ÍNDICE
APRESENTAÇÃO..................................................................pág.04
FILMES.................................................................................. pág.06
LEITURAS............................................................................... pág.13
UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA......................................pág.14
ELE ESTÁ DE VOLTA..............................................................pág.22
DOMÉSTICA.........................................................................pág.31
CRÉDITOS
Esta é uma publicação especial da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), referente ao projeto “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”, realizado pelo Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, em parceria com a Pró-Reitoria de Graduação, a Comissão Permanente de Vestibular e a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários.
Disponibilização on line e gratuita. Permitida a reprodução dos textos ou parte deles, desde que citados os autores e a fonte.
Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular / Ano 13 / 2016
Coordenação-geral, Organização e Revisão do Livreto:Raquel Costa Santos
Produção Executiva: Rayssa Coelho
Programação Visual:Danilo Silva
Produção de Vídeo:Renato Fernandes e Márcio Venancio
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIAPRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO E ASSUNTOS COMUNITÁRIOS
PROGRAMA JANELA INDISCRETA CINE-VÍDEO UESBEstrada do Bem-Querer, km 04 – Campus Universitário
Vitória da Conquista-Bahia – CEP 45.083-900 | Tel.: (77) 3425.9330E-mail: [email protected]
Site: www.janelaindiscretauesb.com.br
APRESENTAÇÃO
Em 2016, a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) realiza a
13ª edição do “Cinema: Eis a Questão – O Janela Indiscreta no Vestibular”. O
projeto foi iniciado em 2004, pela equipe do Programa Janela Indiscreta Cine-
Vídeo Uesb, que seleciona, a cada ano, três filmes a fazer parte dos conteúdos
do Vestibular da Universidade: dois brasileiros (uma ficção e um documentário) e
um estrangeiro.
Depois de criteriosa escolha, as obras são exibidas nas três cidades-sede
da Instituição – Vitória da Conquista, Jequié e Itapetinga –, e cada uma delas é
comentada por três convidados – geralmente, profissionais de áreas afins às
temáticas relacionadas –, que debatem com as plateias. Esses mesmos
comentaristas elaboram textos que passam a compor esta publicação e
comentários videogravados em estúdio, para possibilitar o acesso às reflexões a
quem não possa participar das sessões. Nesta trajetória de mais de uma
década, completam-se 39 filmes selecionados, comentados por mais de cem
convidados.
Neste ano, excepcionalmente, em função da Ocupação dos campi
da Uesb pelos estudantes, entre os meses de outubro e dezembro, como parte
do movimento nacional de ocupações de instituições de ensino – movimento
cuja importância social, política e histórica reconhecemos e respeitamos –, não
foi possível a realização das exibições comentadas nas cidades-sede, mas foi
mantida a publicação do livreto Leituras de Cinema e dos comentários filmados,
disponibilizados para livre e irrestrito acesso na internet.
Pudemos contabilizar, nas sessões realizadas até o ano passado, cerca
de 38 mil vestibulandos participantes. Não temos como dimensionar, entretanto,
o alcance das publicações disponibilizadas em rede, mas trabalhamos com a
certeza de que, a cada acesso, às leituras apresentadas entrecruzam-se outras
tantas, de cada um que olha, reflete e dimensiona o mundo pelas infinitas
possibilidades oferecidas pela sétima arte.
Desejamos, assim, uma ótima leitura!
Raquel Costa Santos
Pela equipe do Programa Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb
04 05
FILMES
A cada edição do projeto “Cinema: Eis a Questão”, são selecionados
três filmes, dois nacionais, sendo uma ficção e um documentário, e um
estrangeiro. Para a seleção das obras, feita criteriosamente pela equipe do
Janela Indiscreta Cine-Vídeo Uesb, observam-se as críticas, a relevância dos
temas abordados, a qualidade estética e narrativa e a possibilidade de acesso,
uma vez que as obras podem ser encontradas facilmente.
Filme: “Uma história de amor e fúria”Direção: Luiz BolognesiDuração/Ano/País: 74 min., 2013, Brasil
Filme: “Ele está de volta” (“Er ist wieder da”)Direção: David WnendtDuração/Ano/País: 116 min., 2015, Alemanha
Filme: “Doméstica”Direção: Gabriel MascaroDuração/Ano/País: 75min., 2012, Brasil
Filme: “O Menino e o Mundo”
Direção: Alê Abreu
Duração/Ano/País: 80 min, 2014, Brasil
Filme: “Relatos Selvagens”
Direção: Damián Szifron
Duração/Ano/País: 122 min, 2015,
Argentina/Espanha
Filme: “Sem Pena”
Direção: Eugênio Puppo
Duração/Ano/País: 87 min., 2014, Brasil
Filme: “À Beira do Caminho”
Direção: Breno Silveira
Duração/Ano/País: 90 min., 2012, Brasil
Filme: “Os Incompreendidos”
Direção: François Truffaut
Duração/Ano/País: 94 min., 1959, França
Filme: “Garapa”
Direção: José Padilha
Duração/Ano/País: 90 min., 2009, Brasil
FILMES
06 07
2014
2015
2016
FILMES
Filme: “O ano em que meus pais saíram de
férias”
Direção: Cao Hamburguer
Duração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil
Filme: “Infância Clandestina”
Direção: Benjamin Ávila
Duração/Ano/País: 110 min., 2012,
Argentina/Espanha/Brasil
Filme: “Marighella”
Direção: Isa Grinspum Ferraz
Duração/Ano/País: 90 min., 2012, Brasil
Filme: “Capitães da Areia”
Direção: Cecília Amado e Guy Gonçalves
Duração/Ano/País: 96 min., 2011, Brasil
Filme: “Persépolis”
Direção: Vicent Paronnaud e Marjane Satrapi
Duração/Ano/País: 95 min., 2007, França/EUA
Filme: “Utopia e Barbárie”
Direção: Silvio Tendler
Duração/Ano/País: 120 min., 2010, Brasil
Filme: “Terra Estrangeira”
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Duração/Ano/País: 100 min., 1995, Brasil
Filme: “A Cor do Paraíso”
Direção: Majid Majidi
Duração/Ano/País: 90 min., 1999, Irã
Filme: “O Homem que Engarrafava Nuvens“
Direção: Lírio Ferreira
Duração/Ano/País: 106 min., 2010, Brasil
FILMES
Filme: “Linha de Passe”
Direção: Walter Salles e Daniela Thomas
Duração/Ano/País: 113 min., 2008, Brasil
Filme: “A Onda”
Direção: Dennis Gansel
Duração/Ano/País: 106 min., 2008, Alemanha
Filme:“Pro Dia Nascer Feliz”
Direção: João Jardim
Duração/Ano/País: 88 min., 2007, Brasil
08 09
2012
2013
2010
2011
FILMESFILMES
Filme: “Mutum”
Direção: Sandra Kogut
Duração/Ano/País: 95 min., 2007, Brasil
Filme: “Encontro com Milton Santos ou O
mundo global visto do lado de cá”
Direção: Silvio Tendler
Duração/Ano/País: 87 min., 2007, Brasil
Filme: “Ensaio Sobre a Cegueira”
Direção: Fernando Meirelles
Duração/Ano/País: 120 min., 2008,
Brasil/Canadá/Japão
Filme: “Zuzu Angel”
Direção: Sérgio Rezende
Duração/Ano/País: 110 min., 2006, Brasil
Filme: “Babel”
Direção: Alejandro González Iñarritu
Duração/Ano/País: 142 min., 2006, Estados
Unidos
Filme: “Estamira”
Direção: Marcos Prado
Duração/Ano/País: 115 min., 2006, Brasil
Filme: “Macunaíma”
Direção: Joaquim Pedro de Andrade
Duração/Ano/País: 108 min., 1969, Brasil
Filme: “Anjos do Sol”
Direção: Rudi Lagemann
Duração/Ano/País: 90 min., 2006, Brasil
Filme: “Balzac e a Costureirinha Chinesa”
Direção: Dai Sijie
Duração/Ano/País: 116 min., 2002,
China/França
Filme: “A Marvada Carne”
Direção: André Klotzel
Duração/Ano/País: 77 min., 1985, Brasil
Filme: “Hotel Ruanda”
Direção: Terry George
Duração/Ano/País: 121 min., 2004,
Itália/África do Sul/Estados Unidos
Filme: “Terra em Transe”
Direção: Glauber Rocha
Duração/Ano/País: 115 min., 1967, Brasil
10 11
2008
2009
2006
2007
FILMES
Filme: “Deus e o Diabo na Terra do Sol”
Direção: Glauber Rocha
Duração/Ano/País: 115 min., 1964, Brasil
Filme: “Cidade de Deus”
Direção: Fernando Meirelles
Duração/Ano/País: 135 min., 2002, Brasil
Filme: “A Excêntrica Família de Antônia”
Direção: Marleen Gorris
Duração/Ano/País: 102 min., 1995,
Bélgica/Inglaterra/ Holanda
Filme: “Cinema Paradiso”
Direção: Giuseppe Tornatore
Duração/Ano/País: 123 min., 1988,
Itália/França
Filme: “Abril Despedaçado”
Direção: Walter Salles
Duração/Ano/País: 95 min., 2001, Brasil
Filme: “Bicho de Sete Cabeças”
Direção: Laís Bodanzky
Duração/Ano/País: 80 min., 2000, Brasil
LEITURAS...
