UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE GEOCIENCIAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM GEOGRAFIA
LIVIA MOURA DA SILVA
A TERRITORIALIDADE E OS PROCESSOS DE
IDENTIFICAO TERRITORIAL NA SOCIEDADE
INDGENA PANKARAR-BA
Salvador 2010
LIVIA MOURA DA SILVA
A TERRITORIALIDADE E OS PROCESSOS DE
IDENTIFICAO TERRITORIAL NA SOCIEDADE
INDGENA PANKARAR-BA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Geografia, Instituto de Geocincias, Universidade
Federal da Bahia, como requisito parcial para obteno do
ttulo de mestre em Geografia.
Orientadora: Prof. Dra. Catherine Prost
Salvador 2010
FOLHA DE APROVAO
Lvia Moura da Silva
A Territorialidade e os processos de identificao territorial na sociedade indgena
Pankarar-Ba
Salvador, ....... de ....................... de 2010.
__________________________________
(Catherine Prost, Doutora em
___________________________________
(Guiomar Ins Germani, Doutora em
___________________________________
(Fbio Pedro S. de F. Bandeira, Doutor em
__________________________________________________
S586 Silva, Livia Moura da
A territorialidade e os processos de identificao territorial
na sociedade indgena Pankarar-Ba/ Livia Moura da Silva. -
Salvador, 2010.
xxf. : il.
Orientadora: Prof. Dra. Catherine Prost.
Dissertao (Mestrado) Curso de Ps-Graduao em Geografia, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Geocincias, 2011.
1. Sociedade Indgena Pankarar (Ba). 2. Territorialidade
humana. 3. ndios - Identidade I. Prost, Catherine. II.
Universidade Federal da Bahia. Instituto de Geocincias. III. Ttulo.
CDU: 911.3 (813.8)
__________________________________________________
Elaborada pela Biblioteca do Instituto de Geocincias da UFBA.
DEDICATRIA
Aos Pankarar
E todos aqueles que ao longo dessa
caminhada deram um pouco de si e levaram
um pouco de mim
RESUMO
SILVA, Lvia Moura da. A Territorialidade e os Processos de Identificao Territorial
na Sociedade Indgena Pankarar-Ba. Salvador, 2010. Dissertao (Mestrado em
Geografia)- Instituto de Geocincias, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010.
O principal objetivo deste estudo verificar a relao entre Territrio e Identidade
territorial gerados a partir dos usos e da conservao dos recursos naturais no Territrio
Indgena Pankarar-BA. A populao indgena Pankarar encontra-se no interior da
regio Nordeste brasileira, numa rea denominada Raso da Catarina. As duas Terras
indgenas Brejo do Burgo e Pankarar abriga uma populao de aproximadamente 1500
habitantes dividida em quatro aldeias: Brejo do Burgo, Serrota, Chico e Ponta Dgua. De forma geral, a maior parte da populao sobrevive de atividades agrcolas, caa e
extrativismo de frutos e plantas medicinais, criao de animais dentre outros. Esse
processo revela a articulao entre o uso dos espaos e evidencia a importncia da
pluriatividade existente nas atividades cotidianas. Os Pankarar, assim como outros
povos indgenas do Nordeste, representam o tipo de ndio que enfrentou todos os
gneros de compulses: culturais e socioeconmicas mas conseguiu sobreviver s
mesmas, ocupando terras que apresentavam-se como economicamente inviveis para os
interesses da poca pela sociedade no indgena. Os ndios Panakarar viveram nas
ltimas trs dcadas um movimento de recriao e revitalizao de rituais, reforando
sua identidade tnica. O estudo do processo histrico-espacial possuiu extrema
importncia para as anlises acerca da construo identitria territorial em que se
verificaram os movimentos de reivindicao e de luta pela demarcao do territrio
como imprescindveis no processo da construo identitria Pankarar. Nos ltimos cem anos de contato com seus vizinhos regionais, observou-se que, alm do movimento
de resistncia, ocorreram trocas entre a cultura sertaneja e indgena, manifestas
sobretudo atravs dos casamentos intertnicos que estreitaram os vnculos entre etnias.
Dessa maneira, a identidade foi construda e reconstruda a partir das diversas
contribuies de distintas matrizes culturais. Nesse sentido, as mltiplas territorialidades
no territrio indgena Pankarar so delineadas espacialmente de acordo com as
especificidades e necessidades do grupo social e aparecem em distintos momentos no
cotidiano do grupo. Vale ressaltar que estes vnculos identitrios Pankarar possuem
lgicas e concepes distintas contrrias ao carter romntico tpico da viso urbana-
industrial que apresenta uma preocupao excessiva com o uso dos recursos naturais. Com isso, verificou-se que, assim como outras identidades, a identidade Pankarar
apresenta-se imersa nas aes cotidianas da etnia, ora mais simblicas ora mais
concretas, num contnuo processo de construo, afirmao, reajuste e reafirmao.
Palavras-chave: Territrio, Identidade territorial, ndios Pankarar
ABSTRACT
The main intent of this research is to study the relashionship between Territory and
territorial Identity created by uses and natural resources conservation at Pankarar -
Bahia indigene territory. Pankarars can be found at Brazilians northeast country region,
in an area named Raso da Catarina. The two indigene lands in this area, Brejo do Burgo and Pankarar, hold a population of approximately 1500 inhabitants and there are
four Indian settlement in there: Brejo do Burgo, Serrota, Chico and Ponta Dgua. In a general way, most of people live doing agricultural activities, hunting or extraction of
fruit and medicinal plants, breeding and others. This process reveals the articulation
between the use of the spaces and evidence the importance of plurality activities on their
everyday lives. The Pankarar, like other indigenous peoples of the Northeast, represent
the kind of Indian who faced all sorts of compulsions: cultural and socioeconomic but
managed to survive the same, occupying land that they presented as economically
unviable for the interests of non indigenous society. The Indians Panakarar lived for
three decades a movement of rebirth and revitalization of rituals, reinforcing their ethnic
identity. The study of the historical and spatial process had an extreme importance for
the analysis about the construction of territorial identity where were verified movements
of claims and fights for the demarcation of the territory as essential in the process of
identity construction Pankarar. Over the past century of contact with its regional
neighbors, it was observed that besides the resistance movement, there were exchanges
with the country culture and indigenous, mainly manifested through intermarriage that
narrowed the links between ethnic groups. Thus, identity was constructed and
reconstructed from the various contributions of different cultural matrices. In this sense,
multiple territoriality in Indian territory are spatially delineated respecting Pankarar
peculiarities and needs of the social group and appear at different moments in the daily
group. Its important to mention that these Pankarar identity links have logical and distinct views contrary to the romantic character of the typical urban-industrial vision
that presents an "excessive" concern with the use of natural resources. Thus, it was
found that, like other identities, identity Pankarar presents itself immersed in the
everyday actions of the ethnic group, sometimes more symbolic sometimes more
concrete, in a continuous process of building, affirmation, reassurance and readjustment.
Key-words: Territory, Territorial Identity, Indians Panakarar
SUMRIO
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE FIGURAS
LISTA DE SIGLAS
1 INTRODUO ...................................................................................................................12
2 TERRITRIO E IDENTIDADE TERRITORIAL: UMA PERSPECTIVA
GEOGRFICA......................................................................................................................16
2.1 DO TERRITRIO A MULTITERRITORIALIDADE COMO SER TRADICIONAL NO
MUNDO PS-MODERNO? .................................................................................................34
3 OS POVOS INDGENAS NO NORDESTE BRASILEIRO: CONTEXTO HISTRICO-
ESPACIAL ........................................................................................................................... 44
4 FORMAO E DEMARCAO DO TERRITRIO INDGENA PANKARAR:
PROCESSO HISTRICO E SITUAO ATUAL ...........................................................56
4.1 CARACTERIZAO DA REA DE ESTUDO .............................................................69
4.2 O POVO PANKARAR : Usos do territrio.....................................................................81
4.2.2 ALDEIAS MODOS DE VIDA E USOS DO TERRITRIO
a) Aldeia Brejo do Burgo..........................................................................................................92
b) Serrota ..................................................................................................................................97
c) Ponta Dgua .......................................................................................................................100
d) Chico ..................................................................................................................................101
e) Festejos e religiosidade no territrio ..................................................................................104
4.3 REGIMES DE USOS DA TERRA: SOBREPOSIES NO TERRITRIO
INDGENA PANKARAR...................................................................................................107
5 IDENTIDADE TERRITORIAL E CONSERVAO DOS RECURSOS NATURAIS:
UMA POSSVEL RELAO?............................................................................................115
6 POLTICAS E GESTO DOS RECURSOS NATURAIS PELAS SOCIEDADES
TRADICIONAIS: DILOGO DE SABERES ..................................................................120
7 CONSIDERAES FINAIS ...........................................................................................125
REFERNCIAS ...................................................................................................................130
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa de localizao da rea de estudo. Mapa do estado da Bahia e mosaico das
Terras indgenas Pankarar ao sul e Brejo do Burgo ao norte.
68
Figura 2: Mapa mosaico das imagens de satlite, localizao da rea de estudo. 73
Figura 3: Localizao da rea de estudo. Imagem Landsat 7 ETM+, 471 RGB. Ao sul
delimitao da Unidade de Conservao- Estao Ecolgica Raso da Catarina e Terras
indgenas Pankarar e Brejo do Burgo ao norte
74
Figura 4: Vista area do Riacho do Ton, na dcada de 70. 75
Figura 5: Etnomapa localizao das baixas, chapadas e aldeias no Territrio indgena
Pankarar
76
Figura 6: Mapa de litologia das TIP 77
Figura 7: Mapa de relevo das TIP 78
Figura 8: Relevo: a. Relevo aplainado; b. serra relevo suavemente ondulado 78
Figura 9: Mapa dos tipos de solo nas TIP 79
Figura 10: a e b Extrao de lenha depois de tombar a terra (desmatar) os grupos familiares
coletam lenha para usos na construo civil e na cozinha. Coleta do da bromlia e bolsa de cro
pronta.
