Histórias de adolescentes:
um estudo sobre a imaginação no contexto escolar1
Marília Luiza Galante Cavani2
Vera Lúcia Trevisan de Souza3
1Este relatório foi produto de pesquisa de Iniciação Científica realizada com bolsa FAPIC/Reitoria.
2 Graduanda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas
E-mail: [email protected]
3 Professora da Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas
E-mail: [email protected]
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RESUMO
Nesta pesquisa tivemos como objetivo investigar o papel da imaginação no
desenvolvimento de adolescentes que frequentam o 6° ano do Ensino Fundamental de uma
escola estadual do interior do estado de São Paulo. Sua natureza é documental, uma vez
que as fontes utilizadas para a construção das informações foram os diários de campo
pertencentes ao banco de dados do grupo de pesquisa ao qual se vincula o presente estudo,
e um livro de histórias produzido por esses alunos. A análise dos dados foi realizada com
base nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, especialmente os desenvolvidos
por Vigotski, com destaque ao conceito de imaginação. Observou-se que as histórias
criadas pelos adolescentes revelam o modo como pensam e vivem o contexto escolar,
demonstrando que o medo e a punição ainda são medidas que perpassam as práticas
educativas. Não obstante, observamos que nas histórias dos alunos há o predomínio da
reprodução dos fatos vividos em detrimento da criação de novas realidades pelo exercício
da imaginação, o que caracterizaria o ato criativo, evidenciando certa dificuldade dos
jovens em pensar para além de sua realidade. Também por meio das histórias escritas pelos
alunos acessamos um pensamento concreto que tem como característica o preconceito, e
observamos que as práticas escolares pouco tem contribuído para a superação desse tipo de
pensamento, o que, a nosso ver, poderia favorecer o desenvolvimento da autoria e
autonomia dos alunos. Acreditamos que o psicólogo escolar seja capaz de levar à escola
contribuições importantes para as situações descritas neste trabalho, ao passo que
possibilite reflexões sobre o importante papel da imaginação na adolescência com os
professores e gestores.
Palavras-chave: Psicologia Escolar; Psicologia Histórico-Cultural; Imaginação;
Adolescência.
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SUMÁRIO 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ......................................................................................... 5
1.1. A ADOLESCÊNCIA NA CONCEPÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL........... 8
1.2. A IMAGINAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA ............................................................................ 12
2. OBJETIVOS .......................................................................................................................... 16
2.1. GERAL ............................................................................................................................. 16
2.2. ESPECÍFICOS................................................................................................................... 16
3. METODOLOGIA .................................................................................................................. 17
3.1. CONCEPÇÃO METODOLÓGICA ..................................................................................... 17
3.2. O CONTEXTO DA PESQUISA........................................................................................... 18
3.3. CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS ............................................................................... 19
3.4. PROCEDIMENTOS ........................................................................................................... 19
3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO ............................................................................................. 20
4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ............................................................. 21
4.1. IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA: PARES DE OPOSTOS QUE SE COMPLEMENTAM NO
PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO .......................................................................................... 21
4.2. O DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO DO
PRECONCEITO ............................................................................................................................ 35
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 45
6. REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 48
7. ANEXOS ................................................................................................................................. 51
A. ANEXO 1 - CATEGORIAS DE ANÁLISE ........................................................................... 51
B. ANEXO 2 - ROTEIRO PARA OBSERVAÇÃO NA ESCOLA ................................................ 61
C. ANEXO 3 - DIÁRIO DE CAMPO (30/OUT/2013) .............................................................. 62
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A esperança vê o que não existe no presente. Existe
só no futuro, na imaginação. A imaginação é o lugar
onde as coisas que não existem, existem. Este é o
mistério da alma humana: somos ajudados pelo que
não existe. Quando temos esperança, o futuro se
apossa dos nossos corpos. E dançamos.
Rubem Alves (1933-2014)
5
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O presente estudo deriva de uma pesquisa de mestrado intitulada “Os sentidos do
respeito na escola: uma análise da perspectiva da psicologia histórico-cultural” (Barbosa,
2012), vinculada ao grupo de pesquisa Processos de Constituição do Sujeito em Práticas
Educativas – PROSPED, do Programa de pós-graduação em Psicologia da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, liderado pela professora Dra. Vera Lúcia Trevisan de
Souza.
A problemática desta investigação nasce de questionamentos formulados a partir de
outras pesquisas realizadas em escolas em que se constatou que, via de regra, a imaginação
não é valorizada ou trabalhada com os adolescentes. Na maioria das vezes, a imaginação é
representada como uma função que não favorece o aprendizado, ao contrário, é tomada
como negativa, visto tirar a concentração dos alunos na realização do que é proposto pelos
professores. (Barbosa, 2012; Montezi e Souza, 2012).
