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O que é o direito para o jurista?*

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O que é o direito para o jurista? O jurista usa o conceito de direito, implícita ou explicitamente, quando responde a perguntas sobre o direito. O uso é explícito quando se pergunta se uma determinada norma é direito, ou ainda, se uma deter-minada ordem normativa é direito. O uso é implícito quando se pergunta se um determinada norma é de direito português ou de direito internacional público, porque os conceitos de direito português ou direito internacional público impli-cam o conceito de direito. Debruçar-nos-emos aqui sobre estes e outros exem-plos das duas formas de uso. Nestes casos a resposta depende de uma definição do conceito de direito, ou de uma parte dessa definição. Aqui interessa-nos a res-posta que o jurista dá a estas questões como jurista, isto é, na sua função específica de responder segundo o direito, de dar a resposta que, em sua opinião, o direito dá, ou, dito ainda de outra maneira, de orientar o comportamento das pessoas de acordo com o direito1. Trata-se, portanto, de um conceito normativo de direito e de uma definição jurídica de direito. De uma definição jurídica de direito se espera que determine em termos gerais o que segundo o direito deve ser con-siderado direito. A definição é jurídica precisamente porque é dada segundo o direito. Segundo o direito, porém, só pode querer dizer segundo uma determi-nada ordem jurídica. O jurista como tal determina o conceito geral de direito de uma ordem jurídica particular, tendo em vista as consequências jurídicas que dependem desse conceito.

Pode acontecer que o que deva ser considerado direito para certos efeitos não o deva ser para outros efeitos. Veremos que é esse o caso no direito português e

* Por decisão do Autor, este texto é publicado segundo a ortografia anterior ao novo Acordo Ortográfico.1 Sobre o sentido das frases da doutrina jurídica, cf. o meu artigo “Science and Technique in Jurisprudence”, Rechtstheorie, Beiheft 10, 1986, pp. 349-352.

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na generalidade dos direitos estatais. Temos então diferentes critérios de juridi-cidade e diferentes definições de direito simultaneamente em vigor na mesma ordem jurídica. Haverá então que relacionar entre si essas diversas definições e determinar como podem coexistir sem prejudicar a coerência da ordem jurídica e a sua função de orientar o comportamento.

Por esta via pode o jurista ter de concluir que uma determinada ordem jurí-dica adopta ou recebe um conceito moral de direito, que se define autonoma-mente dos seus particulares critérios de juridicidade. Mas já não é tarefa do jurista como tal dar uma definição do direito que não se justifica em função das normas de determinada ordem jurídica ou das ordens jurídicas que intervêm na forma-ção de ordens jurídicas mais gerais (como o direito internacional público ou o direito europeu, que então funcionam como uma ordem jurídica particular). Outros, pelo menos no sentido de que se justificam diversamente, são os con-ceitos de direito da Teoria e Filosofia do Direito e da Sociologia Jurídica. Diver-sidade não implica irrelevância. Um conceito de uma prática, no sentido de uma parte da praxis ou prática geral do agir humano, como é o direito, que não parta do modo como ela é pensada por aqueles que a praticam – e são os juristas que têm a função específica de pensar por dentro a prática do direito – é certamente um mau conceito.

A definição de direito do Direito Constitucional e o conceito de ordem pública constitucionalCompete ao Direito Constitucional responder à pergunta se determinada norma é direito de acordo com os critérios de juridicidade que a constituição em sentido material estabelece para o conjunto da ordem jurídica de que faz parte. Para Kel-sen a constituição em sentido material é constituída pelas normas que regulam a produção das normas gerais que ela directamente autoriza e que constituem a legislação, por oposição à constituição formal, que é a constituição escrita, o documento que contém as normas da constituição material e muitas outras e por oposição à constituição em sentido lógico-formal, que é pressuposta porque não existe um acto normativo com esse conteúdo, mas que é logicamente necessária para autorizar a constituição e o costume, para que estes se possam pensar como válidos2. Além disso, para Kelsen, os critérios definidores do conjunto de nor-mas que constituem uma determinada ordem jurídica são idênticos aos critérios do que é direito em geral, porque para ele só uma ordem jurídica se pode pensar como válida. A doutrina posterior tende a recusar esta última tese e a alargar o conteúdo quer da constituição material quer da constituição formal, de modo a

2 Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, 2ª ed., Wien: Deuticke, 1960, 228-229.

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abrangerem outras normas3. Mas haverá largo consenso em incluir na constitui-ção em sentido material as normas que, pelo menos em última análise, permitem distinguir o que é direito da mesma ordem jurídica a que pertence a constituição do que o não é. Entre essas normas se incluirão as que definem critérios do que para essa ordem jurídica pode ser considerado direito em geral. Tais normas são os critérios de juridicidade da ordem jurídica.

Importa distinguir a questão que nos interessa de outras que com ela podem estar conexas. No Direito Constitucional levanta-se a questão de saber se uma determinada norma é uma norma jurídica para o efeito de estar sujeita ao con-trolo de constitucionalidade ou de legalidade do tribunal constitucional. Trata-se aqui de apurar os limites da competência jurisdicional do tribunal constitucio-nal, se, por exemplo, o tribunal constitucional deve julgar da conformidade ou contrariedade à constituição de uma norma de uma convenção colectiva de tra-balho4. É uma questão diferente da de saber se essa norma é válida como norma de certo direito e, como tal, faz parte integrante de certa ordem jurídica. Se o tribunal constitucional responder positivamente à primeira questão, não terá ainda respondido à segunda. Se responder negativamente à primeira, nem por isso a norma em causa deixará de estar em vigor, de fazer parte da ordem jurí-dica. Quer isto dizer que o direito que o tribunal constitucional pode fiscalizar quanto à sua constitucionalidade é, então, menos abrangente que o conjunto das normas da ordem jurídica.

Passando agora às decisões dos tribunais acerca da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de uma norma, elas inserem-se geralmente num processo de determinação do direito aplicável. A decisão de que uma norma é inconstitu-cional pode ser o objecto ou o fundamento de uma decisão do tribunal consti-tucional ou de qualquer outro tribunal, dependendo do sistema de controlo da constitucionalidade da ordem jurídica. As normas da constituição são critérios da validade das normas que são produzidas de acordo com a constituição ou que, não o sendo, como o costume ou o direito anterior à constituição, são igualmente controladas quanto à sua validade pela constituição. A decisão de inconstitucio-nalidade pode, porém, ter efeitos diversos consoante o sistema de tutela da cons-

3 Cf. por exemplo Alexander Hollerbach, „Ideologie und Verfassung“, Ideologie und Recht, ed. Wernar Maihofer, Frankfurt am Main: Klostermann, 1969, 45-61 e, entre nós, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, II, 6ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 36-38 (distinguindo entre constituição formal e constituição instrumental), J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, 1129-1140 (distinguindo o texto constitucional ou constituição formal do corpus constitucional).4 A propósito desta questão tratei da definição de “norma”, como objecto do processo constitucional, no meu voto de vencido ao acórdão nº 172/93 do Tribunal Constitucional, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24, 458-476.

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tituição da ordem jurídica e, em cada sistema, consoante os casos. No sistema português, na fiscalização concreta da constitucionalidade (art. 280º da Cons-tituição, LOTC, art. 80, nº 1), a decisão de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional só produz caso julgado no processo, e na fiscalização abstracta a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional pode produzir efeitos apenas ex nunc, ou suspender esses efeitos durante um certo prazo,5 e respeitará em regra os casos julgados (art. 282º nºs 3 e 4 da Constituição). Nestes casos a norma inconstitucional, não obstante a sua invalidade, produz efeitos pelo menos durante certo tempo ou para certos casos6. Como se explica que uma norma inválida produza efeitos? Os factos da sua criação e outros subsequentes podem dar origem a interesses ou faz inter-vir valores protegidos por princípios constitucionais, que no caso se opõem ao princípio da constitucionalidade, que implica a nulidade ou não produção de efeitos da norma inconstitucional. Esses princípios são sintetizados no nº 4 do artº 282º pela referência às razões de segurança jurídica, de equidade e de inte-resse público de excepcional relevo, que o Tribunal deve invocar para justiçar a restrição dos efeitos do primeiro princípio. Este regime dos efeitos da inconsti-tucionalidade aplica-se quer quando a inconstitucionalidade é devida à falta de

5 Assim o Acórdão nº 353/2012 do Tribunal Constitucional não aplicou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da suspensão de pagamento de subsídios de férias e de Natal relativos ao ano orçamental em curso. O Tribunal tomou assim posição contra a doutrina maioritária, invocada pelo juiz vencido Cunha Barbosa, que recusava a marcação de prazo para a produção de efeitos para o futuro (cfr. J. J, Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., II, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, 979, Gomes Canotilho, ob. cit., 1018, nota 40, Jorge Miranda, ob. cit., VI, 3ª ed., 2008, 303, Marcelo Rebelo de Sousa, O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional. I, Lisboa, 1988, 261, Carlos Blanco de Morais, Justiça Constitucional, II, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2011, 359-369). No sentido do Acórdão neste ponto, anteriormente, Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, Lisboa: Universidade Católica Editora, 1999, 724-732. José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3ª ed., Coimbra Almedina, 2007, 96 tinha o ponto por não líquido e Blanco de Morais (ibidem, 367-369) admitia a solução de postergar a publicação da decisão, nomeadamente por causa do ciclo orçamental, solução adoptada na Itália (e entre nós no caso do Acórdão nº 866/96, de 4-7-1996, publicado a 18-12-1996, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 34, 53-97), que Gomes Canotilho considerava poder ser substituída pela delimitação da eficácia temporal nos termos do nº4 do art. 282º (ibidem, 1019), contradizendo a posição referida.6 Pelo menos, na fiscalização concreta, o de ser pressuposto da sua própria revogação ou, verificadas certas condições, da declaração abstracta da sua inconstitucionalidade, nos termos desta. Rui Medeiros, ob. cit., 741 ss. e em Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 850-852 e agora Jorge Miranda, ob. cit., VI, 303-304 defendem, contra Miguel Galvão Teles, “Inconstitucionalidade Pretérita”, Nos Dez Anos da Constituição, ed. Jorge Miranda, Lisboa: Imprensa Nacional, 1987, 330-331 (cfr., no mesmo sentido, Blanco de Morais, ob. cit., 868) a possibilidade de se limitarem os efeitos na fiscalização concreta, quer difusa quer concentrada, segundo o modelo do nº 4 do art. 282º. Não há que decidir aqui a questão.

