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em acima da cidade, sobre uma coluna alta, ficava a estátua do
Príncipe Feliz. Era toda coberta de folhas do mais fino ouro, tinha
duas safiras que brilhavam no lugar dos olhos e um grande rubi cintilando
no cabo da espada.
A estátua do Príncipe Feliz era muitíssimo admirada por todos. “Ela é
tão bonita quanto um cata-vento'', observou um dos membros da Câmara
Municipal. que queria cultivar a reputação de ter gosto artístico. “Só que
não é tão útil”,1 acrescentou, com medo de que alguém pudesse achar que
ele não fosse uma pessoa prática, coisa que. ele de fato era.
“Por que você não procura ser como Príncipe Feliz?", perguntou uma
mãe sensata ao filho pequenino, que chorava porque queria ganhar a Lua.
"O Príncipe Feliz nunca nem sonha em chorar por coisa alguma."
“Eu fico contente por existir no mundo alguém que seja tão feliz'",
resmungou um homem amargurado ao ver a estátua maravilhosa.
"Ele parece um anjo”, disseram os órfãos da igreja, quando saíam da
catedral, com suas capas vermelhas e seus aventais brancos asseados.
"Como é que vocês sabem?", perguntou o Professor de Matemática.
"vocês nunca viram um anjo."
“Ah! Vimos sim, vimos nos nossos sonhos", responderam as crianças;
e o Professor de Matemática franziu a testa e fez uma cara de bravo, porque
ele não achava uma coisa boa as crianças sonharem.
Uma noite sobrevoou a cidade um pequeno Colibri. Os seus amigos
haviam partido para o Egito já fazia três semanas, mas ele ficou para trás,
porque tinha se apaixonado pela mais linda das andorinhas. Ele a havia
encontrado no início da primavera, quando voava sobre o rio perseguindo
uma mariposa. Sentiu-se tão atraído pela cintura fina da Andorinha, que de
viu obrigado a parar e foi falar com ela.
"Posso namorar você?", perguntou o Colibri, pois gostava de ir direto
ao ponto, e a Andorinha em resposta lhe acenou de leve com a cabeça. Ele
então se pôs a girar e girar ao redor dela, tocando na água com a ponta das
asas e levantando pequenas ondas prateadas. Esse era o seu jeito de lhe
fazer a corte e ele continuou fazendo assim por todo o verão.
1 No Século XIX a Inglaterra passava por uma grande expansão industrial e industrial e comércio marítimo, que a transformaria no maior império mundial. Nessas condições prevalecia em todo o país a disposição dc valorizar acima de todo aquilo que fosse práti co e útil para o crescimento econômico.
B
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“Essa é uma relação ridícula", chilrearam os outros colibris; "ela não
tem dinheiro e tem parentes, amigos e conhecidos demais." E na verdade, o
rio estava repleto de andorinhas. O fato porém foi que, quando o outono
chegou, todas elas partiram em revoada.
Depois que se foram, o pequeno Colibri se sentiu sozinho e começou a
se aborrecer da sua bem-amada. "Ela não tem muito assunto", disse, "e
acho que deve ser uma coquete, porque vive se alisando ao vento”. Por
certo, toda vez que o vento soprava, a Andorinha fazia os movimentos mais
graciosos. "Estou percebendo que ela é bem caseira", continuou a pensar,
“mas eu adoro viajar e, portanto, minha companheira deveria gostar de
viajar também."
"Você vem viajar comigo?, perguntou-lhe afinal; mas a Andorinha
sacudiu a cabeça negativamente, ela era apegada demais ao seu lar.
“Você, só tem flertado comigo", disse-lhe. "Eu vou-me embora para as
Pirâmides. Adeus!" E partiu voando.
Voou durante todo o dia, chegando já à noite na cidade. "Onde é que
eu vou me acomodar?”, perguntou a si mesmo. "Espero que a cidade tenha
se preparado para a minha chegada."
Foi então que ele viu a estatua no alto da coluna. "Vou me instalar ali",
decidiu com alegria. "é um lugar decente, cheio de ar fresco." Assim, ele
voou e foi se alojar bem no meio dos pés do Príncipe Feliz.
"Eu tenho um quarto de ouro", congratulou-se alegre olhando ao
redor, enquanto se preparava para dormir. Mas no momento em que ia
recolhendo a cabeça sob a asa, uma grande gota d'agua caiu-lhe em cima.
“Que coisa mais estranha!”, exclamou, "não há uma única nuvem no céu, as
estrelas estão límpidas e brilhantes e no entanto está chovendo. O clima no
Norte da Europa é mesmo horroroso. A Andorinha gostava da chuva, mas
isso só comprovava o egoísmo dela."
E então uma outra gota caiu.
"Para que serve uma estátua se nela não posso me proteger da
chuva?”, esbravejou. "Eu preciso mesmo é achar um bom topo de chaminé.”
E se preparou para alçar voo.
Antes porém que abrisse suas asas, uma terceira gota caiu, ele olhou
para cima e viu... oh! o que foi que ele viu?
Os olhos do Príncipe Feliz estavam cheios de lágrimas, que corriam
cobrindo-lhe toda a face. Seu rosto era tão lindo sob a luz do luar que o
pequeno Colibri se sentiu tomado de piedade.
“Quem é você?", perguntou.
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“Eu sou o Príncipe Feliz.”
"Então por que é que você está chorando?", indagou o Colibri. "Você
me ensopou todo."
"Quando eu era vivo e tinha um coração humano", respondeu a
estátua, "não sabia o que eram lágrimas, pois vivia no palácio do Nem-te-
Ligo, onde a tristeza não tem permissão para entrar. Durante o dia eu
brincava com meus amigos no jardim e à noite conduzia as danças no
Grande Salão. Ao redor do jardim se erguia uma muralha muito elevada,
mas nunca me preocupei em perguntar o que havia por trás dela. Os meus
cortesãos me chamavam de Príncipe Feliz e feliz de fato eu era, se é
possível chamar o prazer de felicidade. Assim eu vivi e assim eu morri.
Agora que estou morto eles me puseram aqui, tão no alto, que eu posso ver
toda a feiúra e a miséria da minha cidade e muito embora meu coração
seja feito de chumbo. não tenho escolha senão chorar."
"O quê! Pois então ele não é todo de ouro maciço?", murmurou o
Colibri consigo mesmo. Ele era educado demais para fazer quaisquer
reparos pessoais em voz alta.
"Lá ao longe", continuou a estátua numa voz suave e musical, "lá ao
longe, numa ruela, há um casebre pobre. Uma das janelas está aberta e
através dela posso ver uma mulher sentada numa mesa. Seu rosto é fino e
consumido e ela tem mãos ásperas e vermelhas, marcadas de picadas de
agulhas, pois é costureira. Ela está bordando flores-da-paixão num vestido
de seda, que será usado pela favorita dentre as damas de honra da Rainha
no próximo baile da corte. Numa cama no canto do quarto seu filho está
estendido doente. Ele tem febre e clama por laranjas. Sua mãe nada tem
para lhe dar a não ser água do rio, por isso ele chora. Colibri, Colibri,
pequenino Colibri, você não poderia arrancar e levar-lhe o rubi do cabo da
minha espada? Meus pés estão presos nesse pedestal e eu não posso me
mover."
"Eu sou aguardado no Egito", respondeu o Colibri. “Meus amigos
estão sobrevoando o Nilo para cima e para baixo e conversando com as
grandes flores de lótus. Breve eles irão repousar na tumba do maior
dentre os Reis.2 O grande Rei está ali mesmo, na sua urna funerária toda
decorada. Ele está envolto em linho amarelo, embalsamado com especia-
2 O Colibri se refere genericamente a figura sagrada dos faraós do antigo Império Egípcio.
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rias. Ao redor do seu pescoço há um colar de jade verde-claro, suas mãos
são como folhas amarelecidas."
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri", insistiu o Príncipe, "você não
ficaria comigo por uma noite para ser meu mensageiro? O menino tem
tanta sede e a mãe está tão triste."
"Acho que não gosto de meninos", replicou o Colibri. "No verão
passado, quando eu estava no rio, havia dois meninos malvados, os filhos
do moleiro, que ficavam sempre atirando pedras em mim. Nunca me
acertaram, claro. Nós, colibris, voamos muito bem e além do mais eu venho
de uma família famosa pela agilidade. Mas, ainda assim, era um sinal de
grave desrespeito."
O Príncipe Feliz, porém, parecia sofrer tanto, que o pequeno Colibri se
apiedou dele. “Está muito frio aqui", disse, "mas eu ficarei com você uma
noite e serei seu mensageiro."
"Obrigado, pequenino Colibri", respondeu o Príncipe.
O Colibri arrancou então com o bico o grande rubi da espada do
Príncipe e o carregou voando por sobre os telhados da cidade.
Passou pela torre da catedral onde estavam esculpidos os anjos de
mármore branco. Passou pelo palácio e ouviu os sons do baile. Uma moça
linda saiu no terraço com o seu amado. "Que maravilhosas são as estrelas",
disse-lhe ele, "e que maravilhoso é o poder do amor!"
"Eu espero que meu vestido esteja pronto a tempo para o baile do Rei",
comentou ela. "Mandei que fossem bordadas Flores-da-paixão nele, mas as
costureiras são tão preguiçosas."
O Colibri atravessou o rio e viu as lanternas penduradas nos mastros
dos navios. Passou pelo gueto e viu os judeus barganhando uns com os
outros e pesando moedas em balanças de cobre. Até que enfim chegou ao
casebre pobre e olhou para dentro. O menino se debatia em febre na cama e
a mãe caíra no sono de tão cansada. Ele saltitou para dentro e colocou o
grande rubi na mesa, ao lado do dedal da mulher. Voou então
delicadamente ao redor da cama, abanando a testa do menino com suas
asas. "Que frescor eu sinto", disse a criança, "devo estar melhorando." E
assim mergulhou num sonho suave.
O Colibri retornou ao Príncipe Feliz e contou-lhe o que havia feito. "É
curioso", observou, "mas eu me sinto muito aquecido agora, embora esteja
tão frio.”
“Isso é porque você fez uma coisa boa", respondeu-lhe o Príncipe. O
pequeno Colibri se pôs a pensar nisso e caiu no sono. Pensar sempre lhe
dava sono.
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Quando o dia irrompeu, ele voou até o rio e foi tomar um banho. "Que
fenômeno mais extraordinário", observou o Professor de Ornitologia, que
passava pela ponte. “Um colibri no inverno!" E escreveu uma longa carta
sobre o fato no jornal da cidade. Todo mundo depois comentou o artigo, já
que ele estava cheio de palavras que ninguém entendia.
"Esta noite irei para o Egito", decidiu o Colibri, enchendo-se de alegria
com esse plano. Visitou todos os monumentos públicos e sentou-se por um
longo tempo no topo do campanário da igreja. Por toda parte aonde ia, os
pardais gorjeavam dizendo uns aos outros: "Puxa, que estrangeiro mais
distinto!". Por isso ele estava muito contente consigo mesmo.
Quando a lua surgiu, ele voou de volta ao Príncipe Feliz. "Você tem
algum pedido do Egito?", indagou. "Estou partindo."
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri", pediu o Príncipe, "você não
ficaria comigo por uma noite mais?"
"Amanhã meus amigos voarão para a Segunda Catarata do rio Nilo. Os
hipopótamos se refestelam ali entre as floradas de juncos e sobre um
grande trono de granito está sentado o deus Mêmnon.3 Durante toda a noite
ele observa os astros e quando a estrela da manhã resplandece, ele emite
um grito de alegria e depois se põe em silêncio. Ao Meio-dia, os leões de
pelo dourado vêm beber nas margens do rio. Eles têm olhos que parecem
cristal esverdeado e seu rugido é mais alto do que o rumor das cataratas."
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri", disse o Príncipe, "bem ao longe
através da cidade eu vejo um jovem num sótão. Ele está debruçado sobre
uma escrivaninha coberta de papéis e ao seu lado há um copo com um maço
de violetas secas. O cabelo dele é castanho e crespo, os lábios são vermelhos
como romãs e ele tem olhos grandes e sonhadores. Tenta terminar uma
peça para o Diretor do teatro, mas está enregelado demais para poder
continuar escrevendo. Não há fogo na grelha e a fome o fez desmaiar."
