Keiliane da Silva Araújo Carvalho - UEMA*
Resumo
Este trabalho traz uma discussão acerca da construção da Identidade Cultural na obra
Jesusalém (2009), de Mia Couto. A análise do romance em estudo fundamenta-se à luz
das teorizações de Stuart Hall (2003), Thomas Bonnici (2000; 2005), Benedict Anderson
(2011), Kathryn Woodward (2014), Zygmunt Bauman (2005). A temática referida
perpassa a obra miacoutiana que, em seus diversos romances, aborda a identidade cultural
africana. Composto por tensões ambivalentes, a narrativa retrata a vivência através de
traços particulares que evidenciam o passado atroz e ressignificam o presente do povo
moçambicano, resgatando, através da ficção, os diferentes aspectos linguísticos e
comportamentais intrínsecos ou impostos pela ação colonizadora europeia.
Introdução
Os estudos culturais tornaram-se, atualmente, reconhecidos como um
agrupamento teórico interdisciplinar, porque abrange discussões intelectuais, sociais e
políticas expressivas para a progressão da multicuturalidade, ou seja, para as relações e
trocas firmadas entre culturas distintas, bem como para conceituações que circundam as
questões identitárias.
De acordo com Maria Elisa Cevasco (2005), as novas características
interpretativas que surgem com os estudos culturais extinguem afirmativas impressas por
um determinado momento histórico, a partir de uma combinação de fatores que vão se
transformando de acordo com o surgimento e reprodução de novas discussões. Assim,
falar em estudos culturais é fazer abordagens a partir de uma nova faceta do pensamento
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pós-colonial, bem como de todos os seus traços demarcadores que solidificam essa linha
de análise, tais como: “forças políticas, econômicas, controle ideológico e social”
(BONNICI, 2005, p. 222). Esses aspectos são imprescindíveis para os fatores
estruturantes do discurso de poder, uma vez que colaboram para a desconstrução das
manifestações eurocentristas que, durante muito tempo, através de instrumentos
preponderantes, a saber: “a política, a arte, a ciência” (BONNICI, 2005, p. 223),
dominaram o mundo ocidental.
É a partir desses novos parâmetros culturais que a hegemonia europeia ocidental
“passa a ser contestada e os discursos produzidos por historiadores, políticos,
administradores, missionários, que sempre serviram para solidificar a imagem ideológica
do outro como o diferente, são relidos” (BONNICI, 2000, p. 8). Desse e de outros modos,
os estudos culturais devem abdicar-se do isolacionismo agudo, permanecendo, assim,
passíveis à troca de ideias mutuamente enriquecedoras com culturas e nações que foram,
historicamente, desfavorecidas pela colonização europeia. Porque são responsáveis pelas
múltiplas mudanças culturais e políticas de manifestações hierarquizantes integradas pela
hegemonia. Como resultado disso, a essência tradicional da ocidentalização é rediscutida,
e as novas narrativas são tingidas por questões como sexualidade, fé, gênero e, de maneira
mais acentuada, nacionalismos.
Em Comunidades Imaginadas (2008), Benedict Anderson desenvolve debates teóricos
voltados para o entendimento da ideia de nação. Conforme o autor, a comunidade é algo
elaborada pelas narrativas, pelas línguas, pelas lendas locais, pelos mitos, bens materiais
e religiões. Antes das demarcações geográficas, composições de hinos nacionais e criação
de bandeiras representativas, a nação surge como uma cadeia de ideias que resulta numa
rede de imagens aceitas como representantes de uma identidade compartilhada por grupos
de pessoas, numa determinada localidade e concretizando, progressivamente, o que,
antes, era abstrato, a saber: a ideia de nação.
Os estudos culturais, no que se refere a gênero, tratam das consequências
internamente colonizadoras do patriarcado social e literário na sociedade: a “dupla
colonização” da mulher. Tal circunstancia justifica a profunda relação entre o feminismo
e os estudos pós-coloniais. Segundo Thomas Bonnici (2000, p. 16), “se o homem foi
colonizado, a mulher, nas sociedades pós-coloniais, foi duplamente colonizada”. Essa
dupla colonização acontece à medida que o corpo feminino torna-se uma extensão da
colônia a ser conquistado, fazendo com que ela sinta os efeitos do colonialismo e do
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patriarcalismo. Ainda segundo o autor, o propósito essencialista desses discursos é a
inserção da mulher degradada na sociedade.
