XXXIX CONGRESSO NACIONAL DOS PROCURADORES DE ESTADO
LEGALIDADE TRIBUTÁRIA E JUSTIÇA FISCAL
Uma análise crítica da tipicidade e dos regulamentos em matéria tributária
Monografia apresentada por Thiago Avancini Alves, Procurador do Estado de Minas Gerais (MASP 1326908-9), para o 39º Congresso Nacional dos Procuradores de Estado. E-mail: [email protected]
PORTO DE GALINHAS - PE 2013
1. Introdução A Ciência do Direito esteve durante longo período nos séculos XIX e XX sob influência
do positivismo jurídico, em seus diversos matizes. A leitura de todas as instituições do
ordenamento jurídico foi se desenvolvendo nesse período com a idéia de que se poderia
projetar para o Direito a metodologia empregada nas ciências exatas, criando em gerações de
juristas a obsessão pelo método científico. E, com efeito, esse médoto exigia que se
expurgasse do estudo do Direito qualquer leitura de ordem valorativa, tudo em busca da
objetividade cientificamente exigida. Conseqüência disso foi a criação de um “abismo” que
separava direito e moral: ao jurista importava o aspecto formal de criação da lei, não o seu
conteúdo. Saber se um determinado instituto era justo ou injusto não era tarefa do estudioso
do Direito, mas do filósofo, do sociólogo, do antropólogo, enfim, de outros ramos do
conhecimento humano1.
Como consequência, o Direito Tributário brasileiro esteve sob forte influência positivista
durante décadas. Não é de espantar, portanto, que a principal – quando não única –
preocupação dos estudiosos da área envolvia apenas aspectos formais da tributação, com lugar
de destaque para a legalidade tributária. Como observou – com fina ironia – Marco Aurélio
Greco, os tributaristas permaneceram tão obcecados no estudo da legalidade que deixaram de
discutir as funções e objetivos que ela poderia conduzir, fazendo surgir minuciosas obras
sobre este instrumento, “tal como se fosse um ‘Tratado sobre o Bisturi’ sem nenhuma palavra
sobre a doença cujo tratamento a cirurgia se tornou necessária”2. A justiça fiscal, nesse
contexto, era problema estranho ao jurista.
Nada obstante, a superação do modelo positivista surge com o advento do denominado
“pós-positivismo”, reflexo do que se convencionou chamar “virada kantina”, passando então
o discurso jurídico a se ocupar centralmente das relações entre os valores e os princípios
jurídicos, resultado da reaproximação entre Ética e Direito, restabelecendo-se o tema da
justiça como preocupação fundamental para os juristas. Com isso, as relações entre os valores
e princípios constitucionais não permaneceram inalteradas, sendo correto afirmar que as
construções teóricas do Direito Tributário formuladas ao tempo do positivismo devem ser
revisitadas e reformuladas, a partir desse novo paradigma.
1 Em geral, nossos estudiosos nem sequer acomanharam as formas mais sofisticadas de desenvolvimento do positivismo jurídico, tal como as elaboradas por Herbert Hart ou Nobert Hoerster, permanecendo apegados ao positivismo normativista kelseniano. 2 GRECO, Marco Aurélio. Três papéis da legalidade tributária. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi; ROCHA, Sérgio André. Legalidade e Tipicidade no Direito Tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 107.
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Dentro do corte proposto no objeto do presente trabalho, será preciso questionar as
consequências que essa nova maneira de encarar a Ciência do Direito trará para as
tradicionais concepções sobre a legalidade, tipicidade e segurança jurídica em matéria
tributária. A partir disso, delinear-se-á o papel que os regulamentos poderão assumir em
matéria tributária, avaliando-se de que maneira a ampliação das faculdades regulamentares da
administração no âmbito da tipificação administrativa poderão contribuir para garantir maior
realização ao ideal da justiça. Tendo por finalidade primordial proceder a uma releitura da
legalidade e da tipicidade tributária, bem como identificar mecanismos que venham a garantir
maior efetivação ao princípio da capacidade contributiva, buscar-se-á apontar direções na
complicadíssima equação que envolve justiça e segurança.
2. Reserva de lei e tipicidade A reserva de lei é um instituto de caráter constitucional que fixa as relações entre o Poder
Executivo e o Poder Legislativo, no que diz respeito à produção normativa: por força da
reserva de lei, determinadas matérias estarão excluídas de qualquer outra fonte normativa que
não provenha do Poder Legislativo. De acordo com a fonte de produção, a reserva de lei é
dividida em reserva de lei material e reserva de lei formal: no primeiro caso, basta a existência
de uma norma geral e abstrata disciplinando a conduta da Administração, norma esta que
poderá ser uma lei ordinária ou mesmo um regulamento; no segundo caso, o fundamento do
comportamento do órgão executivo deverá estar plasmado em um ato normativo com força de
lei3. No Brasil, por expressa previsão do art. 150, I, da Constituição de 1988, vige a reserva de
lei formal para a disciplina tributária; como consectários, Alberto Xavier destaca duas
vedações aplicáveis à disciplina tributária: a proibição das fontes consuetudinárias e dos
regulamentos,4 restando indispensável a intervenção do Poder Legislativo para a instituição
de tributos.
Quanto à extensão da reserva de lei (aspecto horizontal), aplica-se a todos os tributos; já
quanto à intensidade (aspecto vertical), está reservado à lei a definição de todos os elementos
3 XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1978. 4 A proibição do costume e do regulamento – aspectos mais salientes da reserva de lei formal – vale assim como o reconhecimento de que, em matéria de impostos, a justiça só pode ser realizada através da lei formal e que, portanto, só o órgão legislativo é competente para designar, de entre os vários fatos da vida reveladores de capacidade contributiva, aqueles que concretamente irão dar origem a deveres tributários, bem como definir o seu regime substancial. E isto por se entender que só um órgão desse tipo, em virtude da sua composição e da disciplina da sua atividade, pode garantir a esfera de propriedade dos particulares das decisões arbitrárias do poder. (XAVIER, Alberto, Op. Cit.. p. 20).
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essenciais ao surgimento da obrigação tributária5. Portanto, quando se fala em um aspecto
vertical da reserva de lei em matéria tributária, busca-se definir o conteúdo que deverá possuir
a lei que vier a instituir um tributo. Isto é, enquanto limitação formal ao poder de tributar,
reserva-se à lei a disciplina sobre quem poderá exercer a competência tributária e como deverá
fazê-lo.
Do ponto de vista conteudístico, no entanto, a legalidade tributária ganha expressão
através do princípio da tipicidade, que disciplina os elementos da hipótese de incidência que
deverão ser regulamentados por lei e a intensidade dessa regulamentação. Conforme adverte
José Marcos Domingues, “à legalidade tributária segue-se o princípio da tipicidade, exigindo
que a lei seja rigorosa na descrição de todos os elementos essenciais do tributo por ele
instituído”.6 Da mesma forma, Misabel Derzi afirma que: “o princípio da especificação
conceitual – que costuma ser denominado, impropriamente, de tipologia ou tipicidade – diz
respeito ao princípio da legalidade, materialmente considerada, como conteúdo imposto ao
legislador e indelegável”.7
A tipicidade, portanto, é tida como um consectário natural da reserva de lei no direito
tributário, cujo alcance guarda relação não com a forma imposta ao legislador para criação
dos tributos (objeto da reserva de lei), mas sim com o conteúdo específico que o legislador
estará obrigado a conferir à lei tributária8.
Como dito, há na doutrina brasileira mais tradicional do Direito Tributário – com a
expressão “tradicional” pretende-se fazer referência à doutrina formada há mais tempo e que
conquistou, ao longo de décadas, grande número de adeptos – um pensamento fortemente
arraigado de que, no que diz respeito à imposição tributária, a lei deveria prever,
exaustivamente, todos os aspectos necessários à incidência do tributo. E, com efeito,
“exaustivamente” significa que o legislador estaria obrigado a utilizar a linguagem jurídica de
tal maneira que ao aplicador da regra, no caso concreto, restaria uma função mecânica:
verificado o fato, caberia subsumi-lo a uma hipótese de incidência fixada em lei. A exigência
5 Conforme observa Casalta Nabais: “Olhando agora para a intensio (ou aspecto vertical) da reserva de lei fiscal, traduzida na reserva material ou conteudística (princípio da tipicidade), diremos que a mesma se desdobra em dois aspectos: a que elementos (ou momentos) da dinâmica do imposto se aplica e até que ponto a lei deve levar a disciplina desses elementos (CASALTA NABAIS, José. Estudos de direito fiscal. Coimbra (Portugal): Almedina, 2005). 6 DOMINGUES, José Marcos. Legalidade tributária – o princípio da proporcionalidade e a tipicidade aberta. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros. n.º 70, p. 106-116, 1998. 7 BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. Atualizadora: Misabel de Abreu Machado Derzi. 13ª.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 117. 8 Como destaca Alberto Xavier: “O princípio da legalidade esgotar-se-ia na afirmação de que os impostos devem ser criados por fontes revestidas de natureza de lei formal. O princípio da tipicidade já não respeitaria, porém, à legitimidade formal da norma tributária, mas ao seu conteúdo material” (XAVIER, Alberto. Op. cit., p. 61).