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condições de validade de uma norma específicas de certa ordem jurídica, quer quando é devida à falta de condições gerais de validade como norma jurídica, sendo certo que estas estão logicamente incluídas nas primeiras. De todo o modo, os critérios da constitucionalidade de uma norma relacionam-se com a questão de saber se uma norma é válida como norma de certa ordem jurídica e não com a questão de saber os critérios mais gerais de ser uma norma de direito ou crité-rios de juridicidade. E não havendo diferença do lado dos efeitos da invalidade, há que procurá-la do lado dos fundamentos da invalidade.

Há condições da produção ou criação de uma norma, e da sua manutenção em vigor, que por vezes se dizem condições formais de validade, e condições materiais, ou de conteúdo, da validade da norma. As condições formais variam segundo as diferentes ordens jurídicas, mas incluem sempre, como acentuou Kelsen, a eficácia do sistema normativo em que a norma foi criada e a eficácia da própria norma, na medida em que a superveniente ineficácia desta tem como consequência a sua revogação por costume negativo7. Independentemente da construção teórica de Kelsen8, o estabelecimento dessas condições de validade pode considerar-se como o conteúdo, ou parte do conteúdo, de uma norma de reconhecimento do direito interno, que do ponto de vista do direito internacional público é a aplicação de uma norma mais geral de direito internacional público relativa ao reconhecimento dos Estados e do seu direito. Discutiremos apenas se, contra Kelsen, há condições gerais de validade quanto ao conteúdo, que não dependam apenas das condições formais de validade das normas constitucionais com esse conteúdo. Uma vez que todos os conteúdos constitucionais são igual-mente condições de validade das normas cuja validade a constituição pretende controlar, a questão transforma-se na questão de saber se a constituição pode reconhecer conteúdos diferentes, e em que medida, ou se há conteúdos consti-tucionais resistentes à diferença. A questão põe-se relativamente ao reconheci-mento de normas criadas ao abrigo ou no domínio de aplicação de constituições diferentes, anteriores ou estrangeiras, ao reconhecimento de normas do direito internacional público e ao reconhecimento ou validação de alterações da própria constituição numa revisão constitucional. Poderá falar-se aqui, seguindo uma sugestão de Miguel Galvão Teles9, de uma ordem pública constitucional, aten-dendo à origem das normas que a integram e não ao domínio da sua aplicação. Miguel Galvão Teles estudou-a especialmente como limitação à atendibilidade da vigência passada do direito anterior, no quadro da ordem pública temporal,

7 Hans Kelsen, ob. cit., 218-221.8 Discutida em José de Sousa e Brito, “O Positivismo Jurídico e a Lei de Hume”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Coimbra: Almedina, 2002, II, 916-919.9 Miguel Galvão Teles, lug. cit., 322-323,notas 60, 61.

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em paralelo com a ordem pública internacional como limitação à atendibilidade, na ordem do foro, da vigência estrangeira do direito estrangeiro. Mas justifica-se a unidade do conceito nos quatro domínios referidos.

Direito e não-direito anteriorFoi no domínio do reconhecimento da validade do direito anterior criado pelo Estado nacional-socialista que Gustavo Radbruch apoiou várias decisões da juris-prudência alemã depois de 1945 que recusaram validade a normas que justifica-riam crimes praticados ao abrigo ou por ordem desse Estado10. A doutrina geral que Radbruch então formulou foi a seguinte:

“O conflito entre a justiça e a segurança jurídica será resolvido no sentido de que o direito positivo, assegurado pela formulação da autoridade e pela força, tem prima-zia, mesmo quando o seu conteúdo é injusto e inadequado, a não ser que a contra-dição da lei positiva com a justiça atinja uma medida tão insuportável que a lei como “direito inautêntico” (ou “incorrectamente dito”: “unrichtiges Recht”) tenha de ceder perante a justiça. É impossível traçar uma linha mais exacta entre os casos de direito inautêntico e as leis vigentes apesar do seu injusto conteúdo; mas uma outra delimi-tação pode fazer-se com toda a exactidão: onde nem sequer se procura alcançar a jus-tiça, onde a igualdade, que constitui o núcleo da justiça, é conscientemente negada na formulação autoritária do direito positivo, aí a lei não é apenas “direito inautêntico”, mas carece pura e simplesmente da natureza de direito.” 11

É possível distinguir neste texto de Radbruch dois critérios negativos, deli-mitadores do que é direito válido ou vigente em geral, em razão do conteúdo, na sua relação com a justiça: um critério de medida mais amplo (direito, que preen-che os critérios formais de validade, mas que ofende a justiça em medida insuportável), que define o conceito de direito inautêntico, como contrário do direito injusto vigente, e um critério mais restrito mas rigoroso (direito, que preenche os cri-térios formais de validade, mas que não pretende a justiça por negar a igualdade), que define o conceito de “não-direito” (“Nicht-Recht”12). Pode assim distinguir--se uma fórmula da insuportabilidade (dita “fórmula de Radbruch”, em versão simplificada: “direito insuportavelmente injusto não é direito”13), que marca a

10 Gustav Radbruch, “Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht“ (1946), Rechtsphilosophie III, ed. W. Hassemer, Heidelberg: C. F. Müller, 1990 (Gesamtausgabe 3), 83-93.11 Ibidem, 89.12 É o termo usado por Radbruch para o mesmo conceito em Vorschule der Rechtsphilosophie (1947), Rechtsphilosophie, III, cit., 151. 13 Alexy prefere reformular: “direito extremamente injusto não é direito”: Robert Alexy, Eine Verteidigung der Radbruchschen Formel, cit pela trad. castelhana de José Antonio Seoane: “Una defensa de la formula de Radbruch”, Anuario da Facultade de Dereito, 2001, 76, acessível online. Sobre as várias

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separação entre o direito válido ou vigente e o direito inválido ou não vigente, e uma fórmula da negação, que recorta, dentro do direito inautêntico ou incor-rectamente dito, o não-direito.

Como exemplos de não-direito mencionou Radbruch três espécies de nor-mas: as disposições em que o partido nacional-socialista reclamava para si a tota-lidade do Estado, as leis que trataram pessoas como sub-humanos e lhes nega-ram direitos do homem, as leis penais que, sem considerar a diferente gravidade do crime e para aterrorizar, cominavam a mesma pena, muitas vezes a pena de morte, para crimes de gravidade diferente14. Medidas por este critério, disse Rad-bruch, há partes inteiras do direito nacional-socialista que nunca alcançaram a dignidade de direito vigente15.

Numa primeira formulação da mesma doutrina, Radbruch tinha avançado na determinação positiva dos princípios da justiça postos em causa no direito anterior: “Há, portanto, princípios jurídicos que são mais fortes do que qualquer formulação jurídica autoritária, de modo que uma lei que os contradiz carece de vigência. Esses princípios são chamados direito natural ou direito racional. É certo que estão envoltos de muitas dúvidas no pormenor, mas o trabalho de séculos sempre produziu um conteúdo firme, que reuniu nas chamadas declara-ções de direitos do homem e do cidadão uma concordância tão abrangente que, em relação a muitos deles, só um cepticismo voluntário pode manter a dúvida.”16

Importa ter presente que Radbruch escrevia num Estado sem constituição formal e sob domínio estrangeiro, em que a tarefa da construção de um Estado de direito era o principal objectivo para o jurista. Na sua bela síntese final: “Temos que procurar a justiça e ao mesmo tempo que atender à segurança jurídica, que é ela própria uma parte da justiça, e que voltar a construir um Estado de direito, que satisfaça quanto possível os dois conceitos. A democracia é decerto um bem louvável, mas o Estado de Direito é como o pão de cada dia, como água para beber e ar para respirar, e o melhor da democracia é precisamente isto, que só ela é capaz de assegurar o Estado de direito.”17

É um facto notável que a jurisprudência alemã tenha adoptado a doutrina de Radbruch até hoje, várias vezes invocando as suas palavras ou o seu nome. Uma vez adoptada a Grundgesetz em 1949 e assinadas ou ratificadas a Declaração Uni-versal dos Direitos do Homem de 1948, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950 e o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos

interpretações e formulações da “fórmula de Radbruch”, cfr. Steffen Forschner, Die Radbruchsche Formel in den höchstrichterlichen „Mauerschützenurteilen“, Tübingen 2003 (dissertação online), 8-15.14 Ibidem, 90. 15 Ibidem, 89.16 „Fünf Minuten Rechtsphilosophie“ (1945), Rechtsphilosophie III cit., 79.17 “Gesetzliches Unrecht …” cit, 93.

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de 1966, e assim reconstruído o Estado de direito, a referência de Radbruch à convicção jurídica da obrigatoriedade dos direitos do homem foi naturalmente substituída na jurisprudência pela referência a estes instrumentos. É particular-mente elucidativa a jurisprudência alemã sobre normas do direito anterior das três espécies de não-direito mencionadas por Radbruch.

Foi assim que, por exemplo, o Tribunal Constitucional Federal, na sua decisão de 17 de Dezembro de 1953 sobre as relações jurídicas dos funcionários públi-cos com o Estado alemão (BVerfGE 3, 58 (119), invocou a doutrina de Radbruch para questionar se as leis nazis que substituíram integralmente os deveres dos funcionários para com o Estado em deveres para com o partido nazi se deviam considerar desde o início como não-direito, com a consequência da sua não apli-cabilidade originária. Entendeu que a “vigência sociológica” dessas leis anterior-mente impedia que se tirasse essa consequência, pelo que essas relações jurídi-cas apenas se extinguiram logicamente com a extinção do Estado nazi em 8 de Maio de 1945, tornada evidente nesse dia com a capitulação do exército18. Ora Radbruch tinha dado precisamente como exemplo de não-direito as leis que tratavam o partido nazi como se representasse a totalidade do Estado, pelo que consideraria a legislação anterior sobre os funcionários com uma daquelas par-tes inteiras do direito nacional socialista que nunca alcançaram a dignidade de direito vigente. O Tribunal implicou a invalidade dessas leis ao qualificar a sua vigência como meramente “sociológica”. Não precisaria de ter recusado a qua-lificação de “não-direito legal” (gesetzliches Unrecht) para justificar a produção de efeitos durante a sua vigência sociológica. Bastaria invocar razões derivadas dos valores e princípios próprios do novo Estado de Direito entretanto consolidado pela Grundgesetz, como a segurança jurídica, aliás invocada pelo Tribunal para a produção de efeitos.