Ademais, em muitos países que experenciaram a ação colonizadora, a consciência
nacionalista ganha força a partir das produções artísticas e literárias, visto que é através
do discurso, oral, textual ou imagético, que verdades ontológicas, reproduzidas
historicamente, são desconstruídas. Assim, a construção da identidade cultural de um país
depende de narrativas estritamente nacionais e independentes que “forneçam uma série
de estórias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais [...] que
dão sentido à nação” (HALL, 2008, p. 52).
Nos países lusófonos africanos, a reafirmação identitária é estabelecida através
dos veículos artísticos e literários. Com a conquista da independência das nações (como
Angola e Moçambique), ex-colônias romperam com os padrões impostos pela literatura
hegemônica colonial, que “rejeitava as distorções não canônicas oriundas da periferia e
da margem” (BONNICI, 2000, 12), buscando, portanto, o que Bonnici (2008) caracteriza
como “estética própria”, produzida e alicerçada nas narrativas de povos periféricos e
englobando, entre as suas características mais essenciais, o anticolonialismo, a
consciência nacionalista, a emancipação linguística (não obrigação com o rebuscamento
exacerbado) e a cultura de caráter popular, a partir de uma nova ordenação discursiva da
doxa europeia, que contesta a literatura colonial. A fim de sustentar tais afirmações, as
palavras de Pires Laranjeira (1985, p. 10) explicam que:
O colonialismo serve-lhe [à literatura africana] de propulsor da
consciência, a qual se rebela contra ele. No poder de confronto dessa
rebelião literária (linguística e ideológica), no alcance da sua ruptura,
na novidade da sua inovação, é que reside o estatuto de liberdade, da
sua libertação do jugo de outras literaturas.
Dessa maneira, os novos discursos transformaram, incisivamente, o cerne do
conteúdo “referente à crítica exclusivamente eurocêntrica, formularam teorias para a
análise do imperialismo/cultura e mostraram os caminhos para uma literatura e estudos
literários pós-coloniais autônomos” (BONNICI, 2000, p. 11). Assim, oportuno é dizer
que, certamente, tais autores, movidos por uma consciência anti-colonialista, se
posicionam de maneira antagônica à atitude colonizadora e se recusam a aceita-la como
um acontecimento histórico congênito.
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Para além disso, a noção reflexiva sobre o conceito de identidade na pós-
modernidade, também, delineia-se a partir de um viés interdisciplinar. Dessa maneira, no
âmbito dos estudos culturais, ou da temática da identidade cultural, em particular, Stuart
Hall surge como uma figura essencial, principalmente no que se refere às abordagens de
cunho mais estruturalista, em que os procedimentos analíticos são regidos pelo enfoque
de significantes e, de modo igual, dos discursos ideológicos.
Num eixo paradigmático, a fim de evidenciar algumas possibilidades
metodológicas interdisciplinares vitais para a discussão identitária, é mister clarificar que
esta linha de análise apoia-se nas discussões acerca das relações de poder; nas
contribuições dos estudos linguísticos e, também, nos postulados teóricos
desconstrutivistas de Jacques Derrida.
Tais eixos epistemológicos unem-se, facilmente, ao passearem por “vários
universos linguísticos diferentes” (BAUMAN, 2005, p. 20). Esse entrecruzar teórico do
estruturalismo, do pós-estruturalismo e da Desconstrução derridiana contribui, em meio
às “encruzilhadas culturais”, para um redirecionamento dos estudos culturais, uma vez
que, com o advento desses campos teóricos, a totalidade representativa abordada nas
narrativas e a posição do “sujeito unificado” tornaram-se cada vez mais inconsistentes.
Dessa e de outras formas, uma análise sobre o desenvolvimento conceitual da
identidade e a sistematização de arcabouços teóricos que objetivam a validação de novos
discursos são fundamentais, já que vivemos em um mundo imbricado por metamorfoses
das mais diversas ordens, tais como: axiológicas; técnicas, teóricas e, sobretudo, culturais.