Cada filme indicado para o Vestibular Uesb 2017 é comentado por
professores e/ou pesquisadores convidados, que contribuem com um texto
para este livreto Leituras de Cinema, além de terem seus comentários gravados
em vídeo e igualmente disponibilizados na internet. As abordagens feitas por
esses “leitores-guias” trazem distintos olhares, que, somados aos de cada
vestibulando, podem ajudá-lo a refletir sobre diversos aspectos possíveis de
serem percebidos e interpretados nos filmes.
Nesta publicação, temos a contribuição de Joslan Sampaio, Márcio
Venancio, Veruska Anacirema (“Uma história de amor e fúria”), Alberto Bomfim,
Eder Amaral e Marcelo Lopes (“Ele está de volta”), Filipe Brito Gama, Sérgio O.
Silva e Tamara Chéquer Cotrim (“Doméstica”).
Boa leitura!
12 13
2004
2005
UMA HISTÓRIA DE AMOR E FÚRIA
Filme: “Uma história de amor e fúria” Direção: Luiz BolognesiAno: 2013Gênero: AnimaçãoOrigem: BrasilDuração: 74 minutosComentaristas: Joslan Sampaio, Márcio Venancio e Veruska Anacirema
Sinopse
“Uma História de Amor e Fúria” é um filme de animação que retrata o amor entre um herói imortal e Janaína, a mulher por quem é apaixonado há 600 anos. Como pano de fundo do romance, o longa ressalta quatro fases da história do Brasil: a colonização, a escravidão, o Regime Militar e o futuro, em 2096, quando haverá guerra pela água.
UMA INSÓLITA NARRATIVA: SOBRE VENCEDORES E VENCIDOS
Joslan Santos Sampaio*
Os primeiros contatos entre a História e o Cinema foram marcados por
certo distanciamento. O historiador, tributário do labor tradicional, buscava não
tomar a narrativa cinematográfica como fonte e agente da história, por não se
tratar de um “documento” oficial. No entanto, com o advento da Escola dos
Annales – que incluía qualquer vestígio capaz de identificar a ação do homem
no tempo –, os diálogos entre as narrativas supracitadas foram se tornando mais
frequentes.
Ainda assim, não era qualquer narrativa fílmica que era considerada
digna de narrar, representar e problematizar os eventos históricos,
especialmente os eventos trágicos da história humana. Para alguns
historiadores, apenas as películas com uma retórica séria e racional eram
consideradas dignas de tais representações.
Indo de encontro ao convencional estabelecido, o filme de animação
Uma história de amor e fúria narra, a contrapelo, alguns eventos históricos
considerados importantes. O filme escrito e dirigido por Luiz Bolognesi,
compreensível por meio de um jogo imaginativo de intrigas, rompe com o
discurso memorialístico brasileiro construído e legitimado pelas instituições
tradicionais. Em outros termos, a estética narrativa do filme desloca o discurso
dos “heróis” nacionais, reescrevendo o passado e tirando do esquecimento
aqueles que estiveram, por bastante tempo, às margens do discurso histórico
tradicional.
O elemento inovador do filme consiste no questionamento das
“verdades” construídas sobre os nossos heróis. Como pano de fundo, a obra
narra o romance entre um homem imortal de 600 anos e sua amada, Janaína,
que se encontram em outras encarnações. Como uma primeira investida neste
sentido, o filme inicia-se com o romance entre Abeguar e Janaína. Ele, um
guerreiro tupinambá, escolhido por Munhã para lutar eternamente contra
Anhangá, esforça-se para salvar o seu povo de uma investida dos portugueses e
seus aliados tupiniquins. No entanto, apesar de Abeguar fracassar em sua
empreitada, pois os tupinambás foram dizimados pelos portugueses, deste
14 15
episódio brotam algumas das reflexões do filme: os nomes lembrados na História
são sempre os dos vencedores. Estácio de Sá, líder português na luta contra os
franceses e tupinambás, foi aclamado e tonou-se herói por vencer a
Confederação dos Tamoios, enquanto os guerreiros tupinambás foram alijados
do constructo histórico. Em oposição a essa linha narrativa, Luiz Bolognesi lança o
olhar para os vencidos, quais sejam: os tupinambás, especialmente Abeguar.
A abordagem subversiva do filme, como antídoto à tendência
tradicional de pensar a História a partir dos vencedores, torna-se inteiramente
coerente quando ele narra a Balaiada. Desta vez, o amor de Janaína não está
mais no corpo do índio Abeguar, mas sim no corpo do negro, não escravo,
Manoel Balaio, um dos líderes da Balaiada. A rigor, a história do movimento
contada pelo filme desloca o centro do heroísmo para os grupos vencidos. Se o
receituário oficial guiado pelas fontes tradicionais tutelou o coronel Luís Alves de
Lima e Silva – futuro Duque de Caxias – como o grande herói nacional que
combateu o movimento, no filme Uma história de amor e fúria encontramos,
claramente, os elementos de subversão, ao tomar o negro Manoel Balaio como
herói injustiçado no movimento da Balaiada. Este sim, digno de estátuas e
reminiscência.
Essa proposta de interpretação da história e da memória apresentada
pelo filme tem continuidade no terceiro encontro entre o herói imortal (Cao) e
Janaína. O casal se encontra, agora, no período da Ditadura Militar. Cao e
Janaína fazem parte de um grupo guerrilheiro que combate a repressão
imposta pelos militares. Mais uma vez, o casal está do lado dos mais fracos,
estabelecendo uma reflexão em termos de oposição e luta contra as forças
dominantes.
Na última fase do filme, que faz referência ao ano de 2096, o herói
imortal – agora na figura de João Cândido – é um jornalista que decidiu não
lutar mais contra o lado mais forte. Em uma sociedade marcada pela escassez
de água e extrema desigualdade social, João optou por usufruir do sistema. No
entanto, o seu amor pela prostituta Janaína o coloca, mais uma vez, do lado da
luta por mais justiça social. É essa a sina que o herói imortal e sua amada
carregarão pela eternidade: a tentativa constante de corrigir as desigualdades
que condicionam a humanidade a agir com mais fúria e menos amor.
Assim, no seu conjunto, esse filme testemunha um projeto pessoal de Luiz
Bolognesi associado às novas formas de pensar a História. Pode-se concluir
dizendo que, em Uma história de amor e fúria, os discursos oficiais, os
documentos canônicos, as estéticas narrativas consideradas sérias e superiores,
bem como os regimes de verdade impostos pelos vencedores, veem-se em
apuros. Em outra direção, o filme abre espaço para uma consciência clara de
refletir sobre as “verdades” históricas, de repensar os monumentos
memorialísticos e redimensionar a importância dos filmes de animação.
