forma de apresenta•‹o. Ao mesmo tempo, esta forma de apresenta•‹o n‹o sefecha sobre si mesma. Sendo espet‡culo, sendo algo que se mostra, a forma de
apresenta•‹o exibe as altera•›es efetivadas e nesta exibi•‹o possibilita sua
observa•‹o. Tudo que Ž mostrado Ž observ‡vel. Mas, em virtude disso, a observa•‹o
n‹o Ž uma decorrncia, um res’duo. Ora, se aquilo que Ž exibido est‡ em uma situa•‹o
de exibi•‹o, logo aquilo que se mostra se efetiva em fun•‹o de sua exposi•‹o. As
altera•›es tanto de materiais quanto de planejamento s‹o feitas a partir da
prerrogativa de que v‹o ser observadas todas as coisas levadas ‡ cena. O par‰metrodas modifica•›es se encontra em efetivar uma contextura observacional. Que algo vai
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ser mostrado e observado isso torna-se o pressuposto do contexto produtivo das artes
de cena. A cena Ž a emergncia de suas condi•›es de observa•‹o.
Disso temos que a realiza•‹o de um espet‡culo n‹o se resume ˆ sua exibi•‹o
ou a outro centro unificador das pr‡ticas representacionais. ƒ que se confunde
exibi•‹o com visualidade. O fato vis’vel n‹o Ž sin™nimo do feito mostrado. O
espet‡culo, dessa maneira, descentrando a visualidade como inst‰ncia final e œnico
meio de acesso ao que se representa, permite que procedimentos de focaliza•‹o que
ampliam as possibilidades de apresenta•‹o de eventos em cena sejam articulados.
Pois, se o espet‡culo Ž o que se v, ele n‹o precisa durar. Apenas v-se e pronto. O
predom’nio de estratŽgias da visualidade como fator explicativo da elabora•‹o de
espet‡culo Ž a rŽplica expressiva de uma leitura intelectualista extrema: ambos, o olho
e mente, substituem a varia•‹o e a heterogeneidade da cena por monovalentes
justificativas da hierarquia dos n’veis representacionais do espet‡culo.
De forma que lidar com heterogeneidades, com varia•‹o n‹o Ž novidade. O
elogio da diferen•a pode ser a nostalgia da ordem. A ratifica•‹o da multiplicidade se
faz muitas vezes por sua retifica•‹o. N‹o basta constatar a realidade multidimensional
dos espet‡culos. Da’ o lugar da teoria: como interpretar esta multidimensionalidade
sem recair na redu•‹o do mœltiplo a uma unidade prŽ-dada ou a uma dispers‹o
generalizada. Pois a multidimensionalidade s— existe em fun•‹o do contexto
produtivo. N‹o se trata de um discurso, de uma idŽia. ƒ um fazer. A teoria, aqui, Ž
reflex‹o das implica•›es representacionais desse fazer; Ž, ent‹o, uma teoria do
espet‡culo, teoria da pr‡tica teatral.
Se o mostrado n‹o Ž apenas o visto, a ocorrncia de algo n‹o Ž somente sua
apari•‹o. Esta n‹o localidade problematiza os eventos apresentados e sua pr—pria
apresenta•‹o. Pois n‹o sendo aquilo que o concretiza, mas precisando dessa
concretiza•‹o para ser mostrada, ent‹o temos uma estranha l—gica de concomit‰nciaem uma mesma ocorrncia de movimentos dispares que se entrechocam.
Na verdade, este estranhamento inicial Ž compreens’vel quando se entende sua
realiza•‹o. Se n‹o nos confinamos na ocorrncia isolada conclu’mos que na
realiza•‹o atualiza-se um movimento n‹o atomizador, uma a•‹o sobre sua
apresenta•‹o mesma. Aquilo que se mostra efetiva sua orienta•‹o como ato que
exerce uma reordena•‹o de sua ocorrncia. Mostra-se como pertencente a sua forma
de apresenta•‹o. Da’ o estranhamento. Pois ao exibir-se, mostra-se aqui, Ž vis’vel.
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Mas este ÔaquiÕ, anterior ˆ ocorrncia, vis’vel e aud’vel antes de algo ali surgir,
perde a const‰ncia adquirida por estabilidade referencial. Assistimos naquilo que se
mostra n‹o a confirma•‹o daquilo que j‡ estava dispon’vel, ali ˆ m‹o. Justamente o
contr‡rio: temos a diferencia•‹o daquilo que em sua disposi•‹o prŽvia consistia o
horizonte primeiro e œltimo de nossa mundividncia e uma nova atualidade para n—s
ainda a se constituir. O espet‡culo em sua inst‰ncia emergencial marca a diferen•a e a
separa•‹o entre o que agora Ž uma anterioridade sempre presente e o que perdura
como uma atualidade sempre em constitui•‹o.
A diferen•a entre mostrado e vis’vel n‹o se apaga imediatamente, mas persiste
durante toda a representa•‹o. No prosseguimento daquilo que se mostra, hesitamos
em conferir, para aquilo que se exibe, seu acabamento vis’vel. Pois no espet‡culo, ao
compreendermos que aquilo que Ž exibido n‹o se confina naquilo que se mostra,
deixa-nos ˆs margens de uma instabilidade referencial como a•‹o contra ˆ inŽrcia
referencial. Ainda mais: identificados como diversos, mesmo que se compreenda a
amplitude do mostrado sobre o vis’vel, a visibilidade n‹o Ž apagada, ela se torna
operacionaliz‡vel pelo que se mostra. O intervalo entre uma e outra modalidade das
ocorrncias nos oferece a dimens‹o sincr™nica dos diferidos, proporcionando a
efetiva•‹o dos v‡rios n’veis de referncia como n’veis de representa•‹o do espet‡culo.
A presen•a dessa diferen•a intervalar nas ocorrncias mesmas do que se encena Ž
integrada no pr—prio processo criativo. A persistncia dessa tens‹o marca a
especificidade das artes de cena.
Da estabilidade da inŽrcia referencial partimos, pois, para a exposta
interven•‹o. No que se mostra torna-se vis’vel esta interven•‹o modificadora. A
continuidade da exibi•‹o Ž a continuidade dos atos envolvidos em fazer durar esta
presen•a de altera•‹o. A qualquer momento pode haver o colapso daquilo que se
forma, daquilo que se exp›e. Para tanto, a representa•‹o demonstra-se como esfor•ode sua continuidade, cont’gua ao ato mesmo de apresentar algo. Defrontando-se
contra sua pr—pria desestrutura•‹o, a constitui•‹o de uma atividade representacional
exp›e o enfrentamento dessa iminncia desfiguradora ao configurar-se. A forma de
apresenta•‹o, pois, n‹o Ž um apagamento do esfor•o representacional, mas sim sua
transforma•‹o em obra. A representa•‹o configura-se a partir de sua situa•‹o de
performance. A forma n‹o se imp›e sobre a realiza•‹o. As condi•›es de realiza•‹o
problematizadas ativam a configura•‹o do que se mostra.
