1. ALJUSTREL
1.1. Quando tudo começa
. Nascer, diferença e adaptação
Nasço em Aljustrel a 22 de julho de 1944. O parto é em casa e
nem tudo corre bem. Fico com o lado esquerdo mais fraco que o
direito, o que me diminui a força física. Sofro de falta de coordena-
ção de movimentos, o que quase me impede de dançar, nadar ou
praticar desporto. Nos jogos de futebol, quando os dois capitães
escolhem os jogadores, sou dos últimos a ser escolhido. Não tenho
ouvido para a música, o que me impede de cantar, e sofro de ligeira
gaguez, mas com esta rapidamente passo a conviver. No Alentejo
dos anos quarenta não há quem trate isto. Em ambiente social
dominado pela força e proezas físicas, nasço enfraquecido e sou
obrigado a adaptar-me pela diferença. Sou bom aluno e refugio-me
na leitura dos livros da casa, dos que compro com dinheiro que me
dão, mais os da biblioteca itinerante da Fundação Gulbenkian. E
também, por não fumar, beber raramente e alimentar interesses
estranhos como o de aos treze anos querer ser egiptólogo ou cine-
asta aos quinze. Ou pela intervenção pública num jornal de parede
que crio no colégio. Alguma da exclusão que sofro tem efeitos que
tardo a identificar. Durante anos demais, quando alguém diz preci-
sar de mim perco as defesas e decido mal, alguém precisar de mim é
o inverso de ser o último escolhido para jogar futebol. Pelo contrá-
rio, face ao elogio, desconfio e interrogo-me sobre o que esconde
quem me elogia.
. Avós, tias e tios
Os meus avós são lavradores rendeiros em situação especial. O
avô paterno explora os montes de Nossa Senhora e das Pedras
Brancas, propriedade da empresa da mina de Aljustrel com a qual
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mantém negócios. Nas Pedras Brancas há instalação de ustulação da
pirite que antigamente era para lá transportada em comboio de linha
reduzida. Quando o conheço, já está imobilizado numa cadeira na
casa de Aljustrel. Na realidade, o meu bisavô Francisco da Palma
Brito já é lavrador destes montes, tem quinze filhos de duas mulhe-
res e o avô paterno é o primogénito que continua a exploração
agrícola. Só conheço os tios António e Feliciano a continuar a ex-
ploração e ambos acabam por viver na vila. A proximidade do
monte das Pedras Brancas a Aljustrel e serem filhos de quem são
explica que os dois tios e as cinco tias do lado paterno tenham
casado.
O avô materno explora o Monte Novo e Monte Gato, perto da
aldeia da Conceição do Alentejo. É filho bastardo do proprietário, o
lavrador da Torre Vã, pai do que eu conheci nos anos sessenta.
Conheço-o a pagar renda reduzida ao meio irmão e ignoro o que o
leva a nunca fazer valer o seu direito à herança do Pai. É pessoa
informada, curiosa e de algum sentido de humor. Recebe jornais e
revistas de atualidades e informação técnica. Não chego a saber
porque chama Caga e Paras ao Notícias de Beja, o jornal oficial da
Diocese de Beja. Ainda em sua vida, assisto ao tio José o substituir
como lavrador e à tia Mimi substituir a minha avó como lavradora.
Vivem sempre no monte e, depois da sua morte em 1954, os filhos
continuam a exploração até 1965. O isolamento do Monte Novo e
menores posses explicam em boa parte que só a minha Mãe tenha
casado jovem, três dos tios tenham ficado pela aldeia e o mais
estroina emigrado para o Canadá em 1953. Da Primavera de 1951
recordo uma peça do Teatro Desmontável Rafael Oliveira sobre o
drama de pais lavradores com um dos filhos estroina. O pai só o vê
como futuro lavrador, a mãe quere-o padre e ele sonha ser toureiro.
Na vida encontro situações idênticas em excelentes famílias.
Os meus avós, paternos e maternos, têm a inteligência de morrer
antes do final dos anos cinquenta e não assistem à derrocada da
economia e sociedade da ruralidade alentejana em que vivem e de
certa maneira prosperam. Nos dois casos os tios que podiam asse-
gurar a continuidade perdem a exploração agrícola dos pais. Nesta
segunda geração, filhos e filhas têm de fazer pela vida. Quase todos
acabam por viver com mais dificuldades do que viveram os pais,
meus avós. Graças aos estudos, os meus pais são caso algo à parte.