Antes de falar a respeito das especificidades da identidade cultural, é necessário
clarificar que a noção de identidade buscada para o teor da pesquisa é fabricada na era
pós-moderna, em que “o imaginário e a ideia de que a identidade deva ser uma raiz única,
fixa e intolerante” (HALL, 2003, p. 80) é aniquilada. Desta maneira, pensar a identidade
na pós-modernidade é perceber como ela se mostra, se constrói e se desenvolve na alçada
do pertencimento, do deslocamento e, inevitavelmente, da fragmentação dos sujeitos.
Zygmunt Bauman (2005) é sucinto ao afirmar que a globalização traz à baila “a
descoberta de que a identidade é um monte de problemas, e não uma campanha de tema
único” (BAUMAN, p. 18). Para o autor, essa problemática justifica-se porque o mundo
em que vivemos divide-se em fragmentos descoordenados e as nossas individualidades
estão desagregadas em episódios com frágeis conexões. Ao desenvolver seus estudos na
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era “líquido-moderna”, Bauman (2005) propõe que a identidade e o pertencimento não
detêm a “solidez de uma rocha”, pois mudam com o passar do tempo.
Stuart Hall, ao desenvolver seus estudos, em A Identidade Cultural na Pós-
modernidade (2003), chama a atenção para a discussão em torno da “crise de identidade”.
O autor parte do princípio de que as identidades estão mudando devido a um processo de
transformação das sociedades modernas no ultimo quartel do século XX. Para ele, essas
mudanças fazem com que o sujeito tido como unificado, até certo tempo, se desloque
socialmente e de si mesmo.
Partindo disso, de acordo com as ideias de Hall (2003), a compreensão da
identidade cultural centra-se na noção de sujeito. Assim sendo, o autor aponta três
concepções distintas de identidade para cada um, quais sejam: sujeito iluminista; o sujeito
sociológico e o sujeito pós-moderno.
Conforme Hall (2003), o sujeito do iluminismo baseia-se na concepção de alguém
centrado, dotado de razão, unificado. Ou seja, uma concepção individualista em que a
pluralidade, por exemplo, que é um aspecto marcante do mundo moderno, era um campo
inexplorado.
Na segunda noção de sujeito, o sociológico, consoante o autor jamaicano, há uma
reflexão sobre “a complexidade do mundo moderno e a consciência de que este núcleo
interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente, mas era formado na relação com
outras pessoas” (HALL, 2003, p. 11). Dessa maneira, em concordância com o autor, é
possível afirmar que a identidade do sujeito sociológico ganha forma através da interação
entre o eu e a sociedade.
A terceira e última concepção, a de sujeito pós-moderno, aponta para o indivíduo
sem “identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ‘celebração
móvel’, transformada [...] em relação às formas pelas quais somos representados [...] nos
sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2003, p. 13). Essa concepção nos direciona
para o entendimento de que a categorização identitária, seja no que se refere às questões
étnicas, culturais, religiosas ou de gêneros, torna-se algo cada vez mais distante e
inatingível, devido ao processo de globalização.
Com efeito, de acordo com o juízo de Hall (2003), a globalização é um dos
principais responsáveis pelas mudanças estruturais e pela fragmentação das identidades
na modernidade. O autor sugere que esse acontecimento faz com que os sujeitos se
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desloquem e mantenham contato com diversas culturas, impossibilitando, assim, a
existência de identidades homogêneas, unificadas, completas e seguras, e fazendo surgir
identidades híbridas. Sobre essa questão, Hall (2003, p. 3) explica que:
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e
fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito
unificado.
Como é perceptível, a identidade que antecede a era pós-moderna, por assim dizer,
era rígida e inegociável, tal como a identidade do sujeito iluminista desenhada por Hall
(2003). O mundo moderno, por sua vez, é composto por ações que “fragmentam as
paisagens culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no
passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (HALL,
2003, p. 9). Como resultado disso, surgem sujeitos fragmentados e, paralelamente,
identidades compostas por estruturas voláteis e transitórias.