Entretanto, alguns dos trabalhos desenvolvidos pelo referido grupo, apontam a
imaginação como uma das funções mais importantes no desenvolvimento de adolescentes,
visto que nesta fase o sujeito vivencia diferentes afetos e emoções que podem ser
materializados via imaginação ou pelo ato criador (Barbosa, 2012; Montezi e Souza,
2012). Apesar de sua importância, ainda há carência de estudos sobre a imaginação
tomando como base a Psicologia Histórico-Cultural, o que também justifica a realização
deste estudo.
Segundo Martins (2011), a imaginação é qualquer processo que se desenvolve por
meio de imagens, e assim sendo, considera que todos os processos funcionais são, de
alguma forma, processos imaginativos. O que a diferencia das demais funções é o fato de
que “nela, as imagens das experiências prévias se alteram, produzindo outras e novas
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imagens” (p. 180), ou seja, estamos falando de uma atividade mental que permite
modificar conexões estabelecidas previamente entre o objeto real e sua imagem, sendo
possível produzir algo inteiramente novo.
Como processo individual e específico, a imaginação está intimamente ligada ao
desenvolvimento da linguagem, do pensamento e dos sentimentos.
Vigotski, principal representante da Psicologia Histórico-Cultural, coloca que a
intima relação da imaginação e das demais funções psicológicas acabou por dificultar e
comprometer as tentativas de explica-la e defini-la, o que, por sua vez, fez com que
perdesse suas propriedades individuais ao ser reduzida às outras funções, ou, nas palavras
de Martins (2011, p.179), “se convertia em um ato fortuito, fruto do acaso, “em um passe
de mágica””.
Vigotski aponta a dialética presente na concepção da imaginação como função
psicológica ao afirmar que ao mesmo tempo em que a imaginação tem em sua base
(servindo de ponto de apoio e condição de existência) a realidade, é capaz de superar a
própria experiência sensorial (Martins, 2011).
Vigotski (1930/2010) postula que a imaginação tem como base a experiência do
sujeito com a realidade, já que em sua concepção a imaginação é constituída
historicamente. Entretanto, a imaginação não se refere à simples reprodução das
experiências, mas sim à combinação de seus elementos, criando o novo, possibilitando o
estabelecimento de novos nexos. Vigotski entende a imaginação como uma função
psicológica e destaca quatro tipos de relação com a realidade.
A primeira é a de que toda obra da imaginação tem como base elementos
apreendidos da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa, ou seja, quanto
mais rica a experiência mais elementos estão disponíveis à sua imaginação. A segunda
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refere-se à articulação entre o produto final da fantasia e um fenômeno complexo da
realidade, visto que o sujeito não se limita somente às experiências passadas, mas cria
novas combinações. A terceira forma é de caráter emocional: todo sentimento e emoção
tende a se entrelaçar com imagens conhecidas correspondentes a esse sentimento, de modo
que a emoção parece possuir a capacidade de selecionar impressões, ideias e imagens
consoantes a um determinado instante. A quarta, e última forma, tem como essência a
construção da fantasia como algo inusitado, sem ter relação com experiências anteriores da
pessoa ou algum objeto existente. Mas, ao adquirir concretude material, essa “imaginação
cristalizada começa a existir realmente no mundo e influir sobre outras coisas” (Vigotski,
1930/2009, p.28).
No que se refere à função da imaginação, Vigotski (1930/2009) aponta seu
importante papel no desenvolvimento humano. A imaginação amplia a experiência do
sujeito que, ao ser capaz de imaginar um fenômeno impossível de ser visualizado, vivencia
experiências diferentes. Desse modo, essa função psicológica constitui-se como
fundamental na educação escolar, visto que a maioria dos conteúdos ensinados são
pautados em informações abstratas, não possíveis de serem observados, que só são
aprendidas com a ajuda da imaginação.
Outra função que a imaginação pode assumir é a satisfação das necessidades não
possíveis de serem concretizadas. Muitas vezes, o sujeito não tem a possibilidade de
realizar todos seus desejos, utilizando-se da imaginação para satisfazer suas necessidades.
Além disso, quando as situações do meio são muito dolorosas, insuportáveis, a imaginação
também tem a função de distanciar o sujeito da realidade, favorecendo a elaboração das
emoções.
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Essas acepções, por si só, justificam o investimento na compreensão da influência
da imaginação no desenvolvimento de adolescentes, sobretudo aqueles que frequentam a
escola. Para tanto, necessário se faz aprofundar a compreensão desta temática pelos
teóricos cujos aportes nos guiam no desenvolvimento desta pesquisa.
1.1. A ADOLESCÊNCIA NA CONCEPÇÃO DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL
A adolescência é um tema que tem despertado o interesse de muitos teóricos e
pesquisadores, o que se evidencia pelo grande número de pesquisas desenvolvidas na área
da psicologia e da educação (Bock, 2007). Talvez, uma justificativa para isso seja a
necessidade de se compreender de modo mais aprofundado como lidar com os conflitos
que parecem ser característica fundante dessa fase do desenvolvimento humano.