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imposta ao legislador, portanto, é que utilize na fixação da imposição fiscal expressões de tal
forma incontroversas que, diante de uma dada circunstância de fato, nenhuma dúvida poderia
surgir: ou bem o fato se encaixa na previsão legal e, com isso, daria surgimento ao tributo, ou
não existiria correspondência simétrica e, então, aquele fato estaria fora do alcance da
disciplina tributária. Esta forma peculiar de atuação do Direito Tributário foi designada por
Alberto Xavier, e seguida pela maior parte da doutrina, como tipicidade fechada.9
Referida tipicidade fechada ganhou curso corrente e posição majoritária entre os
tributaristas10. A explicação para que, no Direito Tributário, a atuação do aplicador da lei
viesse já absolutamente predeterminada na lei estaria na exigência máxima de segurança
jurídica peculiar a esse ramo do direito. Isto é, uma vez que o tributo representa invasão do
Estado na propriedade particular dos cidadãos, seria necessário controlar, com a maior
segurança possível, a atuação da Administração Fiscal11. Resultado de um tal fechamento da
linguagem jurídica no Direito Tributário – que deveria operar por meio de conceitos
absolutamente determinados – é a proibição de que o Poder Executivo venha, por meio de
atos regulamentares, incluir qualquer elemento distintivo na disciplina tributária12.
Já Misabel Derzi, embora reconhecendo o equívoco de se dizer que o Direito Tributário
opera por meio de tipos ou conceitos fechados, como alternativas mutuamente excludentes,
afirma que a exigência de segurança jurídica, de especial importância para o Direito
9 “A idéia de reserva absoluta de lei (foram ou material) envolve, como já várias vezes se afirmou, que ela contenha em si não só o fundamento, como também o próprio critério de decisão. Se o órgão de aplicação do direito deve ter na lei predeterminado o conteúdo da decisão, isto não pode deixar de significar que o princípio da tipicidade atua integralmente na norma tributária, em todos os seus elementos, na sua previsão ou hipótese e na estatuição ou injunção. Se assim não fosse, isto é, se o princípio da legalidade se esgotasse na declaração da tributabilidade do fato, teríamos que o referido princípio autorizava o órgão de aplicação do direito a, verificados certos fatos típicos, definir em concreto a medida do tributo a aplicar. Mas é de ver que semelhante entendimento é incompatível com as mais elementares exigências de segurança jurídica. Procurando esta subtrair ao órgão de aplicação do direito quaisquer expressões de arbítrio ou do seu puro critério subjetivo, natural se torna a exigência de uma construção por tipos não só dos fatos tributários, mas também da medida dos tributos. E, desta sorte, são objeto de tipificação todos os elementos necessários à fixação do quantum da prestação tributária [...] A tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa terminologia, uma tipicidade fechada: contém em si todos os elementos para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer de qualquer recurso a elementos a ela estranhos e sem tolerar qualquer valoração que se substitua ou acresça à contida no tipo legal” (XAVIER, Alberto. Op. cit. p. 77-92) 10 Dentre outros: MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2002; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2009; CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. 11 Nesse sentido, Yonne Dolacio de Oliveira: “Há uma área no Direito que não se pode usar o tipo aberto, conforme reconhecimento geral. Surge então o imperativo da utilização de um tipo oposto – o tipo cerrado –, que define de modo exaustivo seus elementos ou notas características, sempre necessários (OLIVEIRA, Yonne Dolácio. Curso de Direito Tributário (Coor. Ives Gandra da Silva Martins), 8.ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 126-127). 12 “O Poder Executivo não pode completar a lei tributária. A lei tributária, ao instituir o tributo, não deve apenas indicar-lhe o nome, mas, sim, apresentar todos os elementos essenciais que servem para individualizá-lo (deve conter fato gerador, base de cálculo e contribuinte” (MORAES, Bernado Ribeiro de. Op. cit. p.. 96).
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Tributário, conduziria à necessária utilização de conceitos (estes que, tal como demonstrado
pela autora, corresponderiam ao que a doutrina chama, de forma menos técnica, de tipo
fechado ou tipo cerrado) na regulamentação dos aspectos fundamentais da hipótese de
incidência tributária: O tipo propriamente dito, por suas características, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade-justiça individual, o da funcionalidade e permeabiliade às mutações sociais. Em compensação, com o seu uso, enfraquece-se a segurança jurídica, a certeza, a legalidade, como fonte exclusiva de criação jurídica e a uniformidade. O conceito determinado e fechado (tipo fechado no sentido impróprio), ao contrário, significa um reforço à segurança jurídica, à primazia da lei, à uniformidade no tratamento dos casos isolados, em prejuízo da funcionalidade e adaptação da estrutura normativa às mutações sócio-econômicas. Ora, resta evidenciado que, à luz da Constituição, são prevalescentes os princípios de segurança, certeza e previsibilidade no Direito Tributário, assim como no Direito Penal. Por isso, instituir e regular tributo mediante lei é criar norma, veiculada por meio de diploma legal próprio do Poder Legislativo, com conteúdo que, no mínimo, disponha sobre todos os pontos enumerados, expressa ou implicitamente, no art. 97 do CTN. Esses pontos são as notas e qualificações determinantes, que necessariamente devem especificar os conceitos descritivos e prescritivos contidos na norma tributária. A lei tributária evita, assim, a utilização de conceitos fluidos e transitivos, indeterminados ou abertos. Devem eles, tanto quanto possível, primar pela precisão, definição e objetiva determinação. A legalidade estrita, a segurança jurídica, a uniformidade e a praticabilidade determinam a tendência conceitual prevalecente no Direito Tributário13.
De acordo com o explicitado por Misabel Derzi, existiria no Direito Tributário uma
ordem de precedência entre os princípios constitucionais: o mais importante deles para esse
ramo do direito seria o princípio da segurança jurídica. Da mesma forma, no que diz respeito
aos valores, existiria uma precedência do valor “segurança” sobre os demais. Aliás, observe-
se que a citada autora chega a afirmar expressamente que o tipo aberto atenderia melhor aos
imperativos de justiça, na medida em que permitiria dar maior efetividade ao princípio da
capacidade contributiva – responsável por aquilatar a justiça material no direito tributário –,
mas, logo em seguida, conclui pela tendencia conceitual prevalescente no Direito Tributário,
dada a força assumida pela segurança neste quadrante do direito14.
Como se verá adiante, essa conclusão não encontra amparo na dogmática constitucional
atual. É que não existe entre os valores e os princípios constitucionais qualquer ordem de
precedência abstrata: todos eles estão submetidos ao procedimento de ponderação; alguma
ordem de precedência – condicionada à realização da ponderação – entre os valores e
princípios constitucionais surgirá ao final, mas nunca aprioristicamente. Isto quer dizer que a
segurança deverá ser ponderada com outros valores igualmente relevantes, notadamente a
13 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 628-629. No mesmo sentido, Geral Ataliba: “A h.i. é conceito determinado e fechado, por exigência constitucional, no Brasil. Não cabe, na matéria, falar-se em tipo; é errado invocar-se o princípio da tipicidade, que não satisfaz às exigências de segurança jurídica” (ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004). 14 “O tipo propriamente dito, por suas características, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade-justiça individual, o da funcionalidade e permeabiliade às mutações sociais” (BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 628).
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justiça, para que se conclua pela possibilidade de utilização de conceitos ou tipos na
conformação da hipótese de incidência tributária.