81
Figura 11: Terra forte a. Roa e riacho do Ton, aldeia Brejo do Burgo; b. Riacho do Ton,
aldeia Brejo do Burgo; c. Roa no segundo plano Aldeia Serrota
82
Figura 12: Roa no Canyon do Chico b. Canyon do Chico-Neossolo quartzarnico. 82
Figura 13: : Mapa de vegetao nas TIP 82
Figura 14: Vegetao a. Caatinga arbrea-arbustiva densa estao seca; b. Caatinga arbrea-
arbustiva estao chuvosa.
83
Figura 15: Aldeia Brejo do Burgo Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar
Figura 16: a. Limpando o rancho na roa de milho na Serra do Cgado, b.Preparando a comida
na roa; c.milho ensacado; d. batida (quebra) do milho; e. variedade de milho
85
Figura 17: a. Coleta de caju- aldeia Serrota; b.ilustrao livro: A gua e os Pankarar,
c.caju coletado, d. venda de caju na feira de Paulo Afonso, e. castanha de caju, f. quebra da
castanha de caju assada
86
Figura 18: a.Coleta de cro; b. retirada da fibra do cro; c. cro; d. bolsa feita com a fibra do
cro pronta
88
Figura 19: Posto indgena FUNAI, Aldeia Brejo do Burgo. 94
Figura 20: Fonte Grande dcada de 70. 95
Figura 21: Aldeia Brejo do Burgo. 95
Figura 22: a. Roa cultivo de milho; f. Feijo de arranca; b. vista area delimitao das
roas; c. Roa cultivo de palma
96
Figura 23: a. roa de mandioca no quintal; b. farinha; c. beij no forno da casa de
Farinha 96
Figura 24: a. Criao de animais a galinceos; b. cabra; c. porcos 96
Figura 25: a e c. Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar; b. oficina na aldeia 98
do Chico.
Figura 26: Casa Aldeia Serrota
100
Figura 27: a. retirada do favo de mel do oco; b. armazenamento do mel; 100
c. peneirao do mel; d. peneirao; e.envasamento; f. exposio do mel
para venda na feira de Paulo Afonso.
Figura 28: a. Casca de Umburana; b. Umburana Ilustrao do livro: 101
A gua e os Pankarar; c. retirada da casca do pau na mata; d. arrumao dos paus para
venda na feira.
Figura 29: Criao a. tatu peba; b. ema; c. cutia. 101
Figura 30: Casa Aldeia Ponta Dgua 103
Figura 31: Casa Aldeia Chico 104
Figura 32: a e b Canyon do Chico 105
Figura 33: Prai 105
Figura 34: Tor Ilustrao do livro: A gua e os Pankarar; 106
Figura 35: Prai- ndios com a vestimenta de cro e ao fundo Por- 107
casa da cincia Pankarar
Figura 36: a. ndia Pankarar acendendo o cambri; b. umbuzeiro demarcando 107
os pontos de parada na procisso;c. ndio na procisso.
Figura 37: a. altar local de reza; b. Prai no cruzeiro do Amaro; c. procisso 108
no festejo do Amaro;
LISTA DE SIGLAS
FNMA/MMA Fundo Nacional do Meio Ambiente do Ministrio do Meio Ambiente
FUNAI Fundao Nacional do ndio GEAP Gesto Etnoambiental Pankarar
ONGs Organizaes No Governamentais
TIP Terra Indgena Pankarar
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
1 INTRODUO
Os Pankarar, assim como outros povos indgenas, representam o tipo de ndio que
enfrentou todos os gneros de compulses: culturais, socioeconmicas e conseguiram
sobreviver s mesmas, ocupando terras que apresentavam-se como economicamente
inviveis para os interesses da poca pela sociedade no indgena. Mesmo
descaracterizados fenotipicamente como costuma frisar a populao urbano-industrial, os
ndios vivem nas ltimas dcadas um movimento de recriao e revitalizao de rituais, que
refora sua identidade tnica.
A populao indgena Pankarar encontra-se no interior da regio Nordeste
brasileira, numa rea denominada Raso da Catarina-Ba (Brasil, 1983). De forma geral, a
maior parte da populao sobrevive das atividades agrcolas, caa e extrativismo de frutos e
plantas medicinais da criao de animais dentre outros. Esse processo revela a articulao
entre o uso dos espaos e evidencia a importncia da pluriatividade existente no seu
cotidiano.
O meu contato com os ndios Pankarar deu-se da seguinte maneira: a primeira
vez que estive na Terra Indgena Pankarar-TIP em 2004, fiquei perplexa com tal
singularidade e tive a real percepo da diferena entre os biomas Caatinga/ Mata
Atlntica. Tudo que eu estudei nos livros estava ali sendo vivenciado e sentido pelo meu
corpo (como quente e seco). A vegetao lindssima, ao mesmo tempo que se mostrava
forte e exuberante, exibia uma certa sutileza com suas pequenas flores. Com solo arenoso,
o relevo mostrava-se extensamente plano, entre algumas serras de maior discrepncia
altimtrica que permitiam olhar a grande formao do Raso da Catarina. Tudo era muito
distinto do ambiente litorneo no qual eu nasci e estava acostumada. Neste perodo era
graduanda em Geografia e meu olhar curioso procurava observar atentamente, sentir,
descrever, classificar e analisar tudo que via.
Essa primeira experincia foi sem dvida muito importante, pois percebi que o
povo do Serto antes de tudo um forte, parafraseando Euclides da Cunha (1985).
Anteriormente tinha passado por outras experincias de estgio em pesquisa na academia,
sempre relacionadas s questes ambientais, e por fim, ingressara no Grupo de Gesto
Etnoambiental Pankarar (GEAP) sob a coordenao do professor Dr. Fbio Pedro
Bandeira, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), para trabalhar como
voluntria na meta de Educao Ambiental com os professores das escolas na Terra
Indgena Pankarar. Este trabalho de pesquisa e extenso fazia parte de um projeto mais
amplo financiado pelo FNMA- Fundo Nacional do Meio Ambiente, que encontrava-se na 2
epata de execuo. Tal experincia foi extremamente enriquecedora, visto que aprender e
trabalhar com um grande grupo de pesquisadores, professores, alunos e comunidade
tradicional sem dvida enriqueceu a minha formao acadmica, pois sem ela o meu
percurso inicial no teria sido to profcuo.
Cumpridas as demandas do projeto diversos questionamentos sempre estavam
presentes e aguavam o meu desejo enquanto pesquisadora. Alguns deles foram: Como e
por que este povo estabelece uma relao de afetividade com territrio? Quais critrios os
ndios utilizam para delimitar de maneira to minuciosa suas terras? Como sabem e
escolhem os melhores lugares para caar, coletar mel, tirar os remdios? Qual a relao
entre os encantados em seus rituais com o Tor (dana) e os Prai (dana com vestimenta
especfica)? Qual a relao entre a conservao dos recursos naturais e os encantados?
Qual significado da expresso utilizada pelos ndios Pankarar: cada coisa no mato tem
seu dono? Quais so as atividades exercidas por homens e pelas mulheres? O que
roa, mata, reserva, casa, quintal? O que Raso, Chapada e Brejo? Onde localizam-se as
terras fortes e as terras fracas? Como os ndios respeitam as reas das roas uns dos
outros se no h cercas em todas as reas? Estas e tantas outras questes ao longo do
tempo de convivncia com os Pankarar foram fomentando meu desejo de estud-los. O
projeto GEAP findou-se mas o trabalho com os Pankarr no, pois a Especializao em
Modelagem em Cincias da Terra e do Ambiente da UEFS, na qual fui aprovada em 2007,
teve a TIP como rea de pesquisa, o trabalho referiu-se ao estudo dos regimes de direito
de propriedade nas dcadas de 80, 90 e 2000. Ainda nesse caminhar o ingresso no
Mestrado em Geografia em 2008 na UFBA, tambm teve como sujeitos de pesquisa os
indios Pankarar, contundo apresentou uma proposta distinta, pois refere-se ao estudo da
relao entre os processos de identificao territorial e a conservao dos recursos
naturais na TIP.
Este estudo possui a temtica territorial como um dos principais questionamentos
levantados. O principal objetivo do mesmo estudar a relao entre territrio, identidade
territorial e os usos e conservao dos recursos naturais. Mas por que o Territrio, j que
houveram tantas crticas e sugestes para trabalhar com outras categorias de anlise da
cincia geogrfica, como por exemplo: o lugar? O territrio foi a abordagem terico-
conceitual utilizada para estudar a TIP devido, principalmente, ao processo de luta dos
Pankarar para assegurar e demarcar suas terras. No se nega no entanto, que alm
destas relaes e disputas de poder imersas na terra indgena, h um forte sentimento de
pertencimento que demonstra a construo de suas singularidades e do processo de
identificao territorial.
Para isso, a principal questo que motivou esta pesquisa foi: de que maneira se d
o processo de identificao territorial e quais so as relaes entre Identidade Territorial e
conservao dos recursos naturais no Territrio Indgena Pankarar? Nesse sentido, a
reviso bibliogrfica que subsidiou o estudo teve como conceito base a discusso conceitual
sobre territrio enquanto categoria de anlise geogrfica. Alm dele, discutiu-se os
conceitos de identidade, identidade territorial, e cultura. Para enriquecimento das anlises foi
utilizado o material de campo que possibilitou elaborar algumas inferncias acerca dos
processos de identificao e suas relaes com o uso dos recursos naturais no grupo social
na rea estudada.