"Eu vou permanecer com você por mais uma noite", respondeu o
Colibri, que tinha realmente um bom coração. "Devo levar-lhe outro rubi?"
"Oh! Eu já não tenho mais rubi agora", falou o Príncipe, “os meus
olhos são tudo o que me restou. Eles são feitos de safiras muito raras, que
foram trazidas da Índia mil anos atrás. Arranque uma delas e a leve para
3 Referência a uma gigantesca estatua próxima à cidade de Tebas, no antigo Egito, conhecida como O Colosso de Mêmmon, a qual, segundo a lenda, emitia um longo som musical quando atingida pelos primeiros raios de sol.
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ele. Ele vai vendê-la ao joalheiro, comprar comida e madeira para o fogo e
poderá terminar a sua peça."
"Meu querido Príncipe", disse o Colibri, "eu não posso fazer isso." E se
pôs a chorar.
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri", falou o Príncipe, "faça como
estou lhe pedindo."
Assim então o Colibri arrancou o olho do Príncipe e voou para o
sótão do estudante. Era muito fácil entrar ali, pois havia um buraco no
teto. Ele o atravessou e entrou no quarto. O jovem estava com a cabeça
enfiada entre os braços, por isso não ouviu o bater das asas do pássaro e
quando ele levantou a cabeça, encontrou a linda safira sobre as violetas
secas.
"Estou começando a ser reconhecido", exclamou ele com alegria, "isso
deve ser um presente de algum grande admirador. Agora eu posso terminar
minha peça", disse, cheio de contentamento.
No dia seguinte o Colibri voou até o porto. Sentou-se no mastro de um
grande navio e observou os marinheiros retirando enormes caixas do porão
com a ajuda de cordas. "Um, dois, três ... lá vai!", gritavam eles cada vez
que puxavam uma caixa. "Eu estou indo para o Egito", gritou-lhes de sua
parte o Colibri, mas ninguém ligou, e quando a lua surgiu ele voou de volta
para o Príncipe Feliz.
"Eu vim para lhe dizer adeus", disse ele.
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri", pediu-lhe o Príncipe, "você não
passaria mais uma noite comigo?"
"É inverno", respondeu o Colibri, "e a neve gelada logo estará aqui.
No Egito o sol bate quente nas palmeiras verdes, os crocodilos repousam
na lama olhando ao redor com preguiça. Meus companheiros estão
construindo um ninho no templo de Baalbec,4 os pontos brancos e rosados
os observam arrulhando uns aos outros. Querido Príncipe, eu preciso
deixá-lo, mas não o esquecerei e na próxima primavera lhe trarei duas
belas joias para substituir aquelas que você deu. Trarei um rubi mais
vermelho do que o vermelho da rosa e uma safira mais azul do que a
imensidão do mar."
"Na praça logo ali abaixo", disse o Príncipe, "fica uma menininha que
vende fósforos. Ela deixou seus fósforos caírem na sarjeta e todos se
estragaram. O pai dela vai lhe bater se ela não levar algum dinheiro para casa,
4 Templo devotado ao culto do deus Sol.
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por isso ela está chorando. Ela não tem sapatos nem meias, nem mesmo um
chapéu para cobrir a cabeça. Retire meu outro olho e leve para ela, assim
ela não vai apanhar do pai."
"Eu vou ficar com você uma noite mais", disse o Colibri, "mas não
posso retirar seu outro olho. Senão você ficaria totalmente cego."
"Colibri, Colibri, pequenino Colibri, faca como eu lhe digo."
Assim ele arrancou o outro olho do Príncipe e saiu voando com a safira
presa no bico. Revoou ao redor da vendedora de fósforos e soltou a joia nas
mãos da garotinha. "Que lindo pedaço de vidro!, gritou surpresa a menina,
e correu de volta para casa sorrindo.
O Colibri voltou então para junto do Príncipe. "Você está cego agora",
disse-lhe, "por isso vou ficar com você para sempre."
"Não, pequenino Colibri", disse-lhe o pobre Príncipe, "você deve partir
para o Egito."
"Ficarei com você para sempre”, respondeu-lhe o Colibri e dormiu aos
pês do Príncipe.
Durante todo o dia seguinte ele se. manteve sentado no ombro do
Príncipe, contando-lhe historias das coisas que viu em terras estranhas.
Falou-lhe das íbis-brancas, que se juntam em fileiras infinitas nas margens
do rio Nilo, catando peixes dourados com seus bicos longos. Falou da
Esfinge,5 que é tão antiga quanto o próprio mundo, vive no meio do deserto
e tudo sabe. Disse dos mercadores que marcham sozinhos ao lado de seus
camelos e carregam contas de âmbar em suas mãos. Contou do Rei das
Montanhas da Lua,6 que é negro como o ébano e presta adoração a uma
grande bola de cristal. Da enorme cobra verde que dorme numa palmeira e
é alimentada com pães de mel por vinte sacerdotes. Dos pigmeus que
navegam num lago imenso sobre folhas grandes como se fossem balsas e
estão em permanente guerra com as borboletas.7
"Querido Colibri pequenino", disse o Príncipe, "você me fala de coi-
sas maravilhosas, mas mais espantoso do que tudo e o sofrimento de ho-
5 Criatura mitológica, representada próximo às Pirâmides de Gizé, possuindo uma cabeça humana e um corpo de leão.
6 Lenda das tribos da região das montanhas nevadas do maciço da Etiópia.
7 Oscar Wilde reúne nesse parágrafo menções a fatos, lendas e histórias prodigiosas do e sobre o continente africano e seus povos, que chegavam em abundancia a Inglaterra nesse período em que os europeus intensificavam a penetração na África, sua exploração e colonização.
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mens e mulheres. Não há Mistério maior do que a Miséria. Voe por sobre a
minha cidade, pequenino Colibri, e diga-me o que você vê."
O Colibri então sobrevoou a grande cidade e viu os ricos vivendo na
felicidade em suas belas casas, enquanto Os mendigos se abrigavam sob as
portões das muralhas. Ele voou por entre as ruelas escuras e viu os rostos
pálidos de crianças famintas olhando desconsoladas para as ruas imundas.
Sob os arcos de uma ponte, dois garotos estavam deitados lado a lado, nos
braços um do outro, tentando manter-se aquecidos. "Que fome nós
temos!, eles se queixavam. "Saiam, vocês não podem ficar aí!, gritou o
guarda, e ales se puseram a andar sob a chuva.
Ele voou de volta e contou ao Príncipe tudo o que vira.
"Eu estou recoberto com finas camadas de ouro", disse o Príncipe,
"você deve retirá-lo, folha por folha, e dá-lo aos meus pobres; as pessoas
sempre acham que o ouro pode torná-las felizes."
Assim, o Colibri foi retirando folha após folha o fino ouro, até que o
Príncipe Feliz acabou ficando com um aspecto cinzento e sombrio. Folha
por folha do fino ouro ele distribuiu aos pobres e o rosto das crianças
ficou rosado, "elas sorriam e brincavam nas ruas. "Temos pão agora!",
gritavam de alegria.
Então veio a neve e depois se transformou em gelo. As ruas pareciam
feitas de prata, estavam claras e reluziam. Longas pontas de gelo pendiam
dos telhados em frente às casas, como pequenas adagas. As pessoas
passavam vestidas de peles, os pequeninos usavam gorros vermelhos e
patinavam sobre o rio gelado.
O pobre Colibri gelava e se congelava, mas jamais deixava o Príncipe,
que ele amava tanto. Catava casquinhas de pão na entrada da padaria,
quando o padeiro não estava olhando, e tentava se manter aquecido
batendo as asas.
Mas, enfim, ele sabia que iria morrer. Só tinha forças para voar uma
última vez até o ombro do Príncipe. "Adeus, querido Príncipe!", ele
saudou, "você me deixaria beijar sua mão?"
"Estou contente de que você afinal esteja indo para o Egito,
pequenino Colibri", disse-lhe o Príncipe, "você ficou muito tempo por aqui
e eu queria que você me beijasse nos lábios, pois eu adoro você."
"Não é para o Egito que estou indo", falou o Colibri. "Eu estou indo
para a casa dos Mortos. A Morte é a irmã do Sono, não é?"
Ele beijou o Príncipe Feliz nos lábios e caiu morto aos seus pês.
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Naquele momento um estranho som de rachadura veio de dentro da
estátua, como se alguma coisa tivesse quebrado. O fato é que o coração de
chumbo do Príncipe se partiu exatamente em dois. Por certo o frio que fazia
era terrível.
Ao amanhecer do dia seguinte, o Prefeito atravessou a praça com os
membros da Câmara da cidade. Quando passaram pelo monumento, ele
olhou para a estátua: "Que horror! Como está péssima a aparência do
Príncipe", gritou escandalizado.
"Péssima demais!, protestaram os membros da Câmara, que sempre
concordavam com o que o Prefeito dizia, aproximando-se todos para olhar
mais de perto.
"O rubi caiu da espada, os olhos também não estão no lugar e ele não
está mais recoberto de ouro", comentou o Prefeito; "na verdade, ele parece
mais um mendigo!
"Parece mais um mendigo!”, repetiram em coro os membros da Câmara.
"Há até um pássaro morto aos seus pés!”, protestou o Prefeito. "Temos
que decretar uma lei para que os pássaros sejam proibidos de morrer aqui."
O Presidente da Câmara anotou a proposta do Prefeito.
Eles então ordenaram que a estátua do Príncipe fosse arrancada da
praça. “Já que ele não e mais bonito, então não é mais útil”, determinou
Professor de Arte da universidade.
Derreteram a estátua numa fornalha e o Prefeito convocou uma
reunião geral para decidir o que seria feito do metal. "Devemos forjar uma
nova estátua, é claro", proclamou, "e deverá ser uma estátua da minha
própria pessoa."
"Não, terá que ser da minha pessoa!”, protestou cada um dos membros
da Câmara, provocando uma discussão acalorada. Da última vez que ouvi
falar deles, ainda estavam discutindo.
"Que coisa mais estranha!”, comentou o mestre da fundição com os
seus trabalhadores. "Esse coração de chumbo partido não derrete na
fornalha. Vamos ter que jogá-lo fora." Eles então o jogaram num depósito
de lixo, onde estava também o pequenino Colibri morto.
"Me traga as duas coisas mais preciosas daquela cidade", disse Deus a
um dos seus Anjos; e o Anjo Lhe levou o coração de chumbo e o pássaro
morto.
"Você fez a escolha falou-lhe Deus, "pois no meu jardim do Paraíso
esse pobre pássaro voará para sempre, e na minha cidade de ouro o
Príncipe Feliz até o fim dos tempos fará suas preces."
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la me disse que dançaria comigo se eu lhe levasse rosas vermelhas”,
queixou-se o jovem Estudante; “mas em nenhum canto do meu jardim
há rosas vermelhas.”
Do seu ninho, no carvalho a Cotovia ouviu o rapaz, levantou a cabeça
por sobre a folhagem e se pôs a divagar.
“Nenhuma rosa vermelha no meu jardim!”, ele choramingava, os olhos
cheios de lágrimas. “Ah, de que pequeninas coisas a felicidade depende! Li
tudo o que os mais sábios homens escreveram, todos os segredos da
filosofia eu examinei, e ainda assim, por falta de uma rosa vermelha, minha
vida está arruinada.”
“Eis enfim alguém que ama de verdade”, comentou a Cotovia. “Noite
após noite cantei canções sobre ele, muito embora jamais o tivesse
conhecido; noite após noite contei sua história para as estrelas e eis que
agora o vejo. Seu cabelo é negro como os brotos do jacinto, seus lábios são
vermelhos como a rosa dos seus desejos; mas a paixão tornou seu rosto
branco como o marfim e a tristeza marcou-lhe a testa com seu selo.
“O Príncipe estará dando um baile amanhã à noite”, suspirou o jovem
Estudante, “e minha amada estará entre os convidados. Se eu lhe levasse
uma rosa vermelha, dançará comigo até a madrugada. Se levar-lhe uma
rosa vermelha, eu a seguraria nos braços, ela encostaria a cabeça no meu
ombro e sua mão estaria presa na minha. Mas não há nenhuma rosa
vermelha no meu jardim, portanto ficarei sentado sozinho e ela passará por
mim sem me notar. Ela não demostrará nenhum desejo por mim e vai
partir meu coração.