MEMÓ R IA S D E U M D ES ER TO R 19
. Os meus Pais
O meu Pai é um de oito filhos e a minha Mãe uma de nove e, em
cada família, são o filho que estuda. Segundo a lenda, conhecem-se
no comboio que os leva para o liceu de Beja, a minha Mãe embar-
cando na estação de Ourique e o meu Pai na da Figueirinha. A Mãe
faz o sétimo ano em Évora e o Pai em Faro, mas juntam-se em
Lisboa na Universidade. A tuberculose obriga o meu Pai a desistir
do curso de medicina e, no Alentejo dos anos quarenta, apenas
consegue ser nomeado professor primário. Lembro-me dele Dele-
gado Escolar com noites ocupadas a preencher mapas para ganhar
mais cento e cinquenta escudos por mês1. Nos anos trinta, a minha
Mãe sai de monte isolado junto a aldeia isolada, faz o quinto ano do
liceu em Beja, o sétimo em Évora e conclui germânicas na Faculda-
de de Letras de Lisboa. Acabam por casar e ter um filho único. A
minha Mãe tuberculiza quando eu tenho três anos e o perigo de eu
contrair tuberculose passa a ser uma das suas preocupações lá de
casa. Os meus Pais são da classe média, nem alta nem baixa. Os
ganhos do casal são durante anos completados por carrinha que
todos os domingos traz os mais diversos víveres do monte do avô
materno. Vivemos em casa de boa aparência, mas sem corresponder
à realidade dos rendimentos.
. Ensino, colégio e gestão de alvarás sob ameaça política
Em 1942 a minha Mãe obtém o diploma de “ensino particular
liceal” de Inglês e Alemão e, em janeiro de 1948, o de Diretor de
“estabelecimento de ensino particular”. Até aos meus doze anos,
num dos quartos da casa há carteiras grandes para oito alunos e é aí
que desde 1947 funciona o ‘Colégio da D. Amélia’. Anos mais
tarde, amigos meus mais velhos reconhecem que “Sem a tua Mãe
não teríamos estudado e a nossa vida teria sido outra”. Em 1950, os
meus Pais e o amigo Francisco Serrano criam o Externato D. Filipa
1 Na sociedade atual, acumular trabalho a tempo inteiro com outro a tempo
parcial é mais frequente do que pensa. O exemplo do meu Pai explica em boa
parte a minha crítica feroz ao comentário alarve sobre o juiz Carlos Alexandre
acumular trabalho para assegurar a vida da casa. Muitos emigrantes na Bélgica
acumulam dois trabalhos.
20 SÉRGIO PALMA BRITO
de Vilhena em Aljustrel. O Serrano é agente técnico de engenharia,
diretor do laboratório da mina e grande professor de Física e Quími-
ca. A criação do colégio é apoiada por dezasseis famílias que em-
prestam 500$00 cada uma. A abertura do Externato acaba com o
‘Colégio da D. Amélia’, atrai jovens que estudam fora e facilita o
acesso ao ensino secundário a mais gente. Meus Pais e Francisco
Serrano compram um vasto terreno com uma casa no extremo da
urbe, mas o declive obriga o colégio a ocupar três níveis, com largo
espaço de recreio nos dois de baixo. O colégio permite que todos os
anos, cerca de 25 a 30 alunos do concelho passem o exame do atual
nono ano e tenham acesso a melhores condições de vida. Nos tem-
pos que então vivemos não é pouca coisa. A minha Mãe é diretora e
professora de inglês. O Serrano é autorizado a lecionar por haver
três professores licenciados. De entre estes, recordo João Sá da
Costa que vem de Lisboa durante um ano e José Afonso, professor
durante um mês e que pede para sair. Há algo de especial em José
Afonso, porque em tão pouco tempo tem o que nenhum outro pro-
fessor teve, os alunos acompanharem-no até à estação de Caminho
de Ferro na sua despedida.
O colégio dá alguma prosperidade à família, mas condiciona a
nossa vida. Os meus Pais e Francisco Serrano Gordo são identifica-
Figura 1 – Aljustrel, vista parcial nos anos quarenta. O edifício junto à
grande cerca e com bom espaço e árvores é o ponto de partida do Colégio.