* Doutorando e mestre em Memória: Linguagem e Sociedade e graduado em História (Uesb).
Professor da Rede Estadual de Ensino da Bahia.
16 17
4
4
UMA OUTRA VERSÃO
Márcio Venancio*
São mais de 500 anos de jornada condensados em pouco mais de uma
hora de luta contra as mais diferentes formas de repressão e violência. Com um
amor e em meio a muita fúria, o protagonista-herói Abeguar atravessa os
séculos tentando apresentar outra versão de eventos que marcaram a História
do Brasil. Expor essas relações de poder e dominação, através de uma técnica
mista de animação (tradicional e digital), foi a maneira escolhida pelo autor e
diretor Luiz Roberto Bolognesi para propor outra leitura da História a que
normalmente temos acesso, a história dos vencedores.
“Viver sem conhecer o passado é andar no escuro”. Essa frase, dita logo
no início pelo protagonista, sintetiza o mote da narrativa que perpassa por
grandes acontecimentos históricos: a colonização portuguesa,
especificamente a expulsão francesa do Rio de Janeiro, a Balaiada, revolta
popular que ocorreu no Maranhão do século XIX, e o Golpe Militar de 1964,
além da criação de futuro distópico (2096), em que o acesso à água é o
principal vetor de tensionamento social.
Abeguar, um tupinambá escolhido por Munhã – um dos deuses da
mitologia indígena –, luta contra os dispositivos de opressão administrados
conforme o cinismo e a conveniência de grupos ou instituições que se colocam
acima das populações, sejam elas indígenas, negras ou pobres. Tal contexto é
base para um arranjo de intensa e crescente desigualdade. Dessa maneira, a
população aos poucos inicia um processo de contestação da ordem e status
social que finda em radicalização da violência por parte das elites privilegiadas.
De forma um tanto didática, o filme apresenta questões que, muitas
vezes, não estão presentes nos livros de História. O exercício de reflexão que a
obra convida a fazer é uma maneira de ressignificar eventos e conceitos muitas
vezes pouco discutidos. Afinal, os invasores franceses e holandeses eram
diferentes dos portugueses? O cangaço é forma de banditismo característico
do Nordeste? Os heróis de guerra realmente seriam heróis? Questionamentos
como esses dão o tom da narrativa.
É interessante notar, durante o filme, que a estratégia utilizada de
desfiguração dos questionamentos sociais como mero banditismo é o dispositivo
central para a desarticulação dos questionadores e posterior esmagamento,
pela violência, desses indivíduos. Essa estratégia é presente durante todo o
percurso dos personagens, que se veem no dilema de desistir/resistir. Aqui,
ganha relevo o pessimismo intrínseco do protagonista, que pode nos fazer
acreditar que não há nada mais a ser feito. A apatia da frase “Meus heróis
nunca viraram estátua, morreram lutando contra os caras que viraram” retrata,
de forma marcante, o sentimento de uma luta constante sem brilho.
Outra questão que também merece atenção é a condição
romantizada e frágil de Janaína, que, por vezes, arrasta o protagonista para um
conflito. Seria o amor uma chave para o problema? Por que ela tem que ser
salva por ele e não o contrário? Creio que devamos refletir criteriosamente sobre
isso.
No mais, o desenvolvimento e o ritmo do filme, em meio a tantos
conflitos, mostram-se bastante apropriados e competentes por parte da equipe
de produtores devidamente orquestrada pelo diretor. Uma história de amor e
fúria cumpre aquilo a que se propõe: apresentar outra versão dos fatos que
ajudaram a forjar o que conhecemos como Brasil. Uma obra de tal envergadura
por si só deve ser lembrada pelo cuidado e esforço de seus realizadores. No
entanto, ela vai além, reunindo condições de ser uma obra que deve ser sempre
visitada quando nos debruçamos sobre a História e as desventuras do país.
Uma história de amor e fúria é uma grande contribuição para a
produção audiovisual brasileira. Ela já se encontra no patamar das grandes
obras de animação do país. Por isso, deve ser vista e revista para tentar ampliar
as possibilidades de leitura de mundo de seus irrequietos espectadores.
* Especialista em Animação e Modelagem Digital 3D (Universidade Veiga de Almeida/RJ) e
graduado em Radialismo (UFS). Professor do Curso de Cinema e Audiovisual da Uesb.
18 19
MEMÓRIA E HISTÓRIA EM CORES, AMORES E LUTAS
Veruska Anacirema*
“A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o
esquecimento”, disse, certa vez, o escritor tcheco Milan Kundera. De tempos em
tempos, citações como essa parecem ganhar mais sentido, mais força, ao
analisarmos os fatos históricos que se desenrolam diante de nós. A arte, de modo
geral, e o cinema, especificamente, colocam-se, muitas vezes, como
instrumento de luta contra o esquecimento, ao por em pauta reflexões sobre os
mais diversos episódios da História, questionando versões estabelecidas,
mexendo em antigas feridas, fazendo pensar e repensar nossas memórias
sociais.
Essa parece ser uma das principais contribuições da animação brasileira
Uma história de amor e fúria, do cineasta Luiz Bolognesi. Ao contar a história de
momentos marcantes do Brasil, do encontro dos índios com os estrangeiros
dominadores até uma fictícia rebelião futurista contra o poder estabelecido,
tudo pelo olhar de um protagonista que mistura o humano ao mágico, o filme
nos faz revisitar fatos conhecidos, mas esquecidos. E, principalmente, faz-nos
refletir sobre as lutas de pobres, marginalizados e militantes de causas diversas
contra dominadores e governantes que subjugam e matam aqueles que
sonham com uma sociedade livre de opressões e injustiças.
Contar essa história por meio de uma animação foi uma opção
bastante interessante. Como se sabe, esse é um gênero cinematográfico de
sucesso. Entretanto, o mais comum é associarmos as animações às histórias
infantis. Ainda são poucas as obras desse tipo, sobretudo no Brasil, voltadas para
o público adulto. Uma história de amor e fúria é um filme bem sucedido em
vários aspectos: tem traços lindos, um protagonista cativante e um bom roteiro.
Arriscado contar essa história por meio de uma personagem de 600 anos, que
participa de vários momentos importantes da História do Brasil. Mas, ao final,
tudo soa convincente.
Filmes históricos costumam ser tachados de “chatos”, “cansativos”...
Nesse sentido, contar a História do Brasil por meio de uma animação, misturando
o mágico com episódios reais, atua no sentido de cativar o público. Além disso,
é importante destacar que o filme foge à tendência geral de narrar a História
tendo como argumentos as versões oficiais que se estabeleceram ao longo do
tempo e que estão contidas em muitos livros, optando por apresentar os fatos
por meio da visão dos “perdedores”.
Há aqui um gosto amargo, talvez realçado pelo atual momento
histórico vivenciado no Brasil, em que os direitos e as conquistas obtidos pelos
mais pobres e por uma série de grupos sociais vêm sendo reduzidos ou
simplesmente eliminados. A impressão que dá, ao terminarmos de assistir a Uma
história de amor e fúria, é que aqueles que lutam por uma sociedade mais justa
e equilibrada acabam sendo sempre derrotados pelos detentores do poder
econômico e da força policial. É um pouco do sentimento que muitas pessoas
têm vivenciado atualmente, ao serem vilipendiadas e derrotadas nos embates
que vêm sendo travados contra os governantes que têm destruído,
sistematicamente, as conquistas políticas, sociais, culturais e econômicas obtidas
com muito esforço nos últimos anos.