A doutrina da tipicidade fechada carece de sustenção constitucional, na medida em que a
Constituição Federal de 1988 instituiu um Estado Democrático e plural, no qual nenhum dos
valores protegidos precede os demais. Diante de tais inconsistências é que, cada vez mais, a
doutrina tributária de viés pós-positivista vem sustentando a “abertura” do tipo, isto é, vem
afirmando que o direito tributário não só pode, mas, em alguns casos, deve empregar tipos
(necessariamente abertos, como se verá abaixo), conceitos indeterminados e cláusas gerais na
legislação fiscal, de forma a melhor realizar o valor justiça, condensado no princípio da
capacidade contributiva15.
3. Conceitos e Tipos
A palavra “tipo” tem sua origem na forma latina typus, que, originalmente, tem o sentido
de impressão de uma forma, relevo, cunhagem, passando a significar imagem, esboço,
aparência, forma, tendo como função retratar a realidade segundo critérios de semelhança. Ele
não pode ser definido, mas apenas descrito; suas características não são indispensáveis
(algumas delas podem faltar). Em aprofundado estudo sobre o tema16, Misabel Derzi indica
como notas próprias do tipo a abertura, a gradação, a inteireza e a aproximação da realidade.
A noção de abertura significa que o tipo forma um sistema elástico de características dadas
como típicas, o quer dizer que algumas delas podem até não estar presentes em um dado
objeto, mas asinda assim ele será considerado típico. Por outro lado, a noção de gradação
significa que as características do tipo poderão apresentar-se em diferentes graus de
intensidade e freqüência, desde o menos típico, até o limite do atípico – limite este que não
poderá ser traçado aprioristicamente, mas apenas identificado em cada caso. Já a inteireza do
tipo significa que os traços que o caracterizam formam uma estrutura interdependente. A
riqueza de conteúdo do tipo, em cuja extensão encontram-se diveros dados refentes ao objeto,
é que permite afirmar que o tipo possui maior aproximação com a realidade.17 Daí ser
15 Dentre outros: TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário - valores e princípios constitucionais tributários. Vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; ABRAHAM, Marcus. O planejamento tributário e o direito privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007; DOMINGUES, Jóse Marcos. Legalidade tributária – o princípio da proporcionalidade e a tipicidade aberta. Revista de direito tributário. São Paulo: Malheiros. n.º 70, p. 106-116, 1998; RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de janeiro: Lumem Juris, 2003; GRECO, Marco Aurélio. Planejamento Tributário. São Paulo: Dialética, 2008; ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2009. 16 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Direito tributário, direito penal e tipo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. 17 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Op. Cit., p. 52.
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possível estabelecer gradações – embora não rígidas – entre o mais e o menos típico. Com
base em Leenen, Misabel Derzi aponta, como exemplo de tipo, o caráter oneroso de um
negócio jurídico: Já a onerosidade nos negócios forma um tipo, pois, entre os pólos, doação de um lado e compra e venda a preço de mercado do outro, há inúmeros degraus de onerozidade. O limite é o grau zero, onde, nitidamente, se vê o tipo doação em sua forma plena. A partir daí, são transições fluídas até o tipo pleno oposto: compra e venda a preço de mercado18.
Não obstante o limite entre o típico e o atípico seja fluído, deve-se concordar com
Misabel Derzi quando afirma que há sempre um núcleo mínimo de característisticas que
devem ser verificadas para que se permaneça no âmbito do típico19. Não se trata de um núcleo
rígido – dada a própria abertura e flexibilidade do tipo, não seria possível identificar
exaustivamente esse núcleo –, mas algumas notas características deverão estar presentes; do
contrário, a diferenciação entre o típico e o atípico não seria operacionalmente possível para o
aplicador do direito. De fato, como demonstrou Misabel Derzi,20 a idéia central consiste na
definição, por parte do legislador, de siutações-padrão que darão ensejo à produção de
conseqüências jurídicas, identificadas, no caso, com o nascimento da obrigação tributária.
Com efeito, as características ontológicas dos tipos permitem maior proximidade em
relação ao fato objeto da tributação, isto é, asseguram maior penetração nas entranhas das
relações econômicas, revelando com maior nitidez as manifestações de riqueza que poderão
ser objeto de tributação. Conforme assevera Misabel Derzi, “O tipo propriamente dito, por
suas características, serve mais de perto a princípios jurídicos como o da igualdade-justiça
individual, o da funcionalidade e permeabiliade às mutações sociais”21. Disso resulta que os
tipos são mais aptos à realização dos princípios vinculados à justiça fiscal, em especial no que
diz respeito ao princípio da capacidade contributiva. Todavia, tendo em conta o caráter aberto
dos tipos, bem como a irrestringibilidade das suas notas distintivas, a doutrina tributária –
18 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Ibid. p. 51-52. Outros exemplos são fornecidos por Kark Engish: “Assim, p. ex., são características do tipo ‘sociedade’ ou do de ‘delinquente habitual perigoso’ os limites imprecisos do seu campo de aplicação. Assim também no tipo do ‘bonus pater familias’ ou no de ‘comerciante honesto e cuidadoso’ surge em evidência o recorte ‘normativo’, sendo que no último conceito tem ao mesmo tempo o caráter de uma ‘cláusula geral’” (ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8ª.ed. Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 258). 19 “O tipo, para nós, tem sempre um núcleo mínimo de características. O que varia e lha dá uma ampla flexibilidade é que esse núcleo não se encontra sempre na mesma combinação de características em todos os objetos. As notas do tipo apresentam-se em diferente grau de intensidade e se combinam de forma distinta, podendo faltar uma ou algumas delas em certos objetos. O tipo comporta, então, flexibilidade estrutural, o que caracteriza a sua abertura. Não obstante, no tipo, há sempre um mínimo de características, não necessariamente constantes em todos os objetos que abrange, oq eu permitirá distinguir o títpico do atípico” (DERZI, Misabel de Abreu Machado. Op. cit. p. 69). 20 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Op. Cit, pg. 52. 21 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 628.
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ainda hoje majoritária – advoga a tese de que a tributação não poderia ser levada a efeito por
meio de tipos, já que, assim, restaria aviltado o princípio da segurança jurídica.22
Já os conceitos, por outro lado, significam a representação abstrata de dados empíricos,
com o qual se apreende um significado a partir da indicação exaustiva de todas as notas
distintivas que o caracterizam, de forma que será possível falar-se em subsunção do conceito
de um objeto a um determinado conceito abstrato quando – e sempre que – todas as notas
distintivas do conceito se apresentem no conceito do objeto em análise. Exatamente por isso,
é possível dizer que os conceitos podem ser objeto de definição, na medida em que a
indicação das notas distintivas que o caracterizam são limitadas.23 Sobre as características e
operacionalização dos conceitos, Misabel Derzi aponta que “O conceito seciona, seleciona.