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dos com a Oposição e o Serrano acaba por ser preso por duas vezes.
A nossa vida familiar depende do meu Pai continuar a ser professor,
a minha Mãe diretora e o colégio funcionar. Desde que sei o que é a
PIDE, observo os meus Pais a gerir este risco. Perante manifestações
da minha consciência política, os meus Pais podem (devem?) dizer-
-me que a minha exposição é perigosa para os três alvarás de que
depende a nossa vida, o que me teria afastado da política. Só uma
vez o fazem e recuo.
Figura 2 – Aljustrel, vista parcial início dos anos sessenta. A construção
nova e em três níveis, junto às árvores da grande cerca, é a do Colégio.
. Vida digna e austera, vai chorar lá para fora, ganhar
e não pedir
Não é Esparta, mas pode parecer. Não há verba para brinquedos,
os poucos que tenho são oferta de amigos muito próximos. Não me
queixo e a irmã do Francisco Serrano oferece-me sucessivas atuali-
zações do Meccano. A roupa é digna e limitada em quantidade, mas
nada mais. O calçado situa grupos sociais: no topo, os que usam
botins de calfe, seguido pelas botas de pele de borrego sem cardas e o
terceiro grupo são estas botas, mas cardadas. Segue quem usa calçado
atamancado e no baixo da escala o pé descalço. Enquanto o pé
cresce, estou no segundo grupo e só depois acedo ao luxo do calfe.
22 S ÉR G IO P A LMA B R ITO
Sou levado a conhecer a vida e a ter relações normais com quem está
abaixo na escala social. Mereço e bem o único castigo físico que
apanho. O meu Pai é o professor que me dá uma reguada no dia em
que não sou solidário com os companheiros. Há dois tabus: jogos de
cartas e fados na Emissora Nacional são excluídos lá de casa.
Quando chego a casa a chorar, o meu Pai acolhe-me com saudá-
vel “Vai chorar lá para fora. Não quero que venhas chorar para
casa”. Na realidade, é ir chorar para o pátio interior da casa e não
para a rua. Se a tia Teresa me ampara, é corrida com o então
comum: “Nada de mimos, senão o moço ainda fica maricas”. Rapi-
damente percebo que não adianta chorar quando há dificuldades a
vencer. No Barranco do Velho e para aí com nove anos, caio e abro
ferida no joelho de que ainda guardo cicatriz. O caso é sério, vem
táxi de São Brás e ala para Salir onde há médico. A ferida tem de
ser cosida, a pele é dura e o médico parte duas agulhas. Eu, nem ai
nem ui. Pelo sofrimento adicional e meu silêncio … todo o tratamen-
to é oferta do médico. Nunca fui nem sou ‘durão’, mas o ‘vai chorar
lá para fora’ fica para o futuro. Nestas páginas e no resto da minha
vida não encontram lamento, choro ou atribuir culpas aos outros.
Sem fitas, assumo responsabilidades e faço o que tem de ser feito.
A belga madame Vanden B. é a principal acionista das Minas de
Aljustrel e entra na minha vida quando com os meus quatro anos
veraneio em Albufeira. Em Aljustrel, passeia a cavalo com o meu
tio António, utiliza enorme automóvel americano a deixar basbaque
quem o vê e faz compras generosas. Não me impressiona, até ao dia
em que insiste não sei quantas vezes para eu lhe dizer que presente
quero. Acabo por dizer “um triciclo”, mas a não volta a Aljustrel e
não cumpre a promessa. Promete e não cumpre? Mme. Vanden B.,
acertamos contas no inferno e grato por esta lição para a vida. Tenho
de ganhar o que quero e não o pedir. Não peço nada a ninguém, mas
não perdoo a quem me prometa algo e falhe.