Daí, a importância que o filme, ainda que sem querer, assume no
debate sobre o atual momento vivenciado no Brasil. Essa obra nos lembra que é
sempre necessário olhar para o passado e aprender com a História; no caso, é
necessário pensar sobre as diversas lutas que, ao longo do tempo, vêm sendo
encampadas a favor da emancipação econômica e social da maioria da
população. É preciso voltar ao passado para compreender determinados
processos históricos e os jogos de poder neles imersos. É preciso olhar para a
História, inclusive, para pensar que, apesar das perdas, a luta deve continuar –
parece clichê, mas tem seu fundo de verdade.
O filme apresenta-se como um chamamento à reflexão. Esquecer o
passado é esquecer as lutas e os legados; as perdas e os ganhos; as
características e contradições da formação histórica do nosso país. É esquecer
que pessoas reais, de carne e osso, deram a vida pela construção de uma
sociedade melhor. É pensar que é preciso estar “atento e forte”, como dito no
verso de uma música de Caetano Veloso, para não desmoronar diante das
injustiças, pois a vida vale a pena ser vivida em sua plenitude. Uma história de
amor e fúria é uma boa contribuição ao pensamento sobre a História de uma
forma leve e colorida.
* Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade e graduada em História (Uesb). Professora da
Rede Estadual de Ensino da Bahia e professora-articuladora do Programa de Educação de
20 21
ELE ESTÁ DE VOLTA
Filme: “Ele está de volta” (“Er ist wieder da”)Direção: David WnendtAno: 2015Gênero: ComédiaOrigem: AlemanhaDuração: 116minComentaristas: Alberto Bomfim, Eder Amaral e Marcelo Lopes
Sinopse
Em 2014 (2011 no livro homônimo em que se baseia o filme), Adolf Hitler acorda num terreno baldio em Berlim, sem saber o que aconteceu após o ano de 1945. Desabrigado e desamparado, Hitler interpreta tudo que vê a partir de uma perspectiva nazi e, apesar de todo mundo reconhecê-lo, ninguém acredita que ele seja o próprio Hitler e sim um comediante ou um ator. Como resultado, os seus vídeos violentos e furiosos tornam-se um enorme sucesso no YouTube, e Hitler alcança o estatuto de celebridade moderna como um artista, tirando proveito da situação e usando sua popularidade para voltar ao poder.
TEMPOS DIFÍCEIS PARA OS SONHADORES
Alberto Bomfim*
Morto em 1945, Adolf Hitler ressurge em Berlim, ainda com a fumaça da
Segunda Guerra Mundial e do nazifascismo, em 2014. Esse é o mote do filme Ele
está de volta (2015), dirigido por David Wnendt, baseado no livro homônimo do
escritor Timur Vermes, lançado em 2012. Livro e filme têm causado espécie na
Alemanha e no mundo, principalmente por sua sátira embaraçosa, ao trazer à
reflexão a questão de que lugar teria esse relevante ator social histórico na
sociedade contemporânea.
Como em diversas outras obras do cinema contemporâneo, David
Wnendt propõe um modelo de cinema que esfumaça as fronteiras de diversos
gêneros, transitando do pastelão e satírico ao dramático, depois documental,
televisivo e, por fim, jornalístico. Tal abordagem acaba por refletir sobre mimese e
representação na prática cinematográfica em comparação à vida “real”. Há
um real que não esteja contido na representação? Essa é a pergunta feita em
filmes como Cópia fiel e Close-up, do iraniano Abbas Kiarostami, posta à cena
com muito mais profundidade e sublimação.
Ele está de volta mais nos lembra Sacha Baron Cohen e seu Borat,
explorando o universo das cenas gravadas abertas, com a participação do
público para as situações do filme, uma espécie de falso documentário,
misturando cenas ficcionais com entrevistas nas ruas, quando o ator interage
com pessoas reais, que não estão representando e nem foram contratadas
para o filme.
O filme pergunta: há lugar para Hitler e o nazifascismo na
contemporaneidade? A primeira resposta é apontar para o ridículo de tal
situação. Ao ressurgir em 2014, um desorientado Führer tem sérias dificuldades
para compreender as transformações do mundo, mas, rapidamente, põe em
prática o que aprendera com Joseph Goebbels e aproveita-se da televisão e
das mídias sociais modernas para cavar um lugar político de destaque. Como
proposto por Max Weber, a construção do carisma das personalidades políticas
foge à lógica cartesiana. Desse modo, o “encarnamento” de uma figura de um
século atrás nos dias atuais se torna possível, embarcado em diversos
22 23
conservadorismos, sobretudo no discurso nacionalista, redescoberto por Hitler
nos ideais do Partido Verde de Angela Merkel, que, segundo a sátira, “tem o
carisma de uma pedra”.
Esse Adolf Hitler de 2014 é filmado por um jornalista fracassado e é
entendido, inicialmente, como um comediante, numa metalinguagem que o
faz percebido como um ator por dentro do contexto do filme; aliás, enquanto
cinema, o que melhor se aproveita do filme é, provavelmente, a atuação de
Oliver Masucci, protagonista. As reações da população oscilam – sempre sobre
o prisma da surpresa – entre a ridicularização, o escárnio, o questionamento, o
apoio e até a “glamourização”. Seus vídeos viralizam na internet e, logo, o
oportunismo dos grandes meios de comunicação que descobrem e se
apropriam de sua “personagem”. Tudo no longa se torna espetáculo, um meio
para ganhar dinheiro.
O risível está condicionado aos desencontros entre o que o Führer acha
que está fazendo (reconquistar a Alemanha e Europa) e os produtores de TV
encantados com seu desempenho no “Ibope”, ao ter o seu "humor" vendido
como "controverso". Assim, Ele Está de Volta é tanto uma sátira a Hitler quanto à
nossa estranha atualidade. Desse modo, o filme estabelece uma crítica séria
sobre o papel dessa relação de poder estabelecida na dupla exploração entre
agentes de mídia e personalidades políticas que adquirem poder de decisão
nos governos. Demonstra a fragilidade das democracias que, a custo
construídas, podem se desmoronar rapidamente não apenas pelo recurso das
armas, mas também pelo circo político/midiático que, sob qualquer pretexto,
desde pequenas instabilidades econômicas a argumentos jurídicos espúrios,
pode dar assento no poder às velhas raposas reacionárias, conservadoras e
autoritárias. Alguma semelhança com o Brasil de 2016?
Há que se dizer: do mesmo modo que as representações heróicas, de
relevantes atores sociais, costumam ser um desserviço à História, também o são
as representações do vilão. Por este recurso, torna-se fácil transferir a Hitler e aos
nazi a culpa pelo pensamento totalizador, fascista, racista, desumano etc.,
quando há infinitamente mais por trás disso. Hitler não foi mais que um bom
instrumento político a serviço da tradição do cientificismo e do imperialismo dos
séculos XIX e XX, que construiu conceitos como “superioridade racial”,
“eugenia”, “darwinismo social” e outros. Tais construções racistas e
preconceituosas repercutem ainda hoje no mundo e no Brasil, tendo sido
culturalmente assimiladas e, se não têm mais no lugar no campo das ciências,
ainda exigirá muito esforço para serem demovidas das práticas socioculturais.
As simulações de entrevistas ao longo do filme, assim como as cenas
finais de manifestações reais que ocorreram na Europa nos últimos anos, ao
expor a forte presença do sentimento xenófobo, ultranacionalista, racista,
preconceituoso, demonstram o quanto aqueles ideais eugenistas do século XIX
encontram lugar de ressemantização na contemporaneidade.
É sintomático o que temos visto em 2016: a popularidade da chanceler
alemã, Angela Merkel, chegou ao nível mais baixo de seu governo porque não
impediu a entrada de mais de um milhão de refugiados dos conflitos no Oriente
Médio. Na avaliação do governo, “a Alemanha teria uma responsabilidade
especial à luz do seu passado nazista durante a Segunda Guerra Mundial”. Na
França, a extrema direita avança a passos largos, tendo à frente a reacionária
Marine Le Pen, que defende sérias mudanças na educação, como “o retorno
da ordem moral, da autoridade e do nacionalismo”. Na Inglaterra, o plebiscito
que decidiu por sua separação da União Europeia, no início de 2016, deixou
claro que a maioria dos ingleses quer o fim do regime de fronteiras abertas para
reduzir a circulação de muçulmanos, negros e outros “indesejáveis” em seu
território.