“Eis aqui em toda a sua graça o verdadeiro amante”, disse a Cotovia.
“Aquilo tudo que eu canto, ele sofre, o que é alegria para mim, para ele é
dor. O Amor é por certo uma coisa maravilhosa. É mais precioso que
esmeraldas e mais adorável que as mais finas opalas. Pérolas e romãs não
podem compra-los, nem será encontrado em oferta no mercado. Não se
pode adquiri-lo dos comerciantes, nem pode ser posto na balança contra o
peso do ouro.
“Os músicos estarão a postos na galeria”, disse o jovem Estudante, “e
tocarão os instrumentos de corda, fazendo meu amor dançar ao som da
harpa e do violino. Sua dança será tão leve que os pés mal tocarão no chão
e todos que desejam cortejá-la vão se amontoar ao seu redor. Comigo
no entanto ela não irá dançar, pois não tenho uma rosa vermelha para
E
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lhe dar.” Tendo dito isso, ele correu escadas abaixo, saiu para o gramado do jardim, enterrou o rosto entre as mãos e se pôs a chorar.
“Por que é que ele chora?”, perguntou a Lagartixa, que passava ao seu
lado agitando o rabinho.
“Pois é, por quê?”, insistiu a Borboleta, que batia as asas animada ao
redor de um raio de sol.
"Pois é, por quê?", sussurrou a Margarida para sua vizinha numa
vozinha suave e delicada.
"Ele chora por uma rosa vermelha", disse a Cotovia.
"Por uma rosa vermelha", exclamaram elas; "que coisa mais ridícula!"
A Lagartixa, que era meio cínica, começou a rir gostosamente.
Mas a Cotovia, que entendia o segredo da tristeza do Estudante,
sentou-se silenciosa na árvore e passou a pensar nos mistérios do Amor.
De repente, ela estendeu as asas e se lançou ao ar em pleno voo.
Percorreu o bosque como uma sombra e como uma sombra retornou e
sobrevoou o jardim.
Bem no meio do gramado havia uma linda Roseira; assim que a viu,
voou correndo até ela e pousou num ramo.
"Me dê uma rosa vermelha", pediu, "e eu lhe cantarei minha mais doce
canção."
Mas a Roseira fez que não com a cabeça.
"Minhas rosas são brancas", respondeu, "brancas como a espuma do
mar, e ainda mais brancas que a neve das montanhas. Mas vá até a minha
irmã, que cresce ali enroscada no relógio de sol, e ela talvez lhe dê o que
você deseja."
A Cotovia voou então até a Roseira que envolvia o relógio de sol.
"Me dê uma rosa vermelha", pediu, "e eu lhe cantarei minha mais doce
canção."
Mas a Roseira fez que não com a cabeça.
"Minhas rosas são amarelas", respondeu, "amarelas como os cabelos
das sereias que se sentam em tronos de âmbar, e ainda mais amarelas do
que o narciso que floresce nas campinas antes de ser colhido pelo
camponês. Vá, porém, até minha irmã, que cresce sob a janela do
Estudante, talvez ela tenha o que você tanto quer."
A Cotovia dirigiu-se então para a Roseira que vicejava sob a janela do
Estudante.
"Me dê uma rosa vermelha", pediu, "e eu lhe cantarei minha mais doce
canção."
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Mas a Roseira fez que não com a cabeça.
“Minhas rosas são vermelhas”, respondeu. “vermelhas como os pés dos
cisnes e ainda mais vermelhas que os grandes castelos de coral que vicejam
em colônias infinitas nas cavernas sob os oceanos. Mas o inverno congelou
minhas veias, o gelo queimou meus brotos e a tempestade quebrou meus
galhos, não vou poder desabrochar rosas esse ano."
“Uma única rosa vermelha é tudo o que eu quero”, implorou a Cotovia.
"somente uma rosa vermelha! Não há nenhum meio pelo qual eu possa
conseguir essa rosa apenas?"
"Há modo sim”, respondeu a Roseira, “mas é tão terrível que eu não
ouso sequer mencionar."
“Me diga”, pediu a Cotovia, "eu não tenho medo nenhum.”
"Se quer uma rosa vermelha'', disse a Roseira. "você terá que criá-la
cantando ao luar, preenchendo a flor com o sangue do seu próprio coração.
Você deverá cantar para mim, enfiando seu peito num espinho. Durante
toda a noite terá que c0ntinuar cartando, com o espinho cravado no
coração, para que o sangue de sua vida penetre nas minhas veias e se torne.
meu.”
“A Morte é um preço bem à altura de uma rosa vermelha”,
respondeu a Cotovia. “assim como a Vida é bastante cara para todos. É
bom sentar-se na mata verde e admirar o Sol no seu cortejo dourado e a
Lua desfilando suas pérolas. Doce é o perfume do jasmim: suaves são os
lírios no vale e a brisa que sopra das colinas. Ainda assim o Amor est á
acima da Vida e afinal, o que é o coração de um pássaro comparado com
o de uma pessoa?”
Dizendo isso, ela estendeu as asas e lançou-se ao ar. Sobrevoou o
jardim como uma sombra e como uma sombra cruzou por sobre as matas.
O jovem Estudante estava ainda debruçado sobre a grama, onde ela o
tinha visto pela última vez, e seus belos olhos continuavam molhados de
lágrimas.
"Fique feliz", gritou-lhe a Cotovia, "fique feliz, você terá a sua rosa
vermelha. Vou fazê-la brotar cantando minha música ao luar e vou tingi-la
com o sangue do meu próprio coração. Tudo que lhe peço em troca é que
você seja um amante de verdade, pois o Amor é mais sábio que a Filosofia,
por sábia que ela seja, e mais poderoso que a Força, por forte que ela
possa ser. Suas asas têm a cor das chamas e o seu corpo irradia como o
fogo. Seus lábios são doces como o mel, seu hálito tem o aroma do
incenso.”
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O Estudante ouviu deitado na grama, mas nada entendeu do que
dizia a Cotovia, pois ele só compreendia as coisas que estão escritas nos
livros.
O Carvalho porém entendeu e ficou triste, porque ele era muito
amigo da pequena Cotovia, que havia construído o ninho entre seus
galhos.
"Cante uma última canção para mim", pediu ele, "eu hei de ficar muito
solitário quando você se for."
A Cotovia cantou então para o Carvalho e sua voz era como a água
fluindo suave ele um jarro de prata.
Quando ela terminou sua canção, o Estudante levantou-se e tirou um
lápis e um caderninho do seu bolso.
"Que bela melodia canta essa Cotovia", disse para si mesmo enquanto
voltava do jardim, “isso não se pode negar. Mas será que tem sentimento?
Eu acho que não. No fundo, ela é como muitos artistas, impressiona pelo
estilo, mas lhe falta sinceridade. Nunca se sacrificaria pelos outros . Só
pensa na música, mas todos sabem quão egoístas são as artes. E, no
entanto, é preciso admitir que ela tem belas notas na sua voz. É uma pena
que nada signifiquem e não tragam beneficio prático algum."8 Dirigiu-se ao
seu quarto, deitou-se na cama estreita e se pôs a pensar no seu amor,
caindo no sono pouco depois.
Quando a Lua apareceu no céu a Cotovia voou para a roseira,
apertando seu peito contra o espinho. Durante toda a noite ela cantou com
o peito pregado no espinho. A Lua de cristal gelado debruçou-se para
escutar. Durante toda a noite ela cantou, com o espinho penetrando mais
e mais fundo no seu peito e o sangue da vida fluindo de suas veias.
Primeiro ela cantou o amor que brota no coração de um rapaz e
uma moça. No galho mais alto da Roseira brotou então u ma flor
maravilhosa, pétala após pétala, assim como uma canção se seguia à
outra. No início ela era pálida como a névoa suspensa sobre o r io —
pálida como os pés da madrugada e prateada como as asas do
crepúsculo. Como reflexo de uma rosa num espelho de prata, como o
reflexo de uma rosa nas águas de um lago, assim era a rosa que brotou
no galho mais alto da Roseira.
A Roseira disse à Cotovia que apertasse seu peito mais forte contra o
espinho. “Aperte mais, pequena Cotovia", insistiu ela, "ou o Dia nascerá
antes que a rosa esteja terminada."
8 Conforme nota da página 6.
24
A Cotovia então apertou-se ainda mais contra o espinho e seu canto se
tornou mais e mais alto, pois ela cantava o desabrochar da paixão na alma
de um homem e uma mulher.
Uma delicada tintura cor-de-rosa surgiu nas pétalas da flor, como o
vermelho que colore o rosto do noivo quando beija os lábios da noiva. Mas
o espinho não tinha ainda atingido seu coração, por isso o centro da rosa
permanecia branco, já que apenas o sangue do coração de uma Cotovia
pode tingir de vermelho o coração de uma rosa.
E a Roseira insistia com a Cotovia para que se apertasse ainda mais
contra o espinho. "Aperte mais, pequena Cotovia", lhe dizia, "ou o Dia há de
chegar antes que a rosa esteja pronta."
A Cotovia pressionava mais o peito contra o espinho, até que o espinho
lhe tocou o coração e uma dor aguda atravessou seu corpo. Quanto Mais
terrível a dor, tanto mais forte se tornava seu canto, pois ela cantava o
Amor que se torna espiritual com a Morte e que nenhuma tumba pode
enterrar.
A rosa maravilhosa tornou-se então avermelhada, como o crepúsculo
nos céus do Oriente. A coroa externa das pétalas era vermelha e o centro da
flor era rubro como um rubi.
Agora, porém, a voz da Cotovia começou a perder a força, suas asinhas
batiam, seus olhos ficaram embaçados. Seu canto se tomava cada vez Mais
fraco e ela sentia algo sufocando sua garganta.
Num último esforço, ela retomou o ânimo do seu canto. A Lua se pôs
a ouvir e esqueceu da alvorada, demorando-se mais tempo no céu. A rosa
vermelha ficou ouvindo até estremecer toda em êxtase, abrindo suas
pétalas para o ar fresco da madrugada. O Eco levou o canto para as
cavernas nas montanhas e acordou os pastores, despertando-os dos seus
sonhos. O Vento o fez atravessar pelas plantas na superfície do rio até
chegar ao mar.
"Veja, veja!", gritou a Roseira, "a rosa está pronta." Mas a Cotovia não
respondeu, pois estava caída morta no gramado, com o espinho cravado no
coração.
Ao meio-dia o Estudante abriu sua janela e olhou para fora.
"Nossa, que sorte mais incrível!", exclamou, "eis aqui uma rosa
vermelha como nunca vi na minha vida. É tão linda que por certo deverá ter
um nome enorme em latim," Dizendo isso, debruçou-se e a apanhou.
Vestiu logo o chapéu e correu para a casa do Professor com a rosa na
mão.
25
A filha do Professor estava sentada perto da porta, enrolando fios de
seda, com o cachorrinho deitado aos pés.
"Você disse que dançaria comigo se eu lhe trouxesse uma rosa
vermelha", falou o Estudante. "Eis a rosa mais vermelha de todo o mundo_
Você deve usá-la hoje à noite junto ao coração quando dançarmos, ela dirá
o quanto eu te amo."
Mas a garota franziu a testa aborrecida.
"Não acho que ela vá combinar com o meu vestido", reclamou. "E além
do mais, o sobrinho do Ministro me mandou joias de verdade e todo mundo
sabe que joias custam mais caro do que flores."
"Pois fique sabendo que você é muito ingrata", respondeu o Estudante
irritado. Dizendo isso, jogou a rosa na rua, ela foi cair numa valeta e uma
carroça passou por cima dela.
"Ingrata!", gritou a moça. "Pois eu lhe digo que você é muito mal-edu-
cado; e, além do mais, quem é você? Apenas um Estudante. Pois eu acho
que você não tem nem uma fivela de prata nos seus sapatos como o
sobrinho do Ministro tem." E dizendo isso ela se levantou e entrou na casa.
"Que coisa mais tola é o amor", disse o Estudante quando a garota se
foi. "Não tem nem sequer metade da utilidade da Lógica, pois não prova
coisa alguma, está sempre predizendo coisas que não irão acontecer e nos
fazendo acreditar em coisas que não são verdadeiras. De fato, não é nada
prático, e como nesse nosso tempo ser prático é tudo, é melhor eu voltar
para a Filosofia e estudar Metafísica."