De forma geral, a adolescência tem sido compreendida por muitos estudos como
um fenômeno universal e natural. À vista disso percebe-se que o conceito de adolescência
utilizado pela Psicologia fundamenta-se em um único tipo de representante: “homem-
branco-burguês-racional-ocidental”. Assim, outros grupos e suas singularidades são
excluídos dos estudos, o que contribui ainda mais para uma visão descontextualizada da
adolescência (Bock, 2007).
Analisando a construção histórica da adolescência, a partir da visão da psicologia
do desenvolvimento, é notável um constante movimento de concepções, que mostram o
adolescente “ora como dominado por paixões e tormentas, ora como sujeito pleno de
racionalidade” (Oliveira, 2006, p.427).
Essa perspectiva não é a adotada por Vigotski. Diferentemente de outros teóricos
da psicologia, ele apresenta a adolescência não como uma fase natural do
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desenvolvimento, mas como sendo construída socialmente, caracterizada como idade de
transição com particularidades específicas e marcada por grandes saltos, não se tratando
somente de um período passageiro e repleto de dificuldades. Além disso, Vigotski afirma
que na adolescência a gama de vivências do sujeito se amplia, uma vez que há novos
ambientes de relações, certa independência, além de lhe conferir responsabilidades que não
existiam na infância (Vygotski, 1931/2006).
Para apreendermos o modo como a adolescência é compreendida dentro desta
perspectiva, é preciso considerarmos o lugar de onde se fala e a compreensão que se tem
do sujeito. Tendo como base os pressupostos do materialismo histórico dialético, a
Psicologia Histórico-Cultural entende que o sujeito se desenvolve a partir de suas relações
sociais e culturais. Portanto, o homem é um ser histórico, “que tem características forjadas
pelo tempo, pela sociedade e pelas relações, imerso nas relações e na cultura das quais
retira suas possibilidades de ser” (Bock, 2007, p.67). O mundo psicológico é visto por essa
concepção teórica como uma “construção no nível individual [subjetivo] do mundo
simbólico que é social” (Bock, 2007, p.67).
Mais do que entender o que é adolescência é necessário saber como ela se
constituiu historicamente, uma vez que “responder o que é adolescência implica buscar
compreender sua gênese histórica e seu desenvolvimento” (Bock, 2007, p.68).
Segundo Clímaco (1991 citado por Bock, 2007) pode-se dizer que a adolescência,
como concebida hoje, surgiu durante a Revolução Industrial (1760-1840), quando
começou a ser exigido um prolongamento na formação dos indivíduos, a qual era
fornecida nas instituições escolares, devido à sofisticação do trabalho. O desemprego
crônico proveniente da estrutura capitalista também estabeleceu o retardamento dos jovens
na entrada no mercado de trabalho, exigindo requisitos para esse ingresso. Também nesse
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período o desenvolvimento da ciência provocou um aumento da longevidade, provocando
desafios para a sociedade no que diz respeito ao mercado de trabalho e formas de
sobrevivência.
Assim sendo, apesar de possuir condições cognitivas, afetivas e fisiológicas para
fazer parte do mundo adulto, o adolescente não tem a qualificação que o mercado de
trabalho exige e, portanto, precisa ficar por mais tempo na dependência dos pais a fim de
se preparar para a inserção no trabalho. Conforme Clímaco (1991 citado por Bock, 2007),
essa contradição vivenciada pelos adolescentes pode ser responsável por uma série de
características as quais estão imbrincados, características essas que são descritas pela
Psicologia como “crises de identidade e busca de si mesmo; tendência grupal; necessidade
de intelectualizar e fantasiar; atitude rebelde; onipotência e outras”. Esses aspectos são
vistos aqui não como algo natural, mas como constituídas no processo histórico e social.
Dessa forma, a adolescência pode ser considerada como um “período de latência
social” que emerge em decorrência dos requisitos capitalistas de necessidade de preparo
técnico para o ingresso e a falta de espaço para todos no mercado de trabalho. Portanto,
essa moratória não era um período necessário no desenvolvimento do sujeito, até mesmo
porque em muitas sociedades (como a grega antiga, romana e judaica) esse período era
completamente diferente, mas uma exigência dos adultos para poderem se manter por mais
tempo no mercado de trabalho (Bock, 2007).
Sendo constructo histórico-social a adolescência não possui nada de patológico
nem natural. Pode existir hoje e não mais amanhã, em outra constituição social; em um
local e não em outro; mais evidente em uma sociedade do que em outra. “Não há uma
adolescência, enquanto possibilidade de ser; há uma adolescência enquanto significado
social, mas suas possibilidades de expressão são muitas” (Bock, 2007, p.70).