Quanto maior, então, for a abstração, tanto mais abrangente será o conceito, porque abrigará
um maior número de objetos e, em contrapartida, tanto mais vazio será de conteúdo e
significado” 24. Desta forma, quando se diz que os elementos essenciais da hipótese de
incidência tributária devem estar fixados em conceitos, isso significa que a norma deverá
prever exaustivamente todos os elementos distintivos que darão surgimento à obrigação
22 Veja-se, por todos, clássica assertiva de Alberto Xavier: “A idéia de reserva absoluta de lei (foram ou material) envolve, como já várias vezes se afirmou, que ela contenha em si não só o fundamento, como também o próprio critério de decisão. Se o órgão de aplicação do direito deve ter na lei predeterminado o conteúdo da decisão, isto não pode deixar de significar que o princípio da tipicidade atua integralmente na norma tributária, em todos os seus elementos, na sua previsão ou hipótese e na estatuição ou injunção. Se assim não fosse, isto é, se o princípio da legalidade se esgotasse na declaração da tributabilidade do fato, teríamos que o referido princípio autorizava o órgão de aplicação do direito a, verificados certos fatos típicos, definir em concreto a medida do tributo a aplicar. Mas é de ver que semelhante entendimento é incompatível com as mais elementares exigências de segurança jurídica. Procurando esta subtrair ao órgão de aplicação do direito quaisquer expressões de arbítrio ou do seu puro critério subjetivo, natural se torna a exigência de uma construção por tipos não só dos fatos tributários, mas também da medida dos tributos. E, desta sorte, são objeto de tipificação todos os elementos necessários à fixação do quantum da prestação tributária. [...] A tipicidade do Direito Tributário é, pois, segundo certa terminologia, uma tipicidade fechada: contém em si todos os elementos para a valoração dos fatos e produção dos efeitos, sem carecer de qualquer recurso a elementos a ela estranhos e sem tolerar qualquer valoração que se substitua ou acresça à contida no tipo legal (XAVIER, Alberto. Op.cit. p.77-92). 23 Segundo Jerusalem: “O conceito é uma forma de pensamento, na qual um objeto é apreendido. Ele é uma representação tornada forma, isto é, que ganhou por meio da repetição uma certa solidez de determinidade com referência à apreensão desse objeto” (Apud ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 1.ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 172). 24 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 624. Prosseguindo a análise, aponta: “O conceito menos geral pertence ao gênero do mais abrangente. O menos abrangente denomina-se espécie e aquilo que diferencia uma espécie de outras, situadas sob um mesmo gênero, designa-se por ‘diferença de espécie’. Definir será determinar um gênero a um conceito e acrescentar a diferença de espécie (cf. Aristóteles, Tratados de Lógica (El Organon), 5ª ed., México, Ed. Porrúa S.A., 1979, pp. 6-18; Karlheinz Rode, op. Cit., pp. 401-407). Só um conceito geral, abstrato se deixa definir, pois, para isso, é necessário fixá-lo através de determinadas características. Se o conceito A possui as notas ‘a, b, c’, na investigação jurídica, somente se afirma o conceito A, se o conceito do fato contiver as mesmas características “a, b, c”. Diz-se, então, que há subsunção. Para o Conceito de classe vale a proposição lógica do terceiro excluído: ‘cada X é A ou não-A’. Tertium non datur. Não tem cabida aqui o mais ou menos, mas a relação de exclusão “ou um... ou outro”. Porque ou o conceito do objeto corresponde integralmente às características do conceito abstrato nele se subsumindo, ou não. O conceito pode referir-se a todo tipo de objeto: abstrato, concreto, universal ou individual. Ele não se refere, necessariamente, a coisas reais, mas pode haver conceitos de coisas inexistentes. Além disso, o conceito de classe é a soma de suas partes ou características” (BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 624-625).
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tributária, sempre que o fato em apreço apresente os traços característicos indicados na lei.
Portanto, se para a incidência de um determinado tributo “X” exige-se a presença das notas
distintivas “a”, “b” e “c” e o conceito do objeto (fato econômico) apresenta as notas “a”, “b” e
“c”, ocorrerá a subsunção, formando-se a obrigação tributária respectiva. Ao contrário, caso a
apreciação do fato revele apenas a presença dos traços distintivos “a” e “b”, não ocorrerá a
subsunção e, por conseguinte, nenhum tributo será devido. Nesse sentido, sobre a
caracterização dos conceitos, Karl Larenz demonstra com clareza a sua sistemática de
funcionamento: Só se pode falar de um ‘conceito’ em sentido estrito quando for possível defini-lo claramente, mediante a indicação exaustiva de todas as notas distintivas que o caracterizam. O sentido de uma tal definição é o de que ‘só quando e sempre que’ todas as notas distintivas do conceito se apresentam em algum objeto poderá ser esse objeto subsumido ao conceito, quer dizer, pertence à classe de objetos por ele designados. A ‘premissa maior’ do silogismo subsuntivo é a definição do conceito, a ‘premissa menor’ é a constatação – corroborada pela percepção – de que este objeto X apresenta todas as notas distintivas mencionadas na definição, e a conclusão é o enunciado de que X pertence à classe de objetos designados pelo conceito, ou que X é um ‘caso’ do gênero que se designou mediante o conceito – para o jurista a situação fáctica X seria um ‘caso’ de previsão normativa conceptualmente apreendida25.
Enquanto os conceitos representam uma rígida soma de elementos distintivos, os tipos
representam um conjunto de características graduáveis e abertas, que poderão ser mais ou
menos correlacionáveis a um conjunto de fatos.
De acordo com a doutrina tradicional, somente a tributação realizada através de tipos
fechados (“conceitos”, numa apreciação mais técnica) garantiria efetividade ao princípio da
segurança jurídica, do ponto de vista da previsibilidade. Conhecendo antecipadamente e com
precisão todos os fatos que darão surgimento a obrigações tributárias, os contribuintes
estariam plenamente cientes dos deveres fiscais associados à sua atividade econômica,
assegurando-se, neste enfoque, o ideal de previsibilidade associado à segurança jurídica26.
4. Entroncamento dos valores e princípios constitucionais e a inexistência
de precedência abstrata entre eles
25 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3ª ed. Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 255. 26 De acordo com Sacha Calmon: “A tipicidade tributária é cerrada para evitar que o administrador ou o juiz, mais aquele do que este, interfiram na sua modelação, pela via interpretativa ou integrativa. Comparada com a norma de Direito Penal, verifica-se que a norma tributária é mais rígida. No Direito Penal, o nullum crime nulla poena sine lege exige que o delito seja típico, decorra de uma previsão legal precisa, mas se permite ao juiz, ao sentenciar, a dosimetria da pena, com relativa liberdade, assim como diminuir a afrouxar a pena a posteriori. No Direito Tributário, além de se exigir seja o fato gerador tipificado, o dever de pagar o tributo também deve sê-lo em todos os seus elementos, pois aqui importantes são tanto a previsão do tributo quanto o seu pagamento, baseado nas fórmulas de quantificação da prestação devida, e que a sociedade exige devam ser rígidas e intratáveis” (CALMON, Sacha, Op. cit. p. 195).
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Viu-se acima que a doutrina ainda majoritária advoga a tese da tipicidade fechada porque
presumem existir no Direito Tributário uma ordem de precedência do princípio da segurança
jurídica sobre os demais. Essa tese, amplamente arraigada entre os tributaristas em geral,
precisa ser revisitada.
Com efeito, a interação entre os valores e os princípios constitucionalmente consagrados
é bastante suave, mas de fundamental importância para garantia da unidade sistêmica do
ordanamento jurídico. De acordo com Claus Canaris, os valores estão no grau máximo de
abstração e generalidade, não possuindo formulação deôntica, ao passo que os princípios, por
estarem no ponto intermediário entre os valores e os conceitos, já admitem a bipartição em
prescrição e consequencia jurídica. A transição entre eles, no entanto, é tênue: É de admitir que os valores jurídicos se deixam facilmente reformular nos correspondentes princípios e que, por isso, as delimitações são fluidas – tratando-se apenas de diversos graus de um processo de concretização em si contínuo27.
Assim, um princípio pode concretizar diversos valores; e esse mesmo princípio pode ser
concretizado por diversos conceitos jurídicos. Daí ser possível afirmar que uma única regra
jurídica pode concretizar vários valores ao mesmo tempo, ou, o que é mais comum, que
diversas regras podem concretizar um único valor. Desta forma, é possível traçar um
panorama sobre as relações entre os princípios constitucionais e os valores aos quais eles
estão ligados e, no que interessa para o trabalho, distinguir os princípios concretizadores dos
valores justiça e segurança no Direito Tributário. São princípios vinculados ao valor
segurança: i) legalidade; ii) tipicidade; iii) irretroatividade, anualidade e anterioridade; iv)
proibição da analogia; e v) proteção da confiança do contribuinte. De outra parte, são
princípios vinculados ao valor justiça: i) capacidade contributiva; ii) custo/benefício; iii)
distribuição de rendas e desenvolvimento econômico; iv) Arm’s lenght; v) non olet; vi)
poluidor-pagador e consumidor-pagador; e vii) equidade28.
Característica notável dos valores jurídicos é que eles estão constantemente interagindo
em busca do equilíbrio, sem que exista qualquer hierarquia entre eles.29 De fato, num Estado
27 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa (Portugal): Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed., 1996, pg. 87. 28 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário - valores e princípios constitucionais tributários. vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.. 29 Ricardo Lobo Torres destaca que a ausência de hierarquia é uma característica própria dos valores num Estado Democrático e plural: “Os valores jurídicos no pluralismo estão em permanente interação, em incessante busca do equilíbrio, sem qualquer hierarquia. A tensão entre justiça e segurança é muitas vezes ‘dramática’, constituindo uma das contradições básicas do sistema jurídico, em permanente necessidade de ponderação” (TORRES, Ricardo Lobo. Op. Cit.).
