Liberdade vs. oportunismoApós a vaga de violência no mundo árabe, provocada por um filmeislamofóbico, as caricaturas de Maomé publicadas em Françapelo Charlie Hebdo acendem uma polémica virulenta sobre os limitesda liberdade de expressão
Os limitesda liberdade
Durante a vaga de violência no mundo provocada por um filmeislamofóbico, as caricaturas de Maomé publicadas em França
pelo Charlie Hebdo acendem uma polémica virulenta sobrea «liberdade de expressão vs. oportunismo».
POR ANA NAVARRO PEDRO, EM PARIS
Duascapas pelo preço de uma:
o jornal satírico francês CharlieHebdo resolveu responder des-ta forma, na sua última edição,quarta-feira, 26, às polémicasque atiçara, oito dias antes, com
uma edição incendiária sobre o profeta Maomé,publicadano auge violènciaprovocada, no mun-do islâmico, pelo provocatório filme A inocênciados muçulmanos. Agora, a revista humorísticafaz duas capas acerca da polémica que ela pró-pria suscitou: uma é a de um «jornal irresponsá-vel», onde se vê, sob o título Invenção do humor,um homem das cavernas com um archote acesoe um recipiente de óleo (a ilustrar a expressãoidiomática francesa «deitar óleo no fogo», quesignifica «provocar»). A outra é a de um jornalcensurado: em branco, sem texto nem desenho,atravessada por duas palavras apenas: «Jornal
responsável».Esta última é dedicada a quem, como o jor-
nalista Claude Askolovitch, chamou ao CharlieHebdo j ornai «putanheiro»; a primeira, aos quedefenderam a publicação com unhas e den-tes, como o cientista e ensaísta Axel Kahn, quetwittou: «Sim, com toda a força, à liberdade de
imprensa.»
Uma semana antes, o jornal satírico achara di-vertido publicar desenhos exibindo a nudez atéao ânus do profeta Maomé. A primeira edição,de 75 mil exemplares, foi vendida num ápice e ojornal saiu com uma segunda edição de 125 milexemplares, na sexta-feira. A operação não foinada má para uma publicação em maus lençóisfinanceiros. O que leva certos comentadores a
suspeitarem de uma manobra oportunista porparte de Stéphane Charbonnier (que assinaas suas caricaturas com o diminutivo Charb).«Charlie Hebdo caricatura Maomé: não se tratade coragem, é puro oportunismo», decreta opolitólogo Pascal Boniface, especialista em Mé-dio Oriente. Inesperadamente, porém, o inte-lectual muçulmano Tariq Ramadan, professorna Universidade de Oxford, defende o jornal:«As caricaturas são uma expressão da liberdadede imprensa, embora seja lamentável a atitudede pessoas um tanto oportunistas que ganhamassim, facilmente, alguma publicidade.»
MANIFESTAÇÕES PROIBIDASA polémica nasceu instantaneamente e foi tãovirulenta quanto a manifestação, no sábadopassado, em Paris, de um punhado de indiví-duos de confissão muçulmana contra o filme >
? A inocência dos muçulmanos. Havia 200
manifestantes, e a polícia prendeu 152.
Mas ver o radicalismo islâmico a atuar
no coração do bairro mais vigiado da
capital francesa, a escassas centenas de
metros do palácio presidencial do Eliseu
e da embaixada dos EUA, numa mani-
festação que não fora sequer anunciada,
irritou - e assustou - a opinião pública.
