FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL (CPDOC)
Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme abaixo.
HAVELANGE, João. João Havelange (depoimento, 2012). Rio de Janeiro - RJ - Brasil. 2013. 37 pg.
JOÃO HAVELANGE (depoimento, 2012)
Rio de Janeiro 2013
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Nome do Entrevistado: João Havelange
Local da entrevista: Rio de Janeiro - RJ
Data da entrevista: 1 de março de 2012
Nome do projeto: Futebol, Memória e Patrimônio: Projeto de constituição de um
acervo de entrevistas em História Oral
Entrevistadores: Bernardo Buarque de Hollanda e Daniela Alfonsi
Câmera: Bernardo de Paula
Transcrição: Maria Izabel Cruz Bitar
Data da transcrição: 17 de abril de 2012
Conferência da Transcrição: Thomas Dreux
Data da Conferência: 29 de outubro de 2012 ** O texto abaixo reproduz na íntegra a entrevista concedida por João Havelange em 01/03/2012. As
partes destacadas em vermelho correspondem aos trechos excluídos da edição disponibilizada no portal
CPDOC. A consulta à gravação integral da entrevista pode ser feita na sala de consulta do CPDOC.
Bernardo Buarque de Hollanda - João Havelange, mais uma vez, muito obrigado
pela sua generosidade e abertura para conversar conosco nesse depoimento que ficará
hospedado no Museu do Futebol, onde hoje circulam milhares de fãs e admiradores do
futebol, no qual o senhor é esse protagonista tão fundamental e decisivo. Então, muito
obrigado pela sua generosidade. Dando continuidade à entrevista, eu peço para a
Daniela fazer a primeira pergunta.
João Havelange – Primeiro eu quero dizer o quanto o senhor me emociona com as
suas palavras. Apesar da idade e de já ter passado por muitas coisas felizes e difíceis,
mas este momento, para mim, é muito importante, principalmente porque vai ficar para
a posteridade, e eu agradeço a presença de vocês aqui, com esta atenção e delicadeza e
desejo de servir ao nosso país.
Danela Alfonsi – Na entrevista passada, a gente falou de vários assuntos e um
ponto que eu queria voltar, que o senhor comentasse um pouco mais é essa sua entrada
no mundo dos dirigentes esportivos. Digo isso porque você acumulou as funções de
atleta, de profissional na área executiva de empresas privadas e também como dirigente
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esportivo desde muito novo, desde muito jovem, desde a Federação Brasileira de
Natação e, enfim, outras...
J.H. – Federação Paulista de Natação.
D.A. – Federação Paulista de Natação, me desculpe. Então, eu gostaria que você
comentasse essa sua entrada como dirigente esportivo; desde o início, o seu desejo de
participar também das organizações esportivas.
J.H. – Perfeito. Eu agradeço pela pergunta, naturalmente. A minha primeira
eleição foi para a Federação Paulista de Natação, porque eu morava em São Paulo, era
do Espéria, que passou depois para Floresta e voltou para Espéria1, por causa da questão
da guerra – era um clube de ascendência italiana na verdade –, e depois fiquei... eu acho
que dois ou quatro anos em São Paulo e, quando eu vim para o Rio, fui eleito para a
Federação de Natação. E quando cheguei, tinha a sede alugada aqui na rua Buenos Aires
e eles estavam atrasados mais de um ano e estavam com uma ordem de despejo. Então,
eu fui àquele que era o proprietário e estava despejando e pedi a ele se ele pudesse
retardar porque eu ia dar uma solução. E, assim, procurei a solução junto ao Hotel
Glória, que era da Cometa. Fizemos um show que foi uma beleza, arrecadamos
dinheiro, fizemos um segundo show, arrecadamos e comprei a sede ali na Cinelândia –
eu já vou me lembrar da rua – e até hoje é a sede da federação do Rio. Então, eu acho...
Assim começamos. Na continuidade, eu fui eleito vice-presidente da FIFA. E como
vice-presidente da FIFA2 , nós tínhamos a sede, naquela época, na rua da Quitanda, 3, 2º
andar, que eram 200 metros quadrados, então, pedi a um fornecedor do governo que era
meu amigo se ele poderia ter interesse em comprar e ele me disse: “Dr. Havelange, para
o senhor, eu faço qualquer coisa. O senhor me diga, eu lhe pago e o senhor sai quando
quiser”. Assim, pedi autorização da assembleia, e ela me deu o sinal verde. Esse...
comerciante ligado ao governo da cidade fez o pagamento e me disse: “Você sai quando
quiser”. Aí eu procurei e achei um prédio aqui na avenida que havia terminado de ser
construído pelo Clito Bokel e comprei o quarto, quinto e sexto andar, e a CBF me deu
1 Refere-se ao Clube Espéria. 2 Aqui o entrevistado confunde FIFA com CBD.
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autorização e, como eu era amigo do Clito, eu dei de entrada a isso e pedi a ele se podia
fazer um pagamento de tantos anos. E assim assinamos.
B.B. – Isso em que ano? Perdão.
J.H. – O meu deus. Isso é em mil novecentos e... Eu voltei de São Paulo em mil
novecentos e cinquenta e...
D.A. – Acho que eu devo ter aqui. Em 1951, você é eleito vice-presidente da
então CBD.
J.H. – Foi. Da CBD. Acho que foi isso.
D.A. – Então, provavelmente foi no início dos anos 1950.
J.H. – Exato.
B.B. – João Havelange, esclarecendo, em relação à FIFA, representante brasileiro,
já havia algum antes de você?
J.H. – Não.
B.B. – Não. O João Lyra Filho chegou a ser...?
J.H. – O João Lyra Filho era o presidente do Tribunal de Contas do Rio de
Janeiro..., um homem excepcional em cultura, em paixão, porque o clube dele era o
Botafogo de Futebol, e sempre serviu ao esporte e foi o responsável, na gestão da...
quando da construção do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, de encontrar os
recursos para que ele fosse feito. Nós devemos isso ao João Lyra Filho, e o Maracanã
está aí. Foi um homem único e eu tenho por ele uma admiração, porque eu nunca tomei
uma decisão sem consultá-lo, primeiro pela cultura e experiência e amizade que nos
une. Então, isso tem um valor. E sempre que eu tinha que tomar uma decisão, eu ia
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saber o pensamento dele. A gente, quando tem posição, não é dono da bola, como
dizem; a gente tem que descer a escada e ver que nem sempre a gente tem condições
para tudo, e se aconselhar. Não é desonra e não lhe tira o merecimento de maneira
nenhuma. E assim o Maracanã foi feito. Mas eu queria chegar à CBD de novo. E aí,
passados três meses, o Clito veio me ver e me disse: “João, eu precisava dos três
andares que você comprou, porque o BNH3 comprou todo o prédio e eu não posso
fechar por causa... você comprou os três”. Eu digo: “Só tem uma...”. “Para te
satisfazer”, ele disse, “eu pago o que você quiser, porque eu fiz um muito bom
negócio”. E aí eu digo: “Eu tenho que fazer uma assembleia da CBD”, e fiz e a
assembleia me autorizou – isso era em março – e me disse: “Dr. Havelange, o senhor
pode fazer, mas, no fim do ano, queremos ter a nossa assembleia anual em um prédio já
da CBD”. Então, eu tinha o que? Nove meses. Assim fiz. Recebi os recursos, e tinha
esse prédio na rua da Alfândega, 70, de dez pavimentos e que estava ainda por ter...
faltava o elevador, faltavam algumas coisas, mas estava totalmente... E eu fui ver a
pessoa..., ele me disse quanto era; o dinheiro que eu já tinha, eu já passei a ele, e o que
faltava, eu fui ao Carlos Alberto Vieira, que era o presidente do Banerj (Banco do
Estado do Rio de Janeiro) ou BEG (Banco do Estado da Guanabara)... Eu fui ao Carlos
Alberto, que hoje é o presidente do coisa, como é, do Safra4, até hoje ele é – nós somos
amigos. Eu fui a ele. Eu digo: “Eu precisava de tanto para comprar o prédio”. Ele me
disse: “Tu assinas o papagaio”, que era o termo, “a promissória?”. Eu digo: “Não”. Ele
disse: “Por quê?”. “Porque eu vou te fazer uma sugestão, uma proposta.” Ele disse:
“Qual é?”. “Eu digo o que eu preciso e, como eu tenho a loja e a sobreloja, o banco me
aluga para fazer uma agência num local muito bom, o centro da cidade, e isso nós
vamos descontando até a dívida terminar.” Então, esse prédio da rua da Alfândega, 70,
que era – não sei se ainda é – da CBD, de dez andares, não custou um centavo a
ninguém. Este orgulho eu tenho e ofereci. E veja que não é fácil a gente administrar,
mas quando o senhor quer dar algo e fazer algo, há sempre uma possibilidade. Eu,
naturalmente, tive facilidade, pelo conhecimento com o Carlos Alberto, porque ele já
vinha do BEG há muito tempo e tinha sido vice-presidente do Antônio de Almeida
3 Banco Nacional de Habitação. 4 Banco Safra.
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Braga5, naquela ocasião que era o Carlos Lacerda, que era o Banco do Distrito Federal,
inicialmente. Depois ficou da Guanabara e depois ficou Banco do Estado do Rio de
Janeiro (Banerj).
D.A. – Havelange, do ponto de vista do seu papel como dirigente esportivo para
firmar o patrimônio das confederações e da federação, essa experiência que você
contou, isso é enfim um reconhecimento notório. Queria que você contasse um
pouquinho do ponto de vista do desenvolvimento dos atletas e das modalidades, porque
isso eu acho que é um lado... O futebol já tinha um certo... Agora, e os outros esportes,
os esportes amadores? Conta como é que foi a sua atuação para o desenvolvimento das
competições.
J.H. – Eu lhe agradeço, porque a CBD tinha o futebol e tinha vinte e quatro
esportes amadores. Não é? Hoje é CBF, e todas as outras se transformaram em
confederações e elas hoje estão praticamente dentro do Comitê Olímpico. O Comitê
Olímpico da época não tinha a força do comitê de hoje em dia, que já chegou a solicitar
aí e obteve a realização dos Jogos Olímpicos de 2016. Mas eu lhe digo que, para chegar
a isso, a senhora nunca se esqueça... Eu vou lhe fazer uma pergunta. Eu tenho
conhecimento ou assistido todos os presidentes da República desde Washington Luiz
Pereira de Souza, que foi em 1926 a 1930. Em 1930, entrou o Getúlio, que ficou até
1945. Depois a senhora faz uma análise de todos os presidentes. Algum presidente do
Brasil, no seu período, foi a todos os estados? E eu todos os anos ia a todas as
federações, em todos os estados. Eu tocava no sujeito; ele sabia quem eu era. Eu
almoçava, eu jantava, conhecia a senhora, conhecia os filhos. Isto é importante. E por
isso nós tivemos um desenvolvimento muito grande. E esse sistema que eu fiz aqui,
quando eu fui para a FIFA, fiz a mesma coisa. Naquela época, na minha eleição tinham
178 países. Hoje são 210. Nesses 178, eu só não fui no Afeganistão, porque até hoje a
senhora não desce, mas em todos os outros, na Ásia, na África, na Oceania, como é?