Para além disso, outro ponto incisivo na dialética da identidade cultural proposta
por Hall (2003) refere-se à ideia de nação, cultura nacional e identidade nacional. Nessa
perspectiva, o autor desenvolve conceituações em que as culturas nacionais são
comunidades imaginárias. Tais conjunturas são aglutinadas por um encadeamento
sincrônico, uma vez que o sujeito se situa na representação da identidade nacional e esta,
de maneira simultânea, necessita da união desses indivíduos para completar o sentido que
a coletividade imaginada precisa (ou pensa precisar). A fim de elucidar alguns pontos
pertinentes, referentes a essas questões, as palavras de Hall (2003, p. 49-50) se fazem
necessárias:
As culturas nacionais são compostas não apenas de instituições
culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura
nacional [...] é um modo de construir sentidos que influencia e organiza
tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As
culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre a “nação”, sentidos com
os quais podemos nos identificar, constroem identidades.
Num processo evolutivo constante, é válido inferir que as interações sociais, em
meio às trocas culturais, acabam por substanciar a manutenção das identidades nacionais
e, paradoxalmente, fragmentá-las.
No contexto dos estudos culturais, como vimos, a identidade tornou-se um quadro
trivial através do qual sua investigação é feita a partir de uma ampla gama de fenômenos,
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e de “sistemas partilhados de significação” (SILVA, 2014, p. 42), a partir daí, os
indivíduos, incorporados em mecanismos culturais, constroem significados ordenados
que reforçam o nacionalismo e a identidade individual.
Em meio às produções pós-emancipatórias que fortalecem a consciência
nacionalista, o escritor Mia Couto, em seus diversos romances, alude à questão identitária
de modo que a experiência do povo moçambicano é retratada através de traços
particulares que compõem a sua memória e resgata, através da ficção, os diferentes
aspectos linguísticos, históricos e os costumes significativos para a consolidação da
identidade cultural moçambicana. Assim sendo, as narrativas miacoutianas representam,
na contemporaneidade, a pluralidade identitária moçambicana num cenário pós-
independência, imprimindo, nos leitores de sua obra, por conseguinte, a realidade cultural
da nação.
O Sujeito Pós-Moderno e a Identidade Cultural na Obra Jesusalém, De Mia
Couto
Mia Couto, pseudônimo de Antônio Emílio Leite Couto, nasceu em Beira,
Moçambique, em 5 de julho de 1955. Ele é filho do jornalista e escritor Fernando Couto,
que pertencia a grupos intelectuais de sua cidade, responsáveis por propagar a cultura de
Moçambique. Em conformidade com Pires Laranjeira (2001), o escritor africano deu
início à vida literária escrevendo seus primeiros poemas e publicando-os, aos 14 anos, no
jornal Notícias de Beira, movido pelo exemplo paterno. Posteriormente, o escritor
publicou crônicas e contos, conduzido por um ideal anticolonial. Sua produção literária é
imbricada por temáticas diversas, tais como: a mistura de raças, hibridismo cultural, o
fantástico/maravilhoso e, à parte isso, por uma engenhosidade com as palavras. As
narrativas miacoutinas são tingidas por uma linguagem inventiva que, segundo Laranjeira
(1995b, p. 314), é “típica de escritores colonizados, [...], que procuram afirmar uma
diferença linguística e literária no interior da língua do colonizador”. No que se refere à diversidade temática e aos aspectos que, aparentemente, são alheios à realidade:
Mia Couto entrelaça culturas e registos diversos, num equilíbrio que
permite falar do racismo, da guerra, da vida e da morte, do amor e do
ódio, da política e do comércio de almas, sempre com o gosto de contar
desempenhando o papel de farol do leitor, redefinindo os seus gostos e
visões de mundo, como se a ficção pudesse devolver à realidade a
fantasia da verdade (LARANJEIRA, 2001, p. 203).
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Com base nisso, é possível constatar que Mia Couto enceta discussões acerca de
diversas indigências ao compor narrativas ambivalentes suturadas por passado e futuro,
utopias e pesadelos, esquecimentos e lembranças, luzes e trevas, tão bem representadas
por uma imaginação demasiado fértil e materializadas numa “reinvenção linguística”
(NOA, 2017, p. 116) que anseia pela construção da identidade perdida (africana e
moçambicana).