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Como ocorre em todo período de transição, as crises também estão presentes na
adolescência, porém Vigotski não as vê como algo negativo, uma vez que considera a crise
um aspecto que impulsiona o desenvolvimento humano. Assim, para se estudar a
adolescência é necessário considerar e entender essas crises bem como as mudanças de
interesses e necessidades específicas, decorrentes não só da maturação biológica, mas
principalmente das interações sociais dessa fase (Vygotski, 1931/2006). Destaca, ainda, o
autor, que a mediação do social não influencia somente na mudança de interesses dos
adolescentes, mas promove neles um salto qualitativo no desenvolvimento das funções
psicológicas, determinando todo o funcionamento futuro do sujeito. Nesta fase, o
pensamento evolui e passa gradualmente a ser operado por conceitos e não mais por
complexos (característico do pensamento infantil). Porém, para que o pensamento passe a
operar por conceitos é necessário que o sujeito tenha condições específicas para seu
desenvolvimento. Para que isso aconteça torna-se necessário um investimento no sujeito e
em suas potencialidades, lembrando sempre que ao desenvolvimento de uma função
psicológica estão atreladas as outras funções que compõem o sistema psicológico; e, ao
falarmos na revolução que marca o “surgimento” do pensamento por conceito,
conseguimos destacar a importância desempenhada pela imaginação.
É exatamente esse o foco que buscaremos ao longo deste trabalho, tentando
responder às nossas questões de pesquisa. Passamos agora a abordar o desenvolvimento da
imaginação na adolescência.
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1.2. A IMAGINAÇÃO NA ADOLESCÊNCIA
Iniciamos esse item trazendo a definição contida no Dicionário de Psicologia de
Dorin (2014) sobre a imaginação:
imaginação. Do lat. imaginatio, onis = processo de sintetizar imagens mentais em
novas ideias. “O produto da imaginação é composto de partes percebidas em
épocas diferentes e mais tarde evocadas e combinadas como um centauro é
composto de homem e cavalo e uma sereia, de mulher e peixe” (Woodworth). Na
imaginação existe uma reorganização de experiências passadas que inclui
elementos da experiência momentânea. Quando controlada, dá origem ao
pensamento criador (p. 336).
Essa definição, podendo ser entendida como mais geral dentro da Psicologia, se
aproxima da perspectiva teórica por nós adotada. De acordo com Vygotski (1930/2009;
1931/2006), o ato criador é concebido historicamente, portanto se desenvolve por meio das
experiências do sujeito com sua realidade, na combinação de elementos dessas vivências,
gerando o novo. Apesar de toda obra da imaginação ter bases nas experiências passadas do
sujeito, ela não se limita a isso, criando, na união de diferentes elementos, inclusive
emoções e sentimentos, novas combinações.
Assim, a imaginação apresenta papel fundamental no desenvolvimento do
indivíduo, uma vez que ao torná-lo capaz de conceber fenômenos impossíveis de serem
visualizados faz com que ele vivencie experiências distintas, satisfaça necessidades
impossíveis (ou difíceis) de serem realizadas, além de propiciar a elaboração de
sentimentos e emoções (Vigotski, 1930/2009).
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Vigotski entende que a atividade criadora se desenvolve de forma lenta e gradual,
partindo das maneiras mais elementares até alcançar níveis mais complexos. Segundo ele,
existem expressões singulares correspondentes às diferentes faixas etárias, possuindo
formas características de criação para cada uma. Além disso, é intrínseco a qualquer
comportamento humano, e está diretamente ligada ao acúmulo de experiências, além do
que não pode ser considerada “um divertimento ocioso da mente, uma atividade suspensa
no ar, mas uma função vital necessária” (Vigotski, 1930/2010, p.20).
Diferentemente do que se pensa comumente, a imaginação da criança é menos rica
do que a do adulto, isto porque as experiências dela são mais limitadas, e suas relações
com o meio “não possuem a complexidade, a sutileza e a multiplicidade” das do adulto
(Vigotski, 1930/2010, p.44).
Conforme a criança cresce também se desenvolve sua imaginação e, à medida que
se aproxima da adolescência, “a potente ascensão da imaginação e os primeiros rudimentos
de amadurecimento da fantasia unem-se” (p.45); os interesses de quando era criança vão
dando lugar a novos interesses, e ao atingir o “amadurecimento geral”, finalmente sua
imaginação toma uma nova forma (Vigotski, 1930/2010).
Então, por que comumente a imaginação da criança é vista como mais rica que a do
adulto? Para Vigotski (1930/2010), na infância o indivíduo “confia mais nos produtos de
sua imaginação e os controla menos” (p.46) do que os adultos. Porém essa diferença não se
restringe apenas ao material mais empobrecido da criança, mas conta também com “o
caráter, a qualidade e a diversidade das combinações” (p.46-47) que é significativamente
mais limitada quando comparada ao do adulto.
Vigotski (1930/2010) recorre a Ribot para ratificar as razões de a imaginação, ainda
que mais desenvolvida, não encontrar canais de expressão na vida adulta. Para o autor, no
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adulto a imaginação adapta-se às condições racionais, não sendo mais uma atividade pura,
e sim mista. A responsável para o que seria um declínio da imaginação é a vida cotidiana,
com seu caráter pragmático que impede que o indivíduo se dedique a atividades criativas,
adotando modos mais rápidos e ágeis para solucionar os problemas. Ou seja, não se investe
na imaginação, não se desenvolve a atividade criativa.