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Da’ a n‹o coincidncia entre mostrado e visto. Em um primeiro momento o
que se mostra tem menor dimens‹o do que se v. Mas na medida em que o espet‡culo
segue seu curso, a realiza•‹o se imp›e sobre a inŽrcia referencial, interagindo com
ela, modificando o eixo de observa•‹o. Diferenciando-se e especificando-se em sua
configura•‹o, aquilo que se mostra torna o centro focal da recep•‹o. A visibilidade Ž
orientada ao frame do que Ž mostrado. Temos um esfor•o complementar ao esfor•o
de configura•‹o: o esfor•o de recep•‹o.
Pois, com a amplitude do que Ž mostrado sobre o que Ž visto, aprofunda-se a
assimetria entre espet‡culo e recep•‹o e promove-se a necessidade de se estabelecer
v’nculos entre o mundo da representa•‹o e o mundo da audincia. Na medida em que
o espet‡culo se especifica e estabelece suas referncias, reposiona-se a audincia
frente a esta diferencia•‹o observ‡vel. Distinguindo-se de sua emergncia, o
espet‡culo demonstra que veio para ficar, que se prolonga e demora-se para alŽm de
sua ocorrncia pontual. Representa•‹o e audincia aproximam-se na disparidade de
suas referncias e perten•as.
Na continuidade da representa•‹o esta disparidade repercute na
impossibilidade de fus‹o de ambas as esferas, frente ˆ diferen•a promovida pela
irreversibilidade temporal, pois nunca coincidem atos n‹o s’ncronos, j‡ em uma
sincronia de diferidos. O espet‡culo mesmo Ž a exibi•‹o da assimetria entre
representa•‹o e audincia, pois sua dura•‹o e extens‹o baseiam-se nessa n‹o
concomit‰ncia dos d’spares. S— Ž poss’vel haver espet‡culo quando a diferencia•‹o de
sua ocorrncia Ž generalizada. ƒ preciso manter a diferen•a atravŽs diferen•a.
Distinguindo-se e variando, o espet‡culo proporciona sua efetiva•‹o.
Mas diferen•a Ž diferen•a de algo. O diverso de si mesmo n‹o produz o que
diferenciar. Para diferir constantemente, Ž preciso expor aquilo que distingue sem
cessar. A amplitude do distinguir Ž realizada para prover a atualidade daquilo que seconfigura diverso do que havia de antem‹o. A atividade de diferencia•‹o Ž remetida
para a constitui•‹o da identificada modalidade que se quer exibir. O espet‡culo exibe
o diferencial daquilo que mostra para fazer-se distingu’vel, compreens’vel em seu af‹
de representar aquilo que o especifica. A diferencia•‹o submete-se ao esfor•o
configurativo que situa e constitui o espa•o atual daquilo que se mostra. O espet‡culo
mostra porque mostra-se nas raz›es de sua diferencia•‹o. E estas raz›es est‹o ali,
expostas. N‹o pertencem a nenhuma espera transcendental ou totalmente alŽm ou
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aquŽm da comunidade terr‡quea. Elas n‹o est‹o acima ou adiante de sua pr—pria
exibi•‹o. S‹o raz›es espetaculares, a realiza•‹o de suas condi•›es de inteligibilidade.
Esta reflexibilidade do espet‡culo, contudo, n‹o Ž um tema aut™nomo de seu
contexto produtivo. A reflexibilidade do espet‡culo est‡ diretamente relacionada com
sua realiza•‹o. A realiza•‹o corrige e orienta a composi•‹o, livrando-a de uma
perfei•‹o eidŽtica. A reflexibilidade Ž a presen•a na exibi•‹o de um contexto
produtivo enfrentado e incorporado na representa•‹o. A fisicidade do espet‡culo, em
virtude de sua realiza•‹o, torna a reflexibilidade n‹o uma idŽia, mas um conceito
operacional.
O descentramento da visualidade na compreens‹o de espet‡culos proporciona
a abertura para uma abordagem mais atenta ˆ sua especificidade. Pois h‡ a tendncia
de, ao se tomar o vis’vel como meio principal de acesso ˆs representa•›es, inverter-se
a causalidade produtiva e se privilegiar o produto, o resultado final em sua pretensa
homogeneidade e se desconsiderar todos os momentos esclarecedores de um processo
criativo.
Atentos para a amplitude do que se mostra em uma representa•‹o
tridimensional temos escalas e magnitudes mais diferenciadas assim como os limites
mesmo daquilo que se exibe. Pois, frente ˆ impossibilidade de fus‹o entre audincia e
representa•‹o, vemos que o espet‡culo Ž a explora•‹o dos limites e das possibilidades
presentes nessa impossibilidade. O pœblico presente principalmente apenas ouve e v
aquilo que Ž exposto e a representa•‹o exibe esta parcialidade. N‹o h‡ o toque. E,
mesmo que ele aconte•a, Ž por momentos inseridos na assimetria. A assimetria
providencia a continuidade da varia•‹o inaugurada pela emergncia da exibi•‹o. A
permanncia do espet‡culo Ž a explora•‹o dessa assimetria.
Da’ podermos qualificar de audiovisuais os par‰metros de contato estabelecido
entre representa•‹o e audincia. A diferen•a que os conjuga Ž trabalhada atravŽs dematerialidades audiovisuais.
A fisicidade do espet‡culo, tanto na manipula•‹o de materiais durante o
processo criativo quanto na exposi•‹o durante sua representa•‹o, subverte os
esquemas mentalistas que procuram reduzir a apreens‹o dos feitos teatrais ˆ uma
discursividade. AtŽ mesmo a consagrada nomenclatura Ôlinguagem teatralÕ obscurece
a intera•‹o complexa de par‰metros f’sicos-expressivos da elabora•‹o de espet‡culos.
A analogia com a linguagem, vista em sua abstra•‹o sistmica, n‹o esclarece procedimentos espec’ficos de composi•‹o n‹o lingŸ’sticos. O mŽtodo anal—gico
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sempre Ž um artif’cio limitador pois se compara algo pouco conhecido com algo que
se quer conhecer, duplicando o desconhecimento. Toma-se uma parte de alguma coisa
para iluminar um pedacinho de outra.