Retornou então ao seu quarto, puxou um livro grande e empoeirado da
estante e se entregou à leitura.
27
oda tarde, depois que voltavam da escola, as crianças iam brincar no
jardim do Gigante.
Era um jardim grande e maravilhoso, coberto de grama bem verde.
Aqui e ali, por sobre a grama, desabrochavam flores lindas como estrelas.
Havia doze pessegueiros dos quais na Primavera floriam delicados botões
cor-de-rosa e cor de pérola e que no Outono ficavam repletos de frutos
deliciosos. Os pássaros pousavam nas árvores e cantavam tão docemente,
que as crianças até paravam suas brincadeiras para ouvi-los. "Como nós
somos felizes aqui!”, diziam-se elas umas às outras.
Mas um dia o Gigante voltou. Tinha ido visitar seu amigo, o Ogro da
Cornualha,9 com quem havia decidido permanecer por sete anos. Passados
esses sete anos, ele acabou de falar tudo o que tinha para dizer, pois não
tinha lá muito assunto, e então decidiu voltar para o seu próprio castelo.
Quando chegou, viu as crianças brincando no seu jardim.
"O que é que vocês estão fazendo aqui?", gritou com uma voz muito
brava, fazendo as crianças saírem correndo.
"O meu jardim é só meu", berrou o Gigante, "que isso fique bem
entendido de uma vez por todas, e não vou permitir que ninguém venha se
divertir nele a não ser eu mesmo!" Dizendo isso, começou a construir um
muro bem alto ao redor de todo o jardim e nele pregou uma placa.
TODO AQUELE QUE
ULTRAPASSAR
SERÁ
PUNIDO
Ele era um Gigante muito egoísta.
As pobres crianças não tinham mais onde brincar. Tentaram brincar
na rua, mas era muito poeirenta, cheia de pedras e eles não gostavam dela.
Depois das aulas, ficavam circulando ao redor da muralha alta, lembrando e
conversando sobre como era lindo o jardim que ficava ali dentro. "Éramos
tão felizes quando brincávamos lá!"
Veio então a Primavera e por toda parte havia flores em botão e
passarinhos. Só no jardim do Gigante é que ainda era Inverno. Os pássaros
9 A Cornualha é uma região do Sul da Inglaterra de onde vêm e à qual se referem as mais antigas lendas e histórias de fantasia.
T
28
não queriam saber de cantar lá, já que não havia crianças e por isso as
árvores também não floresciam. Até uma linda flor que certa vez pôs a
cabeça por cima da grama, quando viu a placa se sentiu tão triste pelas
crianças, que deslizou de volta para dentro da terra e voltou a dormir.
Os únicos que estavam felizes eram a Neve e o Gelo. "A Primavera
esqueceu esse jardim", diziam, "por isso nós vamos poder permanecer
aqui o ano inteiro." A Neve cobriu toda a grama com seu grande casaco
branco e o Gelo pintou todas as árvores de cinza. Eles então convidaram o
Vento do Norte para ficar com eles. O Vento veio contente. Ele estava todo
coberto de peles e soprava forte o dia inteiro pelo jardim, penetrando pelo
topo das chaminés. "Eis um lugar delicioso", exclamou, “precisamos
convidar a Borrasca para uma visita." Veio então a Borrasca. Todo dia, por
três horas seguidas, ela martelava os telhados do castelo até que várias
telhas se quebrassem e então atacava sem parar o jardim, com toda a
força. Estava sempre vestida de cinza e seu hálito era puro gelo.
"Não posso entender por que a Primavera demora tanto a chegar",
murmurava o Gigante Egoísta, sentado na janela e olhando para seu
jardim gelado e cinzento, "tomara que o tempo mude."
Mas a Primavera não chegava nunca, nem o Verão. O Outono trouxe
frutas douradas para todos os jardins, mas nenhuma ele deu ao jardim do
Gigante. "Ele é egoísta demais", disse. Portanto, era sempre Inverno lá,
onde só o Vento do Norte, a Borrasca, o Gelo e a Neve dançavam entre as
árvores.
Numa certa manhã, o Gigante estava na cama acordado quando ouviu
uma música linda. Soava tão doce aos seus ouvidos, que ele imaginou
serem os músicos do Rei passando por ali. Era só um pintassilgo cantando
perto da sua janela, mas havia tanto tempo que ele não ouvia um pássaro
cantar no seu jardim, que lhe pareceu ser a mais bela melodia do mundo.
Naquele instante a Borrasca parou de dançar sobre a sua cabeça, o Vento
do Norte cessou seus rugidos e um perfume delicioso adentrou a janela
aberta. "Acho que até que enfim a Primavera chegou", exclamou o
Gigante, saltando da cama e correndo para olhar pela janela.
O que foi que ele viu?
Ele teve a mais maravilhosa das visões. As crianças haviam penetrado
por um pequeno buraco que se abrira no muro e estavam sentadas nos
galhos das árvores. Em cada galho que ele podia ver havia uma criança.
As árvores estavam tão contentes de terem as crianças de volta, que se co -
29
bríram de botões e balançavam suavemente seus ramos sobre a meninada.
Os pássaros revoavam por toda parte e batiam as asas de alegria. As flores
se esticavam para olhar sobre a grama e sorriam. Era uma cena linda!
Havia apenas um único canto em que ainda era Inverno. Era o canto
mais distante do jardim, onde estava parado um menino pequeno. Ele era
tão pequenino que não conseguia alcançar os galhos da árvore e por isso
ficava andando ao redor dela, chorando sem parar. A pobre da árvore
estava ainda completamente coberta de gelo e neve, assolada pelo Vento do
Norte que soprava em cheio nela. "Suba, menininho!", insistia a árvore,
vergando seus galhos tão baixo quanto podia. Mas o menino era muito
pequenininho.
O coração do Gigante se derreteu quando ele viu tudo aquilo. "Quão
egoísta eu tenho sido!", desabafou; "agora entendo por que a Primavera
nunca chegava aqui. Eu vou lá pôr aquele garotinho no alto da árvore.
Depois vou derrubar essa muralha e o meu jardim há de ser o jardim de
diversão de toda a criançada para todo o sempre." Ele estava muito triste
mesmo por tudo aquilo que tinha feito.
O Gigante desceu correndo as escadas, abriu bem devagarinho a porta
da frente, saindo para o jardim. Mas quando as crianças o viram, ficaram
tão apavoradas que saíram correndo e o jardim foi tomado pelo Inverno
novamente. Só o menininho não correu, porque seus olhos estavam tão
cheios de lágrimas, que ele não viu o Gigante chegando. Ele se aproximou,
ficou espiando o menino por trás, até que o tomou na palma da mão,
ergueu-o e o colocou no alto da árvore.
No mesmo instante a árvore se encheu de botões, os pássaros
pousaram nela e se puseram a cantar. O pequenino então estendeu seus
braços ao redor do pescoço do Gigante e o beijou. As outras crianças, ao
verem que o Gigante não era mais mau, voltaram correndo, e com elas veio
a Primavera. "O jardim pertence a vocês agora, meninada", anunciou o
Gigante, pegando um enorme martelo e pondo abaixo a muralha. Quando
as pessoas passaram por ali ao meio-dia, a caminho da feira, observaram o
Gigante brincando com as crianças no jardim mais lindo que já se tinha
visto.
Brincaram durante o dia todo até a noitinha, quando então foram
todos se despedir do Gigante.
"Mas onde está o amiguinho de vocês", ele perguntou, "o menino que
eu ergui até a árvore?' Aquele era o preferido dele, pois o havia beijado.
"Nós não sabemos", responderam as crianças, "ele se foi."
31
"Vocês têm que dizer a ele para voltar aqui amanhã", pediu o gigante.
Mas as crianças disseram que não sabiam onde ele morava e nem o tinham
visto antes. Isso deixou o Gigante muito triste.
Todas as tardes, quando deixavam a escola, as crianças vinham brincar
com o Gigante. Mas o menininho que ele tanto adorava nunca mais veio. O
Gigante era muito dedicado a toda a garotada, mas sentia muita falia do seu
primeiro amiguinho e sempre falava dele. "Como gostaria de poder vê-lo de
novo", repetia a toda hora.
Os anos se passaram e o Gigante foi ficando velho e enfraquecido. Já
não podia brincar com as crianças, permanecendo sentado numa enorme
poltrona, de onde se divertia com os folguedos e admirava seu jardim.
"Tenho tantas flores tão bonitas, mas as crianças são as mais lindas de
todas"
Numa manhã de inverno ele olhou pela janela enquanto se vestia.
Agora já não odiava mais o Inverno, pois sabia que o que se passava era
apenas que a Primavera estava adormecida e as flores repousavam.
De repente, ele esfregou os olhos de espanto, olhou e tornou a olhar.
Era sem dúvida uma visão esplêndida. No canto mais distante do jardim
havia uma árvore coberta de flores brancas desabrochando. Os galhos eram
todos dourados e deles pendiam frutos prateados. Ao pé da árvore estava o
menininho que ele tanto amava.
O Gigante correu até a escada cheio de alegria, saindo para o jardim.
Percorreu às pressas todo o gramado até chegar perto da criança. Mas
quando chegou bem perto, seu rosto ficou vermelho de ódio e ele exclamou:
"Quem teve a coragem de te machucar?". Pois nas palmas das mãos do
menino estavam as marcas de dois pregos e outras duas marcas iguais se
viam nos seus pés.
"Quem teve a coragem de te machucar?", gritava o Gigante; "diga-me,
porque eu vou pegar minha maior espada e vou despedaçar quem te fez
isso."
"Não!", respondeu o pequenino, "pois essas são as feridas do Amor."
"Quem é você?', perguntou o Gigante, tomado de um estranho
encantamento que o fez cair de joelhos em frente à criança.
O menino sorriu e lhe disse: "Você um dia me deixou brincar no teu
jardim, hoje eu vou te levar para o meu, que é o Paraíso".
Quando as crianças correram para brincar naquela tarde, encontraram
o Gigante deitado, morto sob a árvore toda coberta de flores brancas.
33
ra o aniversário da Infanta. Ela completava seus doze anos de idade e
o sol brilhava intensamente nos jardins do palácio.
Muito embora ela fosse uma Princesa de verdade e a Infanta da
Espanha, tinha apenas um aniversário a cada ano, como qualquer outra
criança pobre, portanto era uma questão da maior importância para todo
o país que ela tivesse um dia realmente especial nessa ocasião. E o dia era
de fato muito especial. As tulipas listradas e altas se esticavam em suas
hastes, como longas fileiras de soldados, olhando desafiadoras através do
gramado para as rosas e dizendo: "Estamos quase tão esplêndidas quanto
vocês agora". As borboletas cor de maravilha revoavam animadas sem
parar, exibindo o pó dourado de suas asas, visitando as flores uma a uma.
As lagartixas se espichavam das rachaduras das paredes para se
aquecerem na claridade do sol. As romãs rachavam estalando com o calor,
expondo seus corações vermelhos em sangue. Até mesmo os limões de um
amarelo delicado, que pendiam em quantidade das treliças emboloradas e
das arcadas escuras, pareciam ter ganhado uma cor mais viva graças
àquela luz irradiante. As magnólias abriram seus brotos, amplos como
globos de marfim em camadas sucessivas, enchendo o ar de um perfume
doce e intenso.
A Princesinha percorria os terraços para cima e para baixo com seus
amigos, brincando de esconder atrás dos vasos de pedra e das estátuas
cobertas de musgos. Em dias comuns ela só tinha permissão para brincar
com crianças da sua condição, o que significa que ela estava sempre so zi-
nha. Mas seu aniversário era uma exceção e o Rei deu ordens para que ela
convidasse quaisquer crianças amigas, a fim de virem brincar e se divertir
com ela. Havia uma graça imponente nessas crianças espanholas
alinhadas que corriam por todo lado, os meninos com chapéus
emplumados e casacas curtas esvoaçantes, as meninas repuxando as
dobras de seus longos vestidos de brocado e protegendo os olhos do sol
com grandes leques de tons negros e dourados.