Nesse período fica evidente que o adolescente, em geral, abandona os desenhos,
expressão mais marcante da imaginação infantil, e se volta para a literatura, forma mais
comum de expressão da imaginação adolescente. A criação literária é impulsionada pelo
crescimento das vivências subjetivas, “pela ampliação e pelo aprofundamento da vida
íntima do adolescente”, de forma que, nesse momento, ele passa a construir em si um
“mundo interno específico” (Vigotski, 1930/2010, p.49).
Assim, a imaginação, ao contrário do que se pensa, não é uma atividade
exclusivamente interna, ela está intimamente ligada ao ambiente, como diz Vigotski
(1930/2010, p.42): “o ímpeto para a criação é sempre inversamente proporcional à
simplicidade do ambiente”. Dessa forma, “mesmo um gênio, é sempre um fruto de seu
tempo e de seu meio”, considerando-se que suas necessidades existiam antes mesmo dele,
e que a criação é um processo de herança histórica, não podendo nada ser criado sem que
antes existam condições materiais e psicológicas para tal (p.42).
Montezi e Souza (2013) destacam que a imaginação vem sendo estudada com mais
frequência, nos últimos anos, principalmente pelas áreas de Educação e Psicologia, fato
que pode ser explicado pela importância dada por esses campos a essa função psicológica
superior, que é tida como manifestação da subjetividade, condição para a criatividade e
assim fundamental para a aprendizagem.
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Nos últimos anos, a perspectiva histórico-cultural tem se atentado à questão da
imaginação por considerá-la como “favorecedora da aprendizagem e desenvolvimento”
(Mitjánz Martinez, 1997, 2004, 2006 citado por Montezi & Souza, 2013, p.78). Dessa
forma, entender a criatividade como função psicológica superior, impulsionada
principalmente pela imaginação, tal como postula Vygotski (1931/2006, 1930/2010),
promove um melhor entendimento e promoção do desenvolvimento de adolescentes,
principalmente no que diz respeito ao contexto de ensino e aprendizagem (Montezi &
Souza, 2013, p.78).
Foi do acesso a essas informações que elaboramos a questão de investigação desse
trabalho: qual o papel da imaginação no desenvolvimento de adolescentes que
frequentam a escola pública de ensino fundamental?
Abordar a temática da imaginação torna-se importante na medida em que auxilia na
compreensão do desenvolvimento do psiquismo humano, nesse caso, com foco nos
adolescentes e nas relações por eles empreendidas na escola, adotando a perspectiva da
Psicologia Histórico-Cultural, buscando contribuir para o avanço das produções científicas
na área.
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2. OBJETIVOS
2.1. GERAL
o Analisar o papel desempenhado pela imaginação no desenvolvimento de
adolescentes a partir de atividades produzidas por alunos do 6º ano do ensino
fundamental de uma escola pública estadual, com base nos pressupostos da
Psicologia Histórico-Cultural.
2.2. ESPECÍFICOS
o Identificar, dentre as atividades produzidas pelos alunos e registradas em diário de
campo, aquelas em que se investe na imaginação;
o Identificar e escolher, dentre as histórias produzidas pelos alunos, aquelas em que a
imaginação aparece como recurso a sua elaboração;
o Analisar de que modo a imaginação contribui para o desenvolvimento do sujeito;
o Discutir práticas e ações que podem agilizar a imaginação na escola.
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3. METODOLOGIA
3.1. CONCEPÇÃO METODOLÓGICA
O presente trabalho adota o método utilizado pelo grupo Processos de Constituição
do Sujeito em Práticas Educativas (PROSPED), que assume, como citado anteriormente, o
referencial teórico-metodológico da Psicologia Histórico-Cultural, sobretudo os de
Vigotski.
Durante seus estudos, Vigotski questionou os métodos da Psicologia vigente na
época, os quais, segundo ele, eram de base mecanicista ou idealista, apoiando-se em uma
visão fragmentada de homem. Na tentativa de criar uma nova psicologia, Vigotski propôs
a formulação de uma teoria que objetivava analisar o desenvolvimento psicológico como
inseparável da história do indivíduo e de sua relação com o social, permitindo que esse
fosse estudado em sua totalidade, analisando-se os fenômenos investigados dialeticamente
(Delari Jr., 2011).
Na construção de sua proposta Vigotski postula três princípios a serem seguidos na
realização das pesquisas: é preciso ter como foco o processo percorrido ao longo do
desenvolvimento do fenômeno e não somente em seu produto; explicar o fenômeno ao
invés de descrevê-lo; e, por último, dar atenção ao que Vigotski chamou de
comportamento fossilizado, que são as condutas que se dão de modo automático na vida
do sujeito, mas que tiveram um início. Esses três princípios nos colocam frente a
importância de buscarmos conhecer a gênese do fenômeno analisado, indo além do
evidente, buscando apreender sua complexidade e historicidade, que reconhecemos não ser
tarefa fácil de cumprir (Dugnani, 2011).