Para alŽm disso, creio, porŽm, que Ž preciso colocar na agenda do dia a
discuss‹o mesma dos processos criativos. Sem enfrentar problemas de composi•‹o,
realiza•‹o e recep•‹o vamos discutir o qu? Espet‡culo e globaliza•‹o? A morte dos
pingŸins dourados da Amaz™nia e sua fŽ cnica? O ser teatral e alma do mundo?
Enfrentando o processo criativo temos a contextualiza•‹o da teatralidade a
partir de seu fazer, e ent‹o, vendo quais os problemas s‹o enfrentados e com isso os
limites e as possibilidades desse fazer, podemos compreender as especificidades e os
padr›es dessas atividades e, dessa forma, teorizar, ampliar o feito pelos par‰metros de
sua elabora•‹o.
Assim explicitado um processo criativo que objetiva sua explicita•‹o mesma,
temos a considera•‹o do fazer como obra, n‹o em uma unidade composicional
unit‡ria, org‰nica. A an‡lise do processo criativo n‹o se reduz ˆ exposi•‹o da obra
como algo comp—sito, autocentrado. A obra teatral Ž um feito vinculante. Produz
nexos para sua efetiva•‹o, transforma suas referncias em orienta•‹o. A composi•‹o Ž
a familiaridade com a constitui•‹o desses v’nculos. O espet‡culo Ž a exposi•‹o de
atos vinculantes atualizados em sua representa•‹o. A obra orienta-se para o nexo de
suas referncias, para a exibi•‹o de referncias que produzem intera•‹o. De maneira
que a criatividade do compositor da obra est‡ relacionada com esta dimens‹o dos
nexos. A forma de apresenta•‹o do espet‡culo torna a exposi•‹o de uma atividade
vinculat—ria ampla e cont’nua. O ritmo de representa•‹o Ž a varia•‹o dos nexos. Se
tudo se mostra, compor Ž exibir o c—gito relacional da e na representa•‹o.
Esta orienta•‹o vinculante do espet‡culo, decorrente de sua realidade
exposit—ria, determina a composi•‹o para sua realiza•‹o. A composi•‹o n‹o se separada realiza•‹o, antes Ž seu pensamento. Compor Ž pensar a realiza•‹o. A performance
como horizonte da elabora•‹o do espet‡culo corrige falsas certezas mentalistas. Pois a
representa•‹o n‹o pode conter tudo. Ela Ž menor que o mundo. Ela tem seu mundo
em suas condi•›es de performance. A realiza•‹o n‹o Ž um ato suplementar, mas a
explicita•‹o dos atos do espet‡culo.
Pensa-se em atos como partes narrativas da representa•‹o. Mas quando
falamos de atos nomeamos n‹o uma linearidade actancial que atualiza um esquemanarrativo. Estamos falando de atos representacionais, conjunto interligado de
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marcadas a•›es que exibem o espet‡culo. Se compor Ž realizar, realizar Ž agir. Os atos
singulares de possibilitar a representa•‹o mostram que a performance do espet‡culo
n‹o Ž uma concretiza•‹o apenas, uma etapa posterior ˆ composi•‹o. A realiza•‹o Ž
tanto o teste da composi•‹o como sua compreens‹o. Os atos perform‡ticos tm um
perfil cognitivo que transformam as a•›es na realiza•‹o em atos interpretativos. A
realiza•‹o Ž a exposi•‹o da estrutura interpretativa do espet‡culo. O espet‡culo
mostra-se como um feito interpret‡vel, difundindo sua inteligibilidade. Expondo-se e
exposto, o espet‡culo promove o acontecer de sua interpreta•‹o. Realizando-se, a
representa•‹o torna-se compreens’vel e articulada. Mostra-se em seus atos de
representa•‹o como fazer distingu’vel e a conhecer. ƒ uma provoca•‹o ˆ sua
apreens‹o.
Desempenhado para ser compreendido, mesmo que represente atos contra sua
compreens‹o, o espet‡culo tem seu acabamento na audincia. N‹o se trata de um
publicotropismo (Grotowski). N‹o Ž o pœblico que Ž o respons‡vel pela elabora•‹o do
espet‡culo A representa•‹o n‹o Ž serva de sua platŽia. Aqui a discuss‹o sempre recai
na autonomia da representa•‹o e sua pureza ou na vis‹o do pœblico como um dado
n‹o estŽtico. Sem a considera•‹o da globalidade e da especificidade do processo
criativo a considera•‹o da recep•‹o flutua como um barco ˆ deriva. Requer-se o
pœblico sempre que for necess‡rio justificar uma e outra coisa: 1 - o pœblico Ž
importante porque o espet‡culo Ž um apelo ˆ conscincia social; 2- o pœblico n‹o Ž
importante porque o espet‡culo Ž um exerc’cio estŽtico, uma pesquisa de linguagem.
Mas uma coisa Ž pœblico, outra audincia.
Ora sendo a representa•‹o teatral um fazer que se mostra a audincia n‹o Ž um
dado —bvio ausente do contexto produtivo. A recep•‹o n‹o vem a reboque de sua
necessidade. Se n‹o se levou em considera•‹o desde o inicio do processo criativo a
quest‹o da recep•‹o Ž porque foram feitas escolhas para apagar esta presen•aindelŽvel. No espet‡culo ficam as marcas desse apagamento. A modalidade de
intera•‹o produzida por um espet‡culo Ž atualizada em sua forma de apresenta•‹o. Os
pressupostos de representa•‹o s‹o explicitados atravŽs da realiza•‹o. N‹o h‡ como
esconder algo que se mostra.
O problema Ž que se confunde pœblico e recep•‹o. A presen•a de um grupo de
pessoas imediatamente frontal a uma cena n‹o faz disso uma recep•‹o se n‹o foi
levado em conta isso durante o processo criativo. Diferentemente, o audit—rio em potencial Ž um fluxo que atravessa a representa•‹o quando se considera a recep•‹o
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um fator integrante do espet‡culo. Eu posso ter um espet‡culo com pœblico mas sem
recep•‹o. Ou posso tornar rarefeita a recep•‹o atŽ perder o pœblico. A fisicidade da
representa•‹o coloca o problema te—rico da fisicidade do audit—rio potencial, da
constitui•‹o da audincia DESTE espet‡culo, a transforma•‹o do pœblico em
audincia.