A Infanta, porém, era a mais graciosa de todas e a que estava vestida
com o maior requinte, de acordo com a moda sóbria daqueles tempos. Seu
manto era de seda cinza, o vestido tinha mangas longas bufantes e era
todo bordado de prata, o colete era justo com fileiras aplicadas das mais
finas pérolas. Duas pequenas sapatilhas, cobertas com grandes enfeites de
rosas, apontavam debaixo do seu vestido quando ela andava. Também
cor-de-rosa e pérola era o seu amplo leque, quase transparente. No ca-
E
35
belo, que como uma vasta auréola de ouro esmaecido circundava todo o
contorno do rosto pequeno e pálido, ela trazia presa uma rosa branca.
De uma janela no palácio o Rei triste e melancólico os observava.
Atrás dele estava o seu irmão dom Pedro de Aragão, a quem ele odiava e,
sentado ao seu lado, o seu confessor, o Grande Inquisidor10 de Granada. O
Rei estava ainda mais triste que de costume, pois enquanto observava a
Infanta fazendo reverências aos cortesãos Com uma seriedade teatral de
criança, ou enquanto ela ria, atrás do leque, da severidade da Duquesa de
Albuquerque, que sempre a acompanhava, ele pensava na jovem Rainha,
mãe dela. Por um período muito breve, assim lhe parecia, ela tinha vindo
do alegre reino da França e definhado no sombrio esplendor da corte
espanhola, morrendo apenas seis meses após o nascimento de sua filha,
antes de ver as amêndoas brotarem duas vezes no pomar ou antes de ter
colhido os figos que nascem a cada dois anos da velha figueira que ficava
bem no centro do parque, agora totalmente coberto pela grama.
Seu amor por ela havia sido tão imenso, que ele não pôde suportar a
dor de tê-la apartada de si. Ela foi embalsamada por um médico mouro, 11
que em troca de seus serviços teve a vida salva, pois caso contrário, diz-se,
teria sido entregue à Inquisição por suspeita de heresia e práticas
mágicas. Seu corpo ainda repousava no esquife sobre os tapetes na capela
de mármore negro do palácio, exatamente no local em que os monges a
colocaram naquele dia ventoso de março, cerca de doze anos atrás. Uma
vez por mês o Rei, envolto numa capa escura e carregando uma lanterna
nas mãos, entra na capela e se ajoelha ao seu lado, chamando-a: "Mi
reina! Mi reinar.12 Às vezes, quebrando a etiqueta que na Espanha governa
cada ato da vida, impondo limites até mesmo à mágoa de um Rei, ele
segura as mãos pálidas e cobertas de joias numa agonia selvagem de dor e
tema com beijos enlouquecidos acordar o rosto maquiado e frio.
10 O Grande Inquisidor era o chefe do Tribunal da inquisição, uma instituição da Igreja católica destinada a julgar os desvios da doutrina religiosa oficial, que se tornou célebre pela brutalidade dos seus métodos de investigação e condenação dos suspeitos.
11 Mouros era o nome dado aos povos árabes do Norte da África, que após sua conversão ao islamismo participaram da invasão do território hispânico, em 711 d. C., onde se instalariam até serem vencidos pelos Reis Católicos Fernando e Isabel em 1492. Muitos retornaram à sua região de origem, mas uma grande parte deles permaneceu em território espanhol, sendo então forçados a se converter à religião cristã.
12 "Minha rainha! Minha rainha!" Em espanhol no original.
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Hoje ele parecia vê-la de novo, assim como a vira pela primeira vez no
castelo ele Fontainebleau,13 quando ele tinha apenas quinze anos de idade e
ela era ainda mais jovem. Eles foram prometidos um ao outro nessa
ocasião, pelo Núncio Papal, na presença do Rei de França e toda a sua
corte. Ele voltou ao seu castelo do Escorial levando consigo um pequeno
anel de cabelos loiros e a memória de dois lábios infantis se inclinando para
beijar sua mão quando ele subia para a carruagem. Pouco mais tarde
vieram a cerimônia do casamento, realizada brevemente em Burgos, uma
pequena cidade na fronteira dos dois países, e a grande entrada pública em
Madri, com a habitual celebração da missa solene na igreja de La Atocha e
um extraordinário auto-de-fé,14 no qual cerca de trezentos heréticos,15
entre os quais muitos ingleses, foram entregues às autoridades militares
para serem queimados.
Ele certamente a amou como um louco e, muitos acreditavam, até a
ruína de seu país, então em guerra com a Inglaterra peia posse do império
do Novo Mundo.16 Ele quase nunca lhe permitia que saísse de suas vistas.
Por ela, ele esqueceu ou parecia ter esquecido os mais altos assuntos de
Estado. Com aquela terrível cegueira que o amor impõe aos seus servos, ele
deixou de perceber que as complicadas cerimônias, por meio das quais
pretendia agraciá-la, apenas agravavam o estranho mal de que ela sofria.
Quando ela morreu, por um longo tempo ele ficou privado da razão. De
fato, não há dúvida de que ele teria abdicado e se internado no mosteiro
dos Trapistas em Granada, do qual era já Prior, não tivesse ele medo de
deixar a pequena Infanta à mercê de seu irmão. A crueldade de dom Pedro
era notória, mesmo para os padrões da Espanha, e muitos o consideravam
suspeito de ter causado a morte da Rainha ao presenteá-la com um par de
luvas envenenadas por ocasião da visita que ela lhe fizera em seu castelo de
Aragão.
13 O castelo de Fontairiebleau, célebre por sua arquitetura e pelas obras de arte nele reunidas, ficava próximo a Paris e foi por muito tempo a residência favorita dos reis de França.
14 Autos-de-fé eram as cerimônias públicas nas quais o Tribunal da Inquisição promovia o desfile em procissão daqueles que condenara e que culminava com a execução na fogueira dos que haviam recebido a sentença de morte.
15 Nome dado aos que mantêm crenças confrarias à doutrina oficial da Igreja.
16 Referência à guerra entro a Inglaterra e a Espanha em que estava em jogo o controle sobre o continente americano, 1587-8.
37
Mesmo depois dos três anos de luto oficial, que ele ordenara
mediante um decreto real por toda a extensão de seus domínios, nunca
mais admitiu que seus ministros lhe falassem de uma nova aliança
conjugal. Quando o próprio Imperador 17 lhe ofereceu a mão da adorável
Arquiduquesa da Boêmia, sua sobrinha, em casamento, ele mandou os
embaixadores informarem seu Senhor de que o Rei da Espanha já estava
casado com a Dor, e que muito embora ela fosse uma noiva estéril, ele a
amava mais do que a Beleza. Essa resposta custou à sua Coroa as ricas
províncias da Holanda, as quais, sob a instigação do Imperador, se
revoltaram logo em seguida contra ele, sob a liderança de alguns
protestantes fanáticos.18
Toda a sua vida de casado, com as alegrias selvagens e ardentes e a
terrível agonia do final repentino, parecia voltar-lhe hoje, enquanto ele
observava a Infanta brincando no terraço. A filha tinha o mesmo jeito
encantadoramente petulante da Rainha, a mesma maneira voluntariosa de
erguer a cabeça, a mesma boca. de uma curvatura linda e altiva, o mesmo
sorriso maravilhoso — com certeza o vrai sourrim de France —19 ao
lançar olhares rápidos para a janela de quando em quando, ou ao estender
a mão graciosa para que os imponentes cavalheiros espanhóis beijassem.
Mas o riso estridente das crianças irritou seus ouvidos, o brilho
impiedoso do sol zombou de sua dor e um cheiro inebriante de estranhas
especiarias, tais como as usadas pelos embalsamadores, parecia
contaminar — ou era sua imaginação? — o ar daquela manhã radiante. Ele
enterrou a cabeça entre as mãos e quando a Infanta tornou a olhar para
cima, as cortinas tinham sido fechadas, o Rei havia se retirado.
Por um momento seu rosto deu sinais de contrariedade, mas logo ela
sacudiu os ombros resignada. Parecia-lhe natural que, sendo seu
aniversário, ele deveria ficar com ela. Que importância tinham as estúpidas
questões de Estado? Ou será que ele tinha ido para aquela capela escura,
onde as velas estavam sempre acesas e onde nunca a deixavam entrar?
Que tolice dele, agora que o sol brilhava tanto e todo mundo estava tão
17 Referência ao imperador do Sacro Império Romano-Germânico.
18 A Holanda foi unificada no século XIX sob os Duques da Borgonha, por meio dos quais passou, mediante casamentos politicamente arranjados, para o ramo espanhol da famíli a dos Habsburgo. Em 1567 os protestantes holandeses se revoltaram contra o domínio espanhol, consolidando sua independência em 1609.
19 “Autêntico sorriso francês". Em francês no original.
39
alegre! Além do mais, ele iria perder a tourada de faz-de-coma para a qual
os trompetes já estavam sendo tocados, sem falar do teatro de bonecos e
todas as outras brincadeiras divertidas. Seu tio e o Grande Inquisidor
eram muito mais gentis. Tinham vindo ao terraço para cumprimentá-la
solenemente. Ela então empinou a linda cabeça e tomando dom Pedro pela
mão, desceu lentamente as escadas em direção ao pavilhão de seda violeta
erguido no fundo do jardim, seguida pelas outras crianças em estrita
ordem de precedência, indo na frente aqueles que tivessem os nomes mais
compridos.
A procissão de meninos nobres, fantasiados de toureadores, saiu ao
seu encontro. O jovem Conde de Tierra-Nueva, um amigo admiravelmente
elegante de cerca de catorze anos, descobrindo a cabeça com toda a graça
de quem nascera um fidalgo e um grande de Espanha, conduziu-a com
muita cerimônia para uma poltrona de marfim com enfeites dourados
colocada numa plataforma por sobre a arena. As crianças se agruparam
todas ao seu redor, sacudindo os leques e cochichando umas com as
outras. Dom Pedro e o Grande Inquisidor permaneceram de pé, sorrindo,
na entrada da arena. Mesmo a Duquesa — a Camarera-Mayor como era
chamada —, uma mulher magra, de feições duras, com uma grande gola de
ondas engomada, não parecia tão mal-humorada como de costume, e até
uma espécie de sorriso seco apontou no seu rosto enrugado, contraindo os
lábios finos e sem cor.
Foi sem dúvida uma tourada maravilhosa, muito mais encantadora,
pensou a Infanta, que a tourada de verdade a que fora levada para assistir
em Sevilha, na ocasião em que o Duque de Parma viera visitar o seu pai.
Alguns dos meninos galopavam cavalos de pau magnificamente
enfeitados, brandindo longas lanças ornadas de fitas multicoloridas.
Outros corriam a pé, agitando seus casacos vermelhos diante do touro e
saltando por cima da cerca quando ele os atacava. Quanto ao touro, ele
parecia mesmo um touro de verdade, embora fosse feito com uma armação
de vime coberta de couro e, às vezes, insistisse em correr ao redor da
arena nas patas de trás, coisa que um touro verdadeiro jamais sonhou
fazer. E ele apresentou uma luta esplêndida também, as crianças ficaram
tão excitadas que subiram nos bancos, sacudindo seus lenços de renda e
gritando: "Bravo toro! Bravo toro!" com a mesma naturalidade de gente
grande.
40
Ao fim, porém, depois de um longo combate, durante o qual muitos
dos cavalos de pau foram chifrados várias vezes, derrubando seus
cavaleiros, o Conde de Tierra-Nueva pôs o touro de joelhos, obtendo a
permissão da Infanta para dar-lhe o golpe de misericórdia. Ele enfiou sua
espada de madeira no pescoço do animal com tal violência, que a cabeça
voou longe, revelando o rosto sorridente do pequeno Senhor de Lorraine ,
o filho do Embaixador francês em Madri.
A arena foi então fechada sob intensos aplausos e os cavalos de pau
mortos foram retirados solenemente por dois pajens mouros, vestidos de
libré amarela e preta. Após um curto intervalo, durante o qual um
equilibrista francês se apresentou andando sobre a corda, uma companhi a
italiana de bonecos representou a tragédia clássica de Sofonisba no palco
de um pequeno teatro montado para a ocasião. A atuação foi tão boa e os
gestos eram tão cuidadosamente naturais, que ao fim da peça os olhos da
Infanta estavam embaçados de lágrimas. Algumas das crianças chegaram
mesmo a chorar, tendo que ser consoladas com doces. Até o Grande
Inquisidor ficou tão emocionado, que não pôde deixar de dizer a dom
Pedro que lhe parecia intolerável Como coisas feitas simplesmente de
madeira e cera colorida, movidas por meio de cordões, pudessem ser tão
infelizes e destinadas a viver desgraças tão horríveis.