Como tal abordagem de estudo ainda no havia sido trabalhada em estudos
realizados anteriormente na TIP, isso contribuiu e deu maior motivao a pesquisar sobre
esta temtica, sobretudo por que se trata de uma abordagem relativamente nova dentro da
cincia geogrfica. Os estudos realizados acerca das populaes tradicionais geralmente
so da rea de antropologia ou biologia dentre outras cincias. Nesse sentido, a geografia
pode contribuir de maneira profcua na discusso sobre a temtica territorial relacionada aos
aspectos ambientais, visto que o olhar geogrfico nas anlises pode vir a ser um
contribuinte-chave nos estudos de carter socioambiental.
Para isso, as referncias dos estudos pioneiros na TIP como Bandeira (1993) sobre
etnobiologia, Maia (1992) sobre poltica e etnicidade e Luz (1985) acerca da histria oral
Pankarar possibilitaram o reconhecimento da rea de estudo e foram tomados como base
para o desenvolvimento do mesmo. No mbito da geografia tomou-se como referenciais os
estudos de Santos (1978, 1985, 2002, 2006), Haesbaert (1999, 2004, 2006, 2007) e Claval
(1999). Sobre a temtica da cultura e identidade foram utilizados os conceitos de Hall
(2005), Mitchell (1999). Na definio de povos tradicionais tomou-se como base Little
(2002), Diegues (2001) e, para a de desenvolvimento sustentvel, Castro (1997) e Sachs
(2004).
Visto que a questo norteadora do estudo refere-se aos processos de identificao
territorial e conservao dos recursos naturais a pesquisa participante e entrevistas foram
utilizadas para trabalhar com essa temtica, j que necessita de um maior contato com o
grupo social para conhecer de maneira mais aprofundada sua dinmica interna, costumes
entre outros. Portanto, na elaborao do presente trabalho dissertativo, foi imprescindvel a
realizao de entrevistas semi-estruturadas e estruturadas com os ndios Pankarar. De
modo geral, as conversas deram-se em ambientes com mais de uma pessoa, especialmente
durante a realizao das atividades cotidianas como trabalho na roa, no quintal, ou na
cozinha, com durao mdia duas horas. A maior parte das entrevistas foi gravada, o que
possibilitou a transcrio integral das falas. Alm disso, foram disponibilizados mapas,
fotografias, questionrios, diversos dados e informaes pelo GEAP que auxiliou na
construo das anlises sobre a temtica.
Nesse sentido, para elucidar as problemticas elencadas pensou-se na seguinte
estrutura do trabalho. A dissertao possui cinco captulos. O primeiro captulo refere-se
introduo geral do trabalho. O segundo captulo, intitulado Processos de Territorializao e
Identificao Territorial nas Sociedades Tradicionais, faz uma discusso a partir do olhar
geogrfico sobre os conceitos de territrio e de territorializao relacionados aos processos
de identificao territorial nas sociedades tradicionais. No terceiro capitulo Os povos
indgenas no nordeste brasileiro: contexto histrico-espacial faz-se um apanhado histrico
destas populaes indgenas no Nordeste Brasileiro, para enfim chegar ao povo indgena
Pankarar. O quarto captulo trata das subjetividades e concretudes no territrio indgena.
No quinto e ltimo captulo foi feita uma abordagem geral sobre as concepes tericas
acerca da gesto territorial referente aos espaos dos povos tradicionais e como tem sido o
processo de dilogo entre estas populaes e as sociedades urbano-industriais, sobretudo
no que se refere implantao de reas prioritrias para conservao e a ocorrncia das
sobreposies nos territrios dos povos tradicionais, dentre estes os povos indgenas, bem
como o fomento a execuo de projetos de gesto ambiental nestas reas.
2 TERRITRIO E IDENTIDADE TERRITORIAL: UMA PERSPECTIVA
GEOGRFICA
A cincia geogrfica tem como objeto de estudo o espao que, ao
longo do processo histrico, transformado em espao social pelas distintas
sociedades, dando-lhe formas, contornos e contedos. Segundo Santos (1985)
a essncia do espao social, o mesmo considerado como o palco de aes
das sociedades, em que ocorrem construes e reconstrues atravs de um
processo dialtico. O espao visto como um conjunto indissocivel, de um
sistema de objetos e sistema de aes, que considerados conjuntamente
formam uma totalidade na qual ocorrem os processos histricos. De acordo
com Santos (2001), os objetos e aes so partes indissociveis construtoras
do espao, h para isso uma interao entre si:
De um lado os sistemas de objetos condicionam a forma como se do as aes e, de outro lado, os sistemas de aes leva a criao de objetos novos ou se realiza sobre os objetos pr-existentes. assim que o espao encontra a sua dinmica e se transforma (SANTOS, 2001, p. 63).
Nesse sentido, o estudo do espao realizado com base nessa
dinmica que o transforma constantemente reunindo a materialidade e a vida
que a anima. Desta maneira, o objeto de estudo da geografia refere-se ao
espao formado pelo conjunto entre o sistema de objetos e sistema de aes.
De acordo com Santos (2001), ambos os sistemas formam um conjunto
indissocivel, solidrio e contraditrio e devem ser considerados como um
quadro nico onde a histria se d. Como afirma o autor nas interaes entre
os objetos e as aes ocorrem interferncias entre ambos contribuindo com o
processo de dinamicidade e transformao do espao.
Nesse processo contnuo de transformao verifica-se que o homem
vm a cada dia substituindo elementos naturais por objetos artificiais na
apropriao do espao. Tais processos de interao entre objetos e aes
produzem como resultado uma multiplicidade de situaes, que podem
apresentar diversas possibilidades de anlises. As anlises referentes ao
espao podem ser realizadas atravs das categorias analticas internas,
recortes espaciais e por meio dos processos externos ao mesmo. As
categorias internas de anlise so definidas como regio, lugar, territrio e
paisagem, bem como, a configurao territorial, diviso territorial do trabalho,
espao produzido, rugosidades e formas contedo. Enquanto os processos
externos ao espao referem-se: a tcnica, a ao, os objetos e a norma; os
eventos so a universalidade e a particularidade, a totalidade, a temporalidade,
a idealizao e a objetivao, os smbolos e a ideologia.
Nesta perspectiva, verifica-se a indissociabilidade entre objetos e
aes devido ao contnuo movimento de produo e reproduo do espao,
configurado por meio de uma constante sucesso das formas-contedo, ou
seja, o espao compe-se de objetos com formas, mas tambm possui
contedo (atores sociais) que interage com estas formas e estas com o
contedo, num vai-e-vm incessante. Nesse sentido, visto que a totalidade
dada por um processo contnuo, os espaos se criam e se recriam novamente.
Assim, a diviso social do trabalho condiciona esse processo com o papel de
definir os espaos dando-lhes novos contedos e criando novas formas,
metamorfoseando os objetos e as aes atravs de novas configuraes
(SANTOS, 2001, p. 25).
Nesse sentido, visto que as intencionalidades materializam-se sobre os
espaos, com a ocorrncia concomitante dos processos, funes e formas
sociais, considera-se que toda formao socioespacial tambm territorial,
tendo em vista essa interdependncia entre tempo-espao.
No entanto, para analisar o espao social necessrio estabelecer
recortes e trabalhar com diversas escalas de anlise. Para isso, neste estudo
coube fazer um recorte espao-temporal, alm de trabalhar com as
interelaes entre as escalas geogrficas (local, regional e nacional) devido s
distintas contribuies e rica possibilidade das mesmas estabelecerem dilogos
entre si.
A partir deste ir e vir interescalar, foram elucidados pontos-chave visto
que as relaes entre o tempo e as territorialidades constituem o territrio,
formado pelo processo cumulativo da dinmica socioespacial-temporal, onde a
cada momento tm-se um resultado e uma possibilidade num movimento
contnuo. Segundo Moraes (2000) o territrio um produto socialmente
produzido, bem como um resultado histrico da relao dos grupos humanos
com o espao. Para enriquecer tal discusso, cabe mencionar os conceitos
associados e concebidos a partir do territrio, como a territorialidade e
territorializao visto que ambos permitem a construo concreta e visvel do
territrio por lhe darem vida e mobilidade.
As territorialidades para Saquet (2009, p.79) so as relaes sociais que
podem ser simtricas ou dissimtricas e produzem historicamente cada
territrio. A territorialidade encontra-se imersa no territrio tendo em vista que
manifesta-se atravs de um processo (SAQUET 2009 p. 78 apud RAFFESTIN).
A territorialidade definida como relacional e dinmica, mudando no tempo e
no espao, conforme as caractersticas de cada sociedade. O territrio acaba
sendo o resultado das territorialidades efetivadas pelos homens (SAQUET,
2009, p.79).
J a territorializao apresenta uma definio distinta: ela refere-se
ao, ao ato de territorializar; trata de indivduos ou grupos sociais que, a partir
de suas aes no mundo material, modificam aspectos do mesmo, construindo-
o e reconstruindo-o conforme suas necessidades. O sujeito que territorializa um
determinado espao est realizando um processo de territorializao e
concomitantemente construindo territorialidade, que pode ser individual ou
coletiva. Conforme Saquet (2009) a territorializao substantivada por
distintas temporalidades e territorialidades multidimensionais.
A territorializao o resultado e condio dos processos sociais e espaciais, significa movimento histrico e relacional. Sendo multidimensional, pode ser detalhada atravs das desigualdades e das diferenas e, sendo unitria, atravs das identidades (SAQUET, 2009, p.83).
Nos processos sociais e espaciais citados pelo autor encontra-se
associada a noo de temporalidade. O seu carter multidimensional se aplica
bem rea deste estudo, visto que durante todo processo de construo
histrica do territrio indgena Pankarar a territorializao contribuiu para a
construo de uma identidade especfica Pankarar. Nesse sentido, observa-
se que distintas territorialidades podem ser criadas num mesmo territrio e
ainda pode ocorrer sobreposies entre as mesmas. Longe de demonstrar-se
como algo esttico, puramente fsico com delimitaes fronteirias fixas e
imveis, o territrio passa adquirir um carter mais abrangente, agrupando
diversas territorialidades, ora mais fixas ora mais mveis e flexveis. As aes
praticadas pelos atores sociais nos processos de territorializao mostram-se
imprescindveis, por dar vida ao processo, estabelecer e legitimar o carter
social presente nesta perspectiva de abordagem geogrfica. Portanto, no
cabe estudar apenas a construo de um dado territrio sem o que lhe d vida,
sem sua alma (leia-se ao dos atores sociais). No estudo espao-territorial,
torna-se fundamental analisar indissociavelmente a relao tempo-espao-
sujeitos, tendo em vista as infindas possibilidades e distintas configuraes que
o territrio pode apresentar a partir dos interesses dos seus atores e
interferncias das temporalidades e dinmicas sociais a que esto submetidos.