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Democrático de Direito não há qualquer ordem de precedência abstrata entre os valores e os
princípios constitucionais: “todos os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos
devem ser sopesados em suas diversas dimensões, frente aos interesses em jogo, eis que não
são direitos meramente abstratos”30. Para Alexy, a existência de um princípio absoluto –
aquele que num processo de ponderação nunca cederia frente a outros princípios igualmente
reconhecidos pela ordem jurídica – implicaria a negação dos direitos fundamentais.31 Para o
autor da Teoria dos Direitos Fundamentais, nem mesmo o princípio da dignidade da pessoa
humana poderia ser encarado como princípio absoluto, já que apenas o âmbito essencial da
vida privada é que estaria excluído do processo de ponderação, mas não o princípio em toda a
sua extensão32. Exemplificando, Alexy faz referência à prisão perpétua, na qual o princípio da
dignidade da pessoa humana estaria submetido ao processo de ponderação com outro
princípio colidente: a proteção da comunidade estatal. A conclusão do autor é de que apenas a
dimensão de regra da dignidade da pessoa humana – isto é, seu núcleo essencial – estaria
afastado de qualquer processo de ponderação, mas não princípio enquanto tal. Como qualquer
outro princípio, também a dignidade da pessoa humana poderia ser realizada em diferentes
graus: Por isso, pode-se dizer que a norma da dignidade da pessoa humana não é um princípio absoluto. A impressão de que se trata de um princípio absoluto resulta do fato de que existem duas normas contidas na dignidade da pessoa humana, isto é, uma regra da dignidade da pessoa humana e um princípio da dignidade da pessoa humana, bem como existe uma série de condições nas quais o princípio da dignidade da pessoa, com um alto grau de certeza, precede a todos os demais princípios.33
Se nem mesmo o princípio da dignidade da pessoa humana está afastado do processo de
ponderação, também o princípio da segurança jurídica deverá necessariamente submeter-se a
ele. Isto significa que, diferentemente do que sustenta a doutrina tradicional, não existe no
Direito Tributário qualquer ordem de precedência ou hierarquia entre o princípio da segurança
jurídica e os demais princípios constitucionais atinentes à imposição tributária, tais como os
princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da solidariedade. Todos eles estão
submetidos ao processo de ponderação, como afirma Ricardo Lobo Torres: Hoje, com o refluxo dos positivismos de diferentes matizes, a questão legalidade tributária passa a se colocar de outra forma. O novo relacionamento entre Estado e Sociedade e a reaproximação entre direito e ética conduzem a que a legalidade seja vista no contexto mais amplo do equilíbrio entre segurança e justiça, da sua ponderação com os demais princípios constitucionais (...) A legalidade
30 TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos Direito Humanos e os princípios da ponderação e da razoabilidade. TORRES, Ricardo Lobo (Org). Legitimação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 438. 31 “Por lo tanto, hasta donde llegue el principio absoluto, no pueden haber derechos fundamentales” (ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid (Espanha): Centro de Estudios Constitucionales, 1993). 32 Op. Cit., pg. 107. 33 Ibid. p. 109.
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tributária não se encontra solitária na principiologia constitucional nem vive em permanente colisão com outros princípios, senão que se coloca em um jogo de ponderação com a capacidade contributiva e com outros princípios vinculados à justiça, como custo/benefício e a solidariedade do grupo. A ponderação leva a que a contradição entre princípios seja aparente: a eventual superioridade de um deles não implica a revogação do outro, pois apenas prevalece o maior peso do que melhor se adapta à solução do caso emergente34.
De fato, observou José Marcos Domingues que o Direito Tributário não detém o
monopólio da segurança jurídica – o qual, enquanto princípio de ordem constitucional, tem
sua efetivação perseguida em todos os ramos do direito –, de tal forma que caberá ao jurista
formular a possível dimensão que terá este princípio na matéria, isto é, o seu grau de
penetração diante dos demais princípios constitucionais eventualmente colidentes35.
Outrossim, os juristas lusitanos José Luís Saldanha Sanches e João Taborda da Gama afirmam
que: “o princípio da legalidade é um dos princípios do ordenamento jurídico, mas não é o
único. Deve por isso ser ponderado com princípios de sinal contrário, como o princípio da
igualdade ou do Estado de bem-estar, e em certos casos dar lugar à prevalência destes”.36
De fato, a idéia de uma ordem de precedência abstrata entre o princípio da segurança
jurídica sobre os princípios concretizadores da justiça fiscal (capacidade contributiva,
igualdade e solidariedade) não se justifica nos quadrantes do atual paradigma de um Estado
democrático e plural, na medida em que os diversos valores e princípios constitucionais estão
todos submetidos à ponderação. Até porque, conforme bem ressaltado por Humberto Ávila,
somente após o procedimento de ponderação será possível criar qualquer espécie de
prevalência entre os diversos princípios colidentes, o que implica afirmar a inexistência de
hierarquia ou prevalência do princípio da segurança jurídica sobre os demais princípios
constitucionais envolvidos: Dessa perspectiva, evidencia-se que a segurança jurídica e a igualdade estão em uma relação de tensão constante. Em outras palavras: a segurança jurídica necessariamente não é o princípio prevalente do Direito Tributário. Alguns autores, por exemplo, como VOGEL e TIPKE, para mencionar aqui apenas alguns dos mais proeminentes, observam com pertinência que a igualdade – e não a segurança jurídica – seria o principal critério de aferição do Direito Tributário.37
A garantia do princípio da segurança jurídica não poderia, de qualquer forma,
amesquinhar a realização da justiça fiscal, pois os diversos princípios constitucionais
34 TORRES, Ricardo Lobo. Legalidade Tributária e Riscos Sociais. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, n.º 59. p. 96. 35 DOMINGUES, José Marcos. Legalidade tributária – o princípio da proporcionalidade e a tipicidade aberta. Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros. n.º 70, p. 106-116, 1998. 36 SALDANHA SANCHES, José Luís; GAMA, João Taborda da. Pressuposto Administrativo e Pressuposto Metodológido do princípio da solidariedade social: a derrogação do sigilo bancário e a cláusula geral anti-abuso. In: GRECO, Marco Auréio; GODOI, Marciano Seabra de. Solidariedade Social e Tributação. São Paulo: Dialética, 2005. 37 ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 190-191.
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envolvidos (segurança, igualdade, capacidade contributiva, solidariedade e justiça fiscal)
estão todos submetidos ao processo de ponderação, inexistindo contradições insuperáveis
entre eles,38 como bem ressalta Ricardo Lodi Riberiro: A justiça e a igualdade, concretizadas pelo princípio da capacidade contributiva, podem entrar em tensão com o valor da seguraça jurídica e com o princípio da legalidade. A ponderação entre capacidade contributiva e legalidade, sem que a priori se possa defender a prevalência de qualquer delas, não dá margem para que o juiz possa tributar o contribuinte apenas com base na capacidade contributiva, sem que haja previsão legal do tributo. A capacidade contributiva que será tributada estará prevista na lei, em respeito à segurança jurídica. Por sua vez, o legislador definirá o fato gerador do tributo de acordo com a capacidade contributiva, e o aplicador do direito irá interpretar a lei de acordo com o referido princípio39.
Desta forma, nos contornos do atual Estado Constitucional de Direito e do novo
paradigma pós-positivista, é possível considerar superada a doutrina tradicional quando
propugna por uma posição especial de prevalência do princípio da segurança jurídica em
matéria tribuária. Em decorrência, deverá o referido princípio submeter-se, assim como todos
os demais princípios constitucionais, ao procedimento de ponderação, a fim de se verificar,
em determinadas situações, os pesos relativos assumidos pelos princípios eventualmente
colidentes.