Outros exemplos de normas anteriores que são certamente “não-direito legal” no sentido de Radbruch são as do § 2 e do § 3, 1, 1 do 11º Decreto sobre a Lei de cidadania do Reich de 25 de Novembro de 1941, O § 2 estatuía a perda da nacio-nalidade alemã do cidadão alemão que fosse judeu e tivesse ou passasse a ter resi-dência habitual no estrangeiro, o § 3, 1, 1 dispunha que “o património do judeu que perca a nacionalidade em virtude deste decreto fica confiscado pelo Reich com a perda da nacionalidade”. Ambas as normas foram consideradas como nulas desde o início, por não serem direito, com invocação explícita da doutrina de Rad-bruch, a primeira por decisão do Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE 23, 98 (106)) e a segunda por decisão do Supremo Tribunal Federal (BGHZ 16, 350 (354)). Nas palavras da primeira decisão, “não-direito anterior estatuído, que

18 Cfr. BVerfGE 6, 132 (198) que invoca a mesma doutrina, com citação expressa da obra de Radbruch, e repete as mesmas conclusões, no caso da Gestapo, a polícia política nazi.

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manifestamente ofende princípios constitutivos do direito, não se torna direito por ser aplicado e seguido”. Entre esses princípios está a proibição de arbítrio consagrada no direito positivo alemão pelo princípio geral de igualdade do nº 1 do artigo 3 da Grundgesetz e pela proibição de discriminação do nº 3 do mesmo artigo, que seriam violados pelo reconhecimento da eficácia jurídica das perdas de nacionalidade.19 O Tribunal viu-se, porém, confrontado com o artigo 116, nº 2 da Grundgesetz, que dispõe sobre os efeitos das perdas de nacionalidade durante o período nazi: “Pessoas que foram anteriormente nacionais alemães e às quais entre 30 de Janeiro de 1933 e 8 de Maio de 1945 foi retirada a nacionalidade por razões de política, raça ou religião, e os seus descendentes, readquirem a nacio-nalidade mediante pedido. Consideram-se como não tendo perdido a naciona-lidade desde que depois de 8 de Maio de 1945 tenham fixado residência na Ale-manha e não tenho expressado vontade contrária.” Esta disposição, que se refere literalmente a “readquirir a nacionalidade” (“wieder einzubürgern”), explica-se, segundo o Tribunal, pela nulidade das leis de perda da nacionalidade em com-binação com o relevo a dar à vontade das pessoas em causa, que não poderiam estar sujeitas a readquirir uma nacionalidade que já não desejavam20. A dispo-sição não se aplica a pessoas entretanto falecidas, de cujos direitos sucessórios se trata, como era o caso do processo, em que não se põe a questão do respeito pela vontade contrária, pelo que serão tratadas como não tendo nunca perdido a nacionalidade. O Tribunal separou bem a questão da invalidade da lei da dos efeitos da consequente nulidade, quanto à repristinação da situação anterior, que ficou dependente da vontade das pessoas.

A terceira espécie de normas mencionadas por Radbruch como sendo não--direito é a de normas anteriores justificativas de crimes cometidos por ordem ou por incitamento do regime totalitário, com manifesta violação da igualdade de tratamento relativamente a crimes de igual gravidade, cometidos sem a cir-cunstância pretensamente justificativa. Radbruch discutiu precisamente casos desta espécie de crimes praticados ao abrigo de leis nazis no artigo doutrinário que vem sendo referido e a sua doutrina foi seguida em sentenças sobre crimes do período nazi do Supremo Tribunal da Zona britânica e do Supremo Tribunal

19 BVerfGE 23, 98 (107). 20 Com base apenas neste artigo 116, nº 2 da Grundgesetz, sem invocar a fórmula de Radbruch, tinha o Tribunal Constitucional Federal (BVerfGE, 8, 81 (86) considerado como não declarada a perda da nacionalidade de um judeu alemão que posteriormente adquiriu a nacionalidade americana, num caso de extradição. Sobre os problemas de direito internacional privado que podem resultar nestes casos da dupla nacionalidade e como um tribunal estrangeiro pode tratar os mesmos casos através do recurso à sua ordem pública, invocando a violação do direito internacional público por ofensa dos direitos do homem, ver Wilhelm Wengler, Internationales Privatrecht, Berlin: de Gruyter, 1981, II, 869.

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Federal21. Ora a doutrina de Radbruch foi novamente invocada, embora não sem contestação, para considerar como não-direito as leis da República Democrática Alemã, que consideravam justificado o uso de arma de fogo pelos guardas fron-teiriços para impedir o “crime” de passar a fronteira ilegalmente. Com efeito, o § 27, 2, 1 da Lei da Fronteira dispunha que “está justificado o uso de arma de fogo para impedir a execução iminente ou a continuação da execução de um facto punível, que nas circunstâncias se apresenta como um crime” e segundo o § 213, 3 do Código Penal era punível com pena de um a oito anos de prisão o crime de passar ilegalmente a fronteira por meios ou métodos perigosos, entre os quais contava o uso de escada. Num caso em que dois guardas fronteiriços atiraram a matar, e efectivamente mataram, uma pessoa que estava prestes a passar o muro fronteiriço com ajuda de escada, o Tribunal Federal discutiu a aplicabilidade da doutrina de Radbruch (decisão de 3 de Novembro de 1992: BGHSt 39, 1 (15,16). Reafirmou a doutrina, mas entendeu que não era aplicável ao caso, porque, se era certo que, segundo a interpretação da praxis estatal da República Democrá-tica Alemã o §27, 2, 1 da Lei da Fronteira permitiria justificar o facto, essa inter-pretação não era correcta. A correcta interpretação do mesmo artigo deveria ser feita à luz do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, em vigor desde 23 de Março de 1976, e do princípio da proporcionalidade, que se deveria considerar acolhido pela constituição do mesmo Estado. “Nesta interpretação o comportamento dos réus não está coberto pela causa de justificação do § 27, 2 da Lei da Fronteira”22, pelo que nada obstaria à condenação por homicídio segundo o direito posterior da Alemanha Federal, como lei mais favorável. Sem alterar a interpretação dada ao §27, 2, o Tribunal Federal passou, porém, posteriormente, a considerar a doutrina de Radbruch aplicável aos vários comandos de impedir a passagem de fronteira a custo do homicídio, se necessário, pelo que “uma causa de justificação que dava à proibição de sair da República Democrática Alemã pre-cedência sobre a vida de pessoas, na medida em que permitia o homicídio doloso de fugitivos desarmados, é ineficaz por manifesta e insuportável ofensa de man-damentos elementares da justiça e de direitos do homem protegidos pelo direito internacional público. A ofensa é aqui tão grave que ofende as convicções jurídi-cas relativas ao valor e dignidade do homem, que são comuns a todos os povos; em tal caso o direito positivo tem de ceder perante a justiça (chamada “fórmula de Radbruch”)” (BGHSt 41, 101 (105).

Sobre a terceira espécie de não-direito mencionada por Radbruch pro-nunciou-se enfim o Tribunal Constitucional Federal em 24 de Outubro de 1996 (BVerfGE 95, 96), a propósito de homicídios para impedir a passagem da

21 Cfr. OGHSt 2, 231 ss.; BGHSt 1, 391 (399); 2, 173 (177); 2, 234 (239); 3, 110 (128); 3, 357 (362 s.).22 BGHSt 39, 1 (26).

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fronteira, cometidos não só por guardas fronteiriços, mas também pelos membros do Conselho Nacional de Defesa da República Democrática Alemã, que emitiram os decretos sobre colocação de minas e dispositivos de tiro automático e sobre o uso de armas de fogo, executados pelos guardas, e que tinham sido condenados como autores mediatos em instâncias anteriores. O Tribunal confirmou a apli-cação da doutrina de Radbruch, invocando a antiga jurisprudência do Supremo Tribunal para a Zona Britânica e do Tribunal Federal sobre os crimes do período nazi e a nova jurisprudência do Tribunal Federal, que reproduziu nas mesmas palavras por último transcritas23. Contudo, o Tribunal Constitucional Federal não entendeu que, através da qualificação da anterior causa de justificação – que seria aplicável por força do direito infra-constitucional aplicável24 – como não-direito, ficasse resolvida a dificuldade derivada da proibição constitucional de retroacti-vidade da lei penal, consagrada no artigo 103, nº 2 da Lei Fundamental. Uma vez que a punibilidade do facto é delimitada negativamente pelas causas de exclu-são da ilicitude (ditas causas de justificação), o julgamento posterior da norma justificativa como nula ex tunc por razões materiais implicava que um facto, que não era punível pela lei formal no momento da sua prática, passasse a ser consi-derado tal. Ora a proibição de retroactividade da lei penal impõe o respeito pela legalidade formal nos termos que determina. Por isso se compreende o esforço da primeira decisão do Tribunal Federal sobre os guardas do muro para demons-trar que o facto não estava justificado nem sequer formalmente segundo o direito anterior. O Tribunal Constitucional Federal vem agora reconhecer que há nestes casos um conflito entre as exigências da justiça e a proibição da retroactividade. Segundo a sua doutrina, o artigo 103, nº 2 visa o caso-regra do facto praticado dento do domínio de aplicação do direito penal autorizado pela Lei Fundamen-tal, o que garante a sua conexão com a ordem jurídica de um Estado de direito, e fundamenta a protecção da confiança irrestrita e absoluta na legalidade formal concedida por esse artigo. Quando, porém está em questão a aplicação do direito de um Estado que não garante a democracia, nem a separação dos poderes, nem os direitos do homem, isso “pode conduzir a um conflito entre os mandamentos irrenunciáveis do Estado de direito da Lei Fundamental e a proibição absoluta de retroactividade do artigo 103, nº 2 da Lei Fundamental. A irrestrita proibi-ção de retroactividade do artigo 103, nº 2 da Lei Fundamental encontra – como exposto – a sua justificação no Estado de direito na especial base de confiança que as leis penais comportam, quando são criadas por um legislador democrático

23 BVerfGE 95, 96 (134).24 O § 315 da Lei de Introdução ao Código Penal (EGStGB), introduzido pelo Contrato de Unificação (Einigungsvertrag), manda aplicar aos factos ocorridos na República Democrática Alemã antes da unificação o §2 do Código Penal (StGB) e, portanto, o direito então aí vigente.