Aqui a América Central, o Caribe, tudo, eu fui a todo mundo, e o mínimo que eu fui ver
uma federação foi pelo menos três vezes. Eu lhe faço a pergunta: o presidente da ONU
5 Ex-empresário do ramo financeiro, foi dono da seguradora Atlântica Seguros. Que acabou fundindo-se com o Bradesco.
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fez isso? Então, eu acho que isso é um exemplo, e quem dá esse exemplo só pode ser
esse país. Porque o mundo tem não sei quantas raças, não sei quantas religiões, não sei
quantas culturas, e nós também temos: é o branco, é o preto, é o índio, é o mulato, é o
amarelo, tudo que a senhora quiser. A senhora senta na mesa com qualquer um, convida
qualquer um. A senhora não tem preconceito com ninguém. O senhor estava falando do
Cosme Velho, eu era menino – quando meu pai comprou, eu tinha dois ou três anos –, e
quando eu me levantava de manhã, eu já tinha cinco anos, a minha mãe dizia: “Já deste
um beijo na empregada? Já cumprimentaste?”. Eu dizia: “Ainda não”. “Então vai.”
Pudesse ser preta, branca... Então, veja... Na Europa, não, o senhor tem castas. Não é
fácil. Vá à Inglaterra. É muito bonito, parece que é lindo, mas a senhora não entra. Vai
na Noruega, a mesma coisa. É difícil. Aqui, não, a senhora entra em qualquer lugar.
Naturalmente, a senhora se anuncia ou... Mas veja o que o Brasil nos ensina. E com esse
pensamento é que eu fui para a FIFA. E com isso eu posso lhe dizer hoje, minha filha,
com muito orgulho: o maior empregador no mundo é o futebol, porque nós temos 210
países, e a senhora não pode imaginar, em cada país, quantos clubes têm, no mundo
árabe, em todo lugar, e isto tem um valor incalculável, porque em cada clube tem um
técnico, tem um massagista, tem um médico. Então, vivem, são empregados com o
futebol no mundo 200 milhões de pessoas. Se a senhora puser numa família de cinco,
um bilhão come todo dia em função do futebol. Não há ninguém que deu isso, fez isso
ou ofereceu. Quem ofereceu foi o Brasil desculpe, mas com a minha participação, com
o meu trabalho, com o meu desejo de servir. Isso a senhora aprende aqui.
B.B. – Havelange, nessa ida a esses países que não pertenciam ao centro do
mundo, como dizíamos então em relação à Europa e à América do Norte, como é que
era essa mediação? Havia o contato com a embaixada ou era diretamente com...?
J.H. – Diretamente. Eu fazia uma carta, comunicava e, de acordo com a língua...
Porque em todos eles, ou o senhor fala inglês e francês, a língua local, também tem o
espanhol, o italiano...enfim. Então, de acordo, se eu não conhecia a língua... Eu sempre
tinha um secretário me acompanhando. Por exemplo, o Blatter esteve comigo... Eu
fiquei na FIFA vinte e quatro anos e ele ficou comigo como secretário vinte e três anos.
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Ele fala inglês, francês, schwyzerdütsch6, alemão, espanhol e fala português hoje em
dia, então, eu o tinha sempre comigo. É um homem excepcional. Tanto é... Vou lhe dar
até um fato jocoso. Quando eu me despedi dele em 1998, na Copa do Mundo na França,
eu disse a ele... Ele estava no meu camarote, eu digo: “Estou me despedindo de você,
estou indo pra Zurich pegar as minhas últimas coisas e volto para o Rio, e queria dizer a
você que você nunca será o presidente que eu fui”. Ele ficou assim, porque ele já estava
eleito. E eu aí disse a ele: “Porque tu não terás o secretário que eu tive”, que era ele. Ele
aí quase desmaiou de felicidade. Então, o senhor veja, quem tem essa sensibilidade
somos nós. Um inglês não faria isso, um alemão, um sueco. Enfim, ninguém. Nós
somos diferentes, palavra de honra. É impressionante. Mas você veja o carnaval: você
viu naquele dia na avenida o Bola Preta: um milhão de pessoas.
B.B. – Dois milhões e duzentas [mil] pessoas.
J.H. – Dois milhões e duzentas mil, não é verdade?
B.B. – Isso.
J.H. – Nem sei como é que deu tudo isso. [risos] Palavra de honra. Eu vi a
fotografia e fiquei olhando. O senhor consegue isso na Europa? Não. Ninguém se
mistura; todo mundo acha que tem o rei na barriga, me perdoe a expressão. E aqui, não,
nós estamos satisfeitos com tudo. Mesmo que a gente tenha preocupações e algumas
dificuldades, a gente supera.
D.A. – Agora, dentre uma gama enorme de possibilidades de esporte, por que
você acha que foi o futebol o grande...? O mais... Por que o futebol que se tornou o mais
popular? Por que é o futebol que agrada a tantas pessoas de tantos países e culturas
diferentes?
J.H. – Exatamente. Primeiro, no caso do Brasil, nós tínhamos todas as raças. E o
futebol é apaixonante. Eu vou lhe dizer, o dia que a senhora se casar e tiver um filho, 6 Trata-se de um dialeto suíço falado principalmente no Cantão alemão da Suíça.
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quando ele chegar a dez, doze anos, faz uma festa e chama todos os amigos dele, com
uma condição: ninguém pode trazer um presente. E a senhora reúne eles todos na sua
casa ou vê um quintal imenso e larga uma bola. Das dez às seis da tarde, eles não vão
lhe incomodar, e vão tomar um banho e vão dormir, porque estão cansados. Eu vejo a
importância da bola. Isso é o futebol. Eu nunca me esqueço, na África do Sul há uma
tribo, se pode dizer, de homens de cor – chamam-se zulus – e eu um dia estava lá e
comuniquei que queria fazer uma visita e me disseram: “Dr. Havelange, o senhor não
vai, porque eles são muito violentos e aqui é perigoso”. Eu digo: “Eu vou”, mas não
disse nada a eles. Fui. Levei dois sacos de bola e distribuí. Não queriam mais me deixar
sair. [risos]. Então, com isso eu acho que eu defino o que a senhora me perguntou, o que
é o futebol. Por que o futebol? Ele toca a todo mundo, desde o pequenino à senhora.
Naturalmente, têm uns que têm mais afeição para ser amanhã um nadador, para ser um
remador, um jogador de voleibol, de basquetebol, mas futebol é futebol. Um minuto.
[INTERRUPÇÃO EXTERNA7]
J.H. – O que é o futebol. E, assim, hoje em dia é no mundo todo. E o futebol...
Nós, na Fifa... Eu cheguei já faz quase meio século, não é verdade? Foi em 1974.
Setenta e quatro mais vinte e seis são 100, mais doze são trinta e oito. Quer dizer, são
quarenta anos, praticamente, e eu posso lhe dizer o que representa o futebol, o poder que
ele é. O senhor veja, todos querem a Copa do Mundo. Vou lhe dar um exemplo no caso
da França. Eu nunca me esqueço, era prefeito de Paris o Chirac e, em 1984, ele me
telefonou, eu estava na FIFA, ele era prefeito, ele disse: “Tu poderias vir me ver? Vem
almoçar comigo”. E eu fui. Eu digo: “Deixa ver meu programa e eu te telefono”. Eu vi e
disse: “Daqui a dois dias eu estou aí”, e fui almoçar com ele. Tinham outras pessoas.
Ele me disse... Como eu era do Comitê Olímpico e o mais antigo, porque eu fiquei lá
quarenta e oito anos, agora é que eu pedi para me retirar, ele me disse: “Eu queria fazer
os Jogos Olímpicos de mil novecentos e noventa e...”. Aqueles que foram na Espanha.
Mil novecentos e noventa e dois. Isso era em 1984.
B.B. – Em Barcelona, não é? 7 O telefone toca e o entrevistado atende.
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J.H. – E eu disse: “A decisão vai ser em 1986”. Antigamente eram seis anos de
antecedência e hoje são sete anos. E eu disse a ele: “Já tem um compromisso com a
Espanha e eu te pediria de não apresentar Paris”. “E em contrapartida” – veja bem, em
1984 –, eu disse a ele, “eu dou à França a Copa do Mundo em 1992”. A decisão era em
1986, seis anos. “E queria te dizer também” – ele era prefeito – “que, em 1992, você vai
ser o presidente da República e vai ser a pessoa...”.
[INTERRUPÇÃO EXTERNA8]
J.H. – O pai dele morreu nos meus braços, em Nova York. Eu fiz... Era feriado no
dia seguinte,desculpe, eu consegui fazer tudo, embarcá-lo, e vim no avião. Avisei a ele e
ele, a irmã e o irmão estavam no aeroporto para recebê-lo.
D.A. – Desculpe, quem é ele?
J.H. – É o... Ô, meu Deus! Eu estou ficando com a cabeça...
B.B. – O pai dele que...
J.H. – Era o Ney. É aquele que está ali em manga de camisa. Vamos lá que eu lhe
mostro. Fernando Carvalho, e ele era Ney Carvalho. [Inaudível]. Nós tínhamos feito
uma viagem pelo Oriente e acabamos em Nova York. E um dia a senhora dele me
telefonou: “João, você pode vir aqui? O Ney não está bem”. Eu saí correndo, desci as
escadas, cheguei no apartamento dele no tempo de fechar os olhos. Aqui, está o rei da
Espanha. Essa é o [inaudível], que foi o que levou as três delegações campeãs do
mundo, duas no tempo da Panair e uma no tempo da Varig. Ali é o Marcos Vilaça e ali
é o Samaranch e o presidente da federação dos Estados Unidos.
B.B. – O Vilaça, no ano passado, fez um evento na ABL9 e levou o Ronaldinho
Gaúcho e entregou um livro do José Lins do Rego para o Ronaldinho Gaúcho. Tenho 8 Alguém entra na sala e fala com o entrevistado.
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dúvida é se o Ronaldinho Gaúcho vai ler esse livro. [risos] O senhor conheceu o José
Lins do Rego?
J.H. – Ele era nordestino, um homem de uma cultura impressionante, mas muito
sarcástico.
B.B. – Sarcástico? [risos] Ele faleceu em 1957 e o senhor assumiu a CBD em
1958, então, ele não o viu presidente...