. Férias fora de Aljustrel, um ritual da família e Barranco
do Velho
A vida quotidiana é rigorosa, mas no Verão saímos sempre para
férias e, luxo máximo, viajamos de comboio em primeira classe. Em
Aljustrel, poucas famílias podem viajar no Verão e o meu Pai impõe
que não falemos das nossas viagens, em respeito por quem não pode
MEMÓ R IA S D E U M D ES ER TO R 23
viajar. Fico privado do ‘exibir a viagem’, prática com séculos na
cultura do Ocidente. O ritual das férias começa cedo. A quatro de
setembro de 1944, mês e meio depois de vir ao mundo, os meus pais e
eu apanhamos a camioneta da EVA para o Barranco do Velho, lugar
na serra do Algarve conhecido pelo ar puro e terapêutico. Viajamos
pelo Algarve e mais dez dias de estadia nos ares saudáveis da serra.
No fim, vamos de camioneta para Faro apanhar o comboio para o
Carregueiro, onde nos espera uma charrete, vinda do monte da Pedras
Brancas, que nos traz a casa2. Sei que depois estanciamos em Castelo
de Vide (1946) e duas vezes em Albufeira (1947 e 1949).
Entre os meus sete e nove anos, passamos mais de dois meses no
Barranco do Velho. Voltamos ao local das primeiras férias. A Bia
Serafina gere o Abrigo de Montanha, a bomba de gasolina e a relação
com camionistas e outros passantes. Para ela sou o menino da alco-
finha e isso serei de cada vez que por lá passo. Arrendamos uma casa,
que é habitada por família variável e a indispensável criada. O meu
Pai, Tia Teresa e primos vêm e vão. Os dias são passados no pinhal de
pinheiros bravos com medronheiros e silvas mais amoras à mistura.
Há idas a pé à Cortelha que fica a meia légua. Quando o meu Pai está
presente, visitamos os pontos turísticos do Algarve. Não tenho má
recordação do conforto rudimentar do alojamento, mas o mesmo não
digo sobre serviços. A água escasseia e chega por frágil fonte, muitos
metros abaixo na encosta, carregada em enfusas em forma de ânfora
compradas logo à chegada. Há poucos géneros alimentícios e é pela
carreira da EVA que nos chegam provisões de Aljustrel. A pouca
gente do campo é ainda mais pobre do que no Alentejo.
. ‘escola da D. Barquinho’ e primeira namorada
Aí pelos seis anos vou para a ‘escola da D. Barquinho’, uma
pequena sala onde várias crianças passam o dia aos cuidados da
D. Barquinho, cada um na sua cadeirinha que traz de casa. Há
recusa e choradeira para não ir e talvez seja a primeira situação em
que tenho de me adaptar ao que não me agrada. Tenho a simpatia da
Maria Ana S., por quem ganho ternura especial que ela até hoje ignora.
Ternura, mas nada mais, porque o ‘mais’ vem a seguir. O primeiro
2 A fonte deste detalhe é o caderno de apontamentos de meu Pai.
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namoro é aos dez anos (dez, não é gralha), quando a R. e eu come-
çamos a trocar bilhetes de amor no nosso primeiro ano no colégio.
A Vitória, filha do lavrador Coelho, é o correio. Um dia, as almas
mais puritanas de Aljustrel queixam-se de alunos do colégio irem
namorar para o Santuário da Senhora do Castelo. Para surpresa dos
meus pais, eu e a eleita do meu coração estamos na lista dos acu-
sados de tal delito e ouço-os rir do meu feito. Ainda tenho os
bilhetes, mas não são para aqui chamados.
. Hábitos de trabalho e inveja e ser ‘rico’
A partir do terceiro ano do colégio temos nove disciplinas e apa-
nho com a minha Mãe a animar a campanha do ‘criar hábitos de
trabalho’. É professora de inglês e nunca me dá mais do que catorze
apesar das minhas queixas. No exame nacional … tenho catorze. Ao
longo de toda a minha vida ativa, acabo por me exceder nos hábitos
de trabalho que criei. Os meus Pais não me motivam ou ensinam a
ganhar dinheiro, o que me teria evitado desperdiçar muito esforço
sem nada ganhar. Acabo por ter sucesso sempre que giro empresas
que não me pertencem e de falhar quando as quero criar. Tenho
razões para invejar os que têm mais dinheiro, melhor roupa ou
calçado, brinquedos e capacidade física, mas só mais tarde percebo
ser imune à inveja. A inveja de outros pelo que obtenho e, já no
exílio, a inveja por vezes agressiva de alguns portugueses são das
piores recordações que ainda me vêm ao espírito. Não sinto sequer
inveja motivacional, a de que me fala empresário amigo quando um
dia nos deslocamos no seu Mercedes: “Passei por aqui tantas vezes
em bicicleta a pedal e à chuva que jurei não descansar enquanto não
passasse de Mercedes”. E consegue passar no seu Mercedes. Vivo
feliz com o que tenho e assim continuo pela vida. Gosto de viajar e
arranjo sempre maneira de o fazer pela atividade a que me dedico.