A obra Jesusalém (2009), do autor referido, ilustra a utopia criada por Silvestre
Vitalício. Ele, ao refugiar-se, juntamente com seus dois filhos Mwanito e Ntunzi, numa
estadia alternativa, a coutada, tenta fugir das memórias sofridas ocasionadas pelos
massacres da guerra e da ação colonizadora. Além do pai e dos dois filhos, o refúgio
escolhido por Vitalício é habitado, ainda, por Zacaria Kalash, homem de confiança da
família, e por dois semi habitantes, a saber: o Tio Aproximado, encarregado de levar
mantimentos para o ambiente rural, e a jumenta Jezibela, que satisfazia os desejos carnais
de Vitalício. Isso porque a entrada de mulheres no recinto era, terminantemente, proibida.
O romance estrutura-se em três livros seguidos de capítulos que recebem nomes.
A obra é narrada, majoritariamente, por Mwanito, que diz:
Eu nasci para estar calado. Minha única vocação é o silêncio. Foi meu
pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para
apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios no plural. Sim, porque não há
um único silêncio (COUTO, 2009, p. 15-16).
As falas do então narrador podem subentender uma subversão semântica, uma vez
que o relato do emudecimento faz uma referência ao apagamento cultural que hostilizou
os povos africanos durante um longo período. Assim, é válido assegurar que os versos
escritos não se limitam a uma retórica posta. Além disso, eles são veículos que atestam
que a nulidade cultural de um povo pode ser reivindicada através de narrativas, uma vez
que estas são um “exercício de manifestação de poder. [...] Um mecanismo de denúncia
quando não mesmo de confrontação” (NOA, 2017, p. 81) à ocidentalização responsável
por forjar realidades adequadas aos próprios interesses.
O primeiro livro que compõe a narrativa é intitulado A Humanidade e traz as
confissões do filho mais novo de Silvestre Vitalício, Mwanito, que se encarrega de
mostrar, aos receptores da obra, a situação de toda a família exilada na coutada. O lugar
escolhido por Vitalício caracteriza-se como um arquétipo geográfico híbrido ao mesclar
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algumas questões culturais, raciais e políticas, próprias do cenário moçambicano e dos
habitantes que ali viviam.
Logo no livro um é perceptível uma renegação ao exepcionalismo europeu e uma
busca inquietante pela identidade perdida. Essa reclamação identitária pode ser
constatada, inicialmente, a partir dos aspectos orais que compõem os símbolos
moçambicanos, evidenciados ao longo da prosa. A marca da oralidade moçambicana se
faz presente no nome de um dos filhos de Vitalício: Mwanito. Tal alcunha é um
diminutivo de Mwana, “em chissena, língua própria do centro de Moçambique”
(COUTO, 2009, p. 44). A palavra significa rapaz, menino, filho. Essa valorização dos
dialetos locais atinge uma dimensão representativa da identidade cultural de Moçambique
e assinala uma procura pela autonomia cultural.
Com o desejo de criar um universo particular, invisível às incoerências sociais que
assolavam Moçambique, a mudança para a coutada significa a purificação do mundo vil
e a esperança de sobreviver longe das imposições civilizatórias. Assim, Mwanito, “o
afinador de silêncios”, explica que:
Quando nos mudamos para Jesusálem, meu pai nos conferiu outros
nomes. Rebaptizados, nós tínhamos outro nascimento. E ficávamos
mais isentos de passado. (COUTO, 2009, 37). [...] Na cerimônia de ―
desbaptismo, os nomes são trocados, segundo a vontade de Silvestre:
Orlando Macara passa a ser o Tio Aproximado, Olindo Ventura
transforma-se em Ntunzi e Ernestinho Sobra torna-se Zacaria Kalash.
Apenas Mwanito permanece com o mesmo nome, porque, de acordo
com o pai, ― ainda estava nascendo. Apegado às crenças ancestrais,
Aproximado ainda tenta fazer com que o cunhado dê os nomes de seus
antepassados aos filhos, para protegê-los. Mas Silvestre recusa, pois
―se não há passado, não há antepassados (COUTO, 2009, p. 39).
A dinâmica das relações entre Vitalício e os filhos sugere uma reformulação
organizacional designativa e significa a fuga do passado em meio à guerra civil. Por outro
lado, oportuno é dizer que tal acontecimento gera uma “crise de identidade” generalizada
na família, mudando as “identidades pessoais, abalando a ideia [...] de sujeitos integrados”
(HALL, 2003, p. 9). Assim, os desbatismos são como um distanciamento histórico e
pessoal.