J.H. – Exato. Eu era vice-presidente e o Sílvio era o presidente, mas ele não quis
continuar, eu fui eleito e fiz a delegação. Como eu era nadador, o que a imprensa fez
contra mim não está na história. Então, eu vou lhe contar uns fatos. Primeiro, diziam
que eu não entendia nada porque eu era nadador. Eu vou lhe dizer, eu nunca... Eu fiquei
na Cometa, o senhor não vai acreditar, sessenta e dois anos. Cheguei como advogado
trabalhista, que é a minha especialidade, dois anos; fui dois anos vice-presidente; e
depois fui cinquenta e oito anos presidente. Nunca dirigi um ônibus, nunca sentei num
ônibus, nunca toquei num motor, nunca toquei num chassi, mas nunca faltou nada. O
futebol é a mesma coisa: eu não preciso jogar para poder estar sentado lá. Porque o
senhor pega muitas vezes um jogador de futebol, não vai sair nada. Então, me
criticaram. Eu tinha assistido à Copa de 1950. Naquela época, o meu cunhado, casado
com a irmã de minha senhora na verdade, ele veio ao Rio... ele foi me buscar no
aeroporto aqui, porque eu morava em São Paulo, assisti ao jogo com ele e, quando
terminou o jogo, eu disse... Ele veio me trazer, eu disse a ele: “Se um dia eu chegar à
CBD, eu dou a Copa do Mundo”. Era em 1950. E eu cheguei e dei.
[INTERRUPÇÃO EXTERNA10]
B.B. – O Liceu Francês que o senhor estudou...
J.H. – Estudei.
9 Academia Brasileira de Letras. 10 O entrevistado precisa interromper a entrevista para atender a uma ligação.
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B.B. – Fica aonde?
J.H. – Meu pai era belga e minha mãe também e eu estudei aqui no Liceu Francês,
aquele do Catete, ali na rua das Laranjeiras, quase ali no Largo do Machado.
Antigamente ele era no Catete, quando eu fui para lá. Eu nunca fui daqui do de
Laranjeiras, que foi depois que eu parti.
B.B. – Eles chamam hoje de Franco-Brasileiro.
J.H. – Franco-Brasileiro.
B.B. – E tem também o Lycée Molière, que é mais...
J.H. – É diferente.
B.B. – É diferente.
J.H. – Foi criado depois.
B.B. – Sim, sim.
J.H. – Foi ali que eu fiz meus estudos. Eu entrei para o colégio, eu tinha cinco
anos; saí com quinze. Eu quis fazer... Fiz a minha inscrição aqui na Faculdade de
Direito do Rio, que era na rua do Catete, e como eu tinha quinze anos, só ia fazer
dezesseis em maio e os exames eram em fevereiro, não me aceitaram. Eu aí fui a
Niterói. E fui lá, fiz o pedido e eles me aceitaram, eu passei. Quis voltar para o Rio dois
anos depois, o presidente, o diretor, ninguém me deixou vir, “ah, João, fica, fica”, e eu
fiquei e me formei lá, justamente em leis trabalhistas, e foi aí que eu depois fui para a
Cometa. Mas antes trabalhei na Belgo Mineira, que era uma companhia de ferro e aço
aqui do Rio, ligada à Europa, e o presidente...
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[INTERRUPÇÃO EXTERNA11]
B.B. – E uma curiosidade: por que seus pais vieram da Bélgica para o Brasil?
J.H. – Primeiro, meu pai é formado em engenheiro de minas. Porque quem
comandava o mundo na época dos anos, no século XIX, nos anos 1880, era o carvão, e
meu pai se especializou em engenheiro de minas, como eles chamavam, e aí, formado,
ele foi para o Peru. E ele, em Southampton, perdeu o Titanic, senão eu não estava aqui.
Ele veio, chegou atrasado, o navio já tinha ido embora. Daí foi no outro e foi para Lima,
onde ele foi convidado para ser professor da Universidade do Peru, a maior
universidade da América do Sul naquela época. Ficou lá doze anos, voltou à Europa,
casou com minha mãe e veio ao Brasil. Então, ele tinha a representação da FN; da
Société Française de Munitions; da Bethlehem Steel, que era arames e tubos; e da
United States Steel. Estas duas firmas eram dos Estados Unidos; as outras duas eram da
Bélgica. E ele tinha também a representação de fios de lã, da Inglaterra, da Bélgica e da
Austrália, que eram os três países mais importantes. E ele veio com isso e parece que se
saiu bem e eu estou aqui na sua frente. Eu perdi ele muito cedo, eu tinha dezessete anos.
E foi interessante. Quando terminou a revolução... quando terminou a revolução do
Getúlio em São Paulo, em 1932, o governo do Getúlio fez uma tomada de preços para
repor o material que havia sido gasto durante a Revolução de 1932. Meu pai se
apresentou com a FN e com a Société Française de Munitions, e a Alemanha se
apresentou com a Skoda, porque a Tchecoslováquia, naquela época, era dependente da
Alemanha. Meu pai ganhou a concorrência... Isso foi em 1933. Meu pai ganhou a
concorrência em março e anularam; reabriram, eu acho que foi em setembro do mesmo
ano, ele ganhou e anularam; em 1934, reabriram de novo – porque os três generais do
Brasil que decidiam eram germanófilos, então, estavam a favor da Skoda –, anularam.
Aí foi feita a quarta. Quando anularam, meu pai teve um derrame e morreu. Foi o
presente. Então, se o senhor me convidar para ser qualquer coisa no governo, não quero.
Se o senhor quiser me dar o maior empréstimo do governo a troco de reza, não quero. O
senhor me convida para uma posição, seja qual for, no governo, não quero, pensando no
meu pai. O senhor veja, todo mundo que chega ao governo, o senhor tem uma dúvida, 11 Mais uma vez o entrevistado tem que atender ao telefone.
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pode ver, porque tudo tem um interesse, que é se servir para chegar a alguma coisa. E
eu, felizmente, guardei bem a lição do meu pai. E com isso eu procurei... todas as coisas
que fiz na minha vida, sempre me lembrando dele e de minha mãe, que também sofreu
muito, porque ela teve um câncer terrível. Foi no útero e, com o caminhar – tudo que eu
pude fazer foi feito –, ela teve o rompimento da bexiga. Então, a urina corria noite e dia,
e é ácida. Isso aqui era em fogo. Eu tinha seis enfermeiras, cada quatro horas, para
fazer. E um dia eu me ajoelhei, na casa dela, no apartamento dela, que era meu quando
eu vinha de São Paulo, porque eu morava em São Paulo, e pedi a Deus que a levasse.
Então, o senhor veja, o senhor nunca mais vai ouvir que alguém pediu que a mãe fosse
embora, mas o sofrimento é tanto que é esse o seu desejo. Passados os anos, minha
irmã, mais moça que eu, teve a mesma coisa. Eu a levei a Houston, o maior hospital –
ela fez exatamente o câncer como a minha mãe –, e tirou tudo. E o médico me disse:
“Dr. Havelange, para recompor, eu peguei toda a parte da nádega e apliquei. Pode estar
tranquilo porque sua irmã não tem mais nada”. Eu fiquei sempre com uma dúvida. Se
ficar um grão, mas o mínimo possível, daqui a pouco ele cresce e vai voltar. Foi o que
aconteceu com minha irmã. E, nos últimos meses, ela estava no Hospital São Vicente, lá
em cima, na Gávea, e eu estava ao lado dela. No dia que ela morreu, o senhor não vai
acreditar, a urina saía pelo nariz e pela boca. E eu pedi a Deus que a levasse, também.
Então, o senhor veja que não é fácil. E a gente... Tudo isso serve de lição. Foi baseado
nisso que eu fiz o que pude fazer, com sentimentos, com tudo. Tem muita gente que,
por isso ou por aquilo, ou pelo meu temperamento, então, me atacam disso ou daquilo, o
que é natural. Atacaram o Getúlio, atacaram o fulano. O senhor veja, todo dia tem uma
coisa. Agora é o Lula, não é verdade? Como ele já não vai voltar, o senhor vai ver como
daqui a pouco já não falam mais nele, já acabou. E eu, por exemplo, quando fomos
decidir para que os Jogos Olímpicos viessem, houve a reunião, a assembleia do Comitê
Olímpico, e é a assembleia quem decide, 105... 110 membros. Ouça o que eu vou lhe
dizer: a composição da assembleia, veja bem, cinquenta e cinco [são] da Europa.
B.B. – Mais da metade.
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J.H. – Exatamente. E tinha a Espanha. Então, na final, ficamos nós e a Espanha, a
Espanha do Samaranch12, que foi presidente quatro períodos, e ele é quem fez a
campanha, quem fez a apresentação da Espanha, como ex-vice-presidente. Ele fez, eu
não disse nada, e também fiz. E eu aí, quando terminei, fiz um apelo à assembleia, como
o decano, o mais antigo, e que pedia a eles que me dessem essa possibilidade de ter os
Jogos Olímpicos em 2016, porque desde agora eu convidava a todos para um jantar de
gala, porque eu completaria 100 anos e todos eram meus convidados. Fui aplaudido e
tudo. O Lula estava ao meu lado e disse: “Está bom”. Eu digo: “Vamos a ver,
presidente”. Então, ficamos a Espanha e nós. No final, a contagem: sessenta e seis a
trinta e dois.
B.B. – O dobro de votação.
J.H. – Então, veja que não é fácil. Quer dizer, eu devo ter tido um comportamento,
eu fiz amigos e tudo. Então, vou lhe contar uma coisa que o senhor jamais viu em
nenhuma pessoa: eu, por ano, ainda hoje, faço dois mil cartões de Natal, todos os
presidentes de federações, todos os membros do Comitê Olímpico, todos os membros
da FIFA. E eu pergunto: quem é que faz isso? E eu faço à mão, pergunta aqui à Irene. E
por falar em Irene, o senhor sabe há quantos anos ela está comigo?
B.B. – Não.
D.A. – Comentou da outra vez.
J.H. – Cinquenta e cinco... Então, veja que não é fácil. Mas eu procuro... aquilo
que eu tenho a obrigação de fazer, é pensando sempre no meu pai e minha mãe, porque
eles sempre me diziam: “Tudo que tu puderes ajudar”. Vou lhe dar uma coisa que
aconteceu...13 As favelas. Eu tenho aqui uma carta me pedindo para... A Holanda se
associa a uma pessoa que é da Petrobras que se aposentou e foi chamado para o gabinete
e é meu amigo. De petróleo ou de gasolina, é só para botar no carro. Não tenho nada a
12 Refere-se a Juan Antonio Samaranch Torrelló presidente do COI de 1980 a 2001. 13 O entrevistado folheia algumas páginas e encontra uma carta.