1.2. Casa de lavrador na rua principal de Aljustrel
. Uma casa de lavoura na urbe
Nasço e vivo todos os anos de Aljustrel em casa comprada pelo
Avô paterno, que vive na vila em ligação à lavoura do monte. Tem
estrutura de villa romana, com elementos urbanos (habitação) e
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rústicos, estes ligados à lavoura e a alimentar os residentes. Num
mundo ideal, seria conservada como casa museu. Recordo a memó-
ria da casa, pelo meio social que cria e por contribuir para a minha
formação.
Figura 3 – Fachada da casa do meu avô frente ao mercado do peixe e
como era inicialmente, mas já com uma rua (ver a placa Jardim) onde
havia duas tabernas. Aí por 1960 é vendida a outro lavrador. Depois do 25
de Abril passa a ser sede do PCP e o 1.º andar fica devoluto.
A zona urbana (habitação) ocupa o edifício da figura 3 e tem
acesso pela porta exterior. No primeiro andar, o corredor longitudi-
nal dá acesso a sete divisões mais à casa de banho (um luxo), cozi-
nha e varanda de que vemos o grande portão. No rés do chão, a porta
exterior liga a corredor transversal de acesso a dois pares de quartos
contíguos, uma grande divisão com casa de banho e a vasta sala de
jantar ligada à cozinha. Como no Monte Novo [ver a seguir] a
cozinha tem lareira grande para ‘a família’ e mesa grande para ‘os
homens’ com despensa anexa. Despensa e cozinha, esta com porta
para o pátio, integram função urbana e rústica.
O portão grande dá para túnel (figura 4) permite acesso de carri-
nhas e carros de vara ao pátio interior. Dois elementos da parte
rústica têm acesso ao pátio: o espaço ocupado por lagar de mel e
adega do vinho de talha e um armazém para o que der e vier. A
partir do pátio, outro túnel dá acesso à cavalariça, a sul do espaço
de lagar e adega, e a misto de celeiro e palheiro, a sul do armazém.
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O pátio tem poço muito profundo e é simultaneamente lugar de
socialização dos residentes e acesso à parte rústica da casa e aos
quintais.
Figura 4 – Imagem do túnel de acesso ao
pátio interior. É do tempo em que um tio
materno e algo estroina vinha do monte a
Aljustrel a cavalo. O rebento sou eu.
O túnel dá acesso ao quintal pequeno, onde há estrumeira e cria-
ção de galinhas e coelhos. Um canavial e rede metálica separam o
quintal pequeno do grande onde há oliveiras, terra de cultivo (bata-
tas, favas etc.) e misto de horta, jardim e pomar. Tudo isto é apoiado
por grande poço sempre com água até acima. Este quintal chega à
atual Avenida Primeiro de Maio e nele é construído um bloco de
apartamentos. De uma ponta à outra da casa são cento e trinta me-
tros.
O mercado do peixe é mesmo do outro lado da rua, e à direita da
casa ficam as tabernas do Manuelzinho (centro de apoio às carreiras
da EVA) e do Zuca – o cante aí é uma constante. A do Manuelzinho
é demolida para dar lugar à rua com a placa Jardim (figura 3). O
acampamento de ciganos é no terreno alisado da figura 5.
MEMÓR IAS D E UM DE SERTOR 27
Figura 5 – Foto dos anos quarenta mostra a traseira da casa para o pátio
interior, e clarabóias do palheiro à esquerda e da cavalariça à direita, separa-
dos pelo estreito túnel de acesso ao quintal pequeno, a que segue o grande.