Ele está de volta nos diz que podem estar próximos “tempos difíceis para
os sonhadores”. Contudo, embora o conservadorismo esteja saindo de seu
breve sono, pronto para romper uma aparente trégua e recusar as pequenas
concessões feitas nas últimas décadas em diversos campos sociais, aqueles que
labutam por uma sociedade com mais justiça e liberdade também cresceram
em número e acumularam legitimidade ao longo das últimas décadas.
Vejamos agora como podemos agir. Eis a questão.
*Mestre em Letras: Cultura, Educação e Linguagens e graduado em História (Uesb). Professor
da Rede Municipal de Ensino de Vitória da Conquista e do Curso Pré-Vestibular Dom Climério.
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A HISTÓRIA É UM RISCO (EM ZIGUE-ZAGUE...)
Eder Amaral*
A piada levada a sério
Diz-se que Charles Chaplin teve a ideia de realizar O grande ditador
após se dar conta de que sua idade, seu tamanho, seu peso e, especialmente,
seu bigode lhe conferiam a oportunidade de interpretar o Führer no cinema.
Iniciado em 1937 – portanto, antes do início da Segunda Grande Guerra,
quando as dimensões do que se passava na Alemanha ainda não eram tão
evidentes –, mas lançado apenas em 1940 (ápice da ofensiva nazista e da
aprovação popular de Hitler entre os alemães), o filme atingiu enorme sucesso
de bilheteria e acabou por se tornar um dos grandes símbolos da crítica ao
totalitarismo para além da situação alemã, numa mescla raramente alcançada
entre o humor e o posicionamento político.
Diz-se ainda que, tendo tomado conhecimento do filme logo após seu
lançamento (e sabedor da enorme capacidade de convencimento do
cinema sobre as massas), Hitler prontamente o proibiu na Alemanha; mas não
resistiu à curiosidade e mandou vir de Portugal uma cópia para assisti-lo, talvez
escondido e solitário no escurinho de uma saleta do seu bunker. Entre os
pensamentos que lhe ocuparam, enquanto um subordinado fiel preparava a
projeção secreta, não espanta que lhe ocorresse o medo de achar graça de si
mesmo. Um ruído anuncia o início da projeção. Arrancado às divagações pelo
face a face entre o delírio e o real (a critério do leitor), Hitler sai do encontro com
seu duplo (jocosamente batizado como Adenoid Hynkel) convicto de que não
basta conquistar as nações e subjugar os povos; é preciso, antes de tudo,
colonizar seu humor, de preferência abolir seu riso. Porque talvez não haja nada
mais ameaçador para o espírito totalitário do que a transformação da sua
figura, das suas ideias, dos seus propósitos... em piada.
O sério levado à piada
Inspirado pelo riso de Chaplin, mas fazendo um percurso inverso ao do
filme de 1940, Ele está de volta (Er ist wieder da, de David Wnendt, Alemanha,
2015) não é apenas uma sátira à figura do ditador alemão, mas uma crítica
impiedosa ao fascismo e ao totalitarismo entre nós. A mistura de ficção e
documentário que resulta da conjectura de um Hitler misteriosamente vivo em
2014, ressurgido nas adjacências de onde fora seu bunker em 1945, tomado
como sósia perfeito e transformado em estrela do YouTube e da TV, setenta anos
depois, soaria forçada se não correspondesse a certa proliferação do “desejo
de autoridade” (que constitui a base psicológica dos totalitarismos) ao redor do
planeta nos últimos anos. Soaria forçada apenas se não observássemos entre
nós a conversão de discursos, atitudes e posturas de ódio em “mitos” de um
patético (e extremamente perigoso) “direito de oprimir”, cuja imagem coincide
com figuras públicas como o deputado torturador e seu filho-decalque, mas
que, antes, provém de um desejo que atravessa todo o campo social, que
habita pessoas comuns (as que os admiram, que os elegem, mas também
aquelas que silenciam diante dos seus abusos) pelas mesmas qualidades que o
líder nazista se orgulhava de possuir. Não porque estes atributos fossem
inacessíveis ao homem médio, mediano, medíocre; mas, justamente, porque
essas qualidades, Hitler bem o sabia, eram, em seu conjunto, aquilo que a massa
de impotentes mais desejaria ver no poder.
Em 1933 (ano da confirmação de Hitler na presidência da Alemanha), o
psicanalista Wilhelm Reich dissecou com precisão o sentimento que
impulsionava a onda totalitária que assombrava a Europa, mostrando, com
clareza, que o nazismo jamais teria sido possível sem que o povo alemão o
desejasse¹. E é sob essa mesma e perturbadora inquietação que podemos ver
que Ele está de volta, mas, principalmente, que ele chega a ser bem recebido,
mesmo querido, talvez até esperado por muitos. A engenhosa mistura de ficção
e documentário que coloca o então desconhecido ator (Oliver Masucci) a fazer
um tour pelas cidades alemãs para ouvir os anseios de pessoas comuns que
tiram selfies e confidenciam sua vontade de que alguém tivesse a coragem de
“fazer a coisa certa” com os imigrantes de hoje, num quadro de austeridade
econômica e profunda crise política, torna, mais uma vez, a realidade e o delírio
indissociáveis. Numa dessas conversas com um jovem num parque, Hitler o
¹ A esse respeito, Reich é cristalino: “O estudo do efeito produzido por Hitler [...] parte forçosamente do pressuposto de que um führer ou o representante de uma ideia só pode ter êxito [...] quando a sua visão individual, a sua ideologia ou o seu programa encontram eco na estrutura média de uma ampla camada de indivíduos”. In: A psicologia das massas do fascismo (1933), trad. Maria da Graça M. Macedo, São Paulo, Martins Fontes, 1988, p. 48-49).
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escuta dizer que ”precisamos de mais democracia, de alguém que venha e
diga como vai ser, sem discussão”. Bem se vê o vazio que as palavras, tornadas
ocas, passam a ressoar.
Não é com a mesma “honestidade” que a saudade da ditadura civil-
militar faz as vezes de pauta coletiva nos protestos verde-amarelos? Não é com
a mesma tranquilidade que se vê aplaudirem a retirada de direitos? Em 1933,
relembra o protagonista do filme, não foi preciso discurso, Hitler foi eleito pelo
que propôs. O desejo de viver sob um Estado Total circulava pelas ruas, nas
mesas de família aos domingos, nas fábricas, nos jornais, por toda parte numa
crescente sem a qual um certo Adolf só poderia ser visto como um fanático
caricato. Entretanto, longe de impor sua vontade ao país, o que o soldado
frustrado fez foi mapear e captar, com uma eficácia assustadora, a vontade de
obedecer que atravessava cada um.
Desconcertante, o Hitler de 2014 nos coloca diante do grande perigo
que não vem de fora, mas que nos habita a todos: “Vocês não podem se
desfazer de mim, eu faço parte de todos vocês!”. Se podemos dizer que o
passado não foi (porque ele é, ele está sempre aqui, de volta, entre nós), é
porque a história nunca deixa de ziguezaguear sob nossos olhos e ouvidos.
* Doutor em Psicologia Social (Uerj) e mestre em Psicologia Social (UFS). Professor do Curso de
Cinema e Audiovisual da Uesb e professor do Ifba, campus Vitória da Conquista.
O QUE ESTÁ DE VOLTA
Marcelo Lopes*
Com um olhar severo, um homem se dirige ao desconhecido ator Oliver
Masucci: “Estamos em 2014, e uma pessoa chega numa praça, vestido como
Hitler, e ninguém vê nada de errado nisso. Só posso dizer que isso é péssimo para
a Alemanha. Se fosse por mim, você seria perseguido.” A cena faz parte do filme
Ele está de volta (Er Ist Wieder Da, 2015), dirigido por David Wnendt.