Depois das caricaturas do Charlie He-
bdo, o Governo receou ataques contra
os interesses franceses no mundo mu-
çulmano. O Quai d'Orsay ordenou o fe-
cho das representações diplomáticas,escolas e centros culturais franceses em
20 países muçulmanos, durante a sexta-
-feira seguinte, dia de culto no Islão. Em
Paris, o primeiro-ministro, Jean-Marc
Ayrault, defendeu a liberdade de expres-são e proibiu qualquer outra manifes-
tação muçulmana, no sábado, em todo
o território francês. No Cairo, o chefe
da diplomacia gaulesa, Laurent Fabius,
contorcionava-se numa ginástica en-
diabrada, condenando «todas as pro-vocações» mas sublinhando, ao mesmo
tempo, «a importância da liberdade de
expressão». Colocado sob proteção po-licial depois de ter recebido várias ame-
aças de morte, Charb recebeu, no seu
escritório, televisões do Japão, Qatare Reino Unido, repetindo incansavel-
mente: «Publicamos caricaturas todas
as semanas, mas os desenhos só são con-
siderados como declarações de guerraquando se trata da pessoa do profeta ou
do Islão radical.» Charbonnier diz-se
escandalizado com todos quantos, no
mundo, manifestam consideração pelos
radicais islamitas: «Não pretendo queum radical islamita leia o Charlie Hebdo,
tal como eu não iria nunca a uma mes-
quita ouvir discursos que vão contra
tudo aquilo em que acredito.»
OS 'IDIOTAS ÚTEIS'
A polémica atravessou das fronteiras
francesas. Analistas alemães trataram
os editores do Charlie Hebdo como «idio-
tas úteis à causa do terrorismo». Com
efeito, segundo o filósofo alemão Peter
Sloterdijk, «os ataques vendem-se sem-
pre bem, e quanto mais violentos forem,maior será a recompensa mediática».Mesmo um pequeno ataque terá sempreimpacto num mundo interconectado,escreve Sloterdijk , concluindo que o
«terrorismo é, também, a arte de fazercom que se fale dele». E é nesse sentido
que quem lhe serve de caixa de ressonân-
cia, atua como um «idiota útil».Em Londres, a televisão Channel Four
anula a difusão de um documentário so-
bre o mundo muçulmano, com medo de
represálias. Mas, em França, ninguém se
interessa por estes exemplos. O que se
passa dentro do país é suficientemente
apaixonante. O debate prossegue, com
declarações tanto mais taxativas quantosão feitas na perspetiva de um sábado a
fogo e a sangue, com apelos nas redes so-
ciais a que sejam mantidas as manifesta-
ções islamitas, apesar da proibição.O Charlie Hebdo está no centro da ce-
leuma, mas depois das primeiras decla-
rações de Charb, a redação mantém um
perfil moderado e não intervém no de-
bate. O jornal habituou-se a este tipo de
situações. Há oito anos, cm plena crise
dos cartoons sobre Maomc publicadosna Dinamarca e que originaram outra
vaga de violência no mundo, o Charlie
Hebdo foi dos primeiros jornais interna-
cionais a reproduzi-los. A controvérsia,
na altura, incidia sobre a oportunidadeda publicação, ou não, dos desenhos queassimilavam o Islão ao terrorismo. No
ano passado, a redação foi incendiada
com cocktails molotov.
«Desta feita, o contexto é diferente»,observa o professor de Ciência Políti-
ca Frédéric Encel: «Trata-se da explo-
ração política, por parte dos salafistas
extremistas, de uma idiotice de outros
radicais religiosos. O filme A inocência
dos muçulmanos é aproveitado por ne-bulosas extremistas para lançarem uma
propaganda antiamericana e entalarem,assim, Barak Obama entre a espada e a
parede e provocarem a eleição de MittRomney que, mais radical, lhes parecemuito mais interessante para a propaga-ção do salafismo radical [um movimentosunita nascido na Arábia Saudita, quepreconiza o regresso às origens do Islão
e que tem também uma franja radical,
apontada a dedo nesta crise].»
«BLASFÉMIA» Depois do filme norte-americano foi a vez de umarevista satírica francesa deitar «óleo no fogo»
Outros casospolémicos
1988 VERSÍCULOS SATÂNICOS
0 quarto romance de SalmanRushdie é parcialmente inspiradona vida de Maomé e causou grandecontrovérsia na comunidade islâ-
mica, por ser «blasfemo». 0 autorseria alvo de uma fatwa do ayatollahKhomeini, do Irão, que o condenavaà morte e teve de passar a viver sob
escolta policial permanente.
2004 SUBMISSÃO
O guião foi escrito por Ayaan Hirsí
Ali, que professou a fé islâmica e de-
pois se transformou numa das suasmaiores críticas. O filme, realizado
porTheo Van Gogh, conta históriasde mulheres muçulmanas vítimas devários abusos por causa da religião.Van Gogh morreu assassinado, na
sequência da exibição desta obra.