Outro aspecto relevante na conduta de vitalício corresponde às suas imposições.
Ele, ao fazer uso do poder que os mais velhos exercem sobre os mais novos, ilustra a
identidade do sujeito iluminista, “dotado das capacidades de razão, de consciência e de
ação” (HALL, 2003, p. 05). O patriarca, que se contrapõe aos discursos alheios, impede
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que os filhos escolham seus destinos e os condiciona ao próprio crivo axiológico que ele
pensa ser o mais confiável, como mostra o excerto a seguir:
—Vou dizer uma coisa, nunca mais vou repetir: vocês não podem
lembrar nem sonhar nada meus filhos.
—Mas eu sonho, pai. E Ntunzi se lembra de tanta coisa.
—É tudo mentira. O que vocês sonham fui eu que criei nas vossas
cabeças. Entendem? —Entendo, pai.
—E o que vocês lembram sou eu que acendo nas vossas cabeças. O
sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas.
Mas não havia falecidos nem território das almas. O mundo tinha
terminado e o seu final era um desfecho absoluto: a morte sem mortos.
O país dos defuntos estava anulado, o reino dos deuses cancelado. Foi
assim que, de uma assentada, meu pai falou. Até hoje essa explanação
de Silvestre Vitalício me parece lúgubre e confusa. Porém, naquele
momento, ele foi peremptório:
— É por isso que vocês não podem nem sonhar nem lembrar. Porque
eu próprio não sonho, nem lembro. [...]
[...] Na verdade, não nasci em Jesusalém. Sou, digamos, emigrante de
um lugar sem nome, sem geografia, sem história. Assim que minha mãe
(Dordalma) morreu, tinha eu três anos, meu pai pegou em mim e no
meu irmão mais velho e abandonou a cidade (COUTO, 2009, p. 18-21).
Na visão filosófica de Immanuel Kant (2006), os processos civilizatórios que
educam os homens os fornecem conhecimentos e habilidades para que eles possam
utilizar no mundo e aplica-los ao próprio ser humano. De maneira análoga, é possível
afirmar que isso acontece com Vitalício que, tal como o sujeito iluminista descrito por
Hall (2003), é o centro de si mesmo, autossuficiente e autoreferenciado.
No livro dois, cujo título é A visita, a crise identitária se estabelece face à
pluralidade cultural. Esta parte da obra narra as aventuras da portuguesa Marta, que
manifesta várias identidades “não unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente” (HALL, 2003,
p. 13). Em um certo momento do romance, a personagem confessa: “antes de ir para
África devia fazer com que África viesse até mim numa cidade que dizem ser a mais
africana da Europa” (COUTO, 2009, p. 174). Em meio ao hibridismo de identidades,
portuguesa e africana, Marta, agora, narradora, exemplifica que o sujeito pós-moderno
não se constitui como indivíduo legítimo de uma determinada nação, mas produz a ideia
de nação a partir de um sistema simbólico representativo.
Ainda em Portugal, Marta procura os serviços esotéricos de um Professor, que
promete desvendar o paradeiro de pessoas amadas e perdidas. Há muito, a mulher tenta
encontrar seu amor, que desaparecera em uma viagem de trabalho. A então narradora
admite:
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Antes de ir para África devia fazer com África viesse até mim, numa
cidade que dizem ser a mais africana da Europa. Procuraria Marcelo
sem ter que sair de Lisboa. [...] ante a página de classificados, o meu
dedo parou sobre o Professor Bambo Malunga. Junto à fotografia do
adivinho listavam-se as mágicas habilidades: <traz de volta a pessoa
querida, ajuda a encontrar a pessoas perdida>. [...] o anúncio pedia:
<foto da pessoa, sete velas pretas, [...] >. O homem que me abriu a porta
era quase um gigante. A túnica colorida aumentava ainda mais o seu
volume. [...]. Bambo era de outras Áfricas, mas não se acanhou: <os
africanos>, disse ele, <são todos bantos, todos parecidos, usam as
mesmas manhas e os mesmos feitiços> (COUTO, 2009, 175).