Veio em seguida um mago africano trazendo uma cesta baixa e
achatada coberta com um pano vermelho. Ele a colocou no centro da
arena, tirou de seu turbante uma curiosa flauta de bambu e se pôs a tocar.
Num curto instante o pano começou a se mover e, à medida que o som da
flauta se tornava mais e mais estridente, duas serpentes verdes e douradas
puseram fora suas cabeças estranhas, em forma de ponta de lança,
balançando e se erguendo de acordo com a evolução da música, assim
como as plantas balançam quando estão na água. As crianças tremiam de
medo ao verem as cabeças pintadas das serpentes e suas línguas
dardejantes. Ficaram muito mais alegres quando o mágico fez uma
pequenina laranjeira crescer na areia, dar lindos brotos e logo encher -se
de laranjinhas de verdade. Quando ele tomou o leque da filhinha da
Marquesa de Las Torres e o transformou num pássaro azul, que se pôs a
revoar pelo pavilhão e a cantar, a surpresa e o contentamento das crianças
não tinham mais limites.
Elas se deliciaram também com o solene minueto apresentado pe-
los meninos dançarinos da igreja de Nuestra Señora del Pilar. A Infanta
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nunca tinha visto essa cerimônia maravilhosa, que ocorre em maio de cada
ano, em frente ao altar principal da Virgem, em honra desta. De fato,
nenhum dos membros da família real havia entrado na grande catedral de
Saragoça desde que um padre louco, que muitos supunham estar a serviço
da Rainha Elizabeth da Inglaterra, tentou administrar uma hóstia
envenenada ao Príncipe das Astúrias. Ela portanto só conhecia de ouvir
falar a "Dança de Nossa Senhora", como era chamada, que considerou sem
dúvida muito bonita. Os meninos, em trajes antigos de veludo branco,
vestiam curiosos chapéus de três pontas com bordas prateadas e grandes
penachos de plumas de avestruz. A brancura deslumbrante de suas roupas,
que brilhava quando eles se moviam sob o sol, era ainda mais acentuada
pelos seus rostos morenos e cabelos negros compridos. Todos estavam
fascinados pela dignidade grave com que eles se moviam durante as
figurações complicadas da dança, pela graça elegante de seus gestos suaves
e reverências solenes. Quanto terminaram a dança, eles cumprimentaram a
Infanta tirando os chapéus emplumados. Ela respondeu ao cumprimento
com toda a cortesia e fez um voto de que mandaria uma grande vela de cera
ao santuário de Nossa Senhora do Pilar, em agradecimento pelo prazer que
eles lhe haviam proporcionado.
Um grupo elegante de egípcios — como eram chamados os ciganos
naqueles dias — entrou então para a arena, sentando-se em círculo com as
pernas cruzadas, pondo-se a tocar suas citaras, mexendo o corpo
conforme a música e murmurando um zumbido contínuo, quase mais
baixo do que a respiração, numa melodia delicada como um sonho.
Quando captaram o olhar de dom Pedro, fizeram caretas de ódio para ele e
alguns ficaram horrorizados, pois poucas semanas antes ele havia
enforcado dois homens de sua tribo por feitiçaria na praça do mercado de
Sevilha. A Infanta porém os encantou, reclinando-se e olhando-os sobre o
leque, com seus enormes olhos azuis. Eles ficaram convencidos de que
alguém tão adorável como ela jamais cometeria qualquer crueldade contra
quem quer que fosse. Por isso continuaram com a música suave, apenas
tocando as cordas das citaras com suas unhas longas e pontudas. A cabeça
deles foi pendendo, como se estivessem caindo no sono.
De repente, com um grito tão estridente que fez as crianças salta-
rem de susto e dom Pedro agarrar o cabo de ágata de sua adaga,
eles se puseram de pé rodopiando como loucos pela arena, tocando seus
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pandeiros e gritando alguma canção selvagem de amor na sua estranha
língua gutural. E então, conforme um outro sinal, sentaram-se no chão de
novo e ficaram como que paralisados, só se podendo perceber o som de
suas mãos roçando as cordas das citaras, em meio ao completo silêncio.
Depois de repetirem essa sequência algumas vezes, desapareceram por um
breve momento, retornando logo em seguida com um urso marrom peludo
puxado pela corrente e carregando uma porção de macaquinhos berberes
suspensos nos ombros. O urso se equilibrou de ponta-cabeça com a maior
compostura e os macaquinhos fizeram as acrobacias mais divertidas, sob a
direção de dois meninos ciganos que pareciam ser seus mestres. Lutaram
com espadas, deram tiros de pistola, fizeram exercícios de coordenação
militar exatamente iguais aos da guarda pessoal do Rei. Nem é preciso
dizer que os ciganos foram o maior sucesso.
Mas a parte mais divertida das brincadeiras da manhã foi sem dúvida
a dança do Anãozinho. Quando ele rolou para dentro da arena,
chacoalhando sua imensa cabeça deformada de um lado para o outro, as
crianças se desmancharam em urros de gargalhadas. A própria Infanta riu
tão descontroladamente, que a Camarera se viu obrigada a lembrar-lhe
que, embora houvesse precedentes na Espanha de uma filha de Rei
chorando diante de seus iguais, nunca houvera caso de uma Princesa de
sangue real gargalhando daquele modo diante de outros que lhe eram
inferiores em nascimento.
Mas o fato é que o Anão era mesmo irresistível. Até na corte da
Espanha, que era notável por cultivar a paixão pelo horrível, um pequeno
monstro tão fantástico como aquele jamais fora visto. Além do mais,
aquela era a sua primeira aparição em público. Ele fora descoberto no dia
anterior, correndo selvagemente pela floresta, por dois nobres que
caçavam numa parte distante da mata que cercava a cidade. Eles o
carregaram para o Palácio a fim de ser oferecido como uma surpresa para
a Infanta. Seu pai, um carvoeiro pobre, ficou até feliz de se ver livre assim
daquela criança tão feia e inútil.
Talvez a coisa mais divertida nele fosse mesmo a completa
inconsciência quanto à própria aparência grotesca. De fato o Anãozinho
parecia estar feliz e cheio do melhor ânimo. Quando as crianças riam, ele ria
tão alegre e descomedidamente quanto qualquer um deles. Ao fim de cada
dança, saracoteava a cabeça em cumprimento ao público, um movimento
mais engraçado que o outro, e ficava rindo e se chacoalhando como se
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ele próprio fosse um deles e não aquela coisa monstruosa que a Natureza,
num acesso de humor, havia criado para que as pessoas rissem.
Quanto à Infanta, ela o deixou absolutamente fascinado. O
Anãozinho mal conseguia desprender os olhos dela, parecendo dançar
apenas para ela. Ao final da apresentação, lembrando-se ele como vira as
grandes senhoras lançarem seus buquês para Caffarelli, o famoso soprano
italiano que o Papa enviara de seu próprio coro para Madri a fim de curar
a melancolia do Rei pela doçura de sua voz, ela tirou do cabelo a bela rosa
branca e, em parte como gracejo e em parte para provocar a Camarera,
atirou-a na arena, com o mais delicioso sorriso. O Anãozinho levou a coisa
toda muito a sério, apertando a flor contra os lábios grossos e rústicos,
pondo a mão sobre o coração e ajoelhando-se numa das pernas diante da
Infanta, com um sorriso de orelha a orelha, enquanto seus olhinhos
brilhantes faiscavam de prazer.
Isso tudo desconcertou de tal modo a atitude cerimoniosa da Infanta,
que ela se manteve rindo por um longo tempo após o Anãozinho ter
deixado a arena, pedindo ao seu. tio que a dança fosse imediatamente
repetida A Camarera, contudo, alegando que o sol estava muito quente,
decidiu que seria melhor Sua Alteza se recolher de volta ao palácio, onde
uma festa maravilhosa já havia sido preparada para ela, incluindo um
autêntico bolo de aniversário com suas iniciais gravadas no topo em
açúcar colorido e uma linda bandeirola prateada tremulando por cima. Em
acatamento, a Infanta levantou-se com a maior compostura, ordenando
que o Anãozinho deveria dançar de novo para ela após as horas da sesta e,
dirigindo agradecimentos ao jovem Conde de Tierra-Nueva por sua
encantadora recepção, retornou aos seus aposentos, seguida das outras
crianças na mesma ordem em que haviam entrado.
Quando o Anãozinho ouviu que deveria dançar uma segunda vez para
a Infanta, por ordens expressas dela mesma, ficou tão orgulhoso de si, que
saiu correndo para o jardim, beijando a rosa branca num absurdo êxtase
de prazer e fazendo os mais toscos e desajeitados gestos de alegria.
As Flores ficaram indignadas com seu atrevimento em intrometer-se
no belo lar delas; por isso, quando o viram cabriolando pelos passeios e
abanando os braços sobre a cabeça, não contiveram mais seus
sentimentos.
"Ele é realmente feio demais para que lhe seja permitido brincar em
qualquer lugar onde estejamos", protestaram as Tulipas.
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"Ele deveria tomar suco de papoula e dormir por mil anos", disseram
os grandes Lírios vermelhos, ficando bravos e rubros como ferro em brasa.
"Ele é um perfeito horror?”, gritou o Cacto. "Pois é torto e
rechonchudo, e sua cabeça está completamente fora de proporção com as
pernas. Ele me faz ficar todo arrepiado de raiva e se chegar perto de mim
vou espetá-lo com meus espinhos."
"E vejam lá que ele pegou um de meus mais belos botões", exclamou
a Roseira Branca. "Eu mesma o dei esta manhã ã Infanta, como presente
de aniversário, e ele o roubou dela." E se pôs a acusar: "Ladrão, ladrão.
ladrão!", com toda a força da sua voz.
Até mesmo os Gerânios vermelhos que não costumavam dar-se ares,
sendo por isso considerados mal relacionados, tiveram um colapso quando
o viram. As Violetas observaram com humildade que ele ao menos era uma
criatura espontânea, mas que isso de nada lhe valia, pois, acrescentaram
com algum tanto de justiça, não se pode admirar uma pessoa por ser
incurável. Além do mais, algumas Violetas sentiram que a feiúra do
Anãozinho era tão manifesta que ele faria bem melhor se aparentasse um
toque de tristeza ou se ao menos fosse retraído, em vez de ficar saltitando
alegremente e se entregar à mais tola e grotesca conduta.
O Relógio de Sol, que era um indivíduo notável, tendo em certa
opor-tunidade dito as horas para ninguém menos que o Imperador
Carlos V em pessoa, ficou por sua vez tão espantado com a aparência do
Anãozinho, que quase se esqueceu de marcar dois minutos inteiros com
seus dedos longos e ensombreados. Não pôde se conter e disse à grande
Pavoa branca como leite, tomando sol empinada na balaustrada, que
todos sabiam como os filhos de Reis eram Reis e os filhos dos carvoeiros
eram carvoeiros e que era um absurdo pretender que assim não fosse. A
Pavoa concordou plenamente com aquela observação, insistindo:
"Decerto que sim, decerto que sim", com uma voz tão alta e tão
esganiçada, que o peixe dourado, que vivia na fonte ornamental de água
fresca, pôs a cabeça para fora da água e perguntou aos grandes Tritões de
pedra que raios se passava.
Os Pássaros, porém, de algum modo gostavam dele. Sempre o viam
na floresta, dançando para todo lado como um duende que põe as fo-
lhas em redemoinho ou acocorado no oco de algum carvalho velho,
dividindo suas nozes como os esquilos. Não ligavam nem um pouco que
fosse feio. Pois se até o próprio Rouxinol, que canta tão docemente nos
bosques de laranjeiras à noite, fazendo a Lua curvar-se para ouvi-lo, não
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é lá grande coisa para se olhar! Além do mais, ele havia sido gentil para
com eles naquele inverno terrivelmente frio. Quando não havia frutas
silvestres nas árvores, o chão estava duro como ferro e os lobos chegavam
até bem perto dos portões da cidade procurando o que comer, o
Anãozinho não se esquecia nunca deles, distribuindo-lhes nacos de sua
pequena fatia de pão escuro e dividindo com eles tudo o que tivesse no seu
pobre café da manhã.