Transcrição
16
ver com ele, não tenho negócio. Então, nós vamos... Ele quer me levar à presidente atual
da Petrobras, e eu disse que iria, e já falei com a CBF. Porque eles fariam tudo. Seria a
Holanda, aliada à Alemanha. Fariam tudo: primeiro, um campeonato de favelas das
doze cidades que têm a Copa do Mundo. Então, o senhor pegaria a juventude para isso,
e o senhor dá uma tranquilidade e o senhor faz com que... A abertura pode ser em
Cuiabá, que vai ter uma coisa. É um local muito bom. E fazer com que uma autoridade
dê o pontapé inicial. Se for necessário, eu vou, se eles me quiserem. Então, a presidente
da Petrobras ficou de ver quando me receberia, pediu para ir. Então, veja o bem que se
faz. Então, eu falei com o Ricardo14... Porque quem fazia isso era a CBD... a CBF, mas
custava uma fortuna, o senhor pode imaginar. Um organismo é diferente. Então, eu pedi
a ele, ele me disse: “Pode estar tranquilo”. Me dá todos os juízes e bandeirinhas. O
senhor já viu o que representa. E começa... Como eles são jovens, você põe a mesma
coisa e vai preparando um árbitro e um bandeirinha para o futuro, sem molestar ou sem
incomodar ninguém. Então, o senhor veja, eu já não estou em coisa nenhuma, mas todo
dia tem uma coisa. O que eu puder fazer, eu vou fazer. Não é fácil.
D.A. – Você podia comentar um pouco, porque isso reflete um pouco, esse tipo de
atitude e essa preocupação, que o esporte não seja só nas categorias principais, então,
você criou também torneios juvenis dentro da FIFA. Queria que você comentasse um
pouco sobre como se transformou... O fato de o futebol ter se capilarizado tanto no
mundo todo também é por conta de criação de campeonatos de categorias menores, o
futebol feminino... Podia contar um pouco essa...?
J.H. – Eu quando eu cheguei à FIFA, minha filha, eu cheguei em 1974, a Copa do
Mundo já tinha sido decidida, naquela época, pelo Congresso. Hoje é pelo Executivo.
Porque como é um assunto técnico, não pode ser política. Então, quando eu cheguei, a
Copa do Mundo já estava designada para a Argentina. Houve um problema político
dentro – também, não tenho nada a ver com isso. E se realizou bem. O presidente da
República, que era um general, me tratou divinamente bem, e a senhora dele – eu estava
com minha senhora. Eu não tenho nada o que dizer. Eu só fiquei triste, muito triste. E
com isso, quando eu cheguei à FIFA, depois eu acabei. 14 Refere-se à Ricardo Teixeira, então presidente da CBF.
Transcrição
17
[INTERRUPÇÃO EXTERNA15]
J.H. – E quando eu cheguei... Depois dessa, porque já estava tudo programado, eu
acertei tudo. É que a delegação holandesa, que foi à final com a Argentina... Houve o
banquete oficial. Porque era assim. Tinha tido em 1974, na Alemanha, e eu tinha ido
como eleito, naquela época. Então, o jantar foi oferecido pelo presidente da República
no palácio. Era às nove horas, o jantar. O senhor sabe a que horas os holandeses
chegaram? Meia-noite, por causa do negócio de revolução. O senhor não pode misturar
questões políticas com esporte, senão o senhor nunca chega a nada. O senhor não vai
achar que todos os países filiados à FIFA têm a mesma política. O senhor não pode
deixar de ir, não tem nada a ver com isso. Então, isso me entristeceu. E quando eu
cheguei depois à FIFA, para as outras Copas do Mundo, já a de 1982, na Espanha, o que
eu fiz foi o seguinte: anulei tudo isso. A Copa termina, o capitão do time sobe na tribuna
de honra e eu entrego a taça e as medalhas. Eu não desço ao campo, e vou lhe contar por
quê. Dois fatos. Aliás, três. Por que eu não desço ao campo? Porque como você,
momentaneamente, por eleição, é uma autoridade, tem que ser respeitado. Então, eu
tinha uma experiência de três coisas. Primeiro, em Belém do Pará. O presidente da
federação era o Oscar Castro, meu amigo, um grande advogado, e quando houve o jogo
– era o Paysandu com o Remo, uma paixão –, ele me disse: “João, vem para dar o
pontapé inicial”. Eu disse a ele: “Oscar, a minha posição é na tribuna de honra”. “Ah,
mas vai.” Tanto ele me chateou que eu fui, dei o pontapé inicial. Quando eu vinha
caminhando para a tribuna, levei uma laranja podre aqui no peito. Ele não sabia o que
fazer. Eu digo: “Não, eles é que têm razão”. E eu disse a ele uma expressão que lhe
peço desculpas pelo que eu vou dizer: o senhor em futebol, o senhor veja a mulher mais
linda, linda, põe nua no meio do campo na hora do jogo, vai ser vaiada, porque o que
eles querem é a bola. Palavra de honra. É a paixão, e o senhor tem que respeitar. Os
anos se passaram, tivemos aqui uma final que foi Santos e... Santos e um clube da Itália,
a final da Copa de...
B.B. – Milan. 15 Novamente a entrevista é interrompida por uma ligação externa.
Transcrição
18
J.H. – Milan. Era o Milan.
B.B. – Foi a final do Mundial, no Maracanã.
J.H. – Exatamente. O Juscelino me telefona e me diz: “Havelange, eu vou ao
jogo”. Eu digo: “Eu lhe espero”. Ele veio, a polícia me avisou e eu estava no elevador
quando ele... A porta se abriu, eu o recebi, convidei ele para sentar para ver as coisas e
ele, muito irrequieto, o Juscelino, ele me disse: “Eu vou para a tribuna de honra”. Eu
disse: “O senhor não vai”. “Mas eu sou o presidente, eu vou.” Eu digo: “Não vai. O
senhor vai ficar aqui. Eu depois lhe digo por quê. O senhor vai entrar ao mesmo tempo
que vão entrar os dois times”. E ele veio e sentou. Há sempre vaias. Eu digo: “Se o
senhor entra sozinho e leva vaia, o senhor nunca mais vai me esquecer”. E não deixei.
Passados tantos anos, houve uma final, Flamengo e Vasco, a mesma coisa: ele foi e quis
fazer isso. Não, foi diferente. Ele me disse: “Havelange, eu vou descer. Estão me
chamando para hastear a bandeira do Brasil e as outras bandeiras”. Eu digo: “O senhor
não vai. O senhor é presidente da República, fica sentado aqui. [Inaudível]”. “Mas é a
bandeira do meu país.” “Do meu também. O senhor fica aqui.” Ele acabou ficando. Se
ele levasse uma laranja podre, como eu levei? A senhora está vendo? Quer dizer, a
gente não pode deixar... Vou lhe dar mais um último, nesse aspecto. Quando tivemos
aqui os Jogos Pan-Americanos, aquilo começava às nove horas. O nosso amigo Lula
chegou às nove e vinte, sentou na tribuna às nove e meia, e levou a maior vaia. Então, o
sujeito que está ali está pouco se lixando; ele quer ver o espetáculo. Ou o senhor aceita
isso ou não vai. É feito o carnaval: o senhor vai para... Se o senhor se meter naquela
coisa, o senhor está perdido, naquele desfile, não é verdade? Porque é uma paixão. E
aquilo é deles. O senhor não tem nada que se meter. Se o senhor foi convidado, assiste,
bate palma, faz um comentário e vem embora. É assim que a gente tem que fazer. E eu
tinha... E volto a uma coisa, que agora é sob um outro aspecto. Quando a Copa do
Mundo da Argentina terminou, o resultado bruto financeiro foram setenta e oito milhões
de dólares; em seguida, quatro anos depois, fiz a Copa do Mundo na Espanha, o
resultado financeiro foram oitenta e dois milhões de dólares. Para 1986, que era no
México, eu mudei completamente o sistema: botei, em vez de dezesseis times, trinta e
Transcrição
19
dois times16, e o sistema, também, porque assim o senhor tem, de forma mais
equilibrada, todos os continentes, e todo mundo se interessa, então, a televisão tem que
ir a todos os lugares. Então, a receita, de setenta e oito milhões e de oitenta e dois, a
senhora sabe para quanto passou hoje em dia? Quatro bilhões e seiscentos milhões.
Então, isso é que eu digo administrar: o senhor paga as quotas, paga tudo. A FIFA hoje
é rica. Se um dia... Em maio, eu vou estar em Zurique. Se os senhores puderem ir lá, eu
teria prazer. Eu fiz, quando cheguei... A sede da FIFA era em um prédio velho, e o
secretário morava com a mulher, dois filhos, dois cães e um gato, e embaixo do
apartamento dele era a sede da FIFA, onde faziam a reunião. Então, o máximo que o
senhor podia reunir eram seis pessoas. Tudo era nos hotéis. Eu cheguei, ele abriu a porta
e tudo, eu vi aquilo e disse: “Dentro de alguns meses, o senhor vai sair daqui porque eu
vou comprar uma casa e o senhor vai”. E ele me disse: “A FIFA não tem dinheiro”. Eu
fui e disse a ele: “Não é o seu problema”. Eu vou lhe dizer uma coisa: o senhor já
imaginou – ele morava dessa maneira – eu morar na Cometa, numa garagem, com a
minha mulher e minha filha? É a mesma coisa. Ele aí ficou, mas oito meses depois ele
teve a casa. Fui ao banco, o banco comprou. O banco me disse: “Como é que a FIFA vai
pagar?”. “O senhor hipoteca e eu pago um tanto por mês. Pago a hipoteca e pago a
mensalidade do valor da casa”. E, depois de tantos anos, a casa era da FIFA. Quando o
secretário morreu, a mulher quis comprar. Não. Um dia, ele veio me ver e me disse: “Eu
queria comprar a casa”. Ele comprou. Morreu. E eu passei anos terríveis com esse
secretário, que era um suíço-alemão, estava lá há não sei quantos anos, e o Stanley
Rous17 não entendia nada, não fazia nada. O que ele passou a me odiar foi tremendo. E
aí, quando ele morreu, a mulher dele veio ao Blatter18 e disse que queria vender a
propriedade que ele tinha comprado. Eu disse ao Blatter: “Você vende a quem quiser,
mas aonde quiser. Menos a eles”. Não. “Você compra de tudo, menos isso.” E ficou. E
o senhor veja, depois, fiz a sede, uma sede uma beleza, e todo mundo ficou encantado.
Eu fui ao banco de novo, eu perguntei: “O senhor poderia me ver para fazer uma sede?
Está aqui o programa, está aqui o orçamento do engenheiro”. O banco foi a Société de
Banque Suisse, que hoje foi absorvida pela União de Bancos Suíços. E ele me disse: “O
16 Na realidade a Copa do Mundo de 1986 contou apenas com 24 times. A primeira Copa do Mundo a contar com 32 equipes foi a da França em 1998. 17 Foi presidente da FIFA de 1961 a 1974. 18 Joseph Blatter.