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vinculado pelos direitos fundamentais. Esta especial base de confiança falta quando o outro Estado no domínio do ilícito criminal mais grave cria sim tipos legais de crime, mas lhes tinha retirado do mesmo modo a punibilidade através de causas de justificação em domínios parcelares, enquanto para lá das leis escri-tas incentivava e favorecia esse não-direito, e assim desrespeitava de modo grave os direitos do homem geralmente reconhecidos na comunidade internacional. Assim o detentor do poder do Estado estatuía extremo não-direito estatal, que só se pode afirmar enquanto se mantém de facto a força estatal por isso responsável. Nesta situação muito particular o mandamento da justiça material, que também inclui o respeito pelos direitos do homem reconhecidos pelo direito internacio-nal, proíbe a aplicação de uma tal causa de justificação. A protecção irrestrita da confiança pelo artigo 103, nº 2 da Lei Fundamental tem então que ser retirada. Senão a jurisdição penal da República Federal entraria em contradição com as suas premissas do Estado de direito.”25

Esta sentença do Tribunal Constitucional Federal é o ponto de chegada de um longo debate na jurisprudência e na doutrina alemãs sobre o que é direito no contexto da determinação do direito anterior aplicável. Vários autores, entre eles Alexy26, disseram que a adopção pela jurisprudência da fórmula de Radbruch implica um conceito não-positivista de direito, porque faz depender a validade das normas jurídicas da sua conformidade com o critério moral de não serem insuportavelmente injustas, mesmo quando esse critério não é reconhecido pelos agentes aplicadores do direito e não é, por isso, eficaz. Só o entendimento da fór-mula de Radbruch como elemento necessário de um conceito de direito vigente da perspectiva de um participante na aplicação do direito permitiria explicar que a norma que retira a nacionalidade do alemão judeu emigrado ou que justifica o homicídio na passagem do muro sejam não-direito desde o início, sem recorrer a normas posteriores retroactivas, que não foram invocadas. Mas as sentenças referidas demonstram que a qualificação como não-direito não implica neces-sariamente a não-produção de efeitos, que se podem produzir nas hipóteses de perda da nacionalidade, dependendo do conteúdo da norma de direito transi-tório aplicada, e também não resolve a dificuldade levantada pela proibição de retroactividade penal, dado esta proibição se bastar com a inexistência formal de incriminação anterior. A invalidade de uma norma, que não pode ser direito em razão da insuportável injustiça do seu conteúdo, não impede que possa pro-duzir efeitos, se a produção temporária ou definitiva desses efeitos for exigida

25 BVerfGE 95, 96 (133). 26 “Una defensa…” cit., 77: “quem advoga a tese de Radbruch defende, por isso, a tese não positivista da vinculação” [parcial entre direito e moral], remetendo para Robert Alexy, Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg/München: Alber, 1992, 15 ss., 52 ss..

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por razões de segurança jurídica ou de equidade, incluindo aqui o respeito pela dignidade e autonomia da pessoa humana. Esta última razão explica o regime constitucional da recusa da “reaquisição” da nacionalidade alemã como efeito da nulidade da lei nazi que estatuiu a perda de nacionalidade do judeu alemão residente no estrangeiro. E as razões de segurança jurídica invocadas pelo Tri-bunal Constitucional Federal para justificar a produção de efeitos, até à extinção do Estado nazi, das leis nazis sobre os funcionários não obstavam a que fossem consideradas nulas, como não-direito, por manifesta ofensa da igualdade dos cidadãos, como queria Radbruch.

Como bem demonstrou Miguel Galvão Teles27, é desnecessário o recurso ao entendimento da fórmula de Radbruch como critério moral independente do direito positivo para fundamentar a aplicação ou não aplicação de direito pretérito (e nos casos em discussão também direito estrangeiro, uma vez que a República Democrática Alemã era reconhecida como outro Estado pela República Federal) a factos passados. A aplicabilidade do direito anterior depende das normas de direito intertemporal vigente (tais como o artigo 116, nº 2 da Grundgesetz, sobre os efeitos das perdas de nacionalidade durante o período nazi e o § 315 da Lei de Introdução ao Código Penal (EGStGB), introduzido pelo Contrato de Unifica-ção), que estatuem quer quanto aos critérios formais de validade do direito ante-rior eventualmente atendíveis, quer quanto aos critérios materiais de validade. É certo que, entre esses critérios materiais de validade estarão os critérios morais que permitem concluir que uma norma não pode ser direito por ser injusta em medida insuportável, nomeadamente por ofensa manifesta à igualdade (fórmula de Radbruch). Mas não é necessário recorrer directamente ao direito natural ou à moral racional para justificar a sua aplicação. Segundo Radbruch e a jurispru-dência que o invoca, esses critérios podem concretizar-se através das normas das declarações universais dos direitos do homem, nomeadamente a Declaração Universal do Direitos do Homem e o Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos, que exprimem uma convicção universal da obrigatoriedade jurí-dica dessas normas, que estão recebidas na constituição de um Estado de direito. Assim, a jurisprudência correctamente invocou a Lei Fundamental, depois de aprovada, para esse efeito. Para justificar a sua obrigatoriedade quando não há constituição formal de um Estado de direito, como na Alemanha Federal antes da aprovação da Grundgesetz e na Alemanha do leste até à reunificação da Alemanha, a jurisprudência seguiu novamente Radbruch ao dizer que basta a referida con-vicção de obrigatoriedade jurídica. Ora a convicção de obrigatoriedade jurídica pode considerar-se como o critério último de definição das normas de reconhe-

27 Miguel Galvão Teles, “Ex Post Justice, Legal Retrospection and Claim to Bindingness”, Liber Amicorum de José de Sousa e Brito, Coimbra: Almedina, 2009, 455.

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cimento do direito vigente e, portanto, do sistema de fontes na sua integralidade, que inclui a doutrina definidora do sistema de princípios28.

Mas se a adopção da fórmula de Radbruch não implica um conceito de direito não-positivista, o modo como ela se integra no sistema de princípios e, nomeada-mente, como se articula com o sistema normativo dos direitos do homem, pode relacioná-la com a igual dignidade da pessoa humana como critério de validade normativa universal da moral racional. Ora critérios racionais de validade são eventualmente críticos dos critérios de reconhecimento actualmente existentes no direito positivo e podem implicar a sua revisão. Nessa medida são incompa-tíveis com a tese básica do positivismo jurídico, segundo a qual o direito pode identificar-se a partir de factos sociais, como sejam o reconhecimento e a con-vicção de obrigatoriedade jurídica actualmente existentes29.

Definição constitucional de direito e ordem pública internacionalOs critérios de juridicidade da constituição contribuem decisivamente para a determinação da ordem pública internacional em direito internacional privado e em direito internacional penal. O direito estrangeiro normalmente competente segundo as regras gerais do direito internacional privado (ou penal) da ordem jurídica do foro não é excepcionalmente aplicável quando ofende a ordem pública internacional da mesma ordem jurídica. As normas de direito estrangeiro que o direito do foro não pode considerar como direito ofendem certamente a ordem pública internacional. Poderá a concretização dessa ordem pública contribuir para a definição do que é direito em geral para a ordem jurídica do foro?

A ordem pública internacional é essencialmente determinada num Estado de direito pelas normas constitucionais sobre direitos fundamentais. A evolução da jurisprudência alemã sobre este ponto é, de novo, especialmente reveladora das dificuldades da questão que se acaba de pôr.

Uma mãe alemã divorciada com dois filhos do casamento e dois filhos adulte-rinos de pai italiano casou posteriormente com este último e pediu com ele a legi-timação dos ilegítimos. O tribunal de Göttingen competente denegou o pedido,

28 Cfr. José de Sousa e Brito, “Hermenêutica e Direito”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, LXII (1986), 1990, 205-206. “A Constituição do Direito e o Positivismo Jurídico”, Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2007, 717-718. 29 Cfr. José de Sousa e Brito, “A Constituição do Direito e o Positivismo Jurídico”, Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, Almedina, 2007, 717-718. Que o sistema de princípios da ordem jurídica, independentemente de eventual consagração explícita da igual dignidade da pessoa humana, por necessidade racional, pressupõe a unidade do valor e, portanto, uma última fundamentação racional, é a tese de Ronald Dworkin, Justice for Hedgehogs, Cambridge, Massachussets: Harvard University Press, 2011.

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com fundamento em que o direito italiano aplicável não permitia a legitimação de filhos adulterinos enquanto os filhos legítimos do casamento anterior forem menores. O Tribunal Federal, chamado a decidir, entendeu (BGH, 17.09.1968, IV ZB 501/68) que a proibição de legitimação de filhos adulterinos representa uma injustificada discriminação destes, que contradiz directamente o artigo 6, nº 2 da Grundgesetz, que exige que sejam tratados igualmente como os legítimos, penali-zando os filhos inocentes pelo adultério dos pais precisamente quando mais pre-cisam de ser tratados como membros de pleno direito da família. Também contra-diz a concepção alemã da unidade da família, que os pais vivam juntamente como casados com os seus próprios filhos sem que estes sejam considerados seus filhos legítimos. E tudo isto sem benefício para ninguém. As relações de proximidade com a ordem interna, exigíveis para a invocação da ordem pública, verificavam--se no caso: a família vivia em Göttingen, onde o pai regularmente trabalhava há muitos anos, a mãe sempre residiu na Alemanha, tendo a nacionalidade alemã além da italiana. Nestas circunstâncias, face a uma família que vive como alemã na Alemanha, onde a legitimação de todos os filhos anteriores ao casamento sem distinção é uma concepção jurídica firmemente ancorada na consciência nacio-nal, a denegação da legitimação “ofende de tal maneira as nossas concepções de justiça, que tem de ser considerada como intolerável,” A ordem pública impede, concluiu o Tribunal, a aplicação do direito italiano.