Misturando ficção e registros reais, retirados de mais de 300 horas de
gravação de interações com a população pelas ruas alemãs, a obra parte de
uma premissa surreal e assustadora ao nos perguntarmos: o que aconteceria se
Hitler reaparecesse hoje entre nós, saído de um estranho fenômeno temporal,
direto de seus últimos instantes em 1945?
Tomado como um comediante que não sai, em tempo algum, do seu
papel de Führer, as reações das pessoas ao personagem são, no mínimo,
preocupantes. Embora a observação contundente e indignada do transeunte
sobre a presença de um Hitler em praça pública seja verdadeira, apenas duas
pessoas, num universo de outras centenas, tiveram uma postura negativa à
situação. Interagindo com os cidadãos do mundo real, o Hitler regressado foi
alvo de dezenas de selfies, abraços, elogios velados ou não tão discretos e
saudações de braços erguidos. Virou diversão, um palhaço inofensivo de ideias
polêmicas, enquanto partilhou de comentários antissemitas, preconceituosos e
piadas politicamente incorretas. Tornou-se uma espécie de pop star instantâneo
nas ruas, não tanto pelo desempenho persistente da interpretação de Masucci,
mas por materializar o eco de uma personalidade histórica cercada de ideias
perigosas e controversas, para dizer o mínimo.
Em algum lugar entre o fascínio público pela presença figurativa e
quase concreta desse Hitler em pleno século XXI e temas que, invariavelmente,
instigam a pensar questões sociais, políticas e históricas, os ideais indiretamente
trazidos à tona foram capazes, sem dificuldades, de angariar muitos
simpatizantes. Alguns passaram a confidenciar-lhe a sensação de insatisfação
com o país com a presença dos estrangeiros e a invasão de refugiados. Outros
expressaram seu desgosto com os políticos e a democracia, clamando por
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alguém que “faça a coisa certa”.
Em outro fragmento do filme, Hitler facilmente convence um grupo de
torcedores de futebol a atacar um ator que fazia comentários antialemães.
Para o diretor, a produção não esperava que Masucci convencesse tão
rapidamente aquele grupo, colocando em risco a vida do ator e obrigando
técnicos e câmeras a intervirem imediatamente.
Na trama ficcional, Hitler descobre – tal qual seu correspondente original
– o poder das mídias. No lugar do cinema, dessa vez o Führer se dedica a usar a
força da TV e passa a articular-se, traçando seus novos planos de conquista. É
dessa forma que o filme, entre tantos outros aspectos possíveis, coloca à vista as
fragilidades de uma sociedade totalmente midiatizada e “midiotizada”, carente
de alternativas cotidianas e insatisfeita com o status social e político. Uma
sociedade que hoje, como tantas outras pelo mundo, identifica-se,
assustadoramente, com discursos conservadores, segregacionistas, xenofóbicos
e classistas. Pessoas que, contra quaisquer argumentos plausíveis em contrário,
têm sempre uma resposta pronta e inflexível.
Esse é um cenário concreto e extremante atual, que faz da obra de
Wnendt um bom ponto de partida para reflexão. Afinal, o mundo
contemporâneo se vê às voltas, repetidas vezes, com figuras tidas, em muitos
casos, como “folclóricas” e “divertidas”, indignas de serem levadas à sério – tal
qual o próprio Hitler no início de sua carreira política –, mas que, nos últimos anos,
passaram, efetivamente, a ocupar posições de destaque nos mais diversos
países. Personagens midiáticos, cercados de discursos inflamados e posturas
radicais (tomadas por muitos como atos de personalidade fortes e necessários).
Surgem, todos os dias, casos cada vez menos isolados que colocam em
evidência e em condições de poder personagens controversos como Donald
Trump e Jair Bolsonaro. Isso nos faz perguntar: os fenômenos sociais que tornaram
possível a ascensão de um Hitler morreram com ele? Ou melhor, o que
aconteceria se outro Hitler – atualizado e folclórico – reaparecesse hoje entre
nós?
* Mestre em Memória: Linguagem e Sociedade e graduado em História (Uesb).
DOMÉSTICA
Filme: “Doméstica”Direção: Gabriel MascaroAno: 2012Gênero: DocumentárioOrigem: BrasilDuração: 75minComentaristas: Filipe Brito, Sérgio O. Silva e Tamara Chéquer Cotrim
Sinopse
Sete adolescentes assumem a missão de registrar, por uma semana, a sua empregada doméstica e entregar o material bruto para o diretor realizar um filme com essas imagens. Entre o choque da intimidade, as relações de poder e a performance do cotidiano, o filme lança um olhar contemporâneo sobre o trabalho doméstico no ambiente familiar e se transforma num potente ensaio sobre afeto e trabalho.
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OS VÁRIOS OLHARES EM DOMÉSTICA
Filipe Brito Gama*
O Brasil produziu um número significativo de longas-metragens nos
últimos anos, permitindo o surgimento de novos realizadores em diversas partes
do país. Gabriel Mascaro é um desses novos jovens profissionais do cinema
brasileiro, premiado artista visual e cineasta recifense que já realizou uma série
de obras de diferentes gêneros e formatos, buscando, normalmente, trabalhos
ousados esteticamente e que, ao mesmo tempo, possam debater temáticas
importantes e instigantes. Entre seus filmes mais conhecidos, podemos citar Um
lugar ao sol (2009), Avenida Brasília Formosa (2010), Ventos de Agosto (2014) e Boi
Neon (2015), este último um dos filmes brasileiros mais premiados nos últimos
anos. O documentário Doméstica (2012) é o seu quarto longa-metragem, sendo
uma de suas obras mais conhecidas e debatidas.
A estrutura deste filme consiste na escolha de sete adolescentes que
registraram, por uma semana, a empregada doméstica das suas casas,
posteriormente entregando as filmagens realizadas (material bruto) para a
equipe do filme. Diferentemente do que estamos acostumados nos processos
de realização dos documentários, em que uma equipe de profissionais filma os
atores sociais em seu cotidiano, esta obra busca outro caminho. Mascaro e sua
equipe não participam ativamente das filmagens, e, ao invés de fotógrafos
profissionais, são os próprios filhos dos patrões que vão captar as imagens das
empregadas domésticas, apresentando seus olhares sobre esses personagens.
Esses adolescentes constituem-se como sujeito-câmera, com o objetivo
de nos mostrar o cotidiano dessas “domésticas”, por vezes com olhar mais
observacional, em outros momentos interferindo na ação com questionamentos
e interações. Mas, ao mesmo tempo em que mostram as situações cotidianas,
essa imagens também nos revelam, a todo o momento, como se processa a
relação entre patrão e empregado. Não são, portanto, meros registros do dia a
dia, mas, nessas imagens, podemos perceber as várias tensões e relações entre
as famílias que são empregadoras e os atores sociais representados, no caso as
empregadas domésticas.
Esse tipo de experiência cinematográfica, em que a câmera é
entregue para realizadores não profissionais e, depois, essas imagens são
editadas pela equipe do filme, pode ser visto em outros documentários
brasileiros, como Prisioneiro da Grade de Ferro (2003, Paulo Sacramento) e
Pacific (2009, Marcelo Pedroso). Mascaro, pois, busca na representação e no
olhar desses adolescentes a matéria prima para seu trabalho, que vai ser
organizada na edição. A escolha por adolescentes não parece ser por acaso:
pelos relatos, a maioria dos personagens escolhidos trabalha nas casas das
famílias há tempos, consequentemente convivendo com esses jovens desde os
primeiros anos de suas vidas, o que sugere, naturalmente, uma proximidade
entre quem filma e quem é filmado.