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20
terreno é da FIFA?”. Eu digo: “É”. “Então nós fazemos negócio.” Fez. Anos depois,
estava tudo pago. E quando eu saí, de propriedades, eu deixei 275 milhões de dólares.
Depois de ter saído, o eleito foi o Blatter. Dois anos depois, um dia, ele me telefona:
“Tu podes vir?”. Eu fui. Eu digo: “O que você quer?”. “É que o banco, o Credit Suisse,
tem uma área de quarenta mil metros quadrados acima de Sonnenberg, onde nós
estávamos, e quer vender e me procurou. Você pode vir ver?” Eu fui. Era o centro de
esportes dele e, como não ia ninguém, ele quis vender... Daqui a pouco nós vamos ter
que mexer as pernas... E aí ele me disse: “O que é que tu achas?”. Eu digo: “O que é que
tu queres fazer?”. “Eles querem vender.” Eu disse a ele: “Se estivesse no teu lugar, eu já
tinha comprado ontem”. E ele comprou. Quatorze milhões de dólares. Depois, chamou a
maior empresa suíça de construção, que era dirigida por uma senhora arquiteta, e fez o
prédio. Se o senhor vê de cima – eu vejo se tem uma foto aí –, parece um campo de
futebol. Tem 100 por setenta ou oitenta; três andares fora da terra, porque o senhor não
pode ultrapassar a floresta. Tem dez metros, então, três, seis, nove. E tem seis dentro da
terra, com tudo – inclusive, três andares de garagem. É uma maravilha! Então, o senhor
veja, isso é que eu chamo administrar. Então, o meu sentimento, eu transferi para o
Blatter.
[FINAL DO ARQUIVO]
J.H. – Então, eu estava lhe dizendo o valor da propriedade. E a administração,
esse é um dos problemas do nosso país, é político. O senhor não sabe quem vem. E eu,
quando decidi sair... O senhor nunca se esqueça de uma coisa... Hoje em dia o mundo
mudou. Eu, quando fiz oitenta anos, eu era presidente, fiz uma carta ao Comitê
Executivo que terminava o meu mandato com oitenta e dois e disse que não me
reapresentaria em hipótese alguma. Porque aos oitenta anos, o senhor não se dá conta,
mas começa a descer a escada da vida e aí tudo que o senhor fez fica esquecido. E com
isso eu elegi o Blatter19. E ele seguiu a minha política. É muito inteligente, falando
cinco ou seis idiomas, ele era o diretor de marketing da Longines20, quer dizer, com
capacidade, e o que eu fiz, ele continuou. E, veja, hoje a FIFA é um poder. Ele vai vir
aqui. E isso tem um perigo. Por exemplo, na FIFA. O senhor sabe quem é o presidente
19 Joseph Blatter. Atual presidente da FIFA. 20 Fabrica de relógios, sediada na Suíça.
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21
da Suíça? Não. Mas sabe quem é o presidente da FIFA. Então, acha que ele está
satisfeito? Até politicamente tem isso hoje. Compreende? O senhor veja, é
impressionante, e eu sei porque eu também sofri isso. Eu nunca me esqueço... O senhor
veja ali, o Papa me recebeu. Ele foi jogador de futebol na Polônia, antes de ser padre.
Jogava no gol. E quando eu fui, eu dei a ele uma miniatura da Copa do Mundo. Ele
ficou numa felicidade. Só falamos de futebol. Então, isso tudo a gente aprende aqui.
Tem um presidente na tribuna de honra, o senhor trata ele bem, mas não precisa arriar as
calças, não é verdade? Desculpe a expressão. Então, o senhor veja o que me deu de
experiência e de valor este país. Como todo mundo, com todos os defeitos.
B.B. – Uma curiosidade em relação à própria história da FIFA. Você estava
falando do Stanley Rous21, quando ele ficou à frente da FIFA. Inicialmente, o futebol
foi, entre aspas, inventado... o futebol moderno foi inventado na Inglaterra, mas a FIFA
é criada na França, na Europa continental. E, durante muito tempo, os ingleses não
participaram. Só depois... Quer dizer, teve o grande período em que o Jules Rimet foi o
presidente da FIFA, e depois os ingleses... Como é que você vê a figura do Jules Rimet
e do Stanley Rous e essas questões que também são, de alguma maneira, políticas,
dentro da história da FIFA na Europa?
J.H. – O que criou a FIFA foi um francês. E, indiscutivelmente, teve uma ideia
genial, porque aquilo que era um ovo hoje em dia é um negócio desses cheio de ovos,
de uma grandeza, de uma força tremenda. E depois... Ele ficou algum tempo, o Jules
Rimet, foi indiscutível, e depois houve eleição e tivemos um holandês... Teve um pouco
de tudo, até chegar a este que vos fala.
B.B. – Você o conheceu?
J.H. – Quem?
B.B. – O Jules Rimet.
21 Foi presidente da FIFA de 1961 a 1974.
Transcrição
22
J.H. – Não, não o conheci. Já era falecido. Mas o Stanley Rous era o presidente,
quando eu cheguei. E eu não me esquecerei jamais... Eu tinha sido campeão em 1958 e
1962 e eu vou com o time para a Copa do Mundo na Inglaterra, desço em Southampton,
aviso à federação inglesa e à FIFA da chegada do time pelo avião tal, a tal hora, para
que tudo estivesse pronto para me levar para o hotel, e a primeira coisa: eu fiquei duas
horas esperando o ônibus. A primeira delicadeza. A segunda delicadeza: cheguei no
hotel, que nós tínhamos alugado por antecipação para estar sozinho, tinha um
campozinho de futebol e eu mandei saber onde é que tinham reservado para nós
treinarmos. Me levaram. Quando eu entrei no campo, tinha capim desse tamanho. Esse
foi o presente da Inglaterra e Stanley Rous, que são os grandes lordes, não é verdade?
Então, eu treinava no [inaudível], até que o campo pudesse ser colocado de maneira...
Se não bastasse isso, eu tive, como os três primeiros jogos, a Hungria, Portugal e a...
B.B. – Tchecoslováquia?
J.H. – Não. A capital é Praga. Não Praga não. É um país22...
B.B. – Polônia?
J.H. – Bom, desses três países, dessas três seleções, eu tive nove árbitros, quer
dizer, três árbitros e seis bandeirinhas, não é isso? Então, o presente que o Stanley Rous
me deu: seis dos árbitros eram... sete eram ingleses e dois eram alemães. Me acabaram
com o time. Foi o presente. Só foi pontapé; o Pelé teve que sair... Mas o senhor não sabe
o que foi. Porque ele queria acabar comigo. Eu não disse nada. Antigamente – isso eu
também acabei –, a Copa do Mundo, quando um time saía, ele era recebido na mairie,
na prefeitura, e aí tinha um coquetel e uma coisa e tinha a despedida. E eu fui com o
time. Estava na porta o Stanley Rous, eu entrei com o time e, quando passei por ele, ele
me estendeu a mão e eu fiquei olhando para ele. Ele me disse: “O que é que tem?”. Eu
digo: “Faz um exame de consciência, tu vais ter a resposta”, e entrei. E, oito anos
depois, eu fui eleito. E antes de ir para a campanha da eleição, telefonei para ele, disse:
22 Refere-se a Bulgária, outra seleção que integrava o grupo da qual a seleção brasileira fazia parte com Portugal e Hungria.
Transcrição
23
“Estou indo a Londres, estou te convidando para jantar comigo”, e fui. E, no jantar, eu
disse a ele: “Eu, na minha vida, fui nadador e, em natação, a gente ganha uma medalha,
o campeão. Então, entre você e eu, eu vou ganhar a medalha”. Fui-me embora. E
ganhei. Na primeira passagem, eu tive seis votos mais do que ele, e na segunda... Pelo
estatuto da FIFA, é diferente: na primeira, o senhor precisa ter dois terços; na segunda,
qualquer número vale. Então, quando eu vi seis, eu ganhei, eu digo... Eu nasci no Brasil.
Tem amanhã uma eleição. Se você tem um amigo, diz: “Então, como é que foi o teu
candidato?”. “Ah, ganhou.” Mas ele não diz quem é. Então, todo mundo quer ser
ganhador. E com isso, eu na segunda passagem, tive vinte e um ou vinte e dois votos
mais do que ele. Pensando no meu país. É exatamente a mesma coisa. Você vê, nós
somos burros e tudo, mas não tanto quanto eles imaginam. Nós acabamos tendo uma
experiência diferente de todo mundo. Porque aqui o senhor raciocina de uma maneira; o
senhor vai para São Paulo, é outra; o senhor vai ao Ceará, é outra; o senhor vai a Belém
do Pará, é outra; e está dentro do Brasil. Lá é isso, mas eles são fechados, são os donos
deles. E cada um daqueles países é menor do que um estado nosso. Pode nem ser do
tamanho do que era um ex-território. Está certo?
D.A. – Você comentou um pouquinho de como que a imprensa acusou o senhor
de não conhecer nada de futebol por ter sido atleta aquático, nadador e, depois, o polo
aquático. Eu queria que você contasse um pouquinho... Mas não é assim, a gente sabe
que isso não é verdade, você jogou futebol na sua juventude e...
J.H. – É, eu joguei futebol. Mas, naturalmente, eu vinha da natação, não era
dirigente de futebol. Então, acha que ninguém conhece nada. Não é isso. Não é porque a
senhora não é de um partido político que, se amanhã chamar, não pode administrar. Não
precisa ter auréola de político para poder... E muitas vezes não servem para nada, esta
que é a verdade.
D.A. – Mas como era a sua relação com os atletas de futebol? Você convivia nas
concentrações, por exemplo, durante as Copas ou durante os campeonatos? Você tinha
contato com os atletas?
Transcrição
24
J.H. – Eu, primeiro, tratava a eles todos muito bem, com o maior respeito, recebia-
os, os abraçava, mas nunca fui a vestiário. O lugar do presidente é na tribuna de honra.
Hoje, todos vão, e perdem... É uma intimidade que não é boa.
D.A. – Por que não é boa?
J.H. – Porque a senhora, como dirigente, deve sentir que debaixo... que a senhora
é respeitada. Depois, eu fiz uma coisa. Eu me lembro, eu era menino, devia ter dez ou
doze anos, quando esse estádio do Vasco ficou pronto e meu pai foi convidado a ver um
jogo do Brasil na Copa Rocca23, naquela época, lá em São Januário, e ele me levou.