Pœblico Ž um conceito civil, audincia Ž uma realiza•‹o estŽtica. Pessoas
reunidas em um espa•o aberto s‹o ÔpœblicoÕ. Pessoas disponibilizadas para uma
situa•‹o de representa•‹o s‹o ÔaudinciaÕ. Com a hodierna elimina•‹o de diferen•as
n‹o Ž invulgar que temos gente se comportando como pœblico em teatros e cinemas.
Ora este problema s— ratifica a especificidade do feito teatral. De nada adianta
projetarmos para as artes da cena conceitos e experincias familiares ˆ an‡lise
liter‡ria. A rela•‹o obra-leitor Ž diversa da rela•‹o espet‡culo-espectador. A obra
teatral n‹o se esclarece atravŽs de uma morfologia lingŸ’stica. O sucesso do modelo
da estŽtica da recep•‹o na literatura vale-se de uma mudan•a na compreens‹o da
textualidade liter‡ria baseada na an‡lise de romances que se valiam de procedimentos
teatrais em sua escritura, tais como elimina•‹o da perspectiva privilegiada do narrador
e distribui•‹o de focos narrativos dissipativos. Enquanto isso nas artes de cena a
recep•‹o n‹o Ž um conceito da hora, mas um fator de seu processo criativo.
A relev‰ncia da receptividade situa o processo criativo teatral em sua
completude. O espet‡culo n‹o Ž a concretiza•‹o das idŽias de um autor, mas a
representa•‹o de uma atividade interacional que se amplia na medida em que exibe-se
intelig’vel e distingu’vel. A considera•‹o da audincia Ž a explicita•‹o da amplitude
de um processo que se limita em sua exibi•‹o. O aproveitamento da receptividade n‹o
Ž oferta de momentos que alimentam respostas imediatas, mas sim a compreens‹o da
multiplanaridade dos atos representacionais, envolvidos em simult‰neas referncias.
O entendimento do processo criativo na integra•‹o de composi•‹o, realiza•‹oe recep•‹o bloqueia qualquer tentativa de se empreender uma reflex‹o sobre as artes
do espet‡culo com o intuito de regular as produ•›es. O estudo das artes de espet‡culo
em seu contexto produtivo n‹o objetiva canonizar determinadas pr‡ticas, mas
demostr‡-las em seus procedimentos,possibilitando a conscincia da infinitude do
campo a partir do conhecimento de suas especificidades. N‹o se estuda algo em sua
amplitude para reproduzir ou legitimar certas pr‡ticas. Pois se o estudo for inserido na
globalidade do contexto produtivo v-se que a especificidade advŽm da varia•‹oexibida e sustentada, de modo que conhecer algo j‡ Ž integrar o conhecido na
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compreens‹o do fazer e n‹o do j‡ feito. De modo que a reflex‹o n‹o Ž independente
de atos de compreens‹o contextualizados. Um saber sobre artes da cena j‡ Ž ent‹o um
conhecimento que se representa inserido. H‡ uma fatal homologia entre conhecer e
representar. A dimens‹o explicitada das artes de cena Ž a exibi•‹o de um saber das
artes de cena. O ponto de viragem est‡ no seguinte: n‹o h‡ conhecimento fora de sua
execu•‹o. O espet‡culo teatral Ž o feito a ser compreendido, pois se estrutura como a
explicita•‹o de uma estrutura interpret‡vel. Conhecer um processo criativo Ž um
equ’voco j‡ que o processo criativo Ž ele mesmo a realiza•‹o de uma compreens‹o.
Saber e representar n‹o s‹o opostos. Ao contr‡rio, desmistifica-se a aura
pseudometaf’sica da cria•‹o ao se considerar uma atividade representacional como
um feito intelig’vel.
A dimens‹o emergencial das artes de cena explicita em sua exibi•‹o n‹o s—
seu entendimento, mas a interpreta•‹o mesma de nossa atividade compreensiva. Por
isso, artistas que se posicionam contra qualquer car‡ter cognitivo ou racional de sua
arte, defendendo o irracionalismo e a intui•‹o, posicionam-se contra a arte que
praticam. Retomam e refor•am a separa•‹o entre arte e conhecimento produzida pelos
estudiosos que separam reflex‹o da arte de seu contexto realizacional.
O div—rcio arte e conhecimento Ž bom para estes artistas como para aqueles
intelectuais, pois em meio ao obscurantismo a falta de inteligibilidade dos feitos
estŽticos serve para endossar equ’vocos, invalidando julgamentos.
Enfim, meu intento aqui Ž apresentar alternativas a este renovado div—rcio
entre arte e reflex‹o sobre a arte a partir de uma explicita•‹o dos conceitos
operacionais que um processo criativo atualiza em seu contexto produtivo.
A necessidade de conceitos operat—rios Ž premente como forma de se
ultrapassar as oposi•›es entre teoria e pr‡tica na atividade de representa•‹o para a
cena. Em virtude da evidenci‡vel realidade f’sica da representa•‹o audiovisual, umarejei•‹o de seu horizonte te—rico Ž postulada. Ou, em contrapartida, frente ˆ supress‹o
desta realidade ou disponibiliza•‹o da mesma como material para discuss›es alheias a
esta problem‡tica, as implica•›es do fazer s‹o negligenciadas. Contudo, sempre Ž
preciso ter em mente que conceitos s‹o ferramentas. Podemos ter a coisa e n‹o o
nome. N‹o se trata de fetichizar os conceitos.
Por conceitos operat—rios entenda-se, pois, a inser•‹o de procedimentos
composicionais empregados em uma obra audiovisual em um contexto esclarecedorde sua atividade representacional. Dado que a manipula•‹o de materiais para a
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obten•‹o de uma fic•‹o fisicizada n‹o se reduz aos mesmos materiais, e que esta
manipula•‹o possui uma tradi•‹o, uma hist—ria que registra e explora modalidades de
solu•›es composicionais, os procedimentos retomam e desenvolvem quest›es
realizacionais. O fazer Ž um estudo das possibilidades de sua realiza•‹o. Aquilo que Ž
feito atualiza o embate frente ˆ restri•›es e alternativas que a materialidade e a
tradi•‹o de sua pr‡tica compositiva continuamente devolvem a cada novo fazer. O
acesso ˆ hist—ria desses problemas realizacionais se faz por meio da media•‹o de
conceitos operat—rios que indicam o contexto de quest›es composicionais dos
procedimentos de constitui•‹o da obra audiovisual. Conceitos, hist—ria, processo
criativo.