O excerto evidencia a ideia de identidade do sujeito pós-moderno, produzida no
mundo globalizado, e reafirma as discussões formuladas por Hall (2003), que assegura
que as identidades não são unificadas e homogêneas como representam ser. As nações,
na pós-modernidade, são compostos híbridos, multiculturais, decorrente de uma
“mudança estrutural que está fragmentando as sociedades modernas no final do século
XX” (HALL, 2003, p. 9). Em outras palavras, essas identidades são plurais e instáveis e,
nunca, singulares e sólidas.
A chegada de Marta à coutada, universo inteiro que Vitalício criara, acaba por
desestruturar todos os alicerces firmados pelo chefe de família, uma vez que esconder dos
filhos a imagem da mãe e o papel da figura feminina enquanto sujeito social sempre fora
um objetivo a ser seguido, como revelam as declarações de Mwanito:
A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi
subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas. Eu vivia num
ermo habitado apenas por cinco homens (COUTO, 2009, p. 13).
Sabe-se que a identidade individual se estabelece e se solidifica a partir do contato
com o outro, como explica Kathryn Woodward (2014, p. 47), “uma identidade é sempre
produzida em relação a uma outra”. É na diferença que os grupos encontram o
entendimento necessário para firmar-se naquilo que são, dando sentido ao princípio da
diferença que circunda a dialética da identidade. A diferença, nas palavras de Woodward
(2014, p. 50-51), pode ser entendida como “fonte de diversidade, heterogeneidade e
hibridismo, sendo vista como enriquecedora”.
Ora, se as identidades individuais, nesse sentido, se estabelecem enquanto
representações sociais e não podem restringir-se ao ideal unilateral, a tentativa de
exclusão da identidade feminina, por parte de Vitalício, deturpa a visão dicotômica da
qual o princípio da diferença se vale.
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Face a essas observações, é importante destacar o papel secundarista
desempenhado pela personagem feminina, Marta, que, por vezes é estigmatizada pelo
discurso machista de Vitalício, como mostram os recortes abaixo:
- Vão os dois na casa da portuguesa e transmitam a minha ordem.
- Que ordem, pai? - Perguntou Ntunzi.
- Ainda pergunta?
Nós que intimássemos a regressar à cidade. Fôssemos curtos, fôssemos
grosseiros. A tuga que recebesse a mensagem sem meios-tons.
- Quero essa mulher longe, fora e sem retorno.
[...]
- Chamo-me Marta.
- Não chamo mulher pelo nome.
[..]
- Eu hei-se sair, não se preocupe. O que me trouxe a África já está
acabando.
- E o que a trouxe aqui, posso saber?
- Venho à procura do meu marido.
[...]
- Uma mulher não sai à procura de marido. Uma mulher fica à espera
(COUTO, 2009, p. 154-155).
Peremptório, o patriarca profere nomes ultrajantes à portuguesa, às mulheres, em
geral, como narra Mwanito: “meu pai disse que todas as mulheres são putas...” (COUTO,
2009, p.156). De acordo com as ideias de Woodward (2014), a desvalorização é algo
comum nas oposições binárias e, assim sendo, “os termos em oposição recebem uma
importância diferencial, de forma que um dos elementos da dicotomia é sempre mais
valorizado ou mais forte que o outro” (WOODWARD, 20014, p. 51). Nessa dicotomia
homem/mulher, a identidade feminina é sempre enfraquecida. Com efeito, algumas
produções literárias pós-coloniais, tendem a desconstruir essa visão dicotômica
excludente que, por tanto tempo, foi determinante para a estigmatização da identidade
feminina.
Woodward (2014, p. 54) aponta, ainda, que “o significado é produzido por meio
de um processo de diferimento ou adiamento, o qual Derrida chama de Différance”.
Assim, para a autora, o que parece preciso é fluido e inseguro e não apresenta ponto de
fechamento. De acordo com essas ideias, nenhuma dicotomia é ontologicamente fechada
em si mesma e a condição secundarista atribuída à mulher pode ser desconstruída.
O livro três tem por título Revelações e Regressos. Revelações estas circunscritas
à morte da mãe de Mwanito e Ntunzi, Dordalma, que se suicidara após sofrer violência
sexual praticada por vários homens. A mãe de família, a propósito, tem um nome
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carregado de significação face aos signos linguísticos e o significado que lhe é intrínseco.