Em termos gerais, o que se observa na obra, do ponto de vista das
relações entre as pessoas, é uma multiplicidade de situações, já que podemos
ver no filme o trabalho das domésticas nos mais diversos contextos e classes
socais. Da doméstica de uma família nobre, que, além de cuidar da casa junto
com outros empregados, também é a motorista da família, até em relações
menos hierarquizadas, como no caso de Bia, filha da empregadora, e Flávia,
empregada em uma casa cuja patroa também é doméstica. Essa variedade
de situações também pode ser observada no perfil desses personagens: da
estranheza causada pelo homem no papel geralmente ocupado pela mulher,
nas relações de proximidade do patrão com suas empregadas, sendo, inclusive,
considerada “da família” por alguns dos entrevistados, até relações mais
distanciadas e com regras mais rígidas, indicadas inclusive pelo uso de uniforme
ou por comerem em lugares e horários distintos da família empregadora, por
exemplo.
Essa diversidade de pontos de vista sobre a mesma profissão é um dos
méritos dessa obra, já que nos mostra um panorama bem mais amplo do que
costumamos ver em obras audiovisuais como novelas, filmes e séries. Ainda
sobre as questões suscitadas no filme, apesar da variedade de perfis dessa
profissão apontados no longa-metragem, observa-se a recorrência de alguns
relatos que nos ajudam a perceber o contexto social que essas pessoas estão
inseridas. Os problemas familiares (por vezes, relatados em situações trágicas), o
passado de vida com dificuldades financeiras e a baixa escolaridade são
algumas das questões tratadas pela maioria desses atores sociais representados.
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O trabalho do diretor nesta obra é o de construir, tendo como base a
imagem registrada pelos adolescentes, esse contexto diverso e carregado de
tensões, especialmente as tensões de classe, indicadas pela relação entre
patrão e empregado, e todas as contradições desse universo representado. É
um filme em que os aspectos formais e estéticos da imagem e do som ficam
deslocados para o segundo plano, interessando muito mais o que acontece
diante da câmera e, especialmente, a relação entre quem filma e quem é
filmado. E essa câmera é o elemento central do filme, já que é carregada por
um cinegrafista que também é o patrão, e a forma como esses indivíduos fazem
essas imagens (as perguntas feitas, o ângulo escolhido, a forma de abordagem
etc.) traduzem, fortemente, como se processam essas relações de força. Em
alguns momentos, esse encontro caminha para situações desconfortáveis,
especialmente no incômodo de quem é filmado, isto é, como essas
empregadas domésticas precisam se relacionar com a câmera, que, ao
mesmo tempo, é manuseada por seu empregador. Causa estranheza, por
exemplo, o caso de Lena, que praticamente não fala para a câmera e
aparenta grande desconforto, ou mesmo de Sérgio, bastante deslocado do
lugar em que se encontra. Também é importante refletir como a presença dessa
câmera alterou as relações, fazendo-nos questionar qual o grau de
espontaneidade dos relatos e o quanto a presença de uma câmera pode
interferir naquele ambiente e na forma como as pessoas se comportam.
É na organização dessas imagens, na busca por uma narratividade
para construção desses personagens, que Mascaro consegue apontar para
vários assuntos envolvendo a profissão de empregada doméstica, suas
contradições e diversidade contextual, fazendo-nos refletir sobre questões que
vão muito além das atividades cotidianas desse importante e pouco refletido
ofício. Contradições e questões de classe que não nasceram nos últimos anos
junto com esses adolescentes cinegrafistas, mas que são marcas ainda pouco
debatidas e refletidas de nossa história.
* Mestre em Imagem e Som (UFSCar) e graduado em Arte e Mídia (UFCG). Professor do Curso
de Cinema e Audiovisual da Uesb.
RELAÇÕES DE PODER X AFETO: AMADURECENDO?
Sérgio O. Silva*
Uma se chama Vanuza; outra, Dilma; outra, Gracinha; e, ainda, Lena,
Flávia, Sérgio e Lucimar. Em comum, o exercício da profissão de empregadas
domésticas (aqui, a exceção é a presença de um empregado homem) e o fato
de serem personagens do mesmo filme: o documentário Doméstica, dirigido por
Gabriel Mascaro, lançado em 2012. Sete adolescentes foram incumbidos de
gravar, durante uma semana, o dia a dia de suas empregadas domésticas. No
início do filme, é apresentada a metodologia utilizada para a produção do
documentário. Três dos quais poderíamos chamar de codiretores (já que é o
olhar deles que está direcionando o nosso olhar) se apresentam e já temos a
primeira relação definida: sabemos quem é o patrão e quem é o empregado. E,
aos poucos, vamos penetrando na intimidade de cada um dos sete
personagens principais. Personagens com nome e voz, protagonistas de suas
próprias histórias.
O que nos chama a atenção, logo de cara, é a forma como cada
personagem é apresentada. As cenas são preenchidas com as personagens
em ação, exercendo o seu ofício: limpando, varrendo, passando roupa,
cozinhando. E aqui cabe perguntar: quem realmente está contando essas
histórias? Qual o poder da câmera nessa relação patrão versus empregado?
A partir da construção do filme, não podemos tomá-lo como uma
representação da totalidade do universo de todas as relações do trabalho
doméstico. O diretor nos apresenta um mosaico de personagens, restrito, com
suas histórias particulares, que tendem a nos levar a generalizar as situações e
considerar que todas as possibilidades dessas relações estão contidas no filme.
No entanto, o que vemos são sete histórias contadas pela ótica dos patrões e
organizadas por Mascaro, cabendo a nós, espectadores, a ampliação desse
microcosmo e a confrontação dessa exposição com o modelo de sociedade
vigente no campo real.
Nas falas dos patrões, parece haver sempre uma justificação pela
presença da empregada em casa. Como se fosse algo reprovável. Vemos
como esses personagens foram abandonados pelos seus e como, de certa
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forma, encontraram um lugar familiar no ambiente de trabalho. Não há uma
relação formal de trabalho, isso o filme deixa claro. Se há uma relação de poder,
há também uma relação de afeto, que chega a transbordar na tela. Invadimos
a privacidade dos personagens e nos tornamos cúmplices de suas histórias, num
misto de tristeza e conformação.
Um episódio interessante, que salta à tela e merece nossa reflexão,
acontece quando da apresentação da personagem Lena: ao contrário das
outras personagens, não é ela quem nos conta sua história, e sim sua patroa,
Lúcia, auxiliada por sua filha. É Lúcia quem vai se emocionar ao apresentar seu
relato da vida de Lena. Numa relação em que Lena é considerada “da família”,
somos informados que Lúcia é quem cuida do filho da empregada enquanto
esta está ocupada com os afazeres domésticos. O único momento em que
Lena assume seu protagonismo é quando está em seu quarto passando
hidratante, estando a sós com sua bebê.
Para se ter a dimensão do que está sendo apresentado no
documentário, dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho
(OIT), em 2013, mostram o Brasil como o país que tem o maior número de
empregados domésticos no mundo, em números absolutos. Eram 6,7 milhões de
mulheres e 504 mil homens nessa condição. Outra pesquisa, realizada pelo
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Ministério do Trabalho e
Previdência Social, com dados de 2004 a 2014, revelou que a escolaridade
média das empregadas domésticas brasileiras é de seis anos e meio e que mais
de 70% delas não tinham carteira assinada. A informalidade nas relações de
trabalho é a maior dificuldade encontrada pelos empregados domésticos,
problema que a PEC das Domésticas ainda não conseguiu solucionar.
Pensando na luta de classes, em que os patrões representam os
exploradores da mão de obra, e os empregados, os explorados, temos uma
contradição nessa dicotomia: uma empregada doméstica que precisa
contratar outra empregada para cuidar de seus filhos e de sua casa. O caso de
Flávia é emblemático e joga mais lenha nessa fogueira. Mas será que elas se
dão conta disso?