Nesta perspectiva, analisar as sociedades atravs da relao que as
mesmas estabelecem com seus espaos territoriais pode ser realizada por
meio de distintas categorias de anlise da cincia geogrfica (paisagem,
regio, territrio, lugar). Neste estudo, o territrio foi o conceito-chave utilizado
por ter respondido de forma mais coerente aos questionamentos da pesquisa,
tendo em vista que o espao ocupado pelos Pankarar registrou relaes de
poder, conflitos e disputas essenciais para sua configurao, presentes em
todo processo histrico na Terra Indgena Pankarar.
Na perspectiva de Saquet (2007), o territrio no aquele sem atores,
reduzido ao ambiente fsico, nem aquele restrito a interao entre atores das
cincias sociais e polticas. O territrio encontra-se imerso nas relaes entre
sociedade-ambiente e tem como resultado uma grande diversidade
sociocultural e ambiental. Essa diversidade sociocultural, que representa
tambm, uma riqueza, pode acarretar conflitos se as diferenas entre os
grupos se traduz, por divergncias antagnicas.
O territrio essencialmente contm e contido por/pelas relaes de
poder que refletem os conflitos de classes. resultado das dinmicas de
produo imersas nas relaes sociais materializadas cotidianamente, em que
o uso dos recursos nos mais diversos ambientes gera conflitos e disputas de
poder devido s necessidades dos atores sociais. As necessidades de cada
grupo social dizem respeito desde aspectos essenciais para sobrevivncia
(alimentao, sade, moradia, segurana, educao) at outros mais
simblicos, relacionados religiosidade por exemplo. Na Terra indgena
Pankarar diversos conflitos esto presentes e refletem uma perspectiva de
leitura diferenciada sobre sua dinmica de formao, visto que os atores
sociais (ndios, posseiros, Estado, FUNAI, Igreja) possuem interesses
diferenciados.
Nesse sentido, a constituio do territrio depende dos arranjos, material
e imaterial, incluindo valores culturais, sociais e econmicos. Seu estudo pode
ser um rico caminho para a anlise da formao sociohistrica de um grupo
social.
(...) toda sociedade para se reproduzir cria formas, mais ou menos durveis, na superfcie terrestre. No entanto, tais formas obedecem a um dado ordenamento sociopoltico do grupo que as constri, regulando e definindo os modos de apropriao da natureza, os usos do espao e dos recursos nele contidos (MORAES, 2000, p.15).
Esse ordenamento sociopoltico citado pelo autor reflexo da dinmica
social onde os usos do solo e dos recursos naturais de forma geral, as formas
de ocupao, os estabelecimentos e as hierarquias entre os lugares expressam
os resultados de lutas, hegemonias, violncias, enfim, atos polticos. Para,
alm disso, a construo do territrio tambm envolve representaes,
discursos, conscincias, processos de identificao e sentimentos de
pertencimento. Nesse sentido, as singularidades, particularidades e diversidade
dos locais so fatores essenciais e contribuem na formao destes territrios.
Os aspectos peculiares presentes nos territrios podem ser analisados a
partir das identidades dos vnculos e ideias de pertencimento que os atores
constroem nos seus espaos de vivncia (palco das aes cotidianas). Os
estudos do territrio e identidades territoriais tornam-se mais ricos ao se
estabelecer a relao entre a materialidade destes territrios com as
subjetividades e as ideias de pertencimento uma vez que estas formam uma
base de coeso social para que um determinado grupo social se mobilize em
favor de seu controle sobre o territorio. Da a relevncia de uma abordagem
sob a tica geogrfica acerca dos aspectos da Identidade pelo vis das
Identidades Territoriais. Para Haesbaert (2004), as identidades territoriais, na
atualidade no se expressam com limites rgidos, e sim num continuum em
que, cada poro destes espaos pode gerar tanto identidades mais fechadas
e essencializadas quanto identidades mais flexveis com carter mltiplo e
hbrido.
Desta maneira, a anlise do territrio pode ser vista como contribuinte-
chave na busca da autonomia e desenvolvimento local dos grupos sociais.
Alm de instrumento complementar, o estudo das diversas territorialidades
pode auxiliar os grupos sociais a autogovernarem-se, visto que as
sobreposies reivindicatrias entre os diversos grupos sociais que possuem
identidades e lgicas socioculturais distintas sobre o mesmo recorte espacial
refletem mltiplas formas de apropriao da natureza devido aos seus distintos
modos de vida. Os conflitos gerados entre os grupos hegemnicos da
sociedade urbano-industrial-capitalista e os grupos tradicionais, que se
encontram, de modo geral, parcialmente inseridos nesse modelo de sociedade,
refletem formas particulares de vivenciar e utilizar o territrio. Assim, a
organizao em resistncia s aes homogeneizadoras um dos
instrumentos de luta mais utilizados pelos grupos marginalizados. Entre as
dcadas de 1980 e 1990, tais reivindicaes reverberaram alguns resultados
positivos como a exigncia de estudos de avaliao de impactos ambientais e
sociais e sobre planejamento participativo com intuito de empoderar, segundo
Sachs (2004), as vtimas do desenvolvimento.
As sociedades modernas podem desenvolver identidades multiterritoriais
e, ao transferir a organizao e a gesto do territrio para as instituies
pblicas que passam a controlar os interesses do setor empresarial,
transformam o espao em unidades privadas avaliadas, sobretudo pelo valor
de troca em detrimento do valor de uso. Com o argumento de justificativa
relativo ao crescimento econmico e gerao de emprego, a competio
entre governos de vrios nveis para atrair capital externo algo extremamente
presente nos dias atuais o que tem acirrado ainda mais os conflitos entre os
grupos sociais que possuem interesses distintos.
Segundo Zhouri e Laschefski, (2010, p.24) nesse contexto que o Estado
muitas vezes se alia a segmentos do capital contra as territorialidades de
outros grupos existentes no interior da nao, tais como os povos indgenas, os
quilombolas e outros povos tradicionais. Isso tem como reflexo o aumento da
homogeneidade socioambiental do espao. Nesse sentido, ampliam-se os
conflitos e disputas territoriais quando ocorre o choque entre os distintos
interesses dos grupos sociais.
Entendendo o territrio como patrimnio essencial, para a produo e
reproduo, que garante a sobrevivncia da comunidade como um todo, o
estudo das potencialidades de cada territrio pode contribuir para o
desenvolvimento de polticas que propiciem maior autonomia dos mesmos,
sobretudo numa escala local. Tais estudos podem auxiliar a democratizao
das informaes e o processo de busca da autonomia dos grupos sociais, visto
que a projeo destes num espao mais amplo onde os valores contidos e
produzidos nos territrios como os fatores ecolgicos, humanos e simblicos-
culturais passam a adquirir maior visibilidade e podem ser potencializados.
Alm disso, os estudos podem auxiliar na divulgao da cultura visto que a
mesma um instrumento-chave na auto-afirmao identitria.
Portanto, cabe geografia, atravs da anlise sobre a realidade
socioespacial, trazer contribuies com estudos nesta perspectiva de modo
que possa ampliar a valorizao e o respeito diversidade cultural, no intuito
de que os territrios e sociedades locais tenham seus valores reconhecidos, ao
invs de destrudos pelas determinaes e tendncias homogeneizadoras da
lgica e modo de produo do sistema econmico global.
Portanto, ao iniciar esta proposta de estudo verificou-se a necessidade de
definir espao, principal categoria da anlise geogrfica, com intuito de elucidar
sob qual perspectiva deteve-se o olhar nas anlises, alm de definir os demais
conceitos que subsidiaram e complementaram o trabalho posteriormente. Para
isso, partiu-se do pressuposto de que a essncia do espao social. Alguns
estudos discutem-no atravs de categorias de anlise (regio, territrio,
paisagem, lugar), com o intuito de torn-lo mais operacional e adequado a seus
objetos de estudo. No entanto, todas essas categorias partem do conceito-
chave espao, tendo em vista seu carater abrangente de totalidade.
Nesse caso, o espao no pode ser apenas formado pelas coisas, os objetos geogrficos, naturais e artificiais, cujo conjunto nos d a Natureza. O espao tudo isso, mais a sociedade: cada frao da natureza abriga uma frao da sociedade atual (SANTOS 1988, p.1).
Tais objetos geogrficos encontram-se distribudos sobre o espao, no
entanto, o que lhe d vida so os processos sociais imersos nele. Desta
maneira, visto que a geografia estuda as relaes entre sociedade e natureza
no que tange aos aspectos socioespaciais, a definio de espao geogrfico
torna-se conceito chave nas anlises. Como o autor frisa, o espao geogrfico
deve ser considerado como algo que participa igualmente da condio do
social e do fsico, um misto, um hbrido (SANTOS 1996, p. 86)
Nessa perspectiva, a categoria de anlise espao designa uma
totalidade, um meio material onde ocorrem as relaes entre sociedade e
natureza. Alm disso, possui uma diversidade que abrange aspectos sociais e
naturais, onde hibridizaes ocorrem concomitantemente. Nesse sentido,
Haesbaert, (2004) mesmo com uma abordagem distinta da proposta por
Santos, contribui com a discusso da perspectiva integrada do espao.
a concepo do espao como um hbrido entre sociedade e natureza, entre poltica, economia e cultura, e entre materialidade e idealidade, numa complexa interao tempo-espao, como indissociveis entre movimento e relativa estabilidade, recebendo estes nomes de fixos e fluxos, circulao e iconografias, ou o que melhor couber (HAESBAERT, 2004, p.79).