5. Segurança, linguagem e a tipicidade fechada O que a doutrina tradicional buscou na teoria da tipicidade fechada (exigindo que os
elementos essenciais da hipótese de incidência fossem previstos por conceitos, já que, como
se viu, os tipos são necessariamente abertos) foi garantir segurança jurídica na atividade fiscal
do Estado. Tal objetivo, entretanto, não pode ser alcançado por esse meio. É que os conceitos
são, em sua maioria, indeterminados, o que significa que a precisão que se imaginava possível
a partir de uma descrição exaustiva dos elementos caracterizadores da hipótese de incidência
tributária por meio de conceitos simplesmente não encontra na linguagem instrumental idôneo
a esta finalidade. Com salienta Karl Engish, os conceitos absolutamente determinados são
muito raros na linguagem jurídica, somente sendo possível figurar como tais aqueles
38 “A Teoria da Justiça ou Ética é um ramo da Filosofia do Direito e do Estado. A Ética é a teoria dos princípios, regras, critérios ou padrões valorativos da justiça e do comportamento justo. Ainda que na literatura os conceitos de ‘Ética’ e ‘Moral’ sejam frequentemente usados como sinônimos, nós entendemos como ‘Ética a teoria do comportamento justo, e como ‘Moral’ o comportamento ou agir segundo essa teoria. O legislador, que observa a teoria do Direito Tributário justo, demonstra moral tributária ou age moralmente em matéria tributária. O cidadão, que paga impostos segundo leis tributárias justas, demonstra moral tributária ou age moralmente em matéria tributária” (TIPKE, Klaus. La ordenanza tributária alemana de 1977. Revista Espanõla de Derecho Financeiro. Madrid (Espanha). n.º 14, p. 360). 39 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Justiça, interpretação e elisão tributária. Rio de janeiro: Lumem Júris, 2003, pg 82.
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conceitos estritamente numéricos40. Para o autor, os conceitos jurídicos, por natureza, são
predominantemente indeterminados: Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados, pelo menos em parte. É o que pode afirmar-se, por exemplo, a respeito daqueles conceitos naturalísticos que são recebidos pelo Direito, como os de ‘escuridão’, ‘sossego nocturno’, ‘ruído’, ‘perigo’, ‘coisa’. E com mais razão se pode dizer o mesmo dos conceitos propriamente jurídicos, como os de ‘assassinato’ (‘homicídio qualificado’), ‘crime’, ‘acto administrativo’, ‘negócio jurídico’, etc41
Os conceitos jurídicos são, em sua maioria, indeterminados, não obstante seja possível
discernir diferentes graus de indeterminação. Karl Engish define tais conceitos como
estruturas cujo “conteúdo e extensão são em larga medida indeterminados”, sem prejuízo de
destacar a existência de uma faixa de certeza, que denomina núcleo conceitual, aludindo à
nomenclatura adotada por Philipp Heck. Para além dessa área nuclear, haveria uma zona de
penumbra, situação em que seria possível o surgimento de dúvidas razoáveis acerca da
extensão do enunciado normativo (novamente com base em Philipp Heck, Engish utiliza a
expressão halo conceitual para fazer referência à essa zona de indeterminação).42
De acordo com o autor da Introdução ao pensamento jurídico, a utilização de cláusulas
abertas e conceitos jurídicos indeterminados representariam formas de flexibilizar a
vinculação dos juízes e administradores à lei – esse “afrouxamento da legalidade”
representaria a superação da leitura iluminista de legalidade, traduzida na Escola da Exegese.
Para o autor, a crença desmedida no poder da razão e a desconfiança em relação às
autoridades administrativas e judiciais teriam forjado a idéia de que a lei deveria conter
disciplina exaustiva das matérias sobre as quais incidisse, reservando ao aplicador tão-
somente a terefa lógico-objetiva da subsunção.
Nada obstante, essa visão foi enfraquecendo ao longo do século XIX, a partir da
constatação gradual de sua impossibilidade prática e da percepção de que ela sequer seria
ideal, na medida em que a realização da justiça exige sempre a consideração de circunstâncias
40 ENGISCH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 8.ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, pg. 208. 41 Op. cit. p. 209. 42 ENGISCH, Karl. Op. cit. p. 209. Mais adiante, o autor traz algumas exemplificações: “Sempre que temos uma noção clara do conteúdo e da extensão dum conceito, estamos no domínio do núcleo conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito. que numa noite sem luar, pelas vinte e quatro horas, nos espaços não iluminados, domina a escuridão na nossa latitude, é uma coisa clara; dúvidas fazem já surgir as horas do crepúsculo. É fora de toda dúvida que os imóveis, os móveis, os produtos alimentares, são coisas; mas outro tanto se não poderá dizer, por exemplo, relativamente à energia elétrica ou a um penacho de fumo (formando as letras de um reclame) no céu. É certo e seguro que, verificado um parto bem sucedido e o nascimento de uma criança de progenitores humanos, estamos em presença de um ‘homem’ em sentido jurídico; mas já não tem resposta tão segura a questão de saber se e em que momento nos encontramos perante um ‘homem’ (e não já um simples ‘feto’) logo durante os trabalhos de parto (depois de iniciadas as contrações)” (ENGISCH, Karl. Op. cit. p. 210).
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particulares do caso concreto, para além das generalizações legais.43 Essa tensão entre o geral
e o particular levou Claus Canaris a identificar aquilo que seriam as duas tendências da
justiça, a generalizadora e a individualizadora: a primeira seria o principal fundamento
subjacente à formação de um sistema jurídico, ao passo que a segunda justificaria até mesmo
a existência de pontos de ruptura no sistema, quando imperiosa a necessidade de privilegiar o
particular44.
A pretensão de absoluta taxatividade dos termos legais produziria, como conseqüência
inevitável, um regramento formalista da realidade material, incapaz tanto de dar tratamento
isonômico a situações aproximadas, quanto de tormar em consideração eventuais
particularidades dos casos concretos. Além de impraticável, essa opção atentaria contra as
duas exigências da justiça, tal como descrita por Canaris. É justamente por isso que a ordem
jurídica trabalha com as figuras dos conceitos indeterminados e das cláusulas gerais: os
primeiros representariam aqueles nos quais o conteúdo e a extensão do conceito são em larga
medida incertos; já as cláusulas gerais seriam caracterizadas por uma “formulação da hipótese
legal que, em termos de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo
um domínio de casos”.45 Embora seja comum encontrar conceitos indeterminados associados
a cláusulas gerais, é possível imaginá-los separadamente. Engish cita como exemplo dois
enunciados normativos de direito penal, relacionados ao que seria um tipo de lesão corporal
grave: um que enunciasse causuisticamente diversas partes e funções do corpo e outros que
fizesse apenas mensão a qualquer lesão grave ao corpo ou à saúde (no segundo caso, para o
autor, haveria uma cláusula geral, mas não um conceito indeterminado).
Um exemplo de cláusula geral empregado pela legislação tributária poderia ser
encontrado, como bem observou Ricardo Lodi Ribeiro,46 no art. 2º da Lei n.º 9.311/96. O
dispositivo que definiu o fato gerador da CPMF, valendo-se da cláusula geral “qualquer
movimentação ou transmissão de valores”, sem prejuízo de dar espaço a uma enunciação
exemplificativa. Tal exemplo traz a tona uma questão de ordem prática relevantíssima quando
se percebe que, na verdade, a legislação tributária está impregnada de conceitos jurídicos
indeterminados e cláusulas gerais. Nesse sentido, José Marcos Domingues exemplifica uma
série de situações em que o legislador utilizou conceitos indeterminados em matéria tributária:
43 ENGISH, Karl, Op. cit. p. 213. 44 CANARIS, Claus-Wilhelm. Op. cit. p. 18. 45 ENGISH, Karl, Op. cit. p. 229. 46 RIBEIRO, Ricardo Lodi. Legalidade tributária, tipicidade aberta, conceitos indeterminados e cláusulas gerais tributárias. Revista de Direito Administrativo. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas. n.º 229. p. 313-333, 2002. p. 330.
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Assim, não deve prevalecer o subprincípio da determinação exposto por Xavier. Aliás, é o próprio Xavier que admite o emprego de conceitos indeterminados tais como ‘despesas razoáveis’ ou ‘lucro arbitrado’, como de resto são encontradiços na legislação pátria do imposto de renda, ‘gastos incompatíveis’, ‘despesas necessárias à manutenção da fonte’, conceituadas como ligadas a ‘operações exigidas pela atividade da empresa’, ‘bens imprestáveis’. A lei complementar do imposto sobre serviços também contempla na respectiva lista de incidências conceitos indeterminados ao se referir a ‘serviços congêneres’ e ‘serviços correlatos’. O mesmo se diga da legislação sobre incentivos fiscais subordinados a exame administrativo do mérito de projetos ‘de interesse’ (ou de relevante interesse) para o ‘desenvolvimento’ econômico, da cultura, etc. e a legislação sobre contribuição de melhoria não destoa ao admitir a sua cobrança quando executada a obra na sua totalidade, ou ‘em parte suficiente’ para beneficiar determinados imóveis47.