Importa notar que esta sentença utiliza como critério diferenciador da ordem pública negativa o mesmo critério da “ofensa insuportável da justiça” que Rad-bruch e a jurisprudência que o seguiu utilizaram para caracterizar o direito inau-têntico ou incorrectamente dito. Pode entender-se que nos dois casos se trata do mesmo critério geral de juridicidade, do que pode ser correctamente consi-derado como direito pela ordem jurídica do foro. A diferença estará nas conse-quências, na medida em que viola a obrigação de respeito pela esfera própria de soberania do Estado estrangeiro que os tribunais de outro Estado declarem as normas desse Estado como nulas ou inválidas ou inconstitucionais30, sem prejuízo da averiguação incidental dessas qualidades segundo o direito estrangeiro e da aplicação dos critérios de invalidade do foro para delimitar o âmbito de aplica-ção das suas normas de conflitos.

A ligação da ordem pública à insuportabilidade da injustiça como um crité-rio geral de juridicidade foi, porém, posta em causa pela doutrina do Tribunal Constitucional Federal na sua sentença de 4 de Maio de 1971 (BVerfGE 31, 58). Tratava-se aí de um nubente que, pelo direito espanhol de então aplicável à sua capacidade matrimonial, não podia casar com uma alemã evangélica divorciada de um casamento civil anterior com um alemão evangélico, porque o direito

30 Assim Wengler, ob. cit., I, 127.

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espanhol, que recebia aqui o direito canónico, considerava a alemã casada, por proibição do divórcio do casamento civil, canonicamente válido entre não-cató-licos. O Tribunal considerou, contra o decidido nas instâncias anteriores, que tinham considerado não haver no caso excepção de ordem pública, que a aplica-ção do direito espanhol violava a ordem pública, por violar a liberdade de con-trair casamento, que é um direito fundamental garantido pelo artigo 6, nº 1 da Grundgesetz, que o Tribunal interpretou à luz do direito internacional público dos direitos do homem. Ora o alcance dos direitos fundamentais não depende das normas de direito internacional privado, antes é das normas constitucionais que se deduz a pretensão de validade dos direitos fundamentais para a aplica-ção do direito estrangeiro chamado pela norma de conflitos. Segundo o tribu-nal a exclusão da aplicação do direito estrangeiro exigida no caso pelo alcance do constitucional do direito fundamental “pode alcançar-se ou porque se vê nos direitos fundamentais uma barreira que limita imediatamente o direito chamado por uma norma de conflitos, ou por invocação do artigo 30 da Lei de Introdu-ção ao Código Civil [cláusula de ordem pública]. Porém na segunda solução não seria permitido distinguir entre ofensas de direitos fundamentais suportáveis e insuportáveis. Antes teria uma realização dos direitos fundamentais através do artigo 30 que ser entendida como um ponto de entrada dos direitos fundamen-tais no direito internacional privado (cfr. BVerfGE 7, 198 (206)), com a conse-quência de que toda a ofensa de um direito fundamental causada pela aplicação do direito estrangeiro desencadeia a intervenção da ordem pública. A correcta medida resultará então da ponderação se, e em que medida, o particular direito fundamental em questão reclama vigência, segundo o seu teor literal, conteúdo e função, tendo em consideração o igual posicionamento dos outros Estados e a autonomia das suas ordem jurídicas para situações de facto relacionadas com o estrangeiro”.31 Em consequência desta doutrina constitucional, foi introdu-zida em 1986 uma nova redacção da reserva de ordem pública com o art. 6, nº 1 da Lei de Introdução ao Código Civil: “A norma jurídica de outro Estado não é aplicável quando a sua aplicação conduz a um resultado que é manifestamente incompatível com os princípios essenciais do direito alemão. Ela não é aplicável, especialmente, quando a aplicação é incompatível com os direitos fundamentais.”

O critério da insuportabilidade da injustiça foi assim substituído pelo da mani-festa incompatibilidade com os princípios fundamentais do direito e, em espe-cial, pelo da incompatibilidade com os direitos fundamentais, que não é acompa-nhada da exigência de ser manifesta. A diferença, porém, é mais aparente que real.32

31 BVerfGE 31, 58 (86,87).32 Cfr. Gerhard Kegel, Klaus Schurig, Internationales Privatrecht, 9ª ed., München: Beck, 2004, 522: a nova redacção “alterou muitíssimo na letra, mas na prática absolutamente nada”. Não terá alterado, mas certamente clarificou.

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Uma incompatibilidade não é aqui manifesta por ser aparente ou à primeira vista, ou por comparação directa com o preceito constitucional, pode ser o resultado de uma complexa interpretação e ponderação, em vista de todos os preceitos no caso concorrentes, que torna evidente que a norma estrangeira é inconciliável com a força normativa pretendida no caso pelo direito fundamental e, portanto, insuportável a contradição. A sentença do Tribunal Constitucional Federal inter-pretou o preceito do art. 6, nº 1 da Lei Fundamental, cuja letra apenas garante a especial protecção da ordem jurídica do Estado ao casamento e à família, à luz da jurisprudência constitucional anterior, mas ainda à luz do artigo 12 da Conven-ção Europeia dos Direitos do Homem, do artigo 16, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o preâmbulo da Convenção das Nações Unidas de 10 de Dezembro de 1962 sobre a liberdade de casar, discutiu a relevância do carác-ter secular do Estado alemão e dos interesses e valores protegidos pela norma de conflitos, defendeu a inseparável ligação da liberdade de casar à sua garantia institucional, que exige uma lei reguladora em conformidade com a constituição, e separou essa questão da do respeito pelo conteúdo essencial do direito funda-mental quando há reserva de lei, que não se colocava no caso, etc.

Por outro lado, a mesma sentença subtilmente notou que a interpretação restritiva da aplicação da norma de conflitos ao caso se pode entender como consequência de uma barreira derivada dos direitos fundamentais à aplicação das normas de conflitos – a qual se pode analisar como um conjunto de normas constitucionais de conflitos, que se aplica em concorrência com as normas de conflito legais – ou como preenchimento através da constituição do conteúdo da ordem pública, que assim integra como interpretação o mesmo conteúdo norma-tivo daquelas normas constitucionais de conflitos. O resultado é o mesmo, inde-pendentemente da construção jurídica.33 Mas de qualquer modo esse conteúdo normativo varia com as ligações do caso à ordem jurídica do foro, que define em conformidade com a constituição os bens jurídicos que quer proteger e a medida dessa protecção.

Finalmente, a incompatibilidade é referida aos direitos fundamentais, que formam um sistema, em que o conteúdo de cada um é determinado não apenas pelo domínio da vida a que respeita, e pela espécie de protecção que é garantida nesse domínio, mas pelos limites imanentes ou legais que resultam da concor-rência no caso de outros direitos fundamentais.34

33 Assim Kegel, ob. cit., 533-534.34 Cfr., por último, Ernst-Wolfgang Böckenförde, “Schutzbereich, Eingriff, verfassungsimmanente Schranken – Zur Kritik gegenwärtiger Grundrechtsdogmatik“, Wissenschaft, Politik, Verfassungs-gericht, Berlin:Suhrkamp, 2011, 230-263.

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Destes desenvolvimentos interpretativos depreende-se que a nova formula-ção da cláusula geral da reserva de ordem pública não implica um afastamento da doutrina de Radbruch no domínio do reconhecimento do direito estrangeiro como direito, mas antes um progresso no sentido da sua concretização num Estado de direito. Num Estado de direito a definição jurídica do que é direito depende dos direitos do homem.

Não se diga que ao tratar na reserva de ordem pública a relevância dos direi-tos do homem na perspectiva da sua contribuição para a delimitação dos poderes do juiz na aplicação de direito estrangeiro se está a deslocar o domínio próprio dos direitos do homem e da definição de direito, das regras gerais de compor-tamento para o direito judiciário material, na terminologia de Goldschmidt35. Com essa deslocação, embora sem usar o conceito de direito judiciário material, procurou a sentença do Tribunal Constitucional alemão afastar a crítica de que estava a julgar da validade de normas estrangeiras ou a censurá-las moralmente36. O direito judiciário material pressupõe a existência do direito material corres-pondente e as normas do direito material do foro têm o seu âmbito de aplica-ção delimitado pelas normas de conflitos. Quando a reserva de ordem pública exceptua certas situações de facto do âmbito de aplicação de uma norma estran-geira que seria aplicável por remissão da norma de conflitos (sem deixar por isso de ser reconhecida como estrangeira), se não fora a concorrente aplicação da norma, eventualmente constitucional, que integra a ordem pública e que preva-lece no concurso de normas. Se a norma estrangeira é, em razão do seu conteúdo, incompatível com o conceito de direito da ordem jurídica do foro por violar um direito fundamental, a ordem pública implica um juízo de valor negativo sobre a norma estrangeira, que a exclui da extensão do conceito de direito em geral da ordem do foro, embora não atribua efeitos a esse juízo, não a invalida nem con-sidera nula, por ser direito estrangeiro. A norma que é então aplicável ao caso é uma norma do direito do foro, mesmo quando seu conteúdo é obtido em parte, por adaptação, a partir do conteúdo da norma estrangeira. Temos, portanto, que distinguir normas de reconhecimento de outras normas como direito nacional, normas de aplicação e de não aplicação de normas estrangeiras e juízos normati-vos de inclusão ou exclusão de certas normas do conceito de direito em geral da ordem jurídica do foro. São estes juízos normativos que devem decidir do con-teúdo da ordem pública para o efeito de delimitar o âmbito das normas de apli-cação de normas estrangeiras.