O espao este hbrido proposto por Santos (2006) e Haesbaert (2004);
para caracteriz-lo os autores ressaltam a noo de idealidade e materialidade.
Sendo assim, o espao formado por aspectos objetivos e subjetivos. Tanto o
material quanto o imaterial se complementam e encontram-se associados nas
formas-contedo que trazem caractersticas da temporalidade e do movimento,
onde tempo e espao, por meio dos fixos e fluxos, esto num dinmico e
incessante processo de mudana.
Para a compreenso e anlise dos processos de identificao territorial
e territorialidades presentes na Terra Indgena Pankarar, foram discutidos
alguns conceitos-chave que deram subsdio ao trabalho: Territrio,
Territorialidade, Identidade e Identidade Territorial, alm dos Processos de
Identificao Territorial, visto que a identidade territorial supracitada encontra-
se num contnuo processo de movimento. O primeiro deles, Territrio, possui
um papel norteador no entendimento dos demais conceitos.
O conceito de Territrio, no processo de sistematizao da geografia,
inicialmente esteve ligado s cincias naturais. Ratzel o define como uma
poro do espao apropriada por determinado grupo. Esta concepo vincula-
se idia de desenvolvimento do Estado como nico agente construtor
territorial. Valaux, partindo de Ratzel, com enfoque da escola possibilista,
definia o territrio com um enfoque de dominao poltica, onde, diferena
dos animais, o homem possui uma capacidade de no deixar-se determinar
pelo meio.
Posteriormente, apresentando uma viso distinta, Raffestin, influenciado
pela concepo de poder foucaultiana, distingue espao e territrio, sendo o
primeiro anterior ao segundo, ou em outras palavras, o territrio construdo a
partir do espao. Raffestin (1993) define territrio a partir do seu carter
poltico ou econmico.
O territrio que se forma a partir do espao, o resultado de
uma ao conduzida por um ator sintagmtico (ator que realiza
um programa) em qualquer nvel. Ao se apropriar de um
espao, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela
representao), o ator territorializa o espao (RAFFESTIN,
1993, p. 143).
Nesta perspectiva, o territrio fruto da apropriao concreta e/ou
simblica do espao, que passa a externalizar-se materialmente. O poder
relacional, imerso nas relaes sociais torna-se categoria de anlise essencial
para a compreenso do territrio. Portanto, tendo em vista a concepo
proposta por Raffestin a construo do territrio se d por/e atravs das
relaes marcadas pelo poder. Tal relao pode ser verificada na rea de
estudo e ser discutida posteriormente ao longo dos captulos.
Um dos aspectos de grande relevncia a reivindicao presente na
rea de estudo onde a garantia do territrio com os limites territoriais bem
demarcados davam-lhe maior legitimidade enquanto grupo tnico distinto dos
seus vizinhos habitantes do entorno. Apresentando uma viso mais
abrangente, Haesbaert (2004) define o territrio em trs vertentes bsicas:
1) Jurdico-politica, a mais difundida, onde o territrio visto
como um espao delimitado e controlado atravs do qual se
exerce um determinado poder mas no exclusivamente
relacionado ao poder poltico do Estado.
2) Cultural ou Simblico Cultural: prioriza a dimenso simblica
mais subjetiva, em que o territrio visto, sobretudo, como
produto da apropriao/valorizao simblica de um grupo em
relao ao seu espao vivido.
3) Econmica: menos difundida, enfatiza a dimenso espacial
das relaes econmicas, o territrio como fonte de recursos
e/ou incorporado no embate entre classes sociais e na relao
capital trabalho, como produto da diviso territorial do trabalho,
por exemplo (HAESBAERT 2004, p.40).
O dilogo entre estas trs dimenses possibilita compreender o conceito
no como algo esttico sem conexo entre as trs vertentes, mas sim como
uma dinamicidade que pode apresentar maior influncia de uma ou outra,
tendo em vista que nenhuma delas pode ser pura devido prpria
complexidade dos processos sociais. Por conta disso, as anlises do maior
enfoque a uma ou outra concepo a partir da temtica especfica de cada
estudo. Neste trabalho, tomou como base terico-conceitual a seguinte
abordagem acerca do territrio;
Nos tempos atuais o territrio, impregnado de significados, smbolos e imagens, constitui-se em um dado segmento do espao, via de regra delimitado, que resulta da apropriao e controle por parte de um determinado agente social, um grupo humano, uma empresa ou uma instituio. O territrio , em realidade, um importante instrumento da existncia e reproduo do agente social que o criou e o controla. O territrio apresenta, alm do carter poltico, um ntido carter cultural, especialmente quando os agentes sociais so grupos tnicos, religiosos ou de outras identidades (HAESBAERT, 2007).
Compartilha-se aqui com a ideia do autor, tendo em vista que a definio
traz um olhar especfico sobre as relaes polticas e simblicas imersas no
territrio, o que apresenta forte proximidade com essa pesquisa. Parte-se do
princpio que o territrio construdo no jogo entre material e imaterial,
funcional e simblico. Essa concepo de territrio capaz de responder s
complexidades da realidade contempornea alm de buscar superar os
dualismos fundamentais: tempo-espao, fixao-mobilidade, funcional-
simblico. Por isso, as anlises devem partir das:
perspectivas que valorizam as relaes e os processos: o territrio num sentido relacional e processual (devendo-se mesmo falar mais em processo de territorializao do que de territrio como entidade estabilizada);
mltiplas temporalidades e velocidades nas quais ele pode ser construdo, desde territrios com maior fixidez at aqueles mais mveis e flexveis;
conjugao entre um continuum que se estende desde os territrios mais funcionais at aqueles com maior carga (ou poder) simblica (o).
(...) Hoje num mundo em que o simbolismo da cultura presena fundamental em todas as esferas da vida, o territrio (...) se v cada vez mais mergulhado nas tramas de um poder simblico (...). Se considerarmos, num sentido mais amplo e falando ento mais de espao do que de territrio, de um espao que imanente construo social, podemos afirmar que toda dinmica de construo identitria inerentemente espacial (HAESBAERT, 2007, p. 37,38).
Visto que o espao encontra-se permeado desse poder simblico imerso
nas relaes sociais, a construo identitria na terra indgena Pankarar foi
estudada a partir do dilogo com o que o autor classifica de inerentemente
espacial. Amplia os conceitos de territrio e de identidade territorial vinculado
aos processos de identificao, que possuem importante papel nas anlises.
Ao discutir processos de identificao e identidade territorial, o conceito de
identidade compreendido a partir da alteridade, alm da relao dialtica e
luta dos contrrios. Nesse sentido, a ampliao da leitura dos fenmenos
sociais a partir da dialtica, analisando as transformaes sociais enquanto
processo, permite deixar de ver as identidades como algo esttico verificando a
dinamicidade inerente a elas. Conforme Hall (2005) h trs concepes de
identidade:
a) sujeito do iluminismo: baseado na concepo de indivduo centrado que
emerge quando ele nasce permanecendo idntico ao longo de toda existncia
do indivduo.
b) sujeito sociolgico: reflete acerca da crescente complexidade do mundo
moderno, onde a identidade formada na interao entre o eu e a sociedade.
A identidade ento costura (ou para usar uma metfora mdica, sutura) o
sujeito estrutura (HALL, 2005, p. 12).
Nesse sentido, HALL afirma que as coisas atualmente esto mudando, onde o sujeito que possua uma identidade unificada e estvel, est tornando-se fragmentado, composto no de uma nica, mas de vrias identidades, algumas vezes contraditrias e no resolvidas (HALL, 2005, p. 12).
Os ndios Pankarar possuem algumas semelhanas com estas
caractersticas definidoras do sujeito sociolgico discutido por Hall. Observa-se
que sua identidade formada por uma juno complexa de vrias identidades.
Estes sujeitos fragmentados depois passam por um processo de reconstruo,
formando um mosaico identitrio complexo tendo em vista as vrias
contribuies externas. Vale ressaltar que este assunto ser abordado com
mais detalhe no capitulo 4.
c) sujeito ps-moderno: aquele que no possui uma identidade fixa,
essencial ou permanente. Para o autor neste caso:
A identidade torna-se uma celebrao mvel formada e transformada continuamente em relao s formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sitemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2005, p. 13).
A identidade deve partir do auto-reconhecimento construdo por um
grupo de indivduos a partir de fatores como laos referentes s relaes de
parentesco, modos de produo, vinculao institucional, traos tnicos,
religio e ideologia. Assim, a relao entre identidade e territrio resultante do
auto-reconhecimento e estabelecimento de laos e vnculos territoriais.
Desta maneira, ao tratar dos processos de identificao no territrio por
um indivduo ou grupo, discute-se os significados que tal(is) indivduos
atribuem ao mesmo. Portanto, a anlise realizada levou em considerao as
especificidades e particularidades da etnia indgena Pankarar, tendo em vista
os distintos aspectos simblicos, materiais, religiosos e culturais de maior
relevncia para o grupo.
A cultura estreitamente prxima das relaes de poder foi um dos eixos
fomentadores dessa leitura da identidade. Segundo Castells (2007) a
construo social da identidade sempre ocorre em um contexto marcado pelo
poder e define trs formas e origem de construo da identidade:
identidade legitimadora: construda pelas instituies dominantes, com o objetivo de expandir e manter a dominao sobre as foras sociais dominadas; identidade de resistncia: produzida pela reao de atores que esto em posies dominadas e que resistem para sobreviver; identidade de projeto: surge quando atores sociais em posies subordinadas constroem uma nova identidade, capaz de redefinir a sua posio na sociedade, e at obter
transformaes nas estruturas sociais (CASTELLS, 2007).