Aprofundar estudos já realizados pelo nosso grupo de pesquisa, construindo
análises a partir de informações que compõem o banco de dados, se apresenta, para nós
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como um caminho que se guia por esses princípios, ao possibilitar que determinados
fenômenos sejam olhados de novo para elaboração de novas explicações.
Sendo assim, consideramos a pesquisa realizada como documental, caracterizada
por um procedimento que se utiliza dos mais variados tipos de documentos para apreensão,
compreensão e análise de informações. Entende-se como documento qualquer forma de
registro, que tenha o conteúdo necessário para estudar determinada problemática (Sá-
Silvia, Almeida & Guindani, 2009).
3.2. O CONTEXTO DA PESQUISA
O estudo que deu origem aos diários de campo de Barbosa (2012), utilizados nessa
pesquisa, foi realizado em um município do interior do estado de São Paulo, localizado na
região metropolitana de Campinas. Segundo Barbosa (2012), a escola na qual sua pesquisa
de mestrado foi realizada situa-se em um bairro considerado de alto padrão na região
central do município. Apesar de estar localizada em um bairro de classe média-alta, a
grande maioria dos estudantes dessa escola residem em bairros afastados, “caracterizados
por condições menos favorecidas e alto índice de violência”, e dependem do transporte
público gratuito para chegar à escola.
A escola, cenário da pesquisa, é vinculada à rede estadual de ensino público, e
atende aos Ensinos Fundamental II, Médio e à EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Durante o ano letivo de 2011 haviam 802 alunos matriculados na instituição, sendo que
492 frequentavam o Ensino Fundamental e 310 o Ensino Médio. O número total de
professores era de 57, e alguns deles ministravam aulas tanto para o Ensino Fundamental
quanto para o Médio.
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3.3. CARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS
A pesquisa de Barbosa (2012) foi realizada com grupos de aproximadamente 90
alunos do 6º ano do Ensino Fundamental. Estes alunos tinham em média 12 anos de idade,
e este era o primeiro ano que frequentavam essa escola, uma vez que a mesma só atende ao
Ensino Fundamental II e Médio. Tais alunos residiam, em sua maioria, nos bairros mais
humildes da cidade. Relatos revelaram que grande parte desses alunos morava apenas com
a mãe, que muitas vezes trabalhava como faxineira em casas próximas à escola; alguns
também moravam com os avós.
3.4. PROCEDIMENTOS
A leitura dos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico-Cultural, em especial
sobre a adolescência e a imaginação, a partir de diferentes autores, permearam a
construção de todo o referencial deste trabalho, assim como das informações analisadas,
dando ênfase àqueles que diziam respeito à a adolescência e imaginação, dos quais foram
elaborados fichamentos.
Foi feita, também, a seleção dos diários de campo que compõem o banco de dados
do grupo de pesquisa, e identificados 20 diários de campo produzidos por Barbosa (2012),
em sua dissertação de mestrado. Realizamos, então, uma leitura inicial dos diários
buscando identificar aqueles que continham informações que remetessem ao papel da
imaginação no desenvolvimento, foco de nosso trabalho. Foram selecionados nove diários
de campo que se constituíram como uma das fontes de informação deste estudo. Foram,
então, realizadas consecutivas leituras desse material em busca de indicadores da
importância da imaginação na adolescência (foco deste estudo).
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Ainda durante este período, apesar de não estar previsto no cronograma original,
foi realizada uma visita à escola onde Barbosa (2012) coletou suas informações para a
pesquisa, com o objetivo de conhecer este contexto e a dinâmica de sala de aula das turmas
estudas por ela em 2011. Na ocasião, foram feitas observações em sala de aula de alunos
do 8° ano do Ensino Fundamental, mesma turma observada por Barbosa no ano de 2011.
Para a atividade de observação foi construído um roteiro (anexo 2) a fim de observar e
registrar as atividades que indicavam um investimento ou desinvestimento na imaginação e
criatividade dos alunos. Também foram realizadas observações em outros espaços da
escola, como no refeitório e no pátio. As observações foram registradas em diário de
campo (anexo 3), o qual também se constitui fonte de informação desta pesquisa.
3.5. FONTES DE INFORMAÇÃO
As fontes de informações utilizadas neste estudo foram os diários de campo
produzidos por Barbosa (2012), assim como os construídos pela pesquisadora a partir das
observações realizadas na escola. Também foram selecionadas algumas histórias
produzidas pelos alunos em 2011, quando da pesquisa de Barbosa (2012). Uma vez
selecionadas as fontes de informação foram feitas leituras aprofundadas das informações
visando encontrar regularidades que permitissem a elaboração de categorias de análise. A
organização a seguir expressa o resultado de nosso investimento na análise dos dados.
Estas fontes de informações possibilitaram a construção de duas categorias de
análises: imaginação x memória e preconceito, que serão apresentadas a seguir.