A ordem pública depende assim da violação de direitos do homem, mas os critérios dessa violação são diferentes dos que decidem da validade das normas

35 James Goldschmidt, Der Prozess als Rechtslage (1925), Aalen: Scientia, 1962, 227 ss.36 BVerfGE 31, 58 (74-75).

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de direito nacional, porque as normas que concretizam a ordem pública resultam da solução de conflitos normativos específicos das situações de facto com cone-xões heterogéneas ou multinacionais. Assim se explica a chamada relatividade da ordem pública e a variável relevância da proximidade da situação de facto dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica do foro. A chamada relatividade da ordem pública é uma consequência do princípio constitucional da proporcio-nalidade em matéria de restrições a direitos fundamentais em situações de con-flito entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente reconhecidos. A doutrina francesa tem visto essa relativi-dade na distinção entre os diferentes critérios da ordem pública se se trata da constituição de uma relação jurídica e se se trata do seu reconhecimento, mas a verdadeira razão é a intensidade da relação com a ordem jurídica do foro37. Assim se pode compreender, por exemplo, que a norma estrangeira que permite o casamento poligâmico não seja reconhecida como direito para o efeito de reco-nhecer um segundo casamento, mas já o seja para o efeito de atribuir à segunda mulher uma pensão de alimentos ou direitos sucessórios. O efeito indesejável de um cúmulo de pensões pode evitar-se através de uma regra material que divide o valor de uma só pensão por todas as mulheres. O repúdio da mulher pelo marido do direito islâmico pode ser admitido se há também outro fundamento de divór-cio. A exclusão da adopção pelo direito islâmico pode ser superada segundo os tribunais franceses pelo recurso ao instituto da kafala, que sem estabelecer filia-ção permite a uma pessoa tomar outra a seu cargo, mas só se todos os interessa-dos são nacionais do mesmo Estado38. As manifestas hesitações das várias juris-prudências nacionais na definição da ordem pública nacional39 resultam mais das diversidades das situações de facto e da consequente diversidade dos conflitos normativos que das diferentes concepções de direito.

Outra razão da diferença entre os critérios da violação dos direitos fundamen-tais para o efeito da invalidade das normas nacionais e para o efeito da não-apli-cação do direito estrangeiro está em que o conceito geral de direito da ordem jurídica nacional absorve as diferenças que podem resultar de uma revisão cons-titucional das normas sobre direitos fundamentais, as quais devem respeitar os direitos, mas não necessariamente a sua formulação constitucional.

37 Assim: Luís de Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, I, Coimbra:Almedina, 2009, 595.38 Sobre este e outros casos do direito islâmico ver: Erik Jayme, “Cours générale du droit international prive”, Recueil dês Cours, 251, 1955, 236 ss., Erik Jayme, Religiöses Recht vor staatlicnen Gerichten, Heidelberg: Winter, 1999, Mathias Rohe, Das islamische Recht, 2ª ed., München: Beck, 2009, 349ss., Nathalie Bernard-Maugiron, Baudouhin Dupret, Ordre publique et droit musulmande la famille, Bruxelles: Bruylant, 2012.39 Veja- se em Portugal o panorama apresentado por Rui Manuel Moura Ramos, “L’ordre publique international en droit portugais”, Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra: Coimbra Editora, 2002, 245-262.

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Também não se diga que a admissão de conceitos jurídicos de direito em geral diferentes segundo a ordem jurídica afasta definitivamente o conceito jurídico do conceito filosófico de direito. Não é assim porque no Estado de direito o con-ceito de direito tem fundamento filosófico e a doutrina dos direitos do homem, que se entendem como reconhecidos no sentido de racionalmente fundados, é comum a todos os Estados de direito. Não existe uma ordem pública universal, mas os juristas podem lutar por ela.

Será correcto interpretar a violação da ordem pública internacional por vio-lação dos direitos do homem como critério do conceito de direito em geral da ordem jurídica do foro? A questão põe-se no direito internacional penal relativa-mente à proibição da extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física (art. 33º, nº6 da Constituição). Não se trata aqui da aplicação de direito penal estrangeiro por tribunais portugueses, mas da possível aplicação desse direito por um tribunal estrangeiro a uma pessoa cujos direitos do homem o Estado português deve proteger por se encontrar no seu território. A extradição é um acto instrumentalmente necessário para essa aplicação e, por isso, a ordem pública proíbe-a, quando a aplicação do direito penal estrangeiro ofende no caso os direitos fundamentais protegidos pela Constituição. O Tribunal Constitucio-nal, no seu acórdão de 10 de Janeiro de 200140, delimitou rigorosamente o con-teúdo da garantia do nº 6 (então nº 5) do artigo 33º, que é um aspecto da garantia constitucional do direito à vida (art. 24º, nº 1) e do direito à integridade física (art. 25º, nº 1), comparando os seus limites, expressos na Constituição, com os limites, igualmente expressos, da proibição de extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisitante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida (art. 33º, nº4). O tribunal interpretou aí, na esteira da sua jurisprudência anterior, a expressão “segundo o direito do Estado requisitante”, nos dois preceitos, num sentido concreto, como o direito interno aplicável ao caso concreto, e não num sentido abstracto, como a norma penal aplicável ao tipo de crime. Mas é claro que todo o direito interno aplicável em processo penal no caso concreto é ainda “lei” e, nesse sentido, direito “abstracto”. Quando o Tribunal Constitucional estabele-ceu a propósito a doutrina da “impossibilidade jurídica” da aplicação da pena de morte, teve em vista a vinculação legal ou abstracta do juiz ou dos outros órgãos da aplicação do direito estrangeiro a não aplicar tal pena, dadas todas as circuns-tâncias legalmente relevantes, incluindo actos de amnistia, de perdão, de indulto, de comutação da pena, sentenças revogatórias ou substitutivas de pena passadas em julgado, actos irrevogáveis do juiz ou do Ministério Público que imponham

40 Acórdão nº 1/01, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49, 7-29, de que fui relator.

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limites legais à pena aplicável41. Para justificar a manutenção destes limites do conteúdo da garantia em face dos novos limites do conteúdo da garantia de não extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requisi-tante, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carác-ter perpétuo ou de duração indefinida, introduzidos pela revisão constitucional de 1997, o Tribunal interpretou estes novos limites como admitindo a extradição em mais outros casos, em que as garantias dadas pelo Estado estrangeiro de não aplicação das penas ofensivas dos direitos fundamentais não vinculam os tribunais desse Estado, mais precisamente, “quando admite que as garantias sejam apenas de direito internacional público e relativas à mera não execução da pena, mesmo em casos onde esta ainda pode ser aplicada pelos tribunais. Tais serão as garan-tias anteriores à condenação relativas à aplicação de medidas que pressupõem uma prévia condenação, como sejam o indulto, o perdão, a comutação de pena, a amnistia e análogas medidas de clemência que, por definição, não são obriga-tórias do ponto de vista do direito interno, isto é, não são juridicamente decretá-veis pelos tribunais, embora possam ser prometidas e devidas a um Estado estran-geiro e, uma vez decretadas, sejam juridicamente vinculantes para os tribunais. As garantias diplomáticas de tais medidas são garantias de direito internacional público – e nesse sentido não são meramente políticas -, mas não são garantias de direito interno imediatamente vinculantes para os tribunais.”42

A melhor interpretação destas proibições constitucionais de extradição é a de que o direito português reconhece que as normas estrangeiras que cominam a pena de morte, ou que cominam outra pena de que resulte lesão irreversível da integridade física, ou que cominam pena privativa de liberdade perpétua ou de duração indefinida são direito estrangeiro, tanto assim que fundamentam pedidos de extradição admissíveis para o direito português sob certas condições. Mas não são pura e simplesmente direito, segundo os critérios de juridicidade do direito português, porque violam o conteúdo do direito à vida (art. 24º da Constituição), ou do direito à integridade pessoal (art. 25º, nº 2 da Constituição) ou do direito a não sofrer penas ou medidas de segurança privativas ou restritivas de liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida.

Definição de direito e revisão constitucionalDesde logo, a constituição prevê a possibilidade de alterações das suas normas em processo de revisão constitucional. Há, contudo, limites materiais das alte-rações admitidas. Especialmente importantes são aqui os direitos, liberdades e garantias, que haverá que respeitar em qualquer revisão. Serão eles critérios

41 Ibidem, p. 15.42 Ibidem, p. 25.

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constitucionais da juridicidade de qualquer norma? Como os direitos fundamen-tais podem colidir entre si ou com outros princípios constitucionais, as consti-tuições geralmente prevêem restrições constitucionais e legais desses direitos. Com que limites? A nossa Constituição, tal como a alemã, por exemplo, diz que as leis restritivas não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essen-cial desses direitos. Este limite vale também para as leis de revisão.

Há uma outra dificuldade maior para a generalização do critério do conteúdo essencial de um direito fundamental. Esse conteúdo essencial varia de acordo com as exigências variáveis do princípio da proporcionalidade, segundo os con-flitos de princípios constitucionais relevantes nas circunstâncias. Isto evidencia--se pela comparação dos diferentes limites do critério do conteúdo essencial no artigo 288º e no artigo 19º, nº 6 da Constituição, segundo o qual “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito à defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião”. Ora é claro que os limites à revisão da Constituição do art. 288º abrangem todos os direitos liberdades e garantias e não apenas os direitos especialmente protegidos contra a declaração do estado de sítio ou de emergência.

Na sentença do Tribunal Constitucional sobre a proibição de extradição, que se referiu atrás, o Tribunal teve de demonstrar que a revisão constitucional de 1997, ao introduzir o novo nº 5 [actual nº 4] do art. 33º não violou o direito fun-damental do art. 30º, nº 1, de não haver penas nem medidas de segurança priva-tivas ou restritivas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida, violando assim os limites materiais da revisão. Nas palavras do Acórdão: “Resta, então, saber se outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, e nomeadamente o interesse na cooperação internacional na repres-são e prevenção da criminalidade mais grave, para defesa dos bens jurídicos por ela ameaçados, podem justificar os limites à garantia de não ser sujeito a pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpé-tuo ou de duração indeterminada, que resultam da permissão constitucional de extradição por crimes assim sancionados, com base em meras garantias de ine-xecução não juridicamente vinculantes do ponto de vista do direito interno do Estado requisitante. Trata-se aqui de um género de limites que existem qualquer seja o modo de definição de um direito na Constituição, porque resultam sim-plesmente da existência de outros direitos ou bases, igualmente reconhecidos na Constituição e que em certas circunstâncias com eles conflituam (cfr. o Acórdão nº 254/99, Diário da República, II-série, 25.6.1999, p. 859043). Tudo depende da

43 Entretanto publicado nos Acórdãos do TribunalConstitucional, 43, 365-388. Fui relator deste acórdão.

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necessidade e da proporcionalidade do limite ou restrição. Ora no caso da extra-dição em que há garantia de não execução da pena ou medida de segurança de carácter perpétuo ou de duração indefinida trata-se de uma restrição ainda admis-sível, pois que não é tocada a substância do bem jurídico ou constitucional que o direito fundamental visa proteger. Não deve, assim, considerar-se uma restrição desnecessária e desproporcionada. A revisão de 1997 não fez mais do que pre-cisar tal limite ou restrição, relativamente ao nº 1 do artigo 30º, ao introduzir o nº 5 [actual nº 4] do artigo 33º. Deve, entender-se que, ao fazê-lo, não ofende os limites materiais da revisão (artigo 288º, alínea d)).”44