A última história é bem representativa das relações sociais atuais. O
adolescente que tem a missão de registrar a história da empregada que veio do
interior, Lucimar, parece pouco à vontade na frente da câmera. Talvez porque,
só ao pensar em como filmá-la, tenha se deparado com a situação da relação
entre a empregada e a patroa. Elas eram amigas de infância, brincavam juntas.
Vendo as fotos num álbum, ela vai revirando o passado longínquo, e, quando
essas fotos são mostradas para nós e vemos como era esse vínculo, é difícil
acreditar que tenham se tornado “só isso” hoje. Ao ser questionada sobre um
possível estranhamento na relação com sua (antiga) amiga, vemos uma
Lucimar demonstrar certo desconforto ao dizer que, de sua parte, a relação vai
amadurecendo. E isso, junto com o silêncio no final, é um golpe no estômago.
Pode-se perguntar: qual a importância de um filme como esse? Interessa
pensar o que vem após o filme. Ao nos revelar aspectos tão distintos das
relações humanas, já seria de grande valia o caráter que o filme teve de
humanizar seus personagens. Acrescentada a isso, temos a possibilidade de nos
confrontar com nossas próprias histórias e tentar entender como as relações se
deram no decorrer do tempo e como elas se apresentam hoje; traçar um
paralelo entre as relações sociais, trabalhistas e, principalmente, culturais na
sociedade brasileira, para que possamos ter a compreensão do que pode ser
feito para transformar a atual realidade.
A arte nos auxilia, ao apontar nossas feridas; muitas vezes, chega a fincar
o dedo nelas, para que possamos nos atentar ao que importa. O filme é uma
tentativa de mostrar outras possibilidades, mas também de revelar que estamos,
ainda, muito distantes de uma realidade ideal. Num país como o Brasil, há
problemas aqui e acolá; no entanto, é possível e desejável que nos
posicionemos de forma crítica sobre o assunto, para ampliar a discussão sobre os
temas abordados e os que podem advir daí. O filme se encerra nos créditos, mas
as batalhas do dia a dia estão só no começo.
* Graduado em Ciências Econômicas e em Cinema e Audiovisual (Uesb). Técnico universitário
da Uesb.
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A RELAÇÃO ENTRE EMPREGADOS(AS) DOMÉSTICOS(AS) E PATRÕES
Tamara Chéquer Cotrim*
O documentário Doméstica, do diretor pernambucano Gabriel
Mascaro, pode nos dizer muito do nosso tempo. Foi filmado no ano de 2012 e,
desde então, é possível perceber diversas modificações no Brasil,
principalmente no que diz respeito – é o que aqui nos interessa – à relação entre
empregados(as) domésticos(as) e patrões. O documentário parte da ideia de
ceder uma câmera de filmagem digital para sete adolescentes de diversas
regiões e classes sociais do país, para registrar o cotidiano dos empregados(as)
domésticos(as) que trabalham em suas casas.
O filme traz ao espectador questões amplas que estão arraigadas no
cotidiano e que, por isso, muitas vezes passam despercebidas, questões
importantes que, inclusive, formam o cerne das discussões políticas do país no
que diz respeito à relação entre empregado e empregador que se estabelece
no âmbito doméstico. Essa relação aqui está sendo refletida sob um olhar
objetivo, no intuito de apresentar breves considerações acerca da sua
regulamentação jurídica e das transformações ocorridas no ordenamento
jurídico brasileiro recentemente, que tiveram impacto direto na vida dos
brasileiros, diante da equiparação do trabalho doméstico com o de qualquer
outro trabalhador, garantindo direitos iguais a todos eles, indistintamente.
Sim, porque nem sempre foi assim. Os trabalhadores domésticos, muitas
vezes considerados “de casa”, estavam apartados da ideia de que são pessoas
que têm determinadas obrigações estipuladas pelo seu empregador e, por isso,
não são, de fato, como outro membro da família. E, antes de junho de 2015, o
trabalhador doméstico não era considerado, em termos de seus direitos, como
qualquer outro profissional brasileiro, como os vendedores, os que trabalham em
fábricas, em supermercados, enfim, grande parte da mão de obra nacional.
A realidade desses trabalhadores estava ligada a uma sistemática
escravagista, vivida em diversos países, inclusive o Brasil, em que não se tinha a
concepção de que eles, nem qualquer outro, tinham direitos quando
comparados àqueles que eram brancos e donos de terra. Quando ter escravos
não era mais possível licitamente no país, observaram-se resquícios desse regime
na sociedade brasileira ao longo dos anos até os dias atuais, especialmente
quando o foco recai sobre os trabalhadores domésticos, que permaneceram,
mesmo com o reconhecimento pelo ordenamento jurídico dos direitos dos
trabalhadores de diversos âmbitos, esquecidos pelo Estado brasileiro, que só
garantiu a eles um rol de direitos bem mais restrito que para os demais.
Entende-se, para fins legais, que o trabalhador doméstico é todo
aquele contratado para trabalhar para uma pessoa física ou família em um
ambiente residencial e familiar, responsável pelos afazeres domésticos, como a
limpeza da residência, além de quaisquer outros empregados particulares que
estejam sempre à disposição de seus empregadores, os donos da casa, da zona
urbana ou rural.
No ano de 2015, através de uma proposta de emenda à Constituição
brasileira de 1988, conhecida como “PEC das Domésticas”, que, após votada
no Congresso Nacional, transformou-se em Lei Complementar nº 150, os
trabalhadores domésticos tiveram seu trabalho regulamentado e, com isso, a
eles foi estendida a maioria dos direitos já previstos atualmente para os demais
trabalhadores registrados com carteira assinada, em regime da Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT), direitos sociais listados no artigo 7º da Constituição/88.
Assim, mesmo que pareça estranho, aos trabalhadores domésticos,
somente nesse momento, foram garantidos benefícios tais como: ter como piso
salarial o salário mínimo mensal; jornada de trabalho de, no máximo, oito horas
diárias e 44 semanais e, por consequência, hora extra; adicional noturno;
proibição do trabalho noturno, perigoso ou insalubre ao trabalhador menor de
16 anos; obrigatoriedade do recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS); seguro-desemprego; salário-família; auxílio-creche e pré-escola;
seguro contra acidentes de trabalho; e indenização em caso de despedida
sem justa causa. Além disso, que sejam respeitadas normas de higiene, saúde e
segurança do trabalho; o reconhecimento de acordos e convenções coletivas
dos trabalhadores; a proibição de diferenças salariais, de exercício de funções e
de critérios de admissão por motivos de sexo, idade, cor ou estado civil ou para
portador de deficiência.
Claro que a lei veio na esteira de um percurso que engloba a própria
conscientização da sociedade brasileira e, talvez por isso, em pouco mais de
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um ano, desde a vigência da lei, modificações significativas nessa relação
empregatícia podem ser observadas. Segundo estatísticas do Ministério do
Trabalho e Emprego, até março de 2016, o número de empregados domésticos,
os que obtiveram acesso ao FGTS, um dos grandes ganhos da categoria, saltou
de 187,7 mil para mais de 1,3 milhão de trabalhadores¹. Esse número foi quase
sete vezes maior que o divulgado anteriormente e pode ser entendido também
como reflexo da chamada PEC das Domésticas.
De certa forma, apesar das reclamações de muitos empregadores, que
dizem respeito principalmente ao aumento dos encargos a eles devidos para
terem um trabalhador à sua disposição ou para regularizar os que já
trabalhavam em suas casas, entende-se que houve um ganho para a
sociedade brasileira como um todo, quando se pensa no bem-estar da
população, que se traduz especialmente na igualdade de direitos entre todos.
* Mestranda em Memória: Linguagem e Sociedade (Uesb) e graduada em Direito (Centro
Universitário Jorge Amado) e em Cinema e Audiovisual (Uesb).
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¹ Informação retirada do site: < http://www.brasil.gov.br/economia-e-emprego/2016/07/um-ano-depois-trabalhadores-contabilizam-avancos-da-pec-das-domesticas>. Acessado no dia 11 de dezembro de 2016.