A composição por aglutinação da palavra Dordalma, aglutinada porque a vogal “a”, de
Dor-da-alma (justaposição), sofre uma síncope, simboliza a difícil vida de uma mulher
moçambicana que viveu privada de seus direitos básicos, “em casa, Dordalma, nunca era
mais do que cinza, apagada e fria. Os anos de solidão e descrença a habilitaram a ser
ninguém, simples indígena do silêncio” (COUTO, 2003, p. 256-257). Numa ótica que
envolve questões metafísicas, é possível afirmar que a presença de Dordalma era tão
notável quanto uma alma poderia ser, o que dá espaço para uma discussão acerca das
formações identitárias de gênero, numa perspectiva voltada para um dos cinco processos
de descentramento do sujeito pós-moderno: o feminismo. Como reitera Hall (2003, p.
14), “o feminismo faz parte de um grupo de ‘novos movimentos sociais’ que emergiram
durante os anos sessenta (o grande marco da modernidade tardia)”. Tal agrupamento de
ideias e troca teórica configura uma nova possibilidade de reversão da nulidade da mulher
nas sociedades patriarcais.
Os regressos, por sua vez, são feitos tanto por Marta, que volta a Portugal,
“regresso a Portugal sem Marcelo, regresso sem parte de mim. Para onde quer que eu vá
não encontrarei suficiente espaço para dar sombra ao voo das garças” (COUTO, 2009, p.
263), quanto pela família de vitalício que abandona a coutada.
A obra Jesusalém (2009) traz em si uma riqueza no tocante à construção
linguística e cultural do povo de Moçambique, esses fatores são imprescindíveis para a
construção da identidade de um país, uma vez que, ao possibilitar uma discussão sobre as
aproximações culturais europeias e africanas, enquanto colonizadores e colonizados,
escritores como Mia Couto podem reclamar a identidade perdida e reverter o
desvirtuamento cultural ocasionado pelo poder colonizador.
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Conclusão
A partir da análise do romance Jesusalém (2009), é possível constatar que a escrita
de Mia Couto apresenta uma ruptura com os discursos eurocêntricos e evidencia o perfil
pós-colonial de Moçambique, atuando, assim, como um literato antagônico às imposições
do colonialismo. A produção de ficções que versam sobre questões concernentes ao
padecimento dos imigrantes, dos ameríndios, dos periféricos, dos expatriados, busca, no
âmago das situações de aculturamento (apagamento cultural), de violação de direitos e de
perdas de identidades, o fio condutor para a libertação e desconstrução ideológica face
ao colonialismo, a fim de reconstruir identidades, seja ela individual ou nacional.
Para além disso, Mia Couto atingiu uma posição de destaque no universo literário,
porque conseguiu fazer com que a literatura moçambicana transgredisse os limites
geográficos de sua nação, permitindo-a um alcance mundial devido às várias traduções
de sua obra. Obra esta que ilustra, a “explosão de uma liberdade subjetiva e criativa [...]
em que o verbo e a inquietação identitária se fundem na sua imagem de marca” (NOA,
2017, p. 20). Isto é, na sua própria singularidade estética.
Com efeito, é necessário considerar, ainda, a dificuldade que circunda a questão
da identidade de um sujeito, que pode ser adquirida ou perdida, dependendo do contato
que ele mantém com outros povos que venham a se inserir no universo cultural em que
ele se encontra. Dessa maneira:
O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco
compreendido na ciência social contemporânea para ser
definitivamente posto à prova (HALL, 2003, p. 8).
Isso acontece porque, conforme as ideias de Hall (2003), as sociedades modernas
estão sofrendo uma “mudança estrutural” que está “fragmentando as paisagens culturais
de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos tinham
fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais” (HALL, 2003, p. 9). Desse e de
outros modos, as condições em que se encontram as personagens da narrativa, Jesusalém
(2009), refletem os desafios encontrados no mundo contemporâneo, causados pelo
avanço significativo das tecnologias, da comunicação e informação, criando,
quotidianamente, novas redes sociais e conjuntos simbólicos que resultam, assim, em
novos parâmetros e novas experiências adjacentes.
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