Quando nós chegamos, os jogadores estavam almoçando, e um jogador estava
comendo, eu fiquei olhando e, quando ele terminou, meu pai perguntou: “Você está
alimentado?”. A resposta dele foi a seguinte: “Ah, doutor, eu estou cheio”. Porque não
tinha o elemento mastigador. Então, é o feijão, o caldo de feijão, o arroz, é a banana, é a
farofa e tudo. Enche, mas não te alimenta. Jogávamos contra a Argentina. O primeiro
tempo, uma maravilha; o segundo, eles, como comiam carne, era outra coisa...
Ganhavam sempre os jogos. Quando eu cheguei, eu me lembrei disso, fui à Santa Casa
e um dos professores de lá, meu amigo, ele disse: “João, pode mandar todo mundo que
eu vou examinar aqui na minha... aqui na... onde eu tenho o direito de receber”. E assim
foi. Tinha um jogador que tinha uma dentadura em cima dos cacos e ia ter um câncer na
boca; outro tinha isso; outro tinha aquilo. Mas ele fez os exames, fez tudo e o time,
depois, fisicamente, estava perfeito. E eu tinha o dr. Hilton Gosling24, que era o médico,
e o auxiliar era do gabinete, ou da equipe desse médico. E, veja, o time foi e, na Copa
do Mundo, foi considerado um dos melhores fisicamente e também sob o aspecto de
futebol, tanto é que foi campeão. Eu queria lhe dizer que, quando o time embarcou, eles
me perguntaram por que eu não ia. Eu digo: “Primeiro porque o meu vice-presidente”,
que era o Paulo Machado de Carvalho25, que era da Record, ele tinha uma... era são-
paulino, nós éramos amigos. Eu disse que eu só aceitaria ser presidente da CBF tendo o
23 Torneio disputado entre as seleções do Brasil e Argentina. 24 Ex-médico da seleção brasileira, esteve presente na campanha vitoriosa de 1958. Faleceu em 1975 vitima de um derrame cerebral. 25 Foi um advogado e empresário brasileiro. Ficou conhecido como Marechal da Vitória, por ter sido o chefe da delegação brasileira nas Copas de 1958 e 1962.
Transcrição
25
Paulo como meu vice-presidente. Então, quando houve a Copa... Não somos imbecis
tanto quanto eles imaginam. O Paulo tinha a Record, e o Chateaubriand, que tinha um
diretor que era muito amigo do Paulo, tinha a Tupi, os dois maiores poderes na época.
Então, para falar mal, tinha que botar ele no jogo. E ele fez um acordo: aquele que
fizesse, eles punham na rua e não aceitariam mais. Então, minimizou. Eu não estava,
eles não podiam dizer nada. Mas, quando nós fomos, eu fiz dois jogos: um em Florença
e outro em Milão. Não com a seleção italiana, mas com times. E recebi não sei quantos
mil dólares, quarenta ou cinquenta mil. A crítica que me fizeram, pôr um time para
jogar contra clubes e não sei o quê. Mal sabiam que eu não tinha um centavo e aquele
dinheiro, o Paulo levou para a Suécia para poder começar a respirar. Então, veja, minha
filha, a gente, quando quer administrar, não é fácil. Depois que tudo foi feito, que se
ganhou, todo mundo bate palma. Mas eu lhe digo: tem que pensar duas vezes. E assim
foi até o final, pelo exemplo que eu tive, primeiro, dos meus pais, e segundo, do que eu
aprendi na Cometa. Porque a senhora pode ver, a senhora tem visto acidentes à vontade,
a senhora nunca viu um acidente da Cometa. Sabe por quê? O senhor assistiu ao jogo de
ontem do Brasil com a Bósnia26?
B.B. – Assisti.
J.H. – Gostou do gol da Bósnia? Foi um frangaço, está certo? Com quantos anos
ele está?
B.B. – O goleiro? O Júlio César?
J.H. – É. Está com mais de 32. Na Cometa, todos os motoristas que viajavam
[para um local] a mais de 100 quilômetros, a 150, tinham que ser de vinte e cinco a
trinta e dois, porque todos os reflexos são iguais. Porque se ele não tiver, ele se mata e
mata todo mundo. Então, o nosso goleiro já não podia estar lá, no meu entender. Mas
acho que esse técnico fez uma análise, alguma coisa nesse sentido, mas é um imbecil,
me perdoe a expressão. E tudo isso, se não modificar, nós não vamos chegar a nada. A
imprensa... Eu se fosse o presidente, o meu técnico seria o Scolari, com o Parreira em 26 Refere-se à partida amistosa disputada entre a seleção brasileira e a seleção bósnia no dia 28/02/2012.
Transcrição
26
cima. Experiência total. Dois homens de personalidade e retos e corretos. Eu não tenho
nada a dizer desse porque eu nem o conheço, mas não está conseguindo nada, o senhor
me perdoe, e nós estamos em cima do laço.
B.B. – A dois anos.
J.H. – A Bósnia, o que é? É um negocinho assim, encravado na Iugoslávia.
B.B. – Na ex-Iugoslávia.
J.H. – Não é isso?
B.B. – Isso.
J.H. – Então, eu às vezes fico preocupado, mas não me meto e não digo nada, mas
o senhor veja a experiência. A gente tem que estar atento a tudo, ver as modificações.
Não precisa ser técnico, nem eu sou, mas se o senhor tem boa observação, por que não
usá-la, não lhe chamar, ouvir e tudo, não é mesmo? É assim que se faz. Mas você veja,
já na Holanda, o Brasil ganhava de um a zero, na final... Não. Iria para a final.27
B.B. – Na semifinal.
J.H. – Na semifinal. Fizemos um a zero. O primeiro gol da Holanda, frango do
nosso goleiro, pulou atrasado; o segundo gol, frango da nossa defesa. Então, o senhor
veja como a gente tem que estar atento... a tudo. O Lúcio já está com 30 e tantos anos; o
goleiro, a mesma coisa; todos eles. Então, o senhor tem que arranjar um time de vinte e
cinco anos, entre dezenove e vinte e cinco, vinte e seis, no máximo vinte e sete, com
toda a potência. Essa que é a realidade. O senhor lembra esse menino do Corinthians, o
Adriano. Eu nunca me esqueço, quando o Brasil foi jogar a Copa do Mundo na Coréia e
Japão, eu não posso me esquecer disso... Eu vou lhe dar um exemplo. Eu... eu tinha que
decidir, no Comitê Executivo, o país que iria para a Copa do Mundo, e o vice-presidente 27 Refere-se a partida da Copa do Mundo de 1974, vencida pela Holanda por 2 a 0.
Transcrição
27
da Ásia tinha manobrado uma porção de gente e ia ganhar a Copa do Mundo na Coréia,
e eu tinha um sentimento com os japoneses. Quando nós fizemos 100 anos ou coisa
assim, quem esteve aqui comemorando tudo foram os japoneses. Depois ficaram na
Amazônia e em São Paulo e foi um valor, não é verdade?
B.B. – O senhor fala a comemoração de 100 anos da FIFA?
J.H. – Não... Do futebol. Não, era da CBD, 50 anos.
B.B. – Ah, sim.
J.H. – Exatamente. E eu, lembrando dos japoneses, não disse nada. De noite, me
levantei, fiz um rascunho, fechei o papel... Li até para a minha senhora, que não ficou
muito satisfeita. Ela estava dormindo, eu disse: “Queres ouvir uma coisa?”. “Ah, João,
me deixa!” [risos] Eu li para ela. “Está bom. Espero que saia.”. E quando chegamos no
ponto oito ou no ponto sete da ordem do dia, era para decidir aonde seria a Copa do
Mundo. Eu aí pedi a palavra, disse: “Vou me permitir ler o trabalho que fiz”. E li e
sugeri que a Copa do Mundo fosse entre a Coréia e o Japão. Todo mundo se levantou e
bateu palma, e eu não perdi. Presidente não perde. Nunca se esqueça disso. Se for
perder, dá a volta. Nunca pode perder. E não perdi. Foi na Coréia... Quem é que foi? O
Scolari28. No dia da abertura, chegou o Beckenbauer29, sentou ao meu lado, nos
cumprimentamos – na abertura –, e eu disse a ele: “A final vai ser amarelo e branco”.
Ele ficou me olhando, não entendeu bem, e vira o meu secretário, o Marcel, e disse a
ele: “Amarelo é a CBF e branco é a tua seleção”. E a final foi... E o Ronaldinho fez dois
ou três gols, não foi isso? De competições, é o jogador que mais fez gol, um só jogador,
em uma final de Copa do Mundo. Então, eu ia buscar esse homem e o Parreira. O
depois, sabe ficar calado e sabe como dizer as coisas todas. Mas o senhor não comanda,
nem eu, a gente assiste, mas eu faria isso. E vou lhe dizer, do que eu vi naquele jogo do
Brasil com a Bósnia, me entristeceu e me preocupou muito. Aquilo não é um time, o
senhor me perdoe. O senhor faz aquilo num time no campeonato nacional ou no
28 Refere-se ao treinador Luiz Felipe Scolari. 29 Refere-se ao ex-jogador Franz Backenbauer.
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28
campeonato paulista ou do Rio, não vai ganhar de ninguém. Aquele menino, o Neymar,
está jogando atrás, servindo e querendo receber lá na frente. Mas você põe uma barreira,
ninguém pega. Nós ganhamos por um gol contra, não é verdade? E o primeiro foi um
frangaço.
B.B. – Um frangaço. Que não é o primeiro a acontecer.
J.H. – Isso.
B.B. – É reincidente.
J.H. – É reincidente. Então, o senhor veja, é porque tem mais trinta e dois anos.
Porque quando o motorista chegava a trinta e dois, ele ia para uma linha de sessenta
quilômetros ou oitenta, que é a linha... O reflexo dele está... Então, veja como a gente
aprende na experiência da vida de cada dia, se o senhor se servir dela. Eu não sei ser
técnico de futebol, mas, quando o senhor administra, o senhor deve ter a possibilidade
de ter capacidade de ter tido uma porção de outros exemplos para colocar naquilo que o
senhor está dirigindo. É isso.
B.B. – Havelange, nós falamos alguns personagens da história da FIFA, o Jules
Rimet, por exemplo, e eu queria que você comentasse um pouco sobre alguns
personagens da história da CBD. Penso no Arnaldo Guinle30; penso no Rivadávia
Corrêa Meyer31...
J.H. – Mas antes teve o Luiz Aranha32.
B.B. – O Luiz Aranha, sim.
30 Refere-se ao ex-dirigente esportivo do Fluminense, tendo presidido o clube pela primeira vez na década de 1910, destacou-se por ter sido o primeiro dirigente a construir um estádio para grandes públicos. No caso o estádio das laranjeiras. 31 Refere-se ao ex-presidente da CBD. Ocupou o cargo de 1943 a 1955. 32 Refere-se ao ex-dirigente do Botafogo que presidiu a CBD de 1936 a 1943.