Por isso é que, tal como ressalta Karl Larenz, a aplicação da subsunção de fatos a
conceitos na Ciência Jurídica é muito reduzida, tendo em conta fatores alheios à vontade do
legislador. O jurista tedesco aponta algumas das razões para isso: i) é impossível recortar os
variados fatos relevantes para o direito de forma a compartimentalizá-los e subsumi-los a
regras jurídicas, já que não há sistema jurídico estanque e minunciosamente pensado que
permitisse uma tal aplicação do direito, até porque os fenômenos da vida não apresentam
fronteiras tão rígidas como as exigidas pelo sistema conceitual48; ii) de outra parte, também a
constatação de que a vida e os fatos produzem sempre novas configurações – não previstas
num sistema acabado – impedem a existência de um modelo subsuntivo-conceitual; iii) além
disso, um tal modelo de aplicação das regras jurídicas seria também impossível porque o
legislador só muito raramente utiliza linguagem que alcance o grau de precisão necessário
para uma definição conceitual49.
Enfim, a plenitude semântica dos conceitos é pura e simplesmente inatingível, na exata
medida em que não há perfeita adequação entre linguagem e pensamento.50 Portanto, a
pretensa segurança que a tipicidade fechada (operando por meio de conceitos) pretendia
conferir ao direito tributário simplesmente não pode ser realizada da forma como fora
idealizada: é a própria linguagem jurídica que impõe uma barreira ontológica para que isto se
verifique, já que é impossível para a linguagem do Direito assegurar uma predeterminação
absoluta51.
47 DOMINGUES, Jóse Marcos. Direito tributário e meio ambiente. 2ª.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 114. 48 É o que ressalta Klaus Voguel: “O número dos elementos distintivos que um texto de norma pode descrever, sermpre é apenas finito; em contrapartida, o número dos elementos distintivos de um conjunto de fatos individual é infinito” (Apud ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 298). 49 LARENZ, Karl, Op. cit. p. 644-645. 50 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário - valores e princípios constitucionais tributários. Vol. 2. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. 51 Foi o que verificou com precisão Humberto Ávila: “Os elementos distintivos da hipótese de incidência conceitualmente definidos não podem assegurar, sem mais nem menos, a segurança jurídica, se a segurança
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6. Tipificação administrativa e regulamento tributário O princípio da legalidade administrativa vem passando por profunda reformulação, tendo
como pano de fundo as transformações do Estado brasileiro, a constitucionalização do direito
e as novas concepções do pós-positivismo. Se antes valia a regra da vinculação positiva à lei,
de acordo com a qual o administrador só poderia agir quando a lei determinasse e nos seus
estritos parâmetros, a doutrina administrativa moderna sustenta uma vinculação ao Direito,
refletida no princípio da juridicidade52. Essa verdadeira mutação pela qual vem passando o
princípio da legalidade administrativa fez com que a doutrina passasse a sustentar uma
superação do modelo liberal do princípio – legalidade como vinculação positiva do
administrador à lei – por uma nova concepção, de acordo com a qual a Administração Pública
deixaria de estar submetida exclusiva e necessariamente à existência prévia de lei para que
pudesse agir, passando a se pautar no direito como um todo, e, em especial, nos valores e
princípios plasmados na Constituição. Por conseguinte, a vinculação dos atos administrativos
não se forma mais com relação exclusivamente à lei, mas à Constituição e demais normas do
ordenamento, gerando um novo parâmetro de vinculação para o administrador.
Como destacou Fernando Paulo da Silva Sourden, “A revisão do princípio da legalidade
decorre da incontestável constatação de que as construções tradicionais estão claudicantes no
contexto da atual sociedade de massas”.53 Nesse contexto, Alexandre Santos de Aragão, em
artigo intitulado “A concepção pós-positivista do princípio da legalidade”, passou a defender
jurídica estiver ligada à previsão conteudística absoluta em termos conceituais, pois a aplicação de qualquer norma jurídica depende de um juízo sobre a realidade” (ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 298). 52 Gustavo Binenbojm identificou e explicitou com clareza a idéia correspondente ao princípio da juridicidade: “A crise da lei administrativa é uma manifestação setorial e potencializada da crise da lei formal. Em nenhum outro segmento jurídico, como no direito administrativo, o papel da lei formal sofreu tantas transformações. Na plataforma liberal, a legalidade administrativa seria uma limitação externa ao exercício do poder autônomo da Administração Pública (vinculação negativa à lei). Já na plataforma democrática, a legalidade administrativa seria não apenas um limite externo, mas o fundamento necessário de toda a atuação da Administração (vinculação positiva à lei). Assim se delineou a distinção clássica entre a legalidade tal como aplicada aos particulares (vinculação negativa) e ao Poder Público (vinculação positiva): enquanto aos particulares é dado fazer tudo que a lei não proíbe, ao Poder Público é permitido agir nos termos do que a lei prescreve. Com a constitucionalização do direito administrativo, a lei deixa de ser o fundamento único e último da atividade administrativa. A Constituição – entendida como sistema de regras e princípios – passa a constituir o cerne da vinculação administrativa à juridicidade. A legalidade, embora ainda muito importante, passa a constituir apenas um princípio do sistema de princípios e regras constitucionais. Passa-se, assim, a falar em um princípio da juridicidade administrativa para designar a conformidade da atuação da Administração Pública ao Direito como um todo, e não mais apenas à lei (BINENBOJM, Gustavo, A constitucionalização do direito administrativo no Brasil: um inventário de avanços e retrocessos, Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado, Salvador, Instituto brasileiro de Direito Público, n.º 13, 2008, pgs 37-38. Disponível na internet: www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em 21.08.2011). 53 SOURDEM, Fernando Paulo da Silva, O princípio da separação dos poderes e os novos movimentos sociais – A administração pública no Estado moderno: entre as exigências de liberdade e organização. Coimbra (Portugal): Almedina, 1995. p. 406.
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que as leis deveriam possuir densidade normativa calcada em princípios e valores que
atribuam podres à Administração Pública, deixando às normas regulamentares a disciplina das
questões mais específicas.54 De forma assemelhada, Patrícia Baptista destaca que o aumento
da complexidade das relações sociais passou a exigir uma legislação mais ágil e mais técnica,
o que, pelas características do processo legislativo ordinário, seria impossível para o Poder
Legislativo55. Alguma flexibilização da legalidade se mostrou necessária, tal como passou a
ocorrer, por exemplo, com as Agências Reguladoras: para as áreas específicas de sua atuação,
o legislador apenas traça diretivas e regras de maior abrangência, deixando às Agências a
capacidade de disciplinar detalhadamente as questões mais específicas, sobretudo as de índole
técnica. Assim, o Direito Administratvivo vem exprimentando uma ampliação dos poderes
regulamentares que exerce.
Na esteira dessas transformações já vivenciadas no âmbito do Direito Administrativo,
também o Direito Tributário vem passando por uma releitura, com reflexos diretos não só no
modelo de legalidade tributária, mas também no modelo da norma regulamentar. De fato, há
muito já se tem verificado um aumento exponencial na edição de Decretos, Instruções
Normativas, Atos Declaratórios Interpretativos e Executivos, Resoluções normativas e
quejandos, tudo em decorrência da necessidade de regulamentar um mercado cada vez mais
dinâmico e complexo. Preso à noção de tipicidade fechada, é normal que muitos desses atos
regulamentares acabem tendo sua validade questionada no Poder Judiciário –se à lei tributária
caberia definir exaustivamente a hipótese de incidência tributária, realmente muito pouco
espaço restaria à norma regulamentar. Nada obstante, doutrina e jurisprudência aos poucos
têm modificado esse panorama.
Para Ricardo Lobo Torres, não há óbice constitucional para que a Administração venha
baixar regulamentos tipificadores,56 destinados à interpretação ou concretização das regras
tributárias. Para o Autor, a tipificação administrativa deverá ser entendida como “apreensão
do tipo existente na realidade econômica para o seu enquadramento no conceito-tipo previsto
na premissa do silogismo jurídico tributário”57. Teria a função de, na via da complementação
normativa pelo regulamento, “ordenar o tipo existente na realidade diante do conceito-tipo 54 “Propugnamos, portanto, por uma superação da separação rígida entre as duas versões extremas de conformidade legal, sustentando que o mínimo de densidade normativa que as leis devem possuir para atribuir poderes à Administração Pública consiste em habilitações normativas calcadas em princípios e valores” (ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ. n.º 7. p. 768-777, 2004). 55 BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Transformações do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 56 “A tipificação se refere à atividade legislativa de formação do tipo, na procura da sua tipicidade, ou seja, consiste no recorda da realidade para a ordenação de dados semelhantes” (TORRES, Ricardo Lobo. Op. cit. p. 302 ). 57 Op. cit. pg. 507.