Eles portanto se puseram a voar e revoar ao seu redor, tocando-lhe
de leve as bochechas com suas asas quando passavam e cantarolando uns
para os outros. O Anãozinho ficou tão contente que não se conteve e lhes
exibiu a bela rosa branca, dizendo que fora a própria Infanta quem lhe
havia dado aquele prêmio, porque ela o amava.
Eles não entendiam coisa alguma do que ele dizia, mas isso não
importava, pois inclinavam a cabeça para o lado e faziam uma cara séria, o
que é quase o mesmo que entender alguma coisa e é muito mais fácil.
As Lagartixas também tornaram uma enorme simpatia por ele.
Quando, cansado de correr para todo lado, ele se adiou na grama para
descansar, elas se puseram a brincar e a fazer folia por cima dele,
procurando diverti-lo da melhor maneira que podiam. "Nem todos podem
ser tão bonitos quanto as Lagartixas", diziam, "seria esperar muito. E
ainda que pareça absurdo dizer isso, ele afinal de contas não é tão feio
assim, desde que, claro, a gente feche os olhos e não olhe para ele." As
Lagartixas sempre foram filosóficas por natureza, sentando-se
frequentemente por horas a fio todas juntas para pensar, quando nada
havia para fazer ou quando o tempo estava chuvoso demais para se sair.
As Flores, porém, estavam excessivamente incomodadas com o
comportamento das Lagartixas e dos Pássaros. "Isso só demonstra",
comentavam, "que efeito mais vulgar têm toda essa correria e revoada.
Gente bem-educada sempre permanece exatamente no mesmo lugar, assim
como nós. Ninguém nunca nos viu saltitando pelos passeios Ou galopando
como loucas pelo gramado, correndo atrás das libélulas. Quando queremos
uma mudança de ares, nós o indicamos ao jardineiro e ele nos repõe noutro
canteiro. Esse é um procedimento cheio de dignidade, como deve ser. Já
Pássaros e Lagartixas não têm senso de compostura, e para falar a verdade,
Pássaros não têm nem mesmo endereço fixo. Eles são vagantes como os
ciganos e deveriam ser tratados exatamente da mesma maneira."
Empinaram então seus narizes, assumindo um ar arrogante e ficaram
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felizes da vida quando viram O Anãozinho correr capengando para fora do
gramado, passando pelo terraço em direção ao palácio.
"Ele devia mesmo ser mantido dentro de casa pelo resto da sua vida”,
murmuraram, "Olha só a corcunda nas costas dele e as pernas tortas" E
puseram-se a sorrir umas para as outras.
O Anãozinho. porém, nem se dava conta disso. Adorava
imensamente os Pássaros e as Lagartixas e achava as Flores as coisas
mais maravilhosas de todo o mundo, exceto, é claro, a Infanta. Mas ela
havia lhe dado a linda rosa branca, ela o amava e isso fazia toda a
diferença. Como gostaria de voltar a estar com ela. Ela o poria do seu
lado direito, iria lhe sorrrir e ele nunca mais sairia do lado dela. A
Infanta seria sua companheira de brincadeiras e ele lhe ensinaria todos
os truques fantásticos que conhecia.
Pois embora nunca houvesse estado num palácio antes, sabia um
monte de coisas maravilhosas. Sabia fazer gaiolinhas de caniço dentro das
quais os grilos cantavam e montar com bambus de diferentes tamanhos a
flauta que Pà20 gosta de ouvir. Conhecia o canto de cada pássaro, sabia
chamar o canário do alto das árvores ou a garça do lago. Conhecia as
pegadas de cada animal, podia até seguir o rastro da lebre, embora fossem
tão delicados os sinais de suas patas, e reconhecia a pista do urso, deixada
pelas folhas amassadas. Conhecia todas as danças do vento, a dança
maluca em traje vermelho do outono, a dança da luz sobre o trigo com
sandálias azuis, a dança com a coroa de Flores brancas da neve do inverno
e a dança dos brotos dos pomares na primavera.
Sabia onde os pombos silvestres faziam seus ninhos e, certa vez,
quando um caçador pegou os pais deles numa armadilha, ele mesmo
criou os pombinhos, construindo um pequeno pombal entre os galhos de
um olmo podado. Eles eram bem mansinhos e todas as manhãs vinham
comer na sua mão. Ela os amaria e também aos coelhos, que viviam
correndo entre as enormes samambaias, e às gralhas com suas penas cor
de aço e seu bico preto, e aos porcos-espinhos que se enrolavam virando
bolas de espetos, e às tartarugas grandes e sábias, que se arrastavam
sacudindo a cabeça e mordiscando as folhinhas em broto. Isso mesmo , ela
20 Antigo deus grego das florestas, dos pastos, rebanhos e pastores. Era representado com a parte superior do corpo igual à de um homem e a parte inferior igual à de um bode.
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tinha que ir à floresta brincar com ele. Ele lhe ofereceria sua caminha e
ficaria de guarda na janela até o alvorecer para que os gamos selvagens não
fossem ameaçá-la e os lobos solitários não viessem uivar muito perto da
cabana. Ao amanhecer, bateria de leve na janela para acordá-la e eles
sairiam para dançar a céu aberto o dia inteiro.
A vida não é nem um pouco solitária lá na floresta. Às vezes um Bispo
passava montado na sua mula branca, lendo um livro todo colorido. Às
vezes eram os falcoeiros que passavam, com seus capuzes de veludo verde,
jaquetas de couro curtido de veado, carregando falcões encapuzados e
empoleirados nos pulsos. Na época da colheita vinham os pisadores de
uvas, com suas mãos e pés avermelhados, coroas de heras lustrosas na
cabeça, carregando bolsas de couro de onde pinga o vinho. Os carvoeiros
se sentavam ao redor de seus imensos braseiros à noite, observando as
toras de madeira irem lentamente virando brasa no fogo e assando
castanhas nas cinzas. Os salteadores saíam de suas cavernas e iam se
divertir com eles.
Houve uma vez ainda em que ele viu uma linda procissão se
estendendo pela longa estrada que leva a Toledo. Os monges iam na frente
cantando docemente, carregando estandartes de cores brilhantes e cruzes
douradas. Atrás deles, com mosquetes e lanças, iam os soldados. Em meio
aos milicianos, caminhavam três homens descalços, vestidos com
estranhas túnicas amarelas recobertas de estampas misteriosas, que
carregavam velas acesas nas mãos.
Havia, portanto, muita coisa a ser vista na floresta. Quando ela se
cansasse, ele procuraria um leito de musgos onde ela pudesse se deitar, ou
a carregaria nos braços, pois era muito forte, embora soubesse que não era
alto. Ele lhe trançaria um colar de morangos silvestres dos mais
vermelhos, que fariam uma linda combinação com as framboesas
bordadas de branco no seu vestido. Quando ela se cansasse deles, poderia
jogá-los fora, pois ele encontraria outros. Ele lhe traria lírios, anêmonas
úmidas de orvalho e pequeninos vaga-lumes para brilharem como estrelas
no ouro-pálido dos cabelos dela.
Mas onde estava ela? O Anãozinho perguntou à rosa branca, mas
ela não lhe respondeu. O palácio todo parecia caído no sono e mesmo
onde as venezianas não tivessem sido fechadas, cortinas pesadas haviam
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sido corridas diante das janelas para cobrir a claridade. Ele caminhou por
toda parte procurando um jeito de entrar e acabou encontrando num canto
fechado uma portinhola que fora deixada aberta. Penetrou pela pequena
porta e se viu num esplêndido salão, ainda mais magnifico, assim lhe
pareceu, do que a própria floresta. Havia tanto brilho por todo lado e até
mesmo o chão era feito de pedras multicoloridas, arranjadas num padrão
geométrico. A pequena Infanta, porém, não estava lá, apenas umas belas
estátuas brancas que o observavam do alto de seus pedestais de jaspe, com
tristes olhos vazios e lábios estranhamente sorridentes.
No fundo do salão pendia uma cortina de veludo negro ricamente
bordada, salpicada de sóis e estrelas, as alegorias preferidas do Rei,
bordadas na cor que ele mais gostava. Talvez ela estivesse escondida atrás
da cortina? Fosse como fosse, ele iria tentar de qualquer jeito.
Caminhou devagarinho na ponta dos pés até lá e puxou a cortina. Não
o que havia ali era um outro salão, que ele achou ainda mais bonita do que
aquele onde estivera antes. As paredes estavam cobertas de gobelinos
verdes estampados, peças preciosas de tapeçaria feitas à mão,
representando cenas de caça, obras de artistas flamengos, que
despenderam mais de sete anos na sua confecção. Aquele havia sido outrora
o quarto de João, o louco, tal como ficou conhecido aquele Rei que era tão
apaixonado pelas imagens da caça na tapeçaria, que sempre em seus
delírios tentava montar nos grandes cavalos empinados ou puxar para fora
o cervo atacado pelos cachorros e que, tocando a trompa de caça, investia
com sua espada contra os jovens gamos e corças disparados em fuga. O
salão era agora utilizado para as reuniões do Conselho, a mesa no centro
estava cheia das pastas vermelhas dos ministros, com as tulipas douradas
da Espanha estampadas nas capas, além das armas e emblemas da família
reinante, a casa dos Habsburgo.21
O Anãozinho olhou maravilhado ao seu redor, meio assustado de
continuar. Aqueles cavaleiros estranhos e silenciosos. que galopavam
velozmente pelas longas clareiras sem fazer nenhum ruído, traziam-lhe
recordações dos terríveis fantasmas sobre os quais ele ouvira os carvoeiros
21 Os Habsburgo eram uma família nobre de origem alemã, que adquiriu proeminência em meio à aristocracia europeia desde o século XI, assumindo a regência em várias regiões, como o Sacro Império Romano-Germânico, a Espanha, Portugal, os Países Baixos, entre outras.
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Falarem, os Comprachos, que só caçavam À noite e que se encontrassem
um homem, o transformavam num cervo e depois o caçavam. Mas ele se
lembrou da bela Infanta e readquiriu coragem. Queria encontrá-la a sós e
dizer-lhe que também a amava. Talvez ela estivesse no outro quarto logo à
frente.
Correu através do salão, pisando sobre a maciez dos tapetes mouros e
abriu a porta. Não? Uma vez mais ela não estava lá. O quarto estava
totalmente vazio.
Era um salão do trono usado para receber embaixadores estrangeiros
quando o Rei lhes concedia audiências pessoais, o que ultimamente era
muito raro. Aquele era o mesmo salão em que, muitos anos antes, apare-
ceram os enviados da Inglaterra a fim de acenar os preparativos para o
casamento de sua Rainha, naquele tempo uma das soberanas católicas da
Europa, com o filho mais velho do Imperador da Espanha.22
Os cortinados eram de couro de Córdoba filetado a ouro e um pesado
lustre dourado, com ramificações para trezentas velas, pendia do teto
branco e negro. Sob um amplo dossel de tecido dourado, em que estavam
bordados com pequenas pérolas os leões e torres de Castela, ficava o trono,
coberto por um rico manto de veludo negro com aplicações de tulipas
prateadas e franjas de prata e pérolas. No segundo degrau do trono estava
depositada a almofada de ajoelhar-se da Infanta, envolta em brocado de
prata. Mais abaixo, já fora da cobertura do dossel, ficava a poltrona do
Núncio Papal, único autorizado a permanecer sentado na presença do Rei
durante as cerimônias públicas Na sua frente, sobre um tamborete, ficava
exposta a mirra de Cardeal usada pelo Núncio nas solenidades, com suas
faixas laterais trançadas caindo até o chão.
Na parede que ficava de frente para o trono, pendia um retrato em
tamanho natural do Imperador Carlos V, que fora um dos mais poderosos
regentes da casa dos Habsburgo, em uniforme de caça, com um enorme
cão de guarda ao seu lado. Havia também uma pintura de seu filho Filipe
II de Espanha, recebendo o juramento de fidelidade dos holandeses, que
ocupava uma das paredes laterais. Em meio às janelas ficava um armá-
rio do mais negro ébano, incrustado com placas de marfim, no topo das 22 Referência à rainha Maria I da Inglaterra, que se casou com Filipe II de Espanha, filho mais velho do imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Carlos V, da família Habsburgo.
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quais haviam sido gravadas as figuras da Dança da morte de Holbein,23 ao
que se dizia pelas mãos do famoso mestre alemão em pessoa.