De acordo com essa definio, algumas identidades constroem-se pela
submisso s foras dominantes e outras a partir da contestao destas foras.
Desta maneira, a identidade possui um carter poltico alm do carter cultural,
uma vez que o poder imerso nas relaes pode subjugar as populaes ou ser
contestado por elas. Nesse sentido, as mltiplas manifestaes das
identidades dependem das intencionalidades do grupo em que esto inseridas
e estas identidades por sua vez, ora mostram-se mais abertas, inserindo e
incorporando mudanas com insero de novos valores agregados, ora
fecham-se com intuito de proteger os elementos considerados essenciais pelo
grupo para no ocorrer intercambiamento com aspectos culturais externos que
interfiram negativamente no grupo.
As imposies do atual modelo hegemnico de desenvolvimento
levaram a uma tendncia homogeneizadora dos espaos, solapando as bases
estruturais de algumas culturas utilizando o discurso da substituio em que as
coisas consideradas arcaicas e ultrapassadas devem ser substitudas pelo
novo e o moderno. Verifica-se na utilizao deste discurso um dos principais
objetivos dos atores hegemnicos: desfazer os laos identitrios dos grupos
sociais com intuito de apropriar-se de seus territrios e espaos de vivncia,
sobretudo quando estas reas possuem recursos naturais de grande valor e
interesse econmico.
Por conta disso, de acordo com a dinmica dos processos sociais,
muitas sociedades utilizam discursos de afirmao identitria a partir da
relao com o territrio, pois para eles necessrio um substrato fsico-
material para estabelecerem-se. Em virtude destes processos de identificao
territorial pode-se verificar:
H nesse caso uma ligao inextricvel entre a construo da
identidade e a do territrio associado; a afirmao da diferena
identitria como vinculada diferena territorial e vice versa
(ARAJO, F.G.B., 2007, p.31).
No entanto cabe ressaltar algumas distines, pois nem todas
identidades sociais so territoriais, ou seja, nem todas possuem o territrio
como eixo central para seu reconhecimento. A identidade espacial um
componente indissocivel de qualquer processo social; neste estudo a mesma
adquire a especificidade de identidade territorial visto que trabalha-se com o
territrio como categoria de anlise.
toda identidade cultural espacial, na medida em que se realiza no/atravs do espao, mas nem toda identidade territorial no sentido da centralidade adquirida pelo referente espacial em estratgias de apropriao, culturais e polticas dos grupos sociais (HAESBAERT 2007, p. 44).
Diversas sociedades tradicionais, entre elas os grupos sociais indgenas
no Brasil bem como de outros pases, apresentam essa relao de
pertencimento com seus espaos por eles ocupados, o que pode levar leitura
da possvel presena de identidade territorial pelos atores nestes espaos
quando tem algum efeito com demais grupos para o uso desses espaos.
Alguns povos indgenas ressurgiram foram emergindo e adaptando-se
ao atual contexto histrico e s novas demandas do mercado, que passa a ter
maior interferncia pressionando os territrios. Segundo Varese (1996, p.207),
tais povos passam a ter uma relao menos conservadora em termos da
identidade cultural, tornam-se mais adaptveis a novos ambientes alm de
utilizar sua etnicidade como estratgia flexvel. Nesse sentido, pode-se
estabelecer uma relao com a pluralidade cultural e o intercambiamento de
novos valores culturais, tendo em vista os dilogos que passam a contribuir
para o efeito pluralizador (termo a ser discutido posteriormente) vivenciado
por estes grupos ao longo do tempo.
Com isso, buscou-se aprofundar neste estudo anlises acerca dos
processos de identificao territorial e das territorialidades na sociedade
indgena Pankarar, tendo em vista o estreito vnculo deste grupo com seu
territrio, uma vez que os mesmos utilizaram-no como um dos instrumentos
chave no processo de auto-identificao e reconhecimento da comunidade.
De acordo com Haesbaert (1999), identificar-se implica sempre
identificar-se com, num sentido relacional, dialgico inserido numa relao
social. Dessa forma, as identidades apresentam um sentido dialgico-
relacional onde se encontram em constante movimento ao contrrio do carter
esttico e estvel das velhas identidades. Nesse sentido, a identidade
territorial,
s se efetiva quando um referente espacial se torna elemento central para a identificao e ao poltica do grupo, um espao em que a apropriao vista em primeiro lugar a partir da filiao territorial e onde inclui o potencial de ser acionada em diversos momentos, como instrumento de reivindicao poltica (HAESBAERT, 2007 p. 45).
Com base nessa perspectiva, a identidade territorial s se concretiza
quando o substrato concreto e material do espao, referente espacial, torna-se
elemento central de apropriao do grupo. Insiste-se que ao discutir o conceito
de identidade territorial, faz-se necessrio abordar o conceito de identidade de
acordo com a perspectiva dinmica e no esttica. Conforme Serpa (2007),
[...] identidades constroem-se sempre a partir do reconhecimento de uma
alteridade. Desta maneira, a territorialidade aparece outro conceito chave na
discusso, pois ela
Assim, verifica-se a relao entre territrio e identidade, sobretudo
quando o autor afirma que Processos identitrios podem surgir tambm a
partir da relao original entre sociedade e a natureza, redundando em
atividades que aos poucos vo marcar um estilo de vida caracterstico
(SERPA, 2007, p.165).
Isso pode ser visto nos processos atuantes no territrio, onde, de acordo
com a dinmica social sobre o espao, a territorialidade, tanto material como
imaterial, contribui no processo de construo dos espaos de identidade. No
entanto, adquirindo papel material ou simblico, a territorialidade encontra-se
estrategicamente relacionada dimenso sociopoltica. Assim, a anlise da
territorialidade, tendo em vista sua dinamicidade no tempo e no espao, uma
perspectiva indicativa que auxilia a compreenso dos processos identitrios
nos territrios.
Nesse sentido a territorialidade deve ser analisada sob o ponto de vista
processual em que aes vinculadas s estratgias de poder fazem-se
presentes. As aes e estratgias de controle inserido neste contexto social
so materializadas no territrio a partir das aes dos atores sociais. Assim,
com intuito de complementar a rede estrutural de conceitos que auxiliaram a
interpretao deste objeto de estudo, cabe ressaltar a importncia do conceito
de Cultura.
Partimos do pressuposto da cultura como culturas, distinta da viso
iluminista anterior Revoluo Francesa, em que a cultura era considerada
como sendo tudo, e o todo, a soma dos saberes acumulados e transmitidos.
Segundo Coelho (2008, p.17) a cultura no o todo. Nem tudo cultura.
Cultura uma parte do todo e nem mesmo a maior parte do todo. O relativismo
cultural hoje difundido dos estudos de Franz Boas (1858-1942) admite que
cada cultura possui um valor prprio a ser reconhecido que se manifesta na
lngua, nas crenas, nos costumes, na arte e que veicula. Para Coelho (2008)
um esprito prprio (a identidade). Desta forma, cabe aos estudos referir-se s
culturas (no Cultura) e focar ateno ao elo que une um indivduo a uma
cultura. Isso sem dvida mais importante para a poltica cultural do que
aquele objetivo habitual que se preocupa apenas com a reproduo desse elo
ao refor-lo, preserv-lo, conserv-lo e restaur-lo. Portanto, a concepo de
cultura como um estado deveria ser substituda pela concepo da cultura
como ao, a cultura aberta ao poder ser no sentido de experimentar ser uma
coisa ou outra e experimentar ser uma coisa e outra, livre de toda restrio ou
imposio (COELHO, 2008, p. 22). Nesse sentido, compartilha-se com a
seguinte definio de cultura
a cultura o meio pelo qual as pessoas transformam o fenmeno cotidiano do mundo material num mundo de signos significativos, ao qual do sentido e atrelam valores (HALL apud COSGROVE e JACKSON, 2000, p.25)
Este mundo material transformado e repleto de signos e valores
apresenta uma perspectiva ampla de anlise visto que procura abordar tanto a
materialidade inerente cultura, quanto os aspectos subjetivos da mesma, ou
seja, os valores simblicos imersos nesta materialidade. Neste estudo deu-se
maior nfase no reflexo das implicaes simblicas e sociopolticas do espao,
tendo em vista a grande diversidade de olhares possveis nos estudos
culturais, sobretudo acerca das sociedades tradicionais.
Para isso, foi imprescindvel descortinar, tirar o vu romantizador que
existe sobre as sociedades tradicionais e dentre estas as populaes
indgenas. Pois, embora estas populaes vivam de maneira distinta da
populao urbana, encontram-se imersas no processo da globalizao e esto
vivendo seu efeito pluralizador embora num ritmo mais lento e desigual
(HALL, 2005, p.80).
Tal efeito engloba novas culturas, permitindo s populaes tradicionais
pluralizar-se ao invs de singularizar-se. As singularidades anteriormente
exaltadas passam a abrir espao para uma pluralidade, um contato maior com
o outro, sem perder sua essncia identitria. Ou seja, as culturas dialogam
entre si, permitem-se adquirir novos valores e prticas, vestem-se com outras
roupagens, mas no deixam de identificarem-se como nicas. Como o autor
afirma, alguns grupos abrem-se mais rapidamente a esse efeito pluralizador e
outros possuem um caminhar mais lento e desigual. No existe
homogeneidade nas interaes interculturais; cada grupo social possui um
caminho muito particular e os dilogos acontecem por presses polticas,
econmicas, culturais, lingusticas. Afinal de contas so distintos os momentos
histricos vivenciados pelos grupos, portanto tm de fato que ser diferentes. Ao
comparar uma sociedade tradicional com algum grupo urbano percebe-se que
os novos valores e as dinmicas que acabam de surgir so inseridos ou
absorvidos pelos mesmos de formas distintas.
