1. Depois da enorme volta por Angola, que na escala do mapa
afinal se completa com meia dzia de polegadas, chegada a Maputo
durante a longa espera do vo para Quelimane desenhei o mapa de
Moambique. Nada como desenhar para decorar o recorte geogrfico, ter
a noo real do caminho a percorrer e inteirar-nos da verdadeira
escala de um pas. Logo cedo me apercebi que tambm ali tal era to
vasto o territrio, que a longa viagem que se adivinhava pelas
margens do Zambeze entre o Zumbo e Quelimane no mapa pouca expresso
tinha.
2. Chego a Quelimane no dia dos meus anos, comemore-se ou no
sempre um dia de alguma introspeo, mais ainda se torna quando se
est longe da famlia e dos amigos mais prximos. Na frente da
Catedral Velha, abandonada ainda durante o tempo colonial, corre
conforme as mars ora para jusante ora para montante o Rio Qu-qua ou
Rio dos "Bons Sinais" como lhe chamou Vasco da Gama, porque parece
que foi na sua foz que o descobridor cerca de 400 anos antes de
Capelo e Ivens terem ali chegado mas dessa vez por terra, tenha
recebido informaes sobre o piloto que o poderia guiar at ndia. A
maresia doce do ndico que o rio transporta durante a enchente chega
a Quelimane bem diferente da to nossa conhecida do atlntico , assim
como, tambm a luz a humidade e as prprias gentes.
3. Enquanto o cmera Plcido e o realizador lvaro afinavam os
planos, tentava viva fora aproveitar as poucas sobras de tempo para
desenhar, sob pena de chegar a Portugal com mais metros de "takes"
repetidos do que pginas de caderno com desenhos apressados.
4. H bicicletas por todo o lado em Moambique, vm do oriente
especialmente da ndia onde este modelo "pasteleira" idntico s
conhecidas em Portugal, fabricadas na j extinta indstria de gueda,
copia prefeita do design e dos materiais das famosas bicicletas
inglesas "Raleigh" difundidas especialmente por todo imprio
britnico desde o incio do sc. XX. Curiosamente, em Angola
praticamente no se viam bicicletas, talvez o terreno minado tenha
afastado uma gerao dos hbitos do pedal, as poucas existentes so
agora essencialmente para fins recreativos ou utilizadas para
pequenos trajetos restritos ao meio urbano e os modelos so idnticos
aos que se encontram nas grandes superfcies sem "pedigree" nem
interesse documental. Este um modelo marca Hrcules de roda 28 toda
em ferro indestrutvel de fabrico Ingls, marca que, apenas hoje
sobrevive e exporta a partir da ndia que fica logo ali do lado de l
do ndico.
5. De quem seria esta casa? " uma casa portuguesa com certeza,
com certeza uma casa portuguesa", no cheguei humildemente a bater
porta porque teria tambm de bater porta a tantas outras inabitadas,
abandonadas, degradadas, desventradas mas tambm conservadas como
esta, ainda dos anos 40 num estilo "portugus suave", com pequenos
"tiques" modernistas. Quem viveu ali? no sei precisar a rua de
Quelimane mas se algum atravs deste blog souber que o diga e conte
aqui a sua histria. Nunca vivi em frica mas enquanto esta casa se
ia fazendo no papel fui tambm fazendo a minha histria: o pai
trabalhava nos caminhos de ferro era funcionrio pblico ia almoar a
casa: a me, de 3 filhos, domstica, da janela da sala chamava os
midos que brincavam na rua em frente quando o almoo estava na mesa:
a empregada abria sempre mesma hora o porto que lhe dava pela
cintura para que o patro pudesse pr o carro debaixo do alpendre do
quintal: o patro tinha um Datsun creme com o qual regressava ao
trabalho aps a sesta do almoo. Agora como antes, tenho a certeza
que se humildemente batesse porta, sentavame mesa com quem quer que
ali viva ou tivesse vivido.
6. Os quilmetros so muitos e o tempo pouco, por isso as
paragens contam-se ao minuto, mas essas que no esto no guio,
imprevistas, sem expectativas prvias, que acontecem em lugar nenhum
de beira de estrada como esta, so as que se gravam na memria com
maior profundidade.
7. O desenho anterior fez juntar uma pequena multido de crianas
curiosas; desenhar tem o efeito magntico de atrair pessoas e de as
juntar no fascnio e na surpresa de ver quem descobre primeiro as
formas que de uma maneira quase mgica se vo revelando. Queriam
ficar todas no boneco, acotovelavam-se para caberem na dupla pgina
do pequeno formato do caderno, no fim fui eu quem pousou para uma
delas.
8. Sim este sou eu! Foi o melhor que o Eliseu (segundo a contar
da esquerda no desenho anterior) conseguiu depois de lhe ter
passado o meu caderno com a caneta de pincel e ficar bem quietinho
a posar para ele. Uma simples paragem para matar a sede e comer uma
conserva numa cantina de beira da estrada valeu inesperadamente um
dos momentos mais espontneos e interessantes do documentrio de
Angola Contra Costa.