Ao invŽs de uma descri•‹o formalista estrita que v a obra como um sistema
autocontido reconstru’do completamente por conceitos, temos o limite do processo de
conceptualiza•‹o em processos representacionais. A metalinguagem, a descri•‹o do
analista, n‹o Ž um substitutivo do objeto focado. O ideal de traduzir o feito
audiovisual em uma nova linguagem, mais precisa e sem contradi•›es, exclui o
confronto com atos pontuais de sua elabora•‹o.
Por detr‡s dessa l—gica encontra-se a incr’vel e desejada obsess‹o por uma
realidade mais fundamental , a matriz origin‡ria de todas as formas de representa•‹o,
como se o representado fosse um reflexo, uma atualiza•‹o do modelo.
Este ’mpeto generalista atenta para sua motiva•‹o disciplinadora. O esfor•o de
se efetivar um uma formaliza•‹o absoluta da representa•‹o atravŽs de sistem‡tica
conceptual autoreferente objetiva, por fim, produzir uma imposi•‹o de normas de
regula•‹o da atividade representacional. Pois se a descri•‹o alcan•a sucesso em sua
apreens‹o das extens›es do objeto estudado, ent‹o esta descri•‹o formalizada torna-se
ponto de partida para a composi•‹o .
Contudo, o sucesso dessa formaliza•‹o n‹o advŽm da explora•‹o dos problemas inerentes ˆ atividade representacional, mas baseia-se no incremento das
exclus›es que a normaliza•‹o canoniza. Tanto que se pode falar de um fazer sem
realizar coisa alguma.
Partindo de e tendo em mente que uma representa•‹o audiovisual reivindica
quest›es relacionadas tanto ˆ sua composi•›es quanto ˆ sua realiza•‹o (performance),
conceitos operat—rios s‹o necess‡rios como forma de movimenta•‹o frente a estas
quest›es.Enfim, para tanto, h‡ a necessidade de conjugar as seguintes tarefas:
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cr’tica integrativa da tradi•‹o modernista, distinguindo suas orienta•›es e
posturas, de modo a superar os entraves proporcionados atravŽs de posicionamentos
absolutos e dogm‡ticos, principalmente no que diz respeito ˆ autonomia e
espiritualiza•‹o dos processos criativos e ˆ recusa da tradi•‹o. Pois,
contraditoriamente, muitas das atitudes revolucion‡rias se tornam cativas daquilo que
negavam, transformam-se em dogmas. Experimentalismo e criatividade n‹o s‹o
propriedade exclusiva do eterno vanguardismo. H‡ outras tradi•›es dentro da
tradi•‹o. ƒ preciso refutar a separa•‹o entre arte e hist—ria, arte e tradi•‹o.
Em decorrncia disso, tona-se imprescind’vel contextualizar o Modernismo
teatral do sŽculo XX e sua busca da autonomia e pureza expressivas, distinguindo
suas orienta•›es de modo a tornar compreens’vel propostas ao invŽs de reproduzir
seus equ’vocos. Dessa maneira, evita-se resumir o que aconteceu no sŽculo passado a
uma hegem™nica postura, incontest‡vel e absoluta. N‹o se pode fazer a equivalncia
entre tendncias d’spares. Como emblema ter’amos: as modernidades teatrais, para
alŽm da homogeneidade da heran•a cr’tica e revolucion‡ria do experimentalismo
cnico.
A partir dessa contextualiza•‹o, procuramos fazer notar que muitas das
quest›es relacionadas com a autonomia do campo das Artes Cnicas providenciam o
reconhecimento de um contexto produtivo espec’fico para estas artes. A busca de uma
especificidade n‹o refuta a presen•a de uma tradi•‹o criativa, aproximando contextos
hist—ricos e expressivos. N‹o Ž no ÔespiritualÕ que reside a ÔessnciaÕ do campo, mas
em seu fazer. O isolacionismo essencialista e metaf’sico da arte converte-a em um
tema para discurso e n‹o para realiza•‹o. O levar em conta esta dimens‹o
realizacional amplia e muito o entendimento do que se faz ou do que se procura fazer.
A prŽvia defini•‹o do que se realiza separa composi•‹o e realiza•‹o, eliminando aimport‰ncia da segunda. Se a realiza•‹o Ž uma proje•‹o de idŽias pressupostas
inalteradas, se Ž um recipiente, ent‹o pode-se prescindir dela. Basta pensar apenas. A
prevalncia de uma situa•‹o de performance, da exibi•‹o, de um espa•o de
representa•‹o e emergncia refuta a continuidade entre idŽias prŽvias e processo
criativo, reivindicando novas abordagens do que se observa. Pois temos o fator
performance atuando: tudo Ž transformado durante o processo criativo. Composi•‹o e
realiza•‹o se interpenetram.2-
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aten•‹o mais demorada ao processo criativo dram‡tico e sua
metareferencialidade, como forma de vincular os conceitos empregados ao seu
contexto produtivo, possibilitando o recurso a conceitos operacionais. Ora, se algo Ž
compreens’vel, Ž porque em sua realiza•‹o ele se efetiva inteligivelmente. A
metaferencialidade Ž uma ratifica•‹o do car‡ter exibitivo e perform‡tico das artes de
espet‡culo. N‹o Ž um momento especial no qual se comenta a pr—pria composi•‹o. Na
verdade, a realiza•‹o explicita sua composi•‹o. O teatro Ž uma metafic•‹o, pois
depende de sua inteligibilidade espec’fica para realizar-se como espet‡culo. Em
fun•‹o de sua realidade multitarefa, que aproxima atos diversos e simult‰neos, as
referncias desempenhadas em cena s‹o a orienta•‹o mesma de sua compreens‹o.
Dessa forma, o teatro Ž uma arte de superf’cie, de exposi•‹o, de emergncia,
de eventos. N‹o h‡ o oculto ou o ÔmistŽrico (mistŽrio + histeria)Õ, pois tudo Ž revelado
atŽ o n‹o dito ou o n‹o visto. Tudo o que n‹o se mostrou ou se revelou n‹o era para
ser mostrado ou revelado. O fator performance determina a atualidade de uma
representa•‹o vis’vel e presente em sua realiza•‹o. ƒ preciso ultrapassar uma
defini•‹o bin‡ria da cena, disposta entre vis’vel e n‹o vis’vel, esquema que retoma o
dualismo psicof’sico tradicional. Se se comp›e algo que n‹o foi mostrado ent‹o o que
se comp™s Ž irrelevante. S— Ž relevante o que se mostrou, o que se tornou evidenciado
e intelig’vel durante a atividade mesma de sua exposi•‹o. A cena Ž um espa•o de
exibi•‹o, marcado por se expor assim. A estrutura tridimensional, quadimensional
daquilo que se mostra espacializa os referentes exibidos de forma a se estabelecer
como alvo observacional para quem a interpreta. O finito espa•o dessa exibi•‹o
impede associa•›es ideais independentes do que se mostra em cena. Tudo que se
mostra exige seu fundamento espetacular. A cena corrige a imaterialidade da mente.