Portanto, buscou-se fazer uma anlise dos processos de identificao
territorial na sociedade indgena Pankarar atravs das relaes sociais de
produo e reproduo do espao e compreender os processos de
identificao alm das atuais dinmicas presentes no territrio. A
territorializao neste espao tornou-se mltipla e complexa, afetando
diretamente as construes identitrias cada vez mais flexveis e mutveis.
Isso tem gerado segundo Haesbaert (1999), multiplicidade e/ou ao hibridismo
cultural, repercutindo na intensificao do fenmeno de multiterritorialidade no
territrio estudado. Com isso, procurou-se ressaltar as singularidades e
particularidades das sociedades tradicionais, dentre elas, o povo indgena
Pankarar, em virtude da possibilidade delas contriburem na construo de
uma sociedade mais democrtica.
Nesse sentido, os estudos acerca destas dinmicas sobre o territrio na
perspectiva geogrfica podem ser vistos como instrumento de poder e
resistncia, sobretudo no que se refere possibilidade de contribuir na defesa
do territrio bem como reivindicar o direito de uma participao mais efetiva na
gesto dos recursos. Alm disso, pode tornar-se um subsdio ao pensar
polticas que contemplem de fato as especificidades e necessidades das
comunidades, assim como, pode contribuir no processo de empoderamento e
busca de autonomia especificamente na sociedade indgena Pankarar.
2.2 DO TERRITRIO MULTITERRITORIALIDADE COMO SER
TRADICIONAL NO MUNDO PS-MODERNO?
Atualmente, a estratgia poltica hegemnica neoliberal traz o discurso
do desenvolvimento sustentvel como essencialmente necessrio soluo
dos problemas ambientais. Porm, as disputas de poder imersas nas relaes
sociais, relacionadas a esta temtica, comumente utiliza este conceito
baseando-se em interesses estritamente econmicos.
A problemtica imersa nesse discurso traz como concepo
predominante o preservacionismo ao invs da conservao dos recursos. Uma
das principais caractersticas do preservacionismo restringir o acesso das
pessoas aos recursos naturais, enquanto o conservacionismo possui uma
concepo de uso sustentvel dos mesmos. No entanto, os interesses
relacionados s atividades econonmicas que sobrexploram os recursos
naturais, estrategicamente utilizam ambos os conceitos como sinnimos com
intuito de camuflar os reais interesses de explorao econmica que, por trs
do discurso ambiental, vm persuadindo a sociedade ao longo dos ltimos 20
anos. O termo desenvolvimento sustentvel comeou a ser utilizado no
relatrio Brunltand que deu bases para a conferncia da Terra sediada no Rio
em 1992. A prpria origem diplomtica implica em uma definio faltando a
preciso e rigor, pois visou criar um consenso. Posteriormente foi apropriado
por diversos setores da indstria e da mdia, tornando-se o slogan da conduta
ambientalmente mais adequada. Tais setores, afirmam preocupar-se com o
meio ambiente e afirmam agir de acordo com as normas ambientais mas, na
prtica, observa-se principalmente medidas adotadas pelo mercado em razo
dos lucros auferidos, sem reverter a tendncia geral e histrica. De fato, tm-se
um aumento gradual de aes que contribuem com o crescente processo de
degradao socioambiental.
O discurso da proteo ambiental integral, alm de restritivo,
extremamente questionvel. Desde as sociedades pr-histricas h registros
de usos dos recursos naturais. Os grupos humanos sempre necessitaram
intervir de alguma maneira na natureza, visto que eles prprios fazem parte da
natureza constituindo uma totalidade mltipla e complexa. Nesse sentido, a
proteo integral que tem como principal objetivo manter o ambiente intocado
um modelo criado que na prtica no pode ser multiplicado indevidamente,
tendo em vista a necessidade de o homem utilizar os recursos naturais para
sua sobrevivncia. No entanto, vlido ressaltar as propores destes usos,
visto que as sociedades urbano-industriais contemporneas tm sobrexplorado
de maneira exacerbada os recursos e por isso, tm tornado-se cada vez mais
urgente rever os padres de produo e consumo do atual sistema econmico
desenvolvimentista. Portanto, faz-se necessrio uma reflexo crtica sobre
quais intencionalidades encontram-se por trs do discurso ambiental. Na
concepo preservacionista um fator de grande relevncia a ser analisado
refere-se retirada das populaes que vivem em contato com os recursos
naturais de suas reas h sculos.
Os preservacionistas argumentam que a proteo dos recursos
essencial e para isso, necessrio retirar as populaes locais destes espaos
sobre o pretexto de que as mesmas vm, ao longo dos anos, esgotando os
recursos disponveis. No entanto, contraditoriamente, diversos estudos trazem
referncias de que estas populaes vm contribuindo com o aumento da
biodiversidade nos espaos ao longo do tempo (ADAMS, 1994). O que
diferencia nitidamente as populaes tradicionais da sociedade urbano-
industrial a lgica de convvio em grupo, a estreita relao com a natureza, os
valores ticos alm das relaes de compadrio e auxlio mtuo.
Nesse sentido, os estudos acerca dos modos de vida destas populaes
mostram-se relevantes para defender minimamente o respeito diversidade
sociocultural e ambiental. Vale ressaltar a no homogeneidade da relao entre
estes grupos com os recursos naturais, visto que estas populaes possuem
costumes distintos da sociedade urbano-industrial e podem em algum
momento do seu processo histrico sobrexplorar algum recurso em virtude da
escassez de outros recursos, privaes de outra ordem (como interferncias
climticas causando escassez de recursos especficos) ou presso do
mercado.
Nas ltimas dcadas, vem ocorrendo um crescente reconhecimento,
sobretudo de pesquisadores e mais timidamente da sociedade civil, da
relevncia dos saberes e dos modos de vida destas populaes e seu papel na
conservao dos recursos naturais. No entanto, no mbito do mercado, estes
conhecimentos aceitos passaram a serem vistos como mais uma
possibilidade de lucro pela indstria. A partir do momento em que esta
reconheceu a importncia destes conhecimentos, observou-se maior fomento
pesquisa em algumas reas, pois o objetivo da mesma apoderar-se destes
conhecimentos para gerar lucro. o caso, por exemplo, da indstria
farmacutica.
Nesse sentido, as sociedades tradicionais vivem sob presso do modo
capitalista de produo, em virtude dos seus conhecimentos ambientais.
Historicamente, tais populaes encontram-se invisibilizadas, subalternizadas
(algumas ainda encontram-se nessa situao) e marginalizadas pela sociedade
urbano-industrial. No entanto, nas duas ltimas dcadas as sociedades
tradicionais tm vivenciado algumas mudanas aonde o processo de auto-
empoderamento e valorizao dos aspectos culturais vm tornando-se mais
visveis. Alm disso, a sociedade urbana passou a considerar como fator de
grande relevncia cultural e ambiental a contribuio destas populaes
tradicionais na conservao dos recursos naturais, devido ao manejo mltiplo
dos ecossistemas comumente realizado em suas prticas cotidianas.
Estes grupos, ao mesmo tempo em que se encontram pressionados pelo
poder hegemnico, que fomenta a cada dia sua insero no mercado e insere
valores culturais relacionados cultura urbano-industrial, tm vivenciado
concomitantemente uma relativa ressurgncia identitria na medida em que
conquistam maior autonomia e comeam a sair da condio de
marginalizadas. Assim, tornam-se mais visveis, adquirem poder e passam a
lutar por direitos histricos como posse da terra, direito sade, educao
diferenciada, diversidade cultural, dentre outros.
As sociedades tradicionais, ao reivindicarem seus territrios, esto
reivindicando tambm o direito de produzir espao de modo diferente da
sociedade hegemnica.
Diversos estudos tm utilizado novas tecnologias no processo produtivo
com objetivo de amenizar os processos degradativos provocados por uma
explorao intensa da natureza. Mas, mesmo com tais esforos, sabe-se que o
n (entrave) da questo ambiental est nos interesses poltico-econmicos e
no se referem essencialmente a causas naturais como a mdia afirma e tenta
convencer a sociedade.
Nesse sentido, compartilha-se a ideia da crise ambiental como reflexo da
crise poltica. Para encontrar solues realmente sustentveis necessrio
substituir o atual modelo hegemnico por um novo projeto poltico, uma vez
que o sistema capitalista apresenta inmeras vulnerabilidades e mostra-se
insustentvel, no s do ponto de vista ambiental, mas sobretudo social.
Acredita-se que alm da crise ambiental, vive-se uma crise social onde grande
parte dos valores civilizatrios dos diversos grupos sociais, esto sendo
monopolizados, suprimidos e subjugados em detrimento de uma forma nica
de pensar.
Portanto, os estudos e anlises dos espaos sob a perspectiva territorial-
identitria, adquirem maior relevncia, sobretudo por mostrarem-se coerentes
visto que possuem uma relao (na maior parte das vezes) mais sustentvel
com os recursos naturais do que a sociedade urbano-industrial. Dentre a
extensa diversidade dos modos de vida destas populaes, vale ressaltar
alguns aspectos como as representaes simblico-materiais imersos na sua
organizao social, alm das distintas formas de interpretar e agir sobre os
espaos. Estes grupos comumente chamados de populaes tradicionais
(DIEGUES, 2008) ao agir sobre os espaos transformando-os, estabelecem e
criam representaes e intervm concretamente sobre os mesmos. Portanto,
estudar o sistema de representaes, sobretudo os aspectos relacionados s
identidades territoriais faz-se necessrio, por causa da importncia dos
levantamentos acerca do tipo de organizao socioeconmica, os juzos de
valores e as crenas que os grupos construram e vm construindo ao longo do
tempo.
Nesse sentido, ao longo deste estudo surgiram alguns
questionamentos: 1 Como as populaes tradicionais pode conviver com a
sociedade urbano-industrial sem gerar impactos negativos nos seus aspectos
socioculturais? 2 Qual o olhar mais comum da sociedade urbano-industrial
sobre os povos tradicionais? Para esta sociedade os povos tradicionais so
todos iguais? 3 Como estes povos podem permanecer tradicionais no mundo
ps-moderno? 4 Qual a relao das populaes tradicionais com seus
territrios? No territrio fsico e bem demarcado com fronteiras ntidas seria
possvel existir mais de um significado? Haveria possibilidade de ocorrer
distintas territorialidades dentro de um mesmo territrio? Como seria um
territrio com mltiplas territorialidades?