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4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
4.1. IMAGINAÇÃO E MEMÓRIA: PARES DE OPOSTOS QUE SE COMPLEMENTAM NO
PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO
Nos trabalhos que vêm sendo desenvolvidos pelo grupo de pesquisa ao qual
pertencemos, temos buscado formas de acessar o sujeito que permitam a construção de
narrativas de si mesmo, do outro, do contexto em que se insere e do tempo que vive
(Petroni, 2013; Andrada, 2014; Bordignon e Souza, 2011). Podemos dizer que as
atividades de contação de histórias propostas por Barbosa (2012) em sua pesquisa foi um
desses caminhos, na medida em que possibilitou a expressão desses jovens, sobretudo na
relação com a escola. Tal trabalho tornou-se uma forma de agilizar a imaginação dos
adolescentes e de estimular a criatividade desses alunos, que passaram a escrever suas
próprias histórias, utilizando suas experiências e o que foi adquirido durante os encontros
com a psicóloga-pesquisadora.
Para começar nossa análise, cabe o seguinte questionamento: Por que a contação de
história no trabalho com adolescentes?
Segundo nosso referencial teórico, o tipo de expressão mais característico da
primeira infância, principalmente de crianças no período pré-escolar, é o desenho. Isso
porque é essa forma de expressão que possibilita à criança se relacionar com o mundo em
um processo de conhecer específico de sua idade. Porém, ao longo do desenvolvimento o
desenho deixa de ser central. Em seu lugar, começa a surgir uma nova forma de criação, a
literária ou verbal, que predomina principalmente durante a adolescência (Vigotski,
1930/2010).
22
Segundo o autor, “a palavra permite transmitir relações complexas, principalmente
as de caráter interno” (p.77), além de comunicar o “movimento, a dinâmica, a
complexidade de alguns acontecimentos” (p.77), muito mais claramente do que o desenho
“imperfeito e inseguro” da criança. Nas palavras de Vigotski:
“Eis porque o desenho infantil, que corresponde plenamente ao estágio da relação
simples, incomplexa, entre a criança e o mundo que a cerca, é substituído pela
palavra como meio de expressão, que corresponde de modo mais profundo e
complicado a uma relação interna com a vida, consigo mesma e com o mundo
circundante” (Vigotski, 1930/2010, p.77).
A criação literária só surge quando a criança é um pouco maior devido ao fato de
precisar de uma gama considerável de vivências pessoais, experiência de vida e de
capacidade de analisar as relações interpessoais em diferentes ambientes, para poder ser
construída, além de ter o domínio da escrita e leitura. Precisa ter acúmulo de experiência,
domínio da fala, e principalmente “de desenvolvimento do mundo pessoal e interno”
(Vigotski, 1930/2010, p.63).
É na adolescência que o mundo das vivências internas, de impulsos e anseios da
pessoa se amplia, tornando-se mais complexo se comparado com o da criança. Suas
relações também se expandem, e sua visão do mundo externo passa por um tratamento
especial, mais profundo, além do evidente amadurecimento sexual. Perante tudo isso, o
estável equilíbrio no qual vivia até então se rompe, e o equilíbrio do adulto ainda não está
formado em si. Essa falta de equilíbrio é motivo da crise vivenciada pelo adolescente.
Dessa crise surgem aspectos que estão intimamente relacionados à criação literária do
período de transição: “a emotividade aguçada” e “a excitabilidade elevada do sentimento”
(Vigotski, 1930/2010, p.75-76).
23
Durante os encontros com os alunos, confirmou-se o interesse pela contação de
histórias. Foi constatado o envolvimento dos alunos, e a expressão de vários sentimentos e
emoções característicos desta fase, sobretudo durante a construção das histórias escritas.
Vejamos uma delas:
Era uma vez uma menina que vendia rosas vermelhas na porta de um bar. Certo
dia essa menina morreu, mas todo dia a garota oferecia rosas à meia noite na
porta do bar. Um dia passou uma mulher que não quis comprar rosas, a menina
saiu correndo atrás dela para oferecer rosas. Essa mulher ficou com muita dó da
menina e comprou uma rosa. A moça levou a rosa para sua casa e foi logo
amaldiçoada.
De repente a mulher viu um vulto passando pela janela, quando virou viu a menina
e ficou com muito medo. Em um piscar de olhos a menina sumiu.
No outro dia que a moça estava voltando do trabalho ela passou em frente do bar e
perguntou:
- Onde está aquela menina que vendia rosas aqui na frente?
E o homem respondeu:
- Essa menina morreu há séculos, ela está enterrada em um túmulo que tem muitas
bonecas.
No outro dia a mulher foi visitar o túmulo da menina, quando entrou no cemitério
e chegou perto da cova, a porta do cemitério se fechou. Os mortos se levantaram e
a menina apareceu e a mulher ficou aterrorizada. A menina falou:
- Moça eu preciso que você me ajude. Eu preciso pegar três colares de cruz e
colocar no pescoço das bonecas que estão dentro da minha cova à meia noite,
senão vai ser amaldiçoada para sempre. Se você fizer isso eu posso ir para o céu e
nunca mais ninguém irá mexer com você.