. No primeiro andar, uma família alargada
Dada a doença da minha Mãe, a tia Teresa vive connosco. É a
única católica praticante da família e concilia enorme curiosidade
com fé profunda que a acompanha nas agruras da vida, para lá dos
cem anos. As primas Ana Maria e Maria Cecília vêm fazer o quinto
ano no colégio, juntam-se à família e são quase as irmãs mais velhas
que não tive. Há sempre uma criada, sopeira nos termos depreciativos
da época. Lembro a Isaura que morre de parto e a Irene que consegue
ir para Lisboa e fazer a sua vida com todo o mérito. Dois ou três
alunos do colégio vêm às aulas na camioneta da EVA e podem passar
o dia em sala onde há uma mesa grande, para estudar e comer o
farnel. Casa de banho e cozinha são sobre o túnel, o que permite ter
duas fornalhas e grelhados várias vezes por semana. Temos banheira e
duche, um enorme balde puxado com ajuda de roldana – dá para
molhar, ensaboar e desensaboar. A água é distribuída por pipas de
aguadeiros. O que nos traz água a casa não deve gostar nada da nossa
por ser num primeiro andar.
. Os ‘vizinhos do rés-do-chão’
No rés-do-chão vive o avô imobilizado e, depois da sua morte, a
minha avó. Há lugar para a tia Vitória casada com o tio José Rosa e
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a prima mais nova, a Maria Leonor. Vive ainda o Chico que trabalha
como mecânico na oficina do Fialho, algo misterioso para mim até
muito mais tarde saber que é filho de um dos meus tios e, de facto,
meu primo. Durante os anos em que o tio Feliciano e a tia Francisca
vivem no monte das Pedras Brancas, os primos Amaro e António
vão à escola em Aljustrel e vivem no rés-do-chão com a avó.
A Chica C. é serrenha que fica no monte das Pedras Brancas
depois de vir em grupo de algarvios para ceifa e é mais do que
criada. A 21 de Fevereiro de 1937 o Avô escreve ao meu Pai, então
estudante em Faro: “Cá vamos com a faina do costume e trazemos
cinquenta pessoas mondando, mulheres e rapazes que a Chica foi
buscar à terra.”. Como no monte das Pedras Brancas, a Chica C.
continua a ser mais do que criada, é companhia até à morte da
minha avó. É de trato abrutalhado e, quando lhe dá jeito, urina de
pé, o que me parece estranho. O nosso gato é alimentado a carapau
de gato, mas depois dos mais de dois meses no Barranco do Velho
em que fica ao cuidado da Chica, encontramo-lo a comer sopa de
pão com molho a cheirar a peixe.
. Mineiro que cultiva o quintal grande da minha avó
e a minha horta
O senhor João M. é mineiro e depois do trabalho na mina vem
tratar das culturas no quintal grande da minha avó. Recebe paga
certamente modesta e parte dos frutos. Faz-me confusão vê-lo a
cavar aquela terra toda e a regar plantas depois de oito horas no
fundo da mina. Convivo muito com ele porque desde os sete anos
tenho a minha ‘horta’, um talhão para aí com vinte metros quadra-
dos. Com ele e minha avó aprendo a cultivar salsa, coentros, alhos,
cebolas, favas, algumas batatas e outros. Percebo que alhos e cebo-
las são mais bonitos e maiores quando são bem tratados. Ainda hoje
há quem não perceba como o tão idealizado pomar de sequeiro no
Algarve é apenas parte de paisagem cultural em que agricultores
pobres não tratam bem as árvores que resistem ao sequeiro (daí o
nome) e não as regam porque não têm técnica para chegar aos
abundantes lençóis freáticos. Tudo seria bem melhor se pelo menos
as regassem, mas esta é outra história.
MEMÓ R IA S D E U M D ES ER TO R 29
. Túnel, pátio interior e vida
O túnel de acesso à rua e o pátio são zona de socialização dos residentes e amigos, e de trânsito da atividade da parte rústica. É no túnel que jogo à bola com os primos António e Amaro e o primo Xico Colaço que se junta a nós. No pátio cruzam-se todos os habi-tantes da casa. Desde as primas Ana Maria e Maria Cecília, que vivem comigo no primeiro andar, aos alunos da meus Pais, quando há aulas e explicações. Mais tarde a prima Maria Leonor junta-se a nós e por vezes aparece o primo Henrique Graça, raramente a prima Dulce e as irmãs. A minha vida fora da escola ou colégio é quase limitada a estas brincadeiras.