2005 CARTOONS DINAMARQUESESO jornal Jy/íands-Posíen publicou 12
cartoons, a maior parte dos quaisretratando o profeta, o que provocouprotestos de muçulmanos em todo
o mundo, provavelmente ainda maisviolentos do que os atuais (mais de
100 pessoas terão morrido). A em-baixada dinamarquesa no Paquistãosofreu um ataque à bomba.
2008FITNAUm filme de Geert Wilders, líder do
Partido da Liberdade, da extrema-direita holandesa, desencadeou uma
polémica por argumentar que o Islão
encoraja o terrorismo e o antissemi-tismo. Esteve online, em davidleaks,mas acabou por ser retirado, depoisde os membros do site receberem
ameaças de morte.
OS TERRORISTAS 1
CALÇAM NIKE
Nas redes sociais, Charlie Hebdo é con-siderado como um jornal que alimentauma corrente de islamofobia crescen-
te em França. Dirigentes muçulmanos
não estão longe de partilhar esta opi-nião. Chems Eddin-Hafez, presidentedo Conselho Nacional do Culto Muçul-mano, ressalva que «os franceses nãoconhecem bem os muçulmanos» - querepresentam a segunda maior religiãodo país, com 5 milhões de praticantes.Eddin-Hafez acrescenta: «Os muçulma-nos deste país estão hoje entalados entreos radicalistas religiosos e os islamofó-
bicos que passam a vida a atiçar as cha-
mas do ódio.»A jornalista e ensaísta Caroline Fou-
rest, chefe de redação da revista Pro Choix
e convidada para todos os debates medi-áticos contesta a etiqueta dada ao jornalsatírico: «Esta edição do Charlie Hebdo
não trás nada de provocatório na capa:vê-se um judeu ortodoxo a empurrar um ?
? islamita, numa cadeira de rodas! Os de-senhos sobre Maomé estão nas páginasinteriores. E, francamente, não considero
que haja histeria muçulmana em Françapor causa disto - os únicos histéricos,nesta história, são os meus colegas jor-nalistas que vêem uma ameaça salafista
terrorista em meia dúzia de gatos pin-gados com Nikes último grito nos pés, a
manifestarem-se perto da embaixada dos
EUA.» Não dá para adivinhar por estas
palavras, mas Carolíne Fourest é uma das
mais acérrimas críticas da religião muçul-mana, por esta não consagrar a separaçãoentre ávida privada e a esfera pública.
á Os únicos histéricos,nesta história,são os meus colegasjornalistas'Caroline Fourest, feminista francesa
'DERAMONAPARAAPILDRA 1
Mais comedido, o politólogo Gilles Ke-
ppel, um dos maiores especialistas con-
temporâneos em mundo muçulmano,também deita água na fervura. Acabado
de regressar de um périplo por paísesárabes, conta: «Em Paris, como em Tu-nes ou no Cairo, não se vê grande mobi-
lização das massas árabes para esta vagade violência. Os jovens que fazem estas
manifestações tomam o filme incrimi-nado como pretexto para exprimirem
uma cólera que refiete, antes de mais, afalta de perspetivas de futuro. É precisover que as primaveras árabes em nadalhes mudaram o quotidiano. E acrescen-to que, ainda por cima, em várias zonasda Tunísia, não é o partido islamita no
poder, Ennahda, que as controla, mas an-tes os salafistas extremistas. Em França,não há apelos concertados dos salafistas.
O que vimos aqui, no sábado, foi, antes,uma contaminação dos apelos, nas redes
sociais tunisinas.» Apolícia francesa nãodiscorda: «Estamos a seguir a pista sa-lafista para saber quem se encontra pordetrás dos apelos à participação na ma-nif. Mas não é nenhuma das pessoas queprendemos», diz um porta-voz ao jornalFígaro, concluindo: «Os líderes não são
parvos: sabiam que quem fosse à manifiria de ramona para a pildra. Eles não fo-ram à manif !».H
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