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29
J.H. – O Arnaldo Guinle, eu o conheci, eu era muito menino, era escoteiro do
Fluminense na época. Era uma das famílias mais ricas do Rio: tinham o Copacabana,
tinham tudo. Aquele local que é hoje... lá em cima, na Gávea, que hoje é a sede do
governo, era de um dos Guinle, era daquele dono do Copacabana. O Arnaldo tinha outra
coisa, tinha um prédio aqui na rua Sete de Setembro. O Carlos tinha a maior casa em
Teresópolis, que é onde está a concentração da CBD hoje em dia. Era a casa do Carlos
Guinle33. E ele tinha a casa dele no Rio ali no Flamengo, que hoje é um prédio, e o
outro tinha a casa dele onde hoje está a Fundação Getulio Vargas e estão construindo o
outro prédio. Aquilo era de um Guinle, também. Então, era um poder. Depois veio o
Luiz Aranha, que vinha, com a revolução, com um irmão poderoso, que era ministro das
Relações Exteriores, não é verdade?
B.B. – O Oswaldo Aranha e um outro irmão, que também participava do futebol,
que era o Ciro Aranha, do Vasco.
J.H. – Era o Ciro. Mas era presidente do Vasco. E depois veio o Rivadávia. O
Rivadávia era gaúcho e fez uma administração muito boa e tudo, mas ficou velho e,
depois, ficou muito fechado dentro de si. Porque você, se você não viaja para ver o que
têm as outras... procure ler o máximo. Então, tudo que puder lhe abrir os horizontes,
faça isso que é importante. Depois veio não sei quem como presidente, depois veio o
Sílvio34 e depois vim eu. A Copa de 1950, quem fez foi o Rivadávia.
B.B. – E o senhor ficou à frente da CBD durante dezesseis anos, de 1958 a 1974,
correto?
J.H. – Exatamente.
33 Membro da família Guinle, foi um compositor e mecenas da cultura brasileira. Em 1968 foi um dos criadores da Granja Comary. 34 Refere-se a Sylvio Correa Pacheco, presidente da CBD de 1955 a 1958.
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B.B. – E no momento que o senhor é alçado a... passa a ser o presidente da FIFA,
como foi essa passagem da CBD pós-Havelange, quando então o almirante Heleno
Nunes35 passa a dirigir? Como é que você viu a CBD nos anos posteriores?
J.H. – O Heleno Nunes tinha sido meu diretor de Futebol, e um dia os outros
diretores me disseram: “João, ele não faz nada, e nós estamos com preocupação”. Eu o
chamei e o substituí. Então, o irmão dele, que era o Cacau, que era general reformado...
Quando veio o Geisel36, ele era do gabinete do Geisel. E eu não me esquecerei nunca
que, eu já presidente da FIFA, estava em Paris e o [inaudível], o ministro das Relações
Exteriores, me disse: “Dr. Havelange, o presidente Giscard d’Estaing lhe condecorou
com a Legião de Honra”. Eu fiquei muito encantado. E ele me disse: “Onde é que o
senhor quer que faça a festa?”. Eu disse: “Na embaixada do Brasil”. Depois de estar
com ele, fui à embaixada. Quem estava de embaixador naquele momento era o
Delfim37. É bem mais moço do que eu. Eu o conheci rapaz, em São Paulo, ainda na
universidade. Bom amigo, uma cultura muito boa sob diversos aspectos. Eu disse a ele:
“Eu fiz isso”. Ele disse: “João, a casa é tua”. Dois dias depois, ele me chama, eu fui, e
ele me disse: “Lê esse telegrama cifrado da Presidência”. Proibindo que eu recebesse a
condecoração na embaixada... da Presidência da República. Esse foi o presente que eu
tive. E eu disse a ele: “Não te preocupes porque o presidente da Casa Brasil-França é
meu amigo e eu faço lá”. Ele me disse: “Não. Eu te mostrei para você saber, mas você
vai fazer aqui”. Por isso eu tenho, pelo Delfim, uma amizade e um reconhecimento que
dificilmente a gente tem de alguém, pelo que ele fez. E a homenagem foi lá. E eu fiz um
discurso que o [inaudível] depois me abraçou e disse: “Nunca ouvi nada igual”. E assim
foi. E cada vez não era fácil. Ainda há pouco, no governo dessa senhora, por nenhuma
razão, me retiraram o passaporte diplomático. Eu entreguei. “Não, o senhor vai receber
outro e tudo.” Estou esperando até hoje. Está bom, não quer, não dá. E vou lhe dizer
mais: em todos os países que eu fui, quando chegava, a primeira coisa que eu fazia era
telefonar para a embaixada do Brasil. Invariavelmente, vinha um secretário, eu dizia que
tinha chegado, se podia ver o embaixador e tudo, e ele me dizia: “Ah, dr. Havelange, eu
35 Presidente da CBD de 1975 a 1979, responsável pela criação da CBF. 36 Refere-se ao então presidente da república Ernesto Geisel. 37 Refere-se a Antonio Delfim Neto, então embaixador.
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lhe peço desculpa, mas o embaixador está em uma missão fora daqui”. Isso em todos.
Tinha medo de ter que pagar uma coisa, gastar uma verba. Isso é o meu país. Está bom?
Isso eu lhe digo, eu vivi tudo isso, nunca incomodei ninguém, nunca tive um ato que
pudesse ser chamado para qualquer coisa. Nada. Mas... Ou é inveja, ou é mediocridade.
Mas, veja, o governo do Brasil podia fazer um pouco mais. E eu vou lhe dar um
exemplo diferente. A revolução foi criticada por todo mundo...
B.B. – Qual revolução?
D.A. – A de 1964?
J.H. – A dos militares.
D.A. – A de 1964.
J.H. – Mas houve um militar chamado João Figueiredo... O João tinha dois anos
menos do que eu. O João era Fluminense e eu sempre dizia a ele: “Tu tens a melhor
posição do Fluminense”. Ele me disse: “Por quê?”. Ele era ponta-esquerda. Eu disse: “É
porque estás mais perto da porta para ir para o vestiário”. [risos] Ele ria e tudo. Uma
vez, eu fui... O Geraldo Romualdo, que era jornalista do Jornal dos Sports, que eu
gostava muito...
B.B. – Torcedor do Botafogo.
J.H. – Eu acho que era.
B.B. – Ele era Botafogo.
J.H. – Ele escrevia no jornal, mas a mocidade dele, ele fez no Colégio... na Escola
Militar e teve como colega o João. O João foi para a carreira militar e ele saiu, foi ser
jornalista. Bom, o tempo passou e um dia me chamaram e disseram assim: “O
Romualdo está muito mal, João”. Eu fui vê-lo. Ele morava no Leme. Eu fui vê-lo e
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32
disse: “Ô, Romualdo...”. “Não, João, eu estou assim.” Eu digo: “Não, você vai se
refazer e tudo”. E ele tinha sido colega do João. Eu fui a Brasília. Eu digo: “Tu me
farias uma gentileza?”. Ele disse: “Qual?”. “A primeira vez que tu fores ao Rio, eu te
pediria para ver o Romualdo, que foi teu colega”. Ele disse: “Sei. Eu gosto muito dele”.
“Então, é isso que eu te peço.” E ele foi. Quando chegou, ele me telefonou e disse:
“João, eu cheguei. Eu fui e estou preocupado, porque ele não vai durar muito”. Isso foi
num sábado. Na segunda-feira ele faleceu. Mas veja, não há ninguém que faz isso. E
quando eu vejo que criticam muito determinadas pessoas, a mim me dói, porque é só
atos políticos, porque o sujeito teve um poder ou qualquer coisa. Mas a gente tem que
compreender, aceitar e respeitar. Você veja o que falaram do...como é...?
B.B. – É jogador? Político?
J.H. – Não. Um presidente da República antes do João e antes do Geisel.
D.A. – Médici?
B.B. – Médici?
J.H. – Médici38. Um dia, eu estava na Europa e iam comemorar 600 e não sei
quantos anos da família Médici, e eu vim ao Rio, eu disse a ele: “Presidente, vai ter isso
assim, assim, eu vejo que o senhor é Médici, se o senhor quiser ir às festividades, nada
vai lhe faltar porque eu tomo todas as providências”. Ele me disse: “Havelange, eu
quero te dizer uma coisa”. Eu digo: “O que, presidente?”. “Eu sou Médici e meu pai era
alfaiate”. Então, você veja, criticaram esse homem. Eu me lembro, pouco antes de ele
falecer – ele faleceu no Hospital da Aeronáutica –, eu fui vê-lo, a dona Scila39 estava lá,
eu disse a ele: “Olha, presidente, quero lhe ver, dentro de pouco tempo, em condições
excepcionais”. E faleceu. Numa m que faz gosto: não tinha nada. E essa gente que foi
criticada e maltratada. Eu não entro em política, mas vamos respeitar a pessoa. Por
38 Refere-se a João Garrastazu Médici, foi um dos “presidentes da república” durante a Ditadura Civil-Militar. Seu mandato é tido como o mais repressivo e violento, de 1969 a 1974. 39 Scila Nogueira Médici, esposa do ex-presidente.
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exemplo, o Lula40 não tinha condições para ser um presidente, mas foi um homem de
personalidade, o senhor não pode deixar de reconhecer e aplaudir, não é verdade? Goste
ou não goste.
B.B. – E um ponto histórico do período militar foi uma construção de uma
infraestrutura de esportes, em termos de estádios no Brasil, quando se semearam
estádios. Houve um...
J.H. – Exatamente. É o que eu digo: porque todos eles conheciam o Brasil. Como
militares, serviram em diversos lugares, não é verdade? Então, você veja, um dos
militares foi o coronel Andreazza. Todo mundo chamava de ladrão. Morreu numa m que
fez gosto e o filho dele, hoje, coitado, não tem nada. Ele fez a ponte41, fez isso, fez
aquilo, e você veja a diferença, ele foi maltratado como se fosse um ladrão. É duro.
D.A. – Nesse período, também, a CBD tinha alguns cargos ocupados por
militares. Como é que foi essa...?
J.H. – Não, não.
D.A. – Comenta-se sobre uma certa interferência do...