Visto que o atual sistema econmico baseia-se na produo de produtos
(agrcolas, industrializados) gerando a homogeneizao dos espaos e
culturas, tem-se como resultado o empobrecimento dos ambientes. Devido ao
carter monocultor de explorao do sistema mercadolgico, tem ocorrido um
processo que desencadeou a diminuio da diversidade biolgica das espcies
nos ecossistemas, resultando em espaos pobres e desgastados. Isso gera a
queda na produtividade em algumas reas depois de sobrexplorar recursos
como solo, gua, flora dentre outros, o que leva tais atores a expandir-se para
novas reas. Por conta disso, os territrios das populaes tradicionais tm
sido pressionados ao longo das ltimas dcadas. Nesse sentido cabe a
reflexo: como manter-se com a identidade fechada (viver como uma ilha) se o
entorno tenta persuadir a populao, seduzindo-a por meio de diversas formas
que mudou seu modo de vida e seus valores? Como manter-se puramente
tradicional no mundo globalizado e para uns ps-moderno? Por que a
sociedade urbano-industrial apresenta um discurso de que as populaes
tradicionais s podem ser consideradas como tal se viverem do modo mais
primitivo possvel? Na maior parte das vezes a sociedade urbano-industrial
utiliza esse discurso com intuito de menosprezar e diminuir a legitimidade das
populaes tradicionais. As seduzem para viver de acordo com os costumes
citadinos e depois que conseguem persuadi-las utilizam o discurso de que as
populaes j no so mais puras e por isso no possuem mais direito
terra, direito a educao diferenciada, direito diversidade cultural.
Nesse sentido, estudos acerca destas populaes sob uma perspectiva
identitria podem ser instrumentos que as auxiliem no seu processo de
empoderamento e reconhecimento. Tais conhecimentos so de extrema
relevncia e necessitam ser registrados, catalogados e documentados para sua
proteo, tendo em vista que a maior parte destas populaes utiliza a
oralidade como forma de transmisso do conhecimento, diferente da sociedade
citadina que utiliza a escrita como registro oficial.
Cabe inserir na discusso dois possveis olhares dos estudos cientficos.
Ao mesmo tempo em que estes possuem o potencial de auxiliar tais grupos,
podem concomitante e contraditoriamente tornar tais populaes mais
vulnerveis devidos, sobretudo exposio dos seus saberes. Em outros
termos, quando algum estudo sobre determinado recurso natural publicado
os interesses sobre o mesmo aumentam e este pode vir a sofrer algum tipo de
presso e/ou sobrexplorao.
Nesse sentido, relevante verificar a maneira como estas populaes
administram as presses sobre os recursos em seus territrios de forma a
preservar uma cultura e prxis tradicionais num mundo ps-moderno.
Dentre as diversas formas de administrar tal dinmica sobre os seus
territrios estas populaes geralmente proporcionam o estabelecimento de
dilogo com os novos costumes; assim sendo algumas prticas so agregadas
e modificadas e outras permanecem as mesmas. Neste processo no ocorre
perda da cultura como alguns estudos apontam; ao invs disso, novos valores
passam a ser agregados a antigas prticas.
Para que essa incorporao de novos costumes no sobreponha e anule
gradualmente antigos costumes, necessrio que a populao possua uma
identidade forte. Nesse processo novas lideranas surgem nos grupos, tendo
em vista que os lderes mais antigos de modo geral no possuem vontade e/ou
disponibilidade em participar de reunies fora de suas comunidades. Portanto,
verifica-se um movimento de sada dos mais jovens dos seus territrios para
estudar com intuito de adquirir mais conhecimento tcnico-cientfico e,
posteriormente, fazer o caminho de retorno comunidade. Vale ressaltar que
em alguns casos tais jovens no retornam sua comunidade, permanecendo
nas cidades. No entanto, tem-se visto que os mais politizados e engajados
retornam a seus territrios e tornam-se parte do grupo ativo que estabelece
uma relao dialgica acerca dos distintos interesses dos atores externos.
Em muitos grupos observam-se significativas mudanas na medida em
que so implantados projetos relacionados ao desenvolvimento sustentvel,
estabelecendo relaes com base no dilogo entre as populaes tradicionais
e a sociedade no tradicional. Para os indgenas, redundante na maior parte
das vezes falar em projetos sustentveis, educao ambiental,
desenvolvimento sustentvel, na medida em que para eles tais prticas j
fazem parte do seu cotidiano. No entanto, ocorrem algumas vezes trocas
significativas de conhecimentos, algum auxlio da cincia moderna que serve a
melhorar a disponibilidade de um recurso que est em reduo nas reas
tradicionais. Inversamente, os conhecimentos tradicionais agregam aos
estudos cientficos formas de aprimorar seus resultados.
Contudo, nesse processo de trocas e dilogos, ocorre em algumas
populaes desagregao e ruptura de alguns valores por causa de disputas
de poder e brigas por recursos disponibilizados por ONGs e rgos do governo
federal, deixando as comunidades vulnerveis. Como a disputa de poder algo
inerente a todas as sociedades, cabe a elas procurar formas de gerenci-los,
com o fim de no permitir a ruptura dos laos identitrios e de respeito mtuo
no grupo. Tal exemplo pode ser verificado no captulo 3, com a discusso da
realidade vivenciada pelos ndios Pankarar.
Por conta destes conflitos tem-se observado um relativo aumento no
processo de individualismo em algumas comunidades tradicionais. Como
exemplo, cita-se trabalhos antes realizados de forma coletiva, que passam a
ser realizados individualmente ou em ncleos familiares menores. Isso tambm
verificado nos direitos de propriedade, pois, o acesso terra e alguns
recursos antes gerido sob regime de propriedade comunal, passa a adquirir um
carter mais individualizado. Isso vem refletindo na mudana de paradigmas
nestas populaes.
Outro fator de relevncia refere-se ao processo de transmisso do
conhecimento. Foi inserido em muitas populaes o sistema educacional
urbano. O mesmo, geralmente, no possui olhar atento diversidade e insere
na comunidade valores, formas de pensar e de agir tpicos da sociedade
hegemnica, desqualificando as formas tradicionais de viver. Pode-se observar
como um dos reflexos desse sistema educacional a mudana comportamental
dos jovens nas comunidades atravs das mudanas de valores como a
supervalorizao do consumo de modo geral. (referenciais de beleza urbano,
consumo de lcool e outras drogas, alm do gosto musical de massa,
consumo de carros, motos, eletrodomsticos, celulares, entre outros.) O
processo de auto-identificao entre os jovens pode passar por uma crise
provocando um choque de valores entre comunidades que apresentam
caractersticas distintas das suas sobrepondo valores urbanos sobre os
tradicionais. Mas de modo geral para que estas ocorram, so avaliadas pela
comunidade antes de serem agregadas. Tais mudanas no ocorrem
passivamente sem nenhum tipo de discusso sobre sua pertinncia aos
hbitos e modos de vida da comunidade como muitos afirmam, como pode se
observar na discusso do captulo 3.
Nesse sentido, como sugere Haesbaert e Bandeira (2007) na definio
de identidade territorial, no se espera que tais populaes estejam estticas e
imveis em ilhas territoriais, conservadas de todo efeito perverso do modo
capitalista de produo. Sabe-se que todos esto imersos e sofrem os efeitos
do atual modelo econmico, no entanto cabe conviver com estes atores
hegemnicos. Para isso o processo de autonomia, reconhecimento e
empoderamento destas populaes fazem-se necessrio. Mas isso no deve
ser realizado por meio de projetos assistencialistas das ONGs e demais
organizaes, impostos de cima para baixo e sem qualquer afinidade com as
aptides destas populaes. Deve-se levar em considerao, sobretudo suas
escolhas, o que elas produzem e tal demanda deve partir das prprias
sociedades em questo. No entanto, sabe-se que os jogos de interesses e as
disputas de poder diminuem as reais possibilidades destes grupos tornarem-se
independentes e auto-gerenciarem-se. Importa os grupos serem coesos nas
relaes de fora com agentes externos.
Portanto, o questionamento sobre como ser tradicional num mundo ps-
moderno, est imerso na discusso identitria entre o fechamento ou abertura
das populaes a valores e costumes externos aos seus. Nesse sentido,
encontra-se estreita relao com o territrio e suas mltiplas territorialidades. A
multiterritorialidade, citada no ttulo deste captulo refere-se nesse sentido em
partir de uma perspectiva de territrio como algo nico e essencializado para
estabelecer dilogos e tornar-se um territrio mltiplo agregador de outras
distintas territorialidades. Segundo Haesbaert e Bandeira (2007) isso possibilita
a formao do fenmeno de multiterritorializao, aumento da diversidade e
intercmbio entre as populaes, ao contrrio do que alguns estudos apontam
como ocorrncia de desterritorializao. No cabe nos dias atuais analisar as
comunidades com base no essencialismo e fechamento das mesmas tendo em
vista que o mundo globalizado encontra-se em constante mudana e
interconexo. Isso pode de certa forma auxiliar estas populaes a sobreviver
presso externa, gerando formas alternativas de no submeter-se aos
processos homogeneizantes do capital.
Nesse sentido, o grupo indgena Pankarar tem realizado algumas
destas alternativas, fomentando a realizao de projetos com base nas
atividades com as quais a comunidade possui afinidade e j trabalha no seu
cotidiano.
Em virtude destes fatos vale a pena ressaltar a discusso da perspectiva
do processo de identificao destes povos. Como eles podem contribuir e
trocar conhecimentos com a sociedade urbano-industrial sem perder sua
identidade? Estes mundos pode