CritŽrios mentalistas baseados em idŽias sem contexto produtivo fracassam em
explicar os procedimentos realizacionais. Uma estŽtica operat—ria Ž necess‡ria. Aespacializa•‹o teatral determina sua operatividade audiovisual
Neste espa•o finito cada ato especifica sua ocupa•‹o. O tempo de exposi•‹o
daquilo que se exibe articula-se com altera•›es daquilo que se mostra. Cada ato Ž uma
ocorrncia, compreendida em sua posi•‹o, extens‹o, dura•‹o e retomada.
Contudo, explicitado localmente os atos se dirigem contra sua localidade. A
continuidade de sua presen•a determina a visagem de diversos tempos de sua
presen•a. N‹o sendo meras idŽias encarnadas tambŽm n‹o s‹o monol’ticos blocosestacion‡rios, assim como o espet‡culo n‹o Ž a amplia•‹o e manuten•‹o de uma
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ocorrncia pontual isolada. Como articular a tens‹o entre o local e o n‹o local, entre a
emergncia pontual e uma amplitude das ocorrncias?
Da mesma maneira que isoladamente um ato pode ser inserido em n’veis
mœltiplos de referncia simult‰neos sucessivamente esta varia•‹o da presen•a Ž
operacionalizada. A varia•‹o local desde j‡ remete para a varia•‹o translocal, de
modo que nos aproximamos da compreens‹o da espacializa•‹o cnica com maior
entendimento. As dicotomias presen•a-ausncia, local - n‹o local, entre outras, s‹o
dicotomias aparentes, intensificadas apenas pela aplica•‹o de estratŽgias explicativas
que n‹o levam em conta a especificidade do contexto produtivo de artes que se valem
de espa•os representacionais. Para alŽm dos binarismos, temos a superf’cie, o lugar de
emergncias que se constitui em algo para ser observado, compreendido. A exposi•‹o
ordena-se em fun•‹o da distribui•‹o de seus materiais em virtude da explora•‹o de
suas possibilidades representacionais e n‹o como adequa•‹o a um seqŸenciamento
convencionado, atribu’vel a veicula•‹o de uma perspectiva privilegiada. H‡ o fazer-se
da exposi•‹o que exibe sua contextura observacional pr—pria, em virtude das
possibilidades escolhidas. Pois a cena exp›e em fun•‹o de sua inteligibilidade, em
fun•‹o de sua recep•‹o. AlŽm do local e do translocal, temos a situa•‹o de
performance tornada uma contextura observacional.
Espacializada, a cena especifica-se e exibe-se. A composi•‹o e a realiza•‹o se
complementam na recep•‹o. A mœtua implica•‹o de composi•‹o, realiza•‹o e
recep•‹o nos mostra a complexidade dos atos representacionais das artes de
espet‡culo.
Daqui se seguem, n‹o exaustivamente, os seguintes problemas-conceitos de
um espet‡culo teatral:
a- diferencia•‹o drama/ narrativa. Examinando bem o pressuposto de
transparncia da representa•‹o, que afirma ser a fic•‹o um ve’culo para uma no•‹oque n‹o se modifica quando representada, chegamos ao predom’nio de estratŽgias
narrativas como forma de determinar o escopo e a forma de apresenta•‹o de fic•›es
audiovisuais. Como vimos, a assimetria entre audincia e representa•‹o procura dar
conta de parte de quest›es ausentes em um modelo descritivo que se confina ˆ
narratividade. O drama Ž um englobante. Sua diversidade de situa•›es n‹o se
restringe a atos narrativos.
b- espa•o de representa•‹o e situa•‹o de observ‰ncia A especificidade dafic•‹o audiovisual e seus problemas e escalas de realiza•‹o e composi•‹o reivindica o
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Snl
espa•o de representa•‹o. A divis‹o do todo em partes e a marca•‹o dessa divis‹o s‹o
atividades correlativas que contextualizam o prosseguir da representa•‹o. O nome '
cena ' tem sido utilizado para caracterizar a rela•‹o espa•o-temporal onde e quando
uma por•‹o delimitada dessa divis‹o Ž encontrada. Dessa atividade, pode-se concluir
que, frente ˆ impossibilidade de se exibir a totalidade do que se quer representar em
um œnico ato, um conjunto de atos Ž articulado e ganha sua realidade em fun•‹o de
compor e atualizar momentos que marcam compreens‹o do espet‡culo. Mais que uma
formaliza•‹o narrativa, a sucess‹o de cenas interpreta o contato de uma audincia
com uma fic•‹o. Estruturas de contato que exploram este enfrentamento s‹o dispostas
no decorrer da representa•‹o. O acontecer dessa experincia de ajustamento frente ao
diverso, inserindo-se em uma situa•‹o de observ‰ncia, n‹o se d‡ abstratamente, mas
ocorre no entrechoque de referncias, em um espa•o de representa•‹o. Desde o in’cio
a fic•‹o que o espet‡culo exp›e (e se exp›e) exibe seus pressupostos e procura
orientar a atividade interpretativa da recep•‹o. Atravessa toda a representa•‹o uma
cont’nua a•‹o avaliativa, interpretativa, imaginante da audincia, ajustado-se ao que
observa. Para dar conta dessa a•‹o, os dramaturgos antecipam-se formulando pouco a
pouco a audincia em potencial de seu espet‡culo, testando o nexo entre espet‡culo e
recep•‹o. A materializa•‹o das referncias se d‡ na rela•‹o entre um espa•o figurado
na representa•‹o e a posi•‹o dos agentes dram‡ticos em rela•‹o a este espa•o. Espa•o
Ž igual ˆ acontecimento. O acontecimento precede o agente e o agente torna
compreens’vel o espa•o reagindo e refigurando-o. O agente Ž avaliado espacialmente
como algo que tem posi•‹o, extens‹o, dura•‹o e sobrepresen•a. Esta quadratura do
agente dram‡tico integra-o em uma situa•‹o de observ‰ncia, fazendo com que os
tra•os e as referncias as quais ele nos remete sejam contextualizadas em fun•‹o da
atividade imaginativa-interpretativa do espet‡culo que correlaciona a fic•‹o que se
mostra com o esfor•o cognitivo da recep•‹o. O espa•o de representa•‹o Ž o acontecerda compreens‹o do que Ž representado. O que se representa Ž mais do que se
apresenta, mas o que se mostra n‹o se esvazia na sua exibi•‹o.