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incluído na regra de incidência”.58 De forma assemelhada, enfocando a realização do
princípio da capacidade contributiva, Casalta Nabais afirma que o legislador deve praticar um
exercício de autocontenção, tendo em vista sua impossibilidade de apreciar, na integralidade,
a realidade fiscal, deixando para a Administração Pública uma amplitude regulamentar que
permitiria melhor captar a realidade econômica tributada: Mas esta pretensão de apuramento do real – mormente tratando-se de realidade económica em permanente e acelerada evolução –, para além de conduzir a uma excessiva analítica da lei do imposto, capaz de pôr em causa a segurança jurídica que essa consideração do real visava salvaguardar, é, em larga medida, impossível de realizar ao nível das normas fiscais, não restando ao legislador outro remédio senão deixar essa função à administração fiscal a exercer aquando da aplicaçãos das mesmas. Por isso, uma tributação ancorada na capacidade contributiva efectiva dos contribuintes singulares ou colectivos, ao invés da visão clássica (liberal), que reclamava uma legalidade fiscal estrita, pode conseguir-se justamente com uma certa autocontenção ou reconhecimento dos limites do legislador para dominar totalmente a realidade fiscal e a consequente atribuição de uma dada ‘margem de livre decisão’ à administração fiscal. Uma margem que, nomeadamente, lhe permita actuar eficazmente contra a fraude e a evasão fiscais, permitidas por um sistema que arvore a reserva de lei em valor absoluto, e deixe, por impossibilidade prática, de prever ou de prever adequadamente a tributação de factos que eminentes razões de justiça exigem.
Assim, quando a Administração Pública vier a empregar, na conformação da hipótese
de incidência do tributo, tipos, conceitos indeterminados e cláusulas gerais, caberá à
normatização regulamentar concretizá-lo, conforme observa Humberto Ávila: O legislador edita normas para um número indeterminado de pessoas (generalidade) e uma quantidade indefinida de circunstâncias (abstração), na impossibilidade de prever todas as situações possíveis. O resultado é que a norma contida na lei proprociona um ‘maior ou menor’ conhecimento sobre a realidade que visa a regular, mas nunca seu conhecimento e antecipação absolutos. É frequentemente, por isso, o uso dos denominados conceitos jurídicos indeterminados, das cláusulas gerais e dos princípios, os quais, deixando parcialmente aberta a decisão, transferem para o aplicador da norma a função de verificar as particularidades do caso concreto. Em qualquer que seja a lei, as normas nela contidas terão seu sentido atibuído em função de regras e princípios constitucionais. Isso exige necessariamente uma atividade de onderação por parte do aplicador59.
Uma flexibilização da legalidade tributária e um correspectivo aumento de atribuições ao
poder regulamentar da Administração, no entanto, não poderão de forma alguma redundar em
exclusão da lei. É que o princípio da reserva de lei é, como visto, garantia fundamental
albergada na Constituição, além de, historicamente, representar uma cara conquista do Estado
moderno. O que se mostra necessário ao Direito Tribuário, tal como se passou no Direito
Administrativo, é repensar o modelo de legalidade implementado. Embora não se possa
aplicar as mesmas conclusões dos administrativistas ao Direito Tributário, já que, no âmbito
das exigências fiscais o administrador não poderá de forma alguma exigir impostos sem lei
58 Op. cit. pg. 502. 59 ÁVILA, René Izoldi; ÁVILA Humberto Bergmann. Legalidade tributária: aplicação e limites materiais. Estudos de direito tributário em homenagem à memória de Gilberto Ulhõa Canto. (CARVALHO, Maria Augusta Machado de, Coord). Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 286-28.
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prévia, o fato é que é possível pugnar-se por uma revisão das concepções tradicionais, de tal
forma que o legislador possa ter liberdade de conformar o fato gerador não necessariamente
de forma exaustiva, como se pretendia ao tempo da tipicidade fechada, mas de maneira
suficientemente adequada a garantir a segurança jurídica, isto é, fixando padrões a serem
exigidos da Administração, de tal forma que, através do regulamento, possa a Administração
dar concretude à regra e captar com maior eficácia as manifestações de riqueza
apresentadas60. Com isso, será possível equilibrar os valores segurança – já que existirá lei e
ela deverá traçar parâmetros de condutas para o administrador através de tipos, conceitos
indeterminados e cláusulas gerais – e justiça, na medida em que esta forma de tributação
permitirá maior efetividade ao princípio da capacidade contributiva.
7. Conclusões 1. A superação do positivismo jurídico abriu espaço para que os estudiosos do Direito
Tributário passassem a se ocupar agora também dos aspectos materiais da atividade tributária
do Estado, e não apenas das questões de índole formal. Em decorrência disso, este ramo do
Direito começa a passar por uma nova leitura, centrada na supremacia da Constituição e na
efetivação dos valores e princípios materiais por ela consagrados;
2. A pretensa superioridade que o princípio da segurança juridica ostentaria no âmbito
tributário é falaciosa: é que num Estado Democrático de Direito não há qualquer ordem de
precedência abstrata entre os valores e os princípios constitucionais, estando todos submetidos
ao processo de ponderação;
3. Constatou-se, outrossim, a superação da teoria da tipicidade fechada, tendo em vista
sua impraticabilidade fática, que é uma decorrência dos próprios limites ontológicos impostos
pela linguagem, dada a impossibilidade de se preencher a regra tributária com conceitos
absolutamente determinados;
4. De outra parte, pôde-se verificar que as características ontológicas dos tipos permitem
maior proximidade em relação ao fato econômico objeto da tributação, isto é, asseguram
maior penetração nas entranhas das relações econômicas, revelando com maior nitidez as
manifestações de riqueza que poderão ser objeto de tributação;
60 Embora não seja o objetivo do trabalho avançar sobre a configuração do princípio da capacidade contributiva, vale lembrar a lição de Klaus Tipke, para quem este princípio representa o critério ordenador da justiça em matéria tributária (TIPKE, Klaus; YAMASHITA, Douglas. Justiça fiscal e princípio da capacidade contributiva. São Paulo: Malheiros, 2002).
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5. Não existirá ofensa à Constituição caso o legislador utilize na disciplina da hipótese de
incidência tributária tipos (necessariamente abertos, como se viu), conceitos indeterminados
ou cláusulas gerais;
6. A efetivação do princípio da capacidade contributiva exige que o legislador empregue
a linguagem jurídica de maneira a conferir máxima efetividade ao princípio da capacidade
contributiva, o que pode ser obtido pela utilização de tipos, conceitos indeterminados e
cláusulas gerais;
7. Pôde-se constatar a possibilidade de a Administração Fiscal utilizar a tipificação
administrativa, a fim de conferir melhores condições de operacionalidade à tributação,
sobretudo nas hipóteses em que seja mais difícil para o legislador identificar de maneira
eficaz as diversas possibilidades de manifestação de riqueza encontradas nas relações
econômicas;
8. A realização da justiça fiscal, em muitos casos, somente será possível a partir da
concretização regulamentar da Administração, na medida em que o aumento exponencial de
complexidade das relações econômicas vem criando processos negociais de difícil apreensão
pelo legislador, dada sua inaptidão técnica e a natural lentidão do processo legislativo.
8. Referências ABRAHAM, Marcus. O planejamento tributário e o direito privado. São Paulo: Quartier Latin, 2007. ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid (Espanha): Centro de Estudios Constitucionales, 1993. ARAGÃO, Alexandre Santos de. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo: NDJ. n.º 7. p. 768-777, 2004. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª edição. São Paulo: Malheiros, 2004. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário. São Paulo: Saraiva, 2009. ÁVILA, René Izoldi; ÁVILA Humberto Bergmann. Legalidade tributária: aplicação e limites materiais. Estudos de direito tributário em homenagem à memória de Gilberto Ulhõa Canto. (CARVALHO, Maria Augusta Machado de, Coord). Rio de Janeiro: Forense, 1998.
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