Túnel e pátio comunicam com a parte rústica. Durante anos vejo por lá passar mulas e macho a irem descansar para a cavalariça e comer palha do palheiro, depois de trazerem do monte o churrião ou a carrinha dos víveres. Na adega há uma dezena de grandes talhas de barro de quando o monte produzia vinho e uma prensa de mel que ainda vi funcionar. E que me deu a recordação de chupar os
. Casa no centro da vila na rua principal
Figura 6 – A casa do lavrador João Amaro (a dos três arcos) é a quarta e
última casa de lavoura a ser construída (meados da década de 1950) na rua
principal de Aljustrel, depois das do meu avô, da do lavrador Sobral (mesma
arquitetura) e da do lavrador Coelho, mais afastada para Sul e com traços de
Raul Lino. É possível ver as duas portas da livraria do Edmundo Silva, à
direita e de esguelha, logo depois das casas de menor pé.
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favos para separar o mel da cera. A Ti Joana, oleira de Beringel, é
quase da família. Vende louça de barro na praceta do mercado do
peixe e utiliza o armazém da casa como depósito. É no pátio que
besunta o interior dos potes de barro com pez que empesta a casa
com o cheiro.
A casa está no centro da vila na rua principal, um trecho que vai
dos cafés do Martins (de onde é tirada a foto da figura 6) e do Higi-
no até ao Café Aliança do Eduardo Raposo, antes do prédio de três
arcos. É mesmo em frente ao Mercado do Peixe anexo ao Mercado
da vila. Todos os dias passam camionetas com carga de peixe,
vindas de Sines e do Algarve e quase todos os dias o meu Pai com-
pra peixe fresco. O edifício principal do Mercado dispõe de bancas
de legumes e fruta, de talhos, mercearia, retrosaria, padaria e o Café
da Chica Maltesa, onde os mais madrugadores matam o bicho. Esta
Chica é Francisca do Carmo, a La Pasionaria da vila, três vezes
presa pela Pide. O mercado é o centro do mundo, misto de Face-
book e Whats App.
. Tabernas e cante, acampamento de ciganos e cantigas e
teatro
Já referi as duas tabernas no seguimento da casa e demolidas já
comigo na Bélgica. O pequeno jardim da casa nova para onde vou
viver é parede meia com uma taberna. Na altura, a taberna é talvez o
local onde mais se canta e cria canções alentejanas. O cante entra-
nha-se em mim e entristece-me não o conseguir cantar, em especial
o “Nós somos trabalhadores/ Que no campo trabalhamos/ Traba-
lhamos a rigor/ A servir o Lavrador/ Para ver se nos mantemos/
Quando trabalho não temos/ À Câm’ra nos dirigimos/ A pedir ao
Presidente/ Que tenha dó desta gente/ E nos dê algum destino/ Que
nos dê algum destino/ Que nos dê algum agasalho/À Câm’ra nos
dirigimos/A alegar o que sentimos/ Quando não temos trabalho”.
No Outono/Inverno quando o frio aperta, mulheres de todas as
idades saem de casa e vão mondar searas. Regressam já noite, em
grupos que enchem a largura da rua principal, cantam e continuam a
cantar. Desfile e cante fascinam João Sá da Costa, professor no
colégio, quando camponeses do Alentejo começam a ser ícone das
gentes de Lisboa que se opõem ao regime. Das janelas das traseiras
da casa grande avista-se o acampamento quase permanente de ciga-
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nos. Tivesse eu ouvido para a música e hoje seria perito em cante
alentejano e folclore cigano.
. Sobre o monte das Pedras Brancas
A agricultura do avô paterno no monte da Pedras Brancas é mais
aberta, mecanizada e rentável do que a do Monte Novo, o que
explica a compra da casa de Aljustrel. Vou lá poucas vezes de visita
para brincar com os primos António e Amaro. Ainda do tempo do
meu avô, o Manuel António P. é serrenho tão especial para os meus
avós como a Chica C. Não é feitor porque há sempre lavradores
presentes, será capataz. Não esqueço o seu choro genuíno e compul-
sivo no funeral da minha avó paterna, quando já nada pode esperar
dela. Por essa altura já instalou um café na EN2, no início do desvio
de Aljustrel, e que aparece no quarto capítulo em cena inesperada.
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