Nunca esquecer que como estamos sujeitos somente ˆ visualidade e a audi•‹o,
n‹o havendo contato f’sico direto, tudo Ž recebido em termos de observa•‹o. Tudo
que se mostra Ž constru’do em fun•‹o de ser observado. A espacializa•‹o do que Ž
mostrado Ž sua transforma•‹o em conhecimento audiovisual. Os agentes s‹o pontos
focais dos quais partem e para os quais chegam referncias e orienta•›es a respeito doque Ž representado e como se d‡ a representa•‹o. Toda referncia Ž uma orienta•‹o,
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um ’ndice de espet‡culo. A continuidade da representa•‹o Ž constru•‹o de sua
observ‰ncia, Ž a operacionaliza•‹o de sua focaliza•‹o dram‡tica. N‹o Ž o seguir de
uma idŽia ou o confirmar uma expectativa que define o modo de ser da representa•‹o.
Partindo do estabelecimento de um contato, Ž preciso criar as condi•›es de sua
inteligibilidade. ƒ preciso converter-se em fato observ‡vel o que prop›e ser um feito
de fic•‹o. Mas o espa•o de representa•‹o n‹o Ž uma homogeneidade. Como
contextura de observa•‹o, articula-se seus v‡rios n’veis, a simultaneidade das d’spares
presen•as da atividade imaginativa do espectador e da atividade ficcional da
representa•‹o.
Assim, tudo Ž explicitado. N‹o h‡ o absc™ndito, o profundo, o mistŽrico. O
espa•o de representa•‹o e a contextura observacional nos lembram dos limites e das
possibilidades do espet‡culo.
c- atos atos personativos Este conceito nos auxilia na tentativa de melhor
compreender o que chamamos personagem. A cultura personalista e individualista na
qual nos movemos sobrecarrega a fic•‹o como forma de refor•o de uma identidade
sem diferen•as, identific‡vel. A mal compreendida teoria do distanciamento de Brecht
nos auxilia na atividade de descentrar a fic•‹o da personagem. Ora ao partimos
mesmo de uma assimetria fundamental que se prolonga pelo espet‡culo e que a fic•‹o
empreendida por este espet‡culo Ž a tentativa de integrar a assimetria em uma
situa•‹o de observ‰ncia, Ž imposs’vel a absoluta fus‹o personagem/espet‡culo,
personagem/audincia.
Fundamental para isso Ž perceber a diferen•a entre contexto de cena e situa•‹o
dram‡tica. N‹o esvaziando a localidade do que se mostra nem perpetuando a
literalidade do que se apresenta, esta distin•‹o Ž œtil para determinar a focaliza•‹o
dram‡tica proporcionada pelos agentes dram‡ticos. Eles agem em um contexto de
cena, uma m’nima referncia tempo-espacial identific‡vel, com a qual contracenam ea qual tornam intelig’vel. Mas o agente dram‡tico n‹o se reduz ˆ sua ambincia, pois
ele tem outros atos. A ilumina•‹o do contexto de cena frente ao todo do espet‡culo se
d‡ quando ele evoca a situa•‹o dram‡tica que o sobredetermina. O contexto de cena
se v integrado em uma compreens‹o que ultrapassa o reconhecimento de seu
presente imediato, compreens‹o esta proporcionada pelos atos personativos, mas que
muitas vezes o pr—prio personagem n‹o incorpora como algo que entendeu. A platŽia
sabe mais que os agentes dram‡ticos, pois eles tem um destino de escritura. O prosseguir do espet‡culo Ž a continuidade da diferen•a de saberes da recep•‹o e dos
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agentes dram‡ticos. H‡ n’veis de realidade em cena como diferen•as de saber. Esta
diferen•a pode ser marcada pelos termos contexto de cena (saber restrito aos atos
representados) e situa•‹o dram‡tica ( saber ampliado pelo fazer-se do espet‡culo).
ƒ nos agentes dram‡ticos e em seus atos que a explora•‹o do contato entre
representa•‹o e audincia Ž desenvolvida. Eles duplicam a rela•‹o cena-audincia. A
contribui•‹o da personagem para o espet‡culo n‹o se restringe somente a feitos de
caracteriza•‹o. A realidade multitarefa de um agente dram‡tico ultrapassa tambŽm
sua instrumentaliza•‹o como porta-voz autoral. De qualquer forma, sabemos que
somos mais complexos, variados e mut‡veis que uma figura. Como bem nos
demonstrou Pirandello em "Seis personagens em busca de um autor". Os atos das
personagens contribuem tanto para sua individua•‹o quanto para a individua•‹o do
espet‡culo. As personagens mesmas s‹o atos, s‹o essas a•›es expl’citas e
diferenciadas. S‹o atos personativos. ƒ preciso desustancializar o conceito de
personagem, retirando-o de uma inst‰ncia reprodutiva que providencia uma œnica
estratŽgia de vincula•‹o da audincia ao espet‡culo. Desusbtacializado, o agente
dram‡tico se materializa no conjunto de nexos que ele efetiva em sua situa•‹o de
representa•‹o.
d- marca•‹o emocional do espet‡culo. Correlacionando representa•‹o e
compreens‹o, dimensionamos a fic•‹o audiovisual em tarefas intelig’veis que
solicitam atos complexos e interligados. O cont’nuo recurso ˆ compreens‹o Ž o dar-se
conta de que alguŽm v e avalia e imagina o que voc mostra. E a convivncia com
este olhar e sua internaliza•‹o por parte de quem faz arte ou aprecia arte Ž um modo
de desnaturalizar nossa habitual tendncia de resolver tudo que se representa em
termos de discurso ou de elogio m’stico. O reenvio para uma contextura de
observ‰ncia e de inteligibilidade n‹o nega de maneira alguma a emo•‹o na arte
audiovisual. Antes, a situa frente ˆ sua atividade representacional. Pois emo•‹o Žmarca•‹o, Ž focaliza•‹o de algo que se entende ou busca compreender. Como n‹o se
pode tocar ou sentir o que o outro Ž ou sente, s— podemos pressupor, imaginar de
acordo com o confronto entre o que sabemos e o que j‡ sab’amos. Frente ˆ eventual
dispers‹o da recep•‹o, a emo•‹o Ž marcada, separada, reconhec’vel, sendo uma
varia•‹o da compreens‹o do que se representa. A dimens‹o cognitiva da marca•‹o
emocional de modo algum elimina seus efeitos sens’veis. Antes, efetiva a
racionalidade presente em todas as etapas da elabora•‹o, performance e recep•‹o deuma obra.