J.H. – Então, eu vou lhe contar. Eu tinha diversos capitães e majores que eram de
educação física: um era uma especialidade na parte de atletismo, de natação. E eu tinha
eles dentro dos Conselhos Técnicos. Não era por eleição; era por indicação, que eu tinha
direito. E vou lhe dizer uma coisa [tosse]. Quando o presidente... Juscelino Kubitschek
foi deportado, não foi isso? Foi para a França, um dia, o ex-secretário dele, que tinha um
cartório, está me faltando o nome, me chamou no gabinete dele e eu vim – era ali na
avenida, em cima do Banco Nacional. Eu digo: “O que é que tu queres?”. “João, o
Juscelino disse que vem, e vai ser mau. Nós todos já telefonamos para ele. Eu te peço de
falar com ele para dizer para ele não vir”. Eu telefonei. Eu digo: “Presidente, fala
40 Refere-se ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. 41 Ponte Rio Niterói.
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Havelange”. “Ô, Havelange!” Porque eu tinha estado com ele na França e convidei para
almoçar, aquelas coisas todas. “Eu soube que o senhor vem. Eu posso lhe fazer um
pedido? Fique aí ainda um tempo porque o senhor vai ser... não vai ser bom para o
senhor.” “Não, João, não sei o que eu vou.” E veio. Pegou um carro aberto e veio pela
avenida Rio Branco, praça Mauá e tudo. Quando chegou aqui no Obelisco, um carro da
polícia do Exército, naquela época, pegou ele e levou lá para... Eu fiquei preocupado.
Um dia, um desses capitães me telefona e diz: “Presidente, eu posso ir vê-lo?”. Eu digo:
“Pode”. Ele disse: “Eu vim aqui para lhe dizer que eles deixam o Juscelino em pé todo o
dia e ele está com os pés inchados porque a circulação não está se fazendo. Veja o que o
senhor pode fazer”. “Está bom.” Saí dali, eu fui lá no Ministério do Exército, fui falar
com o Sizeno, o comandante. Eu digo: “Sizeno, eu posso pedir uma gentileza?”. “O que
tu quiseres.” Eu digo: “Se o Juscelino desejar voltar para Paris...”. Ele disse: “Na hora
que ele quiser, ninguém toca nele”. E ele voltou para Paris, foi embora. Então, veja,
falam muita coisa. Política é uma coisa, mas determinado... Eu não sou político, não sou
nada, mas tínhamos relações, pelo esporte, e todos me queriam bem e respeitavam.
Veja, os anos se passaram e um dia eu recebo um telefonema. Quem era? O Sizeno. Ele
estava em Gaza42 com uma tropa. Cabia ao Brasil ir fazer... atender, dentro das decisões
internacionais, aquela região. E ele foi com um punhado de homens, com uma
Companhia não sei o quê. Ele me telefona e diz: “João, eu queria te fazer um pedido”.
Eu digo: “O que é?”. “É que eu estou aqui com tantos homens, não tem onde ir, é um
areal, um calor danado, e eu sinto que a coisa vai ficar... vai dar trabalho.” Eu digo:
“Pode ficar tranquilo, eu tenho a solução”. Voltei à CBD, fui numa coisa... comprei não
sei quantas bolas, todos os uniformes de jogo, de tudo, chuteira de todos os tamanhos,
um avião da FAB ia para lá e levou todo o material. Três dias depois, o Sizeno, depois
de o material chegar, me telefonou: “João, eu estou numa tranquilidade, e eu devo a
você. Muito obrigado.” Então, isto é a força do futebol, também. Te disciplina. Com
uma criança. Faça isso com seu filho quando ele tiver doze anos e vai ver. Bota
correndo atrás da bola. Então, é isso que eu às vezes fico triste, porque todo mundo só
vê o futebol, hoje, para ver onde é que pode ganhar uns trocados. Quantos técnicos e
dirigentes de clube têm os contratos do jogador no bolso! Depende deles. Vendem, e
eles depois: “Não, é o clube”. Agora, o Scolari não tem isso; é reto. O Parreira não tem 42 Refere-se a Faixa de Gaza, território palestino.
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isso, também; o Dunga não tem isso. Mas os outros todos, eu tenho as minhas dúvidas,
está certo? Então, o sujeito faz o time de acordo com o interesse do bolso dele. Então,
não é fácil, minha filha, e a gente tem que estar atento, respeitar e, se possível, dentro de
princípios, sem que ninguém se sinta ofendido, a senhora faça. Não é fácil, eu posso lhe
dizer. Mas... E eu lhe digo: aprendi muito na Cometa, porque eu tinha cinco ou seis mil
motoristas. Sabe o que é isso? E nós fazíamos exame no aparelho, como se fosse pegar
um avião, um piloto, para ver as reações dele no aparelho, para não repetir um erro na
direção de um ônibus. E eu praticamente nunca tive um acidente. E vou lhe contar a
última coisa, porque já são quase duas horas. Uma vez, um juiz de São Paulo foi
indicado para ser juiz aqui no Tribunal... no Tribunal Federal, então, eu fui chamado lá
em São Paulo, e ele disse: “dr. Havelange, nós queríamos que o senhor nos desse dois
ônibus, porque o nosso desembargador foi indicado para juiz da Suprema Corte lá no
Rio e nós queríamos acompanhá-lo”. Eu digo: “Naturalmente. Eu boto dois ônibus à sua
disposição e [inaudível]”. Cheguei na Cometa, o sr. Tito, que era um dos maiores
acionistas e tudo... Eu disse: “Tito, o pessoal me pediu isso, eu tomei esta decisão”. Ele
disse: “Te felicito. Mas tem uma condição”. Eu digo: “Qual é?”. “Nós vamos dar os
dois ônibus e vamos pintar de branco”. Eu digo: “Por quê?”. “Porque se tiver um
acidente, não sai Cometa. E se tiver um acidente, nunca mais você ganha uma ação no
‘coiso’...” O sujeito não esquece. A família não esquece. Então, a senhora veja como é
delicado, e administrar não é fácil. Então, quando eu vejo todos esses que chegam a
ministro, aquilo, eu digo: “Meu Deus do céu, não sei o que vai ser!”. Eu lhe digo de
coração. Mas veja, eu estou lhe dando esse exemplo que é uma verdade, uma realidade.
D.A. – Eu queria fazer uma última pergunta. Na verdade, é um breve... Como eu
estou aqui representando o Museu do Futebol, que foi inaugurado em 2008.
J.H. – Foi no...
D.A. – É no estádio do Pacaembu e é um museu que não trabalha com a história
necessariamente ligada a clubes, mas fala do futebol no Brasil. É um pouco isso que
você contou, essa paixão brasileira pelo futebol de modo geral. É claro que temos uma
seção inteira dedicada às Copas do Mundo e à seleção brasileira. A gente percebe no
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mundo todo, principalmente nos países que são sedes de Copas do Mundo, que, após o
campeonato, é inaugurado ou é aberto algum memorial relativo a isso. Como que a
FIFA ou como você... Se você teve algum papel, estando na FIFA, com relação à
preservação da memória e à conservação de acervos relacionados à história do esporte?
J.H. – Eu fico feliz dos países que fazem isso, e agora nós estamos fazendo,
sobretudo porque nós temos uma posição privilegiada, porque nós somos o único país
que temos cinco títulos e temos alguns ainda como finalista, quer dizer, vice-campeões.
Veja que é uma glória. E a verdade é o seguinte, é que o nosso dirigente é imediatista,
ele é clube. Ele é mais clube do que é seleção. Quem é a seleção é a senhora, é ele e ele,
sou eu, mas muitas vezes nós não temos condições de chegar lá e poder dar tudo isso.
Se São Paulo está fazendo, olha, eu fico tão feliz e tão... Acho que é uma coisa
monumental e deve ser não só elogiada, mas deve ser perpetuada, porque isso
representa uma página da nossa história, porque o futebol acaba chegando à nossa
história. E a senhora... Quer queiram ou não, a coisa que mais toca ao povo é o futebol.
Com ele a senhora tem a tranquilidade. Vou lhe dar um último exemplo sobre isso, no
governo Carlos Lacerda. Um dia, ele me chama em palácio e diz: “João, eu estou
preocupado...”. Nós fomos colegas do Liceu, e ele morava nas Laranjeiras, na casa, não
na rua Sebastião de Lacerda, que é o nome do avô dele. E ele me chamou e disse: “João,
vai ter um movimento contra mim aqui, eu estou preocupado”. “O que é que eu posso
fazer?”. E disse: “Quando é?”. Ele me diz: “Deve ser sábado e domingo”. Eu saí dali,
telefonei para o Paraguai, porque nós tínhamos uma quizila com eles... Quer dizer, eu
não, mas de futebol. O presidente era meu amigo, eu digo: “Tu podes me mandar o
time?”. “João, o que tu quiseres.” Veio a seleção paraguaia e, com a seleção brasileira,
jogamos no Maracanã. A senhora sabe? Foi a maior receita, o maior público que já
houve na história: pagantes, 198 mil, e mais vinte mil que entraram que eram
convidados e isso tudo.
D.A. – O público de 1950, da final de 1950.
J.H. – Exatamente. Mas aí é uma Copa do Mundo. Mas houve isso. E não houve
nada contra o Carlos. Então, eu às vezes fico triste, porque a senhora veja o que é o
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futebol: se a senhora tem um problema... Os jogos hoje em dia são às dez horas da
noite; antigamente eram às cinco. O sujeito saía da obra ou saía do trabalho e ia ao jogo.
Agora ele não vai. Porque às onze horas, o sujeito sair de casa e voltar, já está na hora
de ir para o trabalho. Então, isto é porque há interesse sobre televisionamento e essa
coisa toda. Então, o governo devia estar mais atento, porque daria mais tranquilidade à
cidade. E não tem preço. Porque no dia que foram 200 mil pessoas no Maracanã, nunca
se esqueça, isso representou um bilhão43, porque numa família de cinco, se o pai está lá,
os outros estão em casa esperando. Então, a cidade está tranquila. É isso que o político
não se dá conta. Eu sou imbecil, tudo que a senhora quiser, mas não tão burro como eles
imaginam. Então, o senhor veja a força e a necessidade do futebol. Bem conduzido,
bem orientado, o que ele representa para um país, para a sua população e para a sua
tranquilidade. O negócio de Corinthians e Palmeiras, isso é outra coisa. Vasco e
Flamengo; Flamengo... isso é outra coisa. Mas futebol é futebol. E pode ter certeza,
ainda é um catalisador excepcional. Não sei se lhe satisfiz. Se precisar voltar, telefona
para a Irene que eu não lhe falto, minha filha.
B.B. – Sr. João Havelange, gostaríamos de agradecê-lo imensamente.
J.H. – O senhor não tem que agradecer. Eu acho que... Essa moça veio aqui e me
pediu, eu não faltaria a ela nunca. Veio antes com uma outra pessoa e agora foi o
senhor. E espero que isso possa ter um valor para a população, para a juventude, que
possa se sentir que alguém trabalhou, criou alguma coisa, e quem trabalhou e criou foi o
futebol. Pode ver, é a coisa mais preciosa. Pelo futebol, o Brasil é conhecido no mundo
inteiro.
B.B. – É a primeira marca.
J.H. – Um dia eu vou lhe mostrar...
[FINAL DO DEPOIMENTO]
43 Aqui há uma pequena confusão do entrevistado. Na verdade ele quis dizer 1 milhão.
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