O Anãozinho, porém, pouco ligava para toda essa magnificência. Ele
não teria dado a sua rosa em troca de todas as pérolas do dossel, nem
sequer uma única pétala da rosa pelo próprio trono. Tudo o que ele queria
era ver a Infanta, antes que ela voltasse ao pavilhão, para lhe perguntar se
queria ir embora com ele depois de terminada a sua dança. Aqui no palácio,
o ar era pesado e sufocante, mas na floresta o vento soprava livre, os raios
do sol com suas carinhosas mãos de ouro afagavam as folhagens.
Havia também flores na floresta, talvez não tão espetaculares quanto
aquelas do jardim, mas com certeza com um perfume muito mais doce.
Jacintos no início da primavera, que inundavam com ondas púrpuras o
fundo dos vales frios e as colinas relvadas. Prímulas amarelas que se ani-
nhavam em ramadas por entre as raízes retorcidas dos carvalhos. Celidô-
nias irradiantes, verônicas azuis e íris lilases e douradas. Havia ainda os
Liquens acinzentados que subiam pelas nogueiras e os dentes-de-dragão
que vergavam sob o peso de suas corolas carregadas de mel e dos enxames
de abelhas que vinham disputá-lo. O castanheiro tinha seu topo coberto de
estrelas e o espinheiro suas pálidas luas de beleza. Sim, claro que ela iria, se
apenas ele conseguisse encontrá-la! Ela iria para a bela floresta e pelos dias
afora ele dançaria para o deleite da Infanta. Um sorriso acendeu o brilho de
seus olhos só de ele pensar nisso e o Anãozinho avançou para o salão
seguinte.
De todos os salões, este era o mais luminoso e o mais bonito. As paredes
estavam cobertas de seda de Lucca cor-de-rosa, estampada com pássaros e
pontilhada de delicados filetes de prata. A mobília era de prata maciça,
enfeitada com barras decoradas de ramalhetes floridos e cupidos
esvoaçantes. Em frente às duas grandes lareiras havia amplas telas bordadas
com papagaios e pavões. O chão, que era de ônix verde como o mar, parecia
se estender indefinidamente na distância. Ele não estava sozinho. De pé, sob
o umbral da porta, no outro extremo do salão ele viu uma pequena criatura
que olhava para ele. Seu coração estremeceu, um suspiro de alegria brotou
em seus lábios e ele se moveu na direção em que estava a luz do sol. No
23 Hans Holbein (1497-1543), dito o Moço, foi um grande pintor alemão que trabalhou a maior parte de sua vida na Inglaterra.
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mesmo instante, a outra figura se moveu da mesma forma e ele pôde vê-la
plenamente.
A Infanta! Era um monstro, o mais grotesco monstro que ele jamais
vira. Não propriamente formado, como as outras pessoas, mas corcunda, de
braços e pernas tortas, uma cabeça enorme com a língua pendurada para
fora e uma juba de cabelos negros. O Anãozinho franziu o rosto e o monstro
franziu também. Ele riu e a criatura também riu, pondo as mãos na cintura
como ele próprio havia posto. Ele se inclinou fingindo fazer uma reverência
e o outro se abaixou da mesma forma. Ele caminhou na direção da figura e
ela veio na direção dele igualmente, imitando os mesmos passos que ele
dava e parando quando ele parou. Ele gritou animado e correu para a
frente, estendendo a mão até tocar a mão do monstro. que era fria como o
gelo. Ele ficou com medo, fez um amplo movimento com a mão diante de si
e a mão do monstro seguiu a sua ao mesmo tempo. Tentou forçar sua
passagem adiante, mas alguma coisa lisa e dura o impedia. O rosto do
monstro estava agora colado ao seu e parecia tomado de horror. Ele afastou
os cabelos que lhe caíam sobre os olhos e a criatura o imitou. Ele se pôs a
bater nela e ela lhe retornava cada golpe contra o seu punho. Fez caretas
para ela, que lhe fez caretas também. Afastou-se dela e ela se afastou dele
na mesma hora.
O que será isso? Pensou por um momento e olhou ao redor para o
restante do salão. Era estranho, mas tudo parecia ter seu duplo nessa
parede invisível como água cristalina. Sim, quadro por quadro, móvel por
móvel, tudo era repetido. O Fauno24 adormecido, que ficava num vão junto
à porta de entrada, tinha o seu irmão gêmeo sonhador. A Vênus de prata,
que brilhava sob a luz do sol, estendia seus braços para uma outra Vênus25
tão encantadora quanto ela.
Será que era o Eco? Ele o tinha chamado certa vez no vale, e recebeu
em resposta palavra por palavra. Será que ele poderia duplicar a vista assim
como duplicava a voz? Será que ele poderia criar um outro mundo, em tudo
igual ao mundo real? Será que a sombra das coisas poderia ter cor, vida e
movimento? Será que...?
24 Os faunos eram divindades rurais da mitologia grega, representados como homens com orelhas, chifres, cauda e patas de bode.
25 Deusa do amor e da beleza para os antigos romanos, também identificada com as flores, jardins e a primavera.
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Ele começou a se mover de novo, pegando a rosa branca que estava
no seu peito, virando-se e beijando-a. O monstro tinha uma rosa também,
pétala por pétala idêntica à sua! Pôs-se a dar-lhe beijos como os que ele
dava e a apertou contra o coração com gestos horríveis.
Quando se deu conta da verdade, soltou um grito de desespero e caiu
soluçando no chão. Ele então é que era disforme e corcunda, repugnante à
vista e grotesco. Era ele mesmo o monstro e dele é que as crianças riam. A
Princesinha que ele achou que o amava, ela também apenas zombava da
sua feiúra e se divertia com seus braços e pernas tortas. Por que não o
tinham deixado ficar na floresta, onde não havia espelhos para lhe dizer
quão asqueroso ele era? Por que seu pai não o havia matado, em vez de
vendê-lo para ser exposto à vergonha? Lágrimas quentes rolaram pelas
suas faces e ele destruiu a rosa em pedaços. O monstro desajeitado fez a
mesma coisa e atirou as pétalas para todo lado. Ele se arrastou pelo chão e
quando olhou para a criatura, ela o observava com um rosto sufocado pela
dor. Afastou-se rastejando, para não ver aquilo, cobrindo os olhos com as
mãos. Rastejou. como um animal ferido, em direção à sombra e ficou
estendido ali, gemendo.
Naquele mesmo momento a Infanta e seus companheiros entraram
por uma janela aberta e, quando viram o Anãozinho esticado no chão,
batendo no assoalho com os punhos fechados, da maneira mais estranha e
exagerada, explodiram em gargalhadas e fizeram um círculo ao redor dele
para olhá-lo de perto.
"A dança dele foi muito engraçada", disse a Infanta, "mas esse
número agora é mais engraçado ainda É quase tão bom quanto os
bonecos, mas claro que não é tão natural quanto eles." Agitou
rapidamente seu grande leque e se pôs a aplaudir.
Mas o Anãozinho jamais olhava para cima. Seus soluços foram
ficando mais e mais fracos e de repente ele deu um suspiro curioso,
contraindo-se todo. Tornou a cair prostrado e não se mexeu mais.
"Essa foi demais”, gritou a Infanta depois de rir muito; "mas agora
você tem que dançar para mim."
"É isso mesmo", gritaram as outras crianças, "você tem que se
levantar e dançar, porque você é tão esperto quanto os macacos berberes e
muito mais ridículo."
Mas o Anãozinho não respondia.
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A Infanta bateu o pé e chamou seu tio, que caminhava pelo terraço
com o Tesoureiro, lendo alguns despachos que acabavam de chegar do
México, onde o Santo Ofício havia sido recentemente estabelecido “Meu
anãozinho engraçado está rabugento", reclamou, "você tem que acordá-lo e
mandá-lo dançar para mim."
Eles sorriram um para o outro, saltaram para dentro do salão e lá dom
Pedro se abaixou, pondo-se a estapear o rosto do Anão com sua luva
bordada. "Você tem que dançar", ordenava, "seu monstrinho." "Você tem
que dançar. A infanta da Espanha e das Índias quer se divertir."
Mas o Anãozinho não se mexia.
"Vou chamar um feitor com chicote", berrou dom Pedro irritado,
saindo para o terraço. O Tesoureiro, porém, ficou sério e ajoelhou-se ao
lado do Anãozinho, tocando-o sobre o coração. Passados alguns instantes
ele chacoalhou os ombros, levantou-se e fazendo uma profunda reverência
para a Infanta, disse-lhe:
"Mi bella Princesa, seu anãozinho engraçado nunca mais dançará. É
uma pena, porque ele é tão feio que certamente faria o Rei sorrir."
"Mas por que é que ele não vai mais dançar?", perguntou a Infanta
sorrindo.
"Porque seu coração se partiu", respondeu o Tesoureiro.
A Infanta fez uma careta de raiva, curvando os cantos dos lábios
vermelhos como pétalas de rosas num gesto de absoluto desprezo. “Daqui
por diante ordeno que todos os que forem enviados para me divertir não
tenham coração", gritou, e saiu correndo para o jardim.
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Oscar Wilde (1854-1900), nascido na Irlanda, foi um dos maiores
escritores da língua inglesa. Ele adorava especialmente contos de fadas e
as histórias antigas que as pessoas do povo gostavam de contar e de ouvir
contar. Sua mãe e seu pai foram grandes contadores dessas histórias
antigas e Constance Lloyd, a mulher com quem ele se casou, também. Por
isso, desde que tiveram seus dois filhos. Cyril e Vyvyan, Oscar Wilde se
pós a inventar histórias para eles, que depois foram escritas e viraram
livros.
Mas o escritor não gostava apenas das histórias do povo. Na época
em que se dedicou a escrever. várias máquinas estavam sendo inventadas
e muitas pessoas tinham que abandonar as plantações e os animais que
criavam para irem trabalhar em fábricas nas grandes cidades ou nas minas
de carvão. O trabalho nas fábricas ou nas minas era duro, longo,
cansativo, perigoso e sobretudo muito mal pago. As mulheres e as crianças
eram postas para trabalhar tanto ou mais que os homens, durante o dia ou
à noite, e seu salário era ainda mais baixo. Oscar Wilde, apesar de
pertencer a uma família que vivia confortavelmente, se ressentia dos
sofrimentos e da aflição dos trabalhadores, revoltando-se contra um
mundo que suportava viver com tanta desigualdade e tanta injustiça.
Por isso, juntamente com alguns professores e colegas da
Universidade de Oxford, na Inglaterra, onde estudava, eles decidiram usar
de todos os meios, inclusive da arte de escrever e contar historias, para
denunciar essas tristes condições. Só assim, julgavam eles, seria possível
despertar nas pessoas o sentimento de amor fraternal, junto com o qual
viriam o respeito e o desejo de ajudar o próximo.
Esse é o motivo por que Oscar Wilde, que conhecia tão bem as
histórias antigas contadas pelo povo, resolveu narrá-las de um jeito
diferente. Como o mundo dessas histórias tinha mudado e não existia
mais, ele usou sua imaginação para transformá-las a fim de que elas se
aplicassem às condições do seu próprio tempo. A chave desse jeito novo de
contar histórias era a ironia, um modo de falar das coisas dando a
entender que elas são o contrário daquilo que parecem ser. É por isso que
o Príncipe Feliz é na verdade muito triste ou que o Anãozinho deformado c
selvagem é uma pessoa mais linda e delicada do que a Infanta da Espanha.
Ainda que a maneira de contar seja diferente, Oscar Wilde mergulha
seus leitores na mais profunda viagem pelo reino da fantasia. Uma Terra
povoada de reis bondosos, rainhas loucas, ministros sinistros, cavaleiros
generosos, castelos sombrios, pássaros inspirados, flores vaidosas,
lagartixas apressadas, sapos sábios e crianças encantadas. Um mundo em
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que os mais misteriosos personagens fazem fervilhar os sentimentos,
destilando tanto a poção mágica do amor quanto o veneno da indiferença.
Numa carta escrita ao seu amigo poeta George Kersley em 1888, Oscar
Wilde assim se refere aos contos que tinha acabado de publicar: "Estou
muito feliz de que você tenha gostado das minhas histórias. Elas são
estudos em prosa, escritas, para efeitos literários, na forma de contos de
fantasia. São destinadas em parte a crianças e em parte a todos aqueles que
mantiveram seu espírito infantil de encantamento e alegria e sabem ver a
simplicidade no que é delicadamente estranho”.
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