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e- integra•‹o dram‡tica ƒ preciso refor•ar uma vis‹o global dos problemas de
uma dramaturgia audiovisual. Vendo o drama como uma categoria de composi•‹o, e
n‹o de conteœdo, atravŽs do qual se ficcionaliza uma memor‡vel experincia de
observ‰ncia, notamos que aquilo que Ž assimŽtrico e ass’ncrono Ž explorando ,
possibilitando uma integra•‹o dos d’spares em uma pervivncia mais extensa. Ao fim
o espet‡culo Ž a exposi•‹o de sua inteligibilidade, sua metaficcionalidade. A diferen•a
entre o que Ž mostrado e o que Ž compreendido, torna n‹o coincidentes o fim da
apresenta•‹o e o tŽrmino do espet‡culo. A morte das personagens contribui para
marcar e lembrar a separa•‹o entre fic•‹o e realidade encenada na representa•‹o. A
forma de apresenta•‹o da fic•‹o Ž esclarecida pelo modo com se integra a recep•‹o.
3-
revis‹o do conceito de dramaturgia como meio de acesso aos espec’ficos
contextos de produ•‹o do espet‡culo teatral visto como fic•‹o audiovisual. A
dramaturgia apresenta-se como explora•‹o das potencialidades representacionais do
espet‡culo.
Um dos fortes obst‡culos da tradi•‹o espiritualizante-modernista foi a palavra.
A .Artaud paradoxalmente condenou o texto valendo-se liricamente da palavra. Ap—s
tivemos colagens e atomiza•›es do texto. O forte contexto reativo de ent‹o fazia crer
que a melhor maneira para se autonomizar o espet‡culo teatral, atingindo sua
essncia, era acatar uma ant’tese entre corpo e palavra. A plasticidade do corpo seria
um remŽdio contra a abstra•‹o da linguagem.
Mas dramaturgia n‹o Ž sin™nimo de distribui•‹o de falas. Assim como a
palavra tem sua plasticidade. A hip—tese regressiva de o teatro possibilitar um
encontro total e sagrado entre as pessoas Ž uma utopia que n‹o tem realiza•‹o. O
espet‡culo, em sua articula•‹o finita, n‹o d‡ conta de tamanhos empreendimentos.
Da’ a dramaturgia. Frente ˆs escalas do espet‡culo e ˆ situa•‹o de representa•‹o, Ž preciso tornar essas limita•›es as possibilidades mesmas do que se encena. A
dramaturgia explora os par‰metros de composi•‹o, realiza•‹o e recep•‹o, efetivando
uma configura•‹o espec’fica. A dramaturgia Ž um roteiro de representa•‹o, onde a
correla•‹o entre os par‰metros Ž especificada. Dramatizar Ž estabelecer os v’nculos e
os nexos entre audincia e espet‡culo a partir do espet‡culo. A dramaturgia Ž a
compreens‹o em express‹o desses v’nculos e nexos. N‹o se trata somente de escrever,
n‹o se trata apenas da palavra. Dramaturgo Ž quem realiza os par‰metros estŽticos doespet‡culo. E drama?
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Muitas vezes n‹o h‡ linguagem para aquilo que parecemos compreender bem.
Ou ainda que a raridade de um fazer criativo envolva sem piedade as amarras de sua
sustenta•‹o. Vejamos o caso do drama. O cont’nuo recurso ˆ palavra efetivou n‹o um
gnero mais um estilo interpretativo tornado ’ndice de valora•‹o quase absoluto e por
isso alvo de recusa. A ininterrupta sobreposi•‹o de aplica•›es ao drama, contudo,
retira-o de seu contexto produtivo e das quest›es composicionais. N‹o Ž em v‹o que
se busque um filme dram‡tico, uma mœsica dram‡tica, uma pintura dram‡tica. O
recurso extensivo ao drama comparece na apropria•‹o de uma experincia de
ordena•‹o, disposi•‹o e inteligibilidade dos materiais audiovisuais. O modo como se
estabelece uma marca•‹o distingu’vel das sucess›es apresentadas, fazendo com que a
dura•‹o do que se mostra revele sua integra•‹o em uma atividade representacional
desencadeada, apela para a qualifica•‹o Ôdram‡ticoÕ. A disposi•‹o de partes do
espet‡culo reconhec’veis em sua estrutura•‹o de forma a fazer notar uma suspens‹o
do que Ž exibido, sonegando uma continuidade na apresenta•‹o para promover uma
reorganiza•‹o orientadora do espet‡culo rumo ˆ n‹o localidade do que se mostra,
delineia a elabora•‹o dram‡tica da representa•‹o. De sorte que o dram‡tico aponta
para a compreens‹o da forma do espet‡culo da atividade audiovisual. Partindo da
posi•‹o, dura•‹o, extens‹o e sobrepresen•a da disposi•‹o de materiais sonoros e
visuais, dramatizar Ž argumentar e integrar em um espet‡culo tarefas composicionais.
A dramaturgia Ž a escrita e trato com estas tarefas. A escritura de uma obra
audiovisual necessita n‹o s— do conhecimento dos materiais e dos meios de sua
viabiliza•‹o, mas do defrontar-se com problemas estŽticos-realizaciononais. Por isso
a textualidade espec’fica da dramaturgia se esclarece melhor quando melhor Ž
compreendida como elabora•‹o de um roteiro de representa•‹o.
H‡ uma tradi•‹o de se propor sons e imagens para uma platŽia, fato que nos d‡
a op•‹o de escapar de muitos de nossos entraves pop-p—s-modernista. Ultrapassando asepara•‹o entre texto e espet‡culo vemos o dramaturgia como roteiro do drama, como
roteiriza•‹o de situa•›es de enfrentamento da assimetria entre pressupostos da
audincia e pressupostos da representa•‹o. A macroestrutura•‹o que um roteiro das
performances possibilita Ž uma anal’tica da representa•‹o e da atividade imaginante.
Enfim, assimetria entre espet‡culo e recep•‹o, atos vinculantes, duplica•‹o
das rela•›es entre espet‡culo e recep•‹o,integra•‹o dram‡tica,focaliza•‹o dram‡tica,correla•‹o referncia/orienta•‹o, marca•‹o emocional, audiovisualidade,
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metareferencialidade teatral, atos personativos , atos representacionais s‹o mais que
entradas em um dicion‡rio. O enfrentamento desses problemas b‡sicos torna-se a
pr—pria compreens‹o do contexto produtivo das artes de espet‡culo.
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