O ponto de partida é aqui o direito à vida (art. 24º da Constituição), que tem como elemento do seu conteúdo a garantia de que em caso algum haverá pena de morte (art. 24º, nº 2). Esta garantia é, por sua vez, garantida pela proibição de extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requi-sitante, pena de morte, do actual nº 6 do art. 33º. A proibição de pena de morte não existe em todos os Estados de direito, não consta da Declaração Universal dos Direitos do Homem nem do Pacto Internacional relativo aos Direitos Civis e Políticos e, nomeadamente, nos Estados Unidos da América a Supreme Court tem desde Gregg v. Geórgia 428 U.S. 153 (1976) mantido que a pena de morte não é inconstitucional45. Mas essa proibição é um conteúdo essencial do direito à vida na concepção dos direitos do homem e do Estado de direito da ordem jurídica portuguesa e da dos Estados do Conselho da Europa. Ora a vida não está garan-tida contra a pena de morte se uma pessoa, a quem esta pode em concreto ser aplicada segundo o direito do Estado requisitante da extradição, for extraditada sem garantia suficiente da sua não aplicação. Pode, contudo, perguntar-se se essa garantia tem que ter o conteúdo que lhe dá o actual nº 6 do art. 33º, que só admite garantias de inexecução juridicamente vinculantes para os tribunais e não admite garantias diplomáticas internacionalmente vinculantes para o Estado. O Tribunal Constitucional colocou a questão a propósito das razões da admissibi-lidade na revisão das meras garantias de direito internacional quanto à pena ou medida de segurança privativa de liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida: “Nem se diga que a mesma argumentação, ou semelhante, se poderia aplicar à pena de morte. A diferença tem fundamento no máximo valor da vida humana e na irreversibilidade da pena de morte (que é a razão decisiva da sub-missão de penas de que resulte lesão irreversível da integridade física ao mesmo regime). Compreende-se, assim, que a Constituição tenha imposto uma política

44 Acórdão nº 1/01 cit., 28.45 Mantendo-se também a grande divisão das opiniões dos juízes (5:4) em McCleskey v. Kemp (1987) e em Blystone v. Pennsylvania (1990); cfr. Roger Hood, Carolyn Hoyle, The Death Penalty. A Worldwide Perspective, 4ª ed., Oxford: Oxford University Press, 2008, 35ss., 111ss..

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internacional abolicionista ao Estado português, ao não acolher a excepção do nº 5 [actual nº 4] para as hipóteses do nº 4 [actual nº 6] do artigo 33º.”46 As razões de política internacional abolicionista não decorrem logicamente da necessidade de proteger a vida e podem, por isso, ser superadas em futura revisão constitu-cional que admita garantias de direito internacional, por razões análogas às que prevaleceram quanto às penas ou medidas de segurança perpétuas ou de dura-ção indefinida. Há que concluir que a actual configuração da garantia no direito português não marca a distinção entre direito e não-direito, sem prejuízo da essencialidade da garantia de não extradição para país onde possa ser executada a pena de morte no caso concreto.

As normas peremptórias em direito internacional público e a questão do que é o direitoNo direito internacional público a questão de saber se uma determinada ordem normativa é direito pode suscitar-se a propósito do reconhecimento de um Estado ou de um governo. O reconhecimento de um Estado pressupõe que uma deter-minada ordem jurídica vigora no território desse Estado e o reconhecimento de um governo implica que se considera esse governo legitimamente formado de acordo com o direito desse Estado. Não vou agora tratar de como estes reconhe-cimentos se podem relacionar com a definição de direito.

Ocupar-me-ei apenas da questão de saber se uma norma determinada é direito, que se põe no direito internacional público a propósito do ius cogens. A maior parte das normas de direito internacional público podem ser afastadas por acordo dos sujeitos nas relações entre si. Não assim as normas peremptórias ou indisponíveis, que constituem o ius cogens.

Esta segunda questão relaciona-se com primeira na medida em que as nor-mas internacionais que regulam o reconhecimento de Estados e de governos são ius cogens. O reconhecimento dos Estados e dos governos, uma vez verificados os respectivos pressupostos normativos, é obrigatório para todos os Estados e inder-rogável. Do mesmo modo, o direito à auto-determinação faz parte do ius cogens.

Uma norma de ius cogens é definida no artigo 53 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969 como uma norma “accepted and recognized by the international community of States as a whole as a norm from which no der-ogation is permitted and which can be modified only by a subsequent norm of general international law having the same character”. A Convenção de Viena não criou o ius cogens, antes expressamente o reconhece como parte do direito internacional geral. Embora a Convenção de Viena não dê exemplos, a Comissão de Direito Internacional que a elaborou referiu neste contexto as proibições de

46 Acórdão nº 1/01, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 49, 28.

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crimes de direito internacional, como guerra de agressão, comércio de escravos, pirataria ou genocídio47. Não parece haver dúvidas sobre o carácter peremptó-rio destas normas.

No domínio do direito da guerra, além da proibição da guerra de agressão, tem--se entendido que as regras sobre os limites do direito à legítima defesa implicam hoje a proibição peremptória do uso unilateral da força, havendo que interpretar em conformidade as disposições contratuais que parecem autorizá-la em certas circunstâncias. Assim no caso dito das plataformas petrolíferas48, o Tribunal de Justiça Internacional entendeu que o artigo XX.1 (d) do tratado de 1955 entre o Irão e os Estados Unidos, que estipulava que as suas disposições “não preclu-dem a aplicação de medidas… necessárias para proteger os interesses essenciais de segurança” de uma parte contratante, tinha que ser interpretado de acordo com as condições da legítima defesa em direito internacional. Rejeitou por isso a pretensão contrária dos Estados Unidos, que invocaram o tratado para legiti-mar a destruição em 1987 pelas suas forças navais de várias plataformas petrolí-feras iranianas no Golfo Pérsico, em resposta a anteriores ataques iranianos ao Kuweit e a barcos americanos49.

O carácter peremptório é geralmente atribuído às normas de direito humani-tário que segundo as Convenções de Genebra protegem os prisioneiros de guerra, as populações civis, os feridos e doentes e, em geral, as vítimas de conflitos arma-dos, e ainda os refugiados. Há um importante debate, com relevo para discus-são entre o Governo dos Estados Unidos e a Cruz Vermelha Internacional sobre quais dessas normas são direito costumeiro internacional e quais outras normas do costume internacional existem na matéria que não estão incluídas nas Con-venções de Genebra50. Mas, apesar de alguma fluidez nos contornos do conceito de tortura e do conceito conexo de mau tratamento, a proibição incondicional da tortura – aliás, não só no âmbito de aplicação das Convenções de Genebra, mas em todas as circunstâncias – é uma norma peremptória de direito interna-cional público. Outro exemplo é a proibição de refoulement, que se exprime no artigo 33º da Convenção de Genebra de 1951 relativa ao estatuto dos refugiados:

47 Oppenheim’s International Law, ed. Robert Jennings, Arthur Watts, 9ª ed., I, Lodon:Longman, 1996, 8-9.48 Oil Platforms (Islamic Republic of Iran v United States of America), Merits, Judgment of 6 November 200349 Cf. Orakhelashvili, Alexander, Peremptory Norms in International Law, Oxford: Oxford University Press, 2006, 172-176.50 Cf. os artigos publicados na International Review of the Red Cross, No. 866, 30-06-2007, por John B. Bellinger, III, William J. Haynes II, “A US government response to the International Committee of the Red Cross study Customary International Humanitarian Law” e por Jean-Marie Henckaerts, “Customary International Humanitarian Law: a response to US comments”, acessíveis no site do ICRC.

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“Nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou retornará um refugiado, seja de que maneira for, para fronteiras de territórios onde a sua vida ou a sua liber-dade sejam ameaçadas em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou opiniões políticas”. Não obstante este tratado ter sido ratificado com reservas por vários Estados, para além da reserva genérica do nº 251 do artigo 33º, o conteúdo essencial da disposição deve considerar-se peremptó-rio, mesmo para Estados que não ratificaram a Convenção52.

As normas de direito humanitário, embora no seu conjunto mais importante tenham surgido historicamente como limites do ius ad bellum, são essencialmente normas protectoras dos direitos do homem em situações de guerra. Respeitam a casos em que a necessidade de protecção internacional de direitos do homem é particularmente evidente, dada a importância dos direitos ameaçados, a quanti-dade e a gravidade das ofensas e do perigo delas e a incapacidade de defesa das vítimas. O reconhecimento dos direitos do homem, tanto na guerra como na paz, como parte integrante do ius cogens internacional é mesmo o principal desen-volvimento do direito internacional público depois da segunda guerra mundial. A opinio iuris a seu respeito, a convicção da obrigatoriedade como direito inter-nacional público das normas sobre direitos do homem manifesta-se não só nas declarações e tratados internacionais sobre direitos do homem, e na criação de tribunais penais internacionais para punir as suas mais graves violações, como também na adopção de sanções contra a sua violação em concreto ou por via normativa. Exemplo desta última espécie é a doutrina da separabilidade (severa-bility), segundo a qual uma reserva incompatível com o conteúdo essencial (com o objecto e fim) de um tratado humanitário é nula sem afectar a aceitação do tratado pelo Estado que faz a reserva, é adoptada pela Comissão de Direitos do Homem das Nações Unidas53, pelos tribunais (Comissão54 e Tribunal55) europeus dos direitos do homem, pelo Tribunal Inter-Americano dos Direitos do Homem56 e pelos Estados que fazem objecção a reservas de outros Estados em Tratados

51 “Contudo, o benefício da presente disposição não poderá ser invocado por um refugiado que haja razões sérias para considerar perigo para a segurança do país onde se encontra, ou que, tendo, sido objecto de uma condenação definitiva por um crime ou delito particularmente grave, constitua ameaça para a comunidade do dito país.”52 Neste sentido a Conclusion nº 25 (XXXIII-1982) do NHCR Executive Committee e a Cartagena Declaration on Refugees, para. III.5. Para mais referências, cf. Orakhelashvili, ob. cit., 55.53 Rawle Kennedy, 7 IHRR (2000) 321 ss., §§ 6.5 ss. e General Comment nº 24(52), § 6.54 Temeltasch, 5 EHRR (1983), 423 ss., §§32 ss., 431 ss., §§68 ss.; Chrysostomos 12 HRLJ (1991), 120-121, §§12,23.55 Belilos, Series A, 132, 21 ss.§42; Loizidou, Series A, 310, 27, §§72 ss.56 Effect of Reservations, Advisory Opinion OC-2/82, §§21 ss.; Restrictions to the Death Penalty, OC-3/83, §§48 ss., 60 ss.

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sobre direitos do homem57. Igualmente nulas são as amnistias que excluem a responsabilidade criminal por crimes de direito internacional penal58. Graves e sérias violações dos direitos do homem – como sejam por exemplo a deportação e a abdução59 de pessoas localizadas no território de outro Estado por parte de órgãos ou agentes do Estado – obrigam este a reparação, através, primeiro, de restituição, depois, de compensação e, na medida em que estas não sejam pos-síveis, através de satisfação60. O regime da reparação de violações de normas de ius cogens diverge do regime geral de reparações bilateralistas do ius dispositivum, que deixa na disponibilidade das partes uma reparação objectiva. A reparação objectiva é peremptoriamente imposta e pode incluir como forma de satisfação a responsabilidade criminal individual dos violadores. Além disso os próprios Estados são responsáveis por crimes, pelo menos no sentido que respondem por crimes de direito internacional, para lá da responsabilidade penal dos indivíduos seus agentes. Ora, não obstante nem todas as violações de ius cogens sejam crimes de direito internacional, as mais graves são-no61.

Temos assim que há violações dos direitos do homem que são violações do ius cogens internacional que são crimes e violações de direitos do homem que vio-lam ius cogens, mas não são crimes. Haverá violações de direitos do homem que não violam ius cogens? Implica isto que há que distinguir entre direitos do homem “básicos” e outros que não são básicos e não pertencem ao ius cogens? Haverá então que concluir que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não é integral-mente parte do ius cogens universal?

Em 1970, o Tribunal Internacional de Justiça no acórdão Barcelona Traction estabeleceu uma distinção fundamental entre normas internacionais que esta-belecem obrigações erga omnes, relativas a direitos que todos os Estados devem proteger, e outras obrigações relativas a direitos protegidos apenas frente a certo Estado através da protecção diplomática de interesses nacionais. Tem-se visto jus-tamente nestas obrigações erga omnes as que resultam de ius cogens. O texto reza:

«Une distinction essentielle doit en particulier être établie entre les obligations des Etats envers la communauté internationale dans son ensemble et celles qui naissent vis-à-vis d’un autre Etat dans le cadre de la protection diplomatique. Par leur nature même, les premières concernent tous les Etats. Vu l’importance des droits en cause, tous les Etats peuvent être considérés comme ayant un intérêt juridique à ce que ces droits soient protégés; les obligations dont il s’agit sont des obligations erga omnes.

57 Cf. a listagem de Orakhelashvili, ob.cit., 191,192.58 Cf. Orakhelashvili, ob.cit., 223-239.59 Assim a US Court of Appeals em Alvarez-Machain v US, 41 ILM (2002), 226-239,60 Cf. Orakhelashvili, ob.cit., 241-272.61 Cf. Orakhelashvili, ob.cit., 272-287.

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Ces obligations découlent par exemple, dans le droit international contemporain, de la mise hors la loi des actes d’agression et du génocide mais aussi des principes et des règles concernant les droits fondamentaux de la personne humaine, y compris la protection contre la pratique de l’esclavage et la discrimination raciale. Certains droits de protection correspondants se sont intégrés au droit international général (Réserves à la convention pour la prévention et la répression du crime de génocide, avis consul-tatif, C.I.J. Recueil 1951, p. 23); d’autres sont conférés par des instruments internatio-naux de caractère universel ou quasi universel.»62

Ao contrário do que pretende Frowein63, da distinção entre direitos de que derivam obrigações internacionais erga omnes e outros direitos não universalmente protegidos não deriva uma outra distinção entre direitos fundamentais “básicos” e outros que não sejam universalmente protegidos. Na versão inglesa do acórdão “basic rights” é a tradução de “droits fondamentaux” e sugere-se que tais direitos são todos ius cogens, sem usar a palavra. Isto não impede reconhecer que certas normas sobre direitos fundamentais têm um estatuto particularmente elevado. O Tribunal Penal Internacional para a Ex-Jugoslávia disse que a proibição de tortura adquiriu “a particularly high status in the international normative sys-tem, a status similar to the principles such as those prohibiting genocide, slav-ery, racial discrimination, aggression, the acquisition of territory by force and the forcible suppression of the right of peoples to self-determination”64. Mas é claro que esta enumeração está longe de abranger todo o ius cogens, em face do que já foi dito. Que nem todos os direitos fundamentais têm o mesmo peso na sua ponderação nos casos de conflito com outros direitos ou princípios fundamen-tais resulta de normas como o artigo 15º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que permite derrogações às obrigações prevista na Convenção em caso de guerra ou outro perigo público que ameace a vida da nação, excepto quanto ao artigo 2º (direito à vida, salvo quanto ao caso de morte resultante de actos líci-tos de guerra), 3º (proibição da tortura), 4º § 1 (proibição da escravatura) e 7º (nullum crimen nulla poena sine lege). Mas é claro que fora dos casos de guerra ou emergência nacional as restantes proibições da Convenção são peremptórias. E peremptórias são as normas correspondentes do ius cogens.

O facto de as restrições admitidas pelo artigo 15º da Convenção Europeia não constarem da Declaração Universal não implica que a violem. A Declaração Uni-versal não regulou pura e simplesmente os casos de conflito de direitos do homem

62 Barcelona Traction, Light and Power Company, Limited, arrêt, C.I.J. Recueil 1970, p. 3.63 Jochen Frowein, “Verpflichtungen erga omnes in Völkerrecht und ihre Durchsetzung“, Festschrift für Mosler, Berlin: Springer, 1983, 243-244, 25864 Furundzija, Judgement of 10 December 1998, case nº IT-96-2-T. § 466.

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entre si e com outras normas peremptórias de direito internacional. Se o tivesse feito, teria formulado uma espécie de princípio da proporcionalidade, do género do que se retira dos artigos 19º da Lei Fundamental alemã e 18º da Constituição portuguesa. Por consequência, o ius cogens internacional só pode abranger o con-teúdo essencial das suas normas sobre direitos do homem, tal como acontece com a ordem pública constitucional alemã ou portuguesa.

Acontece, porém, que a demonstração da pertença de uma norma ao conteúdo essencial de um direito do homem e, mais geralmente, ao ius cogens internacional, não se faz da mesma maneira que se faz a definição da ordem pública constitu-cional em cada ordem jurídica. Depende à partida dos critérios de juridicidade estabelecidos pelo sistema de fontes.

No direito internacional público universal é determinante em matéria de fon-tes a opinio iuris vel necessitatis, o reconhecimento da obrigatoriedade como direito internacional da comunidade internacional dos Estados. Esclarecendo o conceito de reconhecimento pela comunidade internacional de Estados como um todo (“as a whole”, “dans son ensemble”) a Comissão de Direito Internacional que elabo-rou a Convenção de Viena disse “that there was no question of requiring a rule to be accepted and recognized as peremptory by all states. It would be enough if a very large majority did so; that would mean that, if one state in isolation refu-sed to accept the peremptory character of a rule, or if that state was supported by a small number of States, the acceptance and recognition of the peremptory character of the rule by the international community as a whole would not be affected”65.Assim, por exemplo, penso que o princípio de igualdade de direitos dos homens e das mulheres do preâmbulo da Carta das Nações Unidas faz hoje parte do ius cogens, apesar de contrariado pela reserva da Arábia Saudita à declaração e por várias declarações de direitos nacionais e internacionais de países islâmicos. Aquela reserva e a parte correspondente destas declarações devem considerar--se nulas. O mesmo se passa com a liberdade de mudar de religião, consagrada no artigo 18º da Declaração Universal.

Por outro lado, há que admitir ius cogens particular ou regional66 com diferentes critérios de juridicidade que incluem os dos ius cogens universal. Assim, os países do Conselho da Europa reconhecem a proibição da pena de morte como parte do seu ius cogens regional, sendo certo que não é reconhecida universalmente como tal.

65 Official Records, First Session, 80th meeting, 21 May 1968, 471 s. Cf. Alfred Verdross, Bruno Simma, Universelles Völkerrecht, 3ª ed., Berlin: Duncker & Humblot, 1984, 334, n. 25.66 Assim Verdross-Simma, ibidem, que falam de um ordre publique da Europa ocidental (antes da entrada dos países da Europa oriental para o Conselho da Europa).

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Diferentes critérios de juridicidade e pluralidade de razões públicasQual o significado filosófico da diversidade de critérios de juridicidade conse-quentes da diversidade de conceitos de justiça e de direitos do homem relevan-tes para esse efeito em cada ordem jurídica. Como pensar diversas definições de direito simultaneamente válidas? A diversidade resulta da diversidade de regras e princípios com que se fundamenta argumentativamente a conclusão de que “é direito” ou de que “não é direito”. É assim resultado de uma diversidade de razões públicas. A razão pública contém as regras que regulam a validade dos raciocí-nios que fundamentam conclusões em cada ordem jurídica67. Essas regras variam com a diversidade das fontes de direito e eventualmente com a diversidade de processos institucionais de obter decisões em cada ordem jurídica. A constitui-ção de um Estado de direito, ao reconhecer o direito internacional público e os direitos estrangeiros, reconhece esta diversidade de razões públicas pela mesma razão que a faz reconhecer, em última análise, a sua própria razão pública, por respeito pela autonomia das pessoas que integram cada ordem jurídica.

Mas a autonomia e consequente diversidade das razões públicas não é contrá-ria à unidade da razão, é antes justificada pela razão filosófica. A razão filosófica é una, é o horizonte da justificação racional em face de todas as razões, mas a ela se chega por diversos caminhos possíveis e, entre eles, a partir da crítica racional das várias razões públicas.

67 Cfr. José de Sousa e Brito, “Falsas e Verdadeiras Alternativas na Teoria da Justiça”, Ars Iudicandi. Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, I, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, 320 ss.