A mulher procurou em todas as casas e encontrou as cruzes, aí a mulher pegou as
bonecas e colocou a cruz em cada boneca à meia noite. E nunca mais ouviu falar
da menina, nem em sonho.
(A menina das rosas vermelhas - Histórias de Adolescentes, Histórias para
Adolescentes: hora do horror, p.38).
Um elemento que nos chama atenção nesta história, assim como em outras escritas
pelos alunos, é o interesse desses jovens por histórias de terror e suspense. Tal fato nos
leva a questionar o porquê deste interesse. Segundo Vygotski (1931/2006), na fase da
adolescência o sujeito vivencia um contexto social específico, único, totalmente diferente
da infância; o contexto já lhe atribui algumas responsabilidades, certa independência e
desafios que favorecem ao adolescente vivenciar novas emoções. Se, por um lado esta
nova situação social é fonte de entusiasmos e curiosidade, por outro o sentimento de medo
24
em relação ao diferente também está presente. Neste sentido, acreditamos que a história de
terror permite ao sujeito vivenciar o sentimento de medo de um modo protegido, seguro e
acolhido, por meio de uma situação fictícia narrada na história (Souza, 2014). Assim,
pode-se constatar que a criação de um espaço que se utiliza como via a imaginação pode
ser uma estratégia de intervenção que favoreça ao adolescente vivenciar e elaborar suas
emoções e sentimentos característicos desta fase de desenvolvimento de um modo seguro,
protegido e mediado.
Adentrando ao conteúdo da história e analisando como a imaginação atua neste
processo, percebemos que o (a) autor (a) utilizou elementos fantasiosos em sua narrativa,
como o contexto no qual a moça aparece, tendo que cumprir uma missão para libertar uma
garota fantasma e não ser mais amaldiçoada.
Para Vigotski (1930/2010), a criação é apenas o produto final de um longo
processo, o qual é repleto de etapas e elementos. No início desse movimento encontram-se
as percepções externas e internas do indivíduo, as quais fazem parte da experiência.
Assim, tudo o que a criança vê e ouve serve de material para uma possível futura criação.
Esse material, então, passa pela dissociação, associação e combinação, ou seja, um
todo é fragmentado em partes (dissociação), e estas podem ser unidas com outras partes do
mesmo material ou de outros (associação e combinação). Para que a associação possa
ocorrer é importante que a pessoa seja capaz de romper com a ordem natural com a qual o
material foi percebido, fato que está irrevogavelmente na base do pensamento abstrato, da
formação de conceitos (Vigotski, 1930/2010). Na história escrita pelo aluno, fica evidente
a associação e combinação de vários elementos para sua confecção, os quais derivam das
experiências vividas pelo sujeito ao longo de sua vida e das histórias contadas por Barbosa
(2012) durante seu projeto. É claro que o modo de associar e combinar elementos em uma
25
produção é próprio e corresponde à singularidade de cada um, mostrando, para além, o
potencial criador dos sujeitos.
Todo esse processo se liga à imaginação, enquanto função psicológica. Vigotski, ao
falar sobre essa função, a analisa como sendo privativa dos seres humanos, estando ligada
à atividade criadora. O autor entende essa atividade como a capacidade do sujeito de criar
algo novo, podendo esse “novo” estar presente no mundo externo ao indivíduo ou habitar
apenas a mente e os sentimentos daquele que cria (Vigotski, 1930/2010), como podemos
observar na história relatada.
Avançando em nossa análise, se por um lado encontramos narrativas em que os
alunos constroem uma história mais voltada para a fantasia e desprendida da realidade
concreta (como as histórias de terror), por outro a maioria das histórias criadas pelos
alunos foram voltadas a seus cotidianos, relatando sobretudo a realidade que vivem no
contexto escolar. Vejamos alguns exemplos:
Era uma vez um menino chamado Bruno que gostava muito de brigar na escola, só
para não fazer lição, e todo dia sua mãe Maria tinha que estar lá na diretoria.
Certo dia chegou um menino novo na sala que se chamava João. Ele tinha a fama
de ser nerd. Quando João chegou na sala de aula, o Bruno mandou ele fazer sua
lição de casa, mas João falou:
- Não!
Bruno respondeu:
- Tem certeza?
- Tenho.
Bruno e João começaram a bater um no outro. Depois Bruno ficou muito
arrependido do que fez e falou para João:
- Me desculpa, estou muito arrependido do que fiz.
João respondeu:
- Eu te desculpo, mas não é só porque eu não fiz sua lição que você pode sair
batendo em todo mundo assim!
- Está bem, vou tentar me controlar.
Então, os dois alunos se abraçaram e viraram amigos para sempre.
(Amigos para sempre - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes,
p.12).
26
Em um belo dia, dois meninos João e Marcos eram os melhores amigos na escola.
Todo mundo da escola tinha inveja da amizade deles, quando um menino pensou
em fazer eles brigarem. Minutos depois o menino falou para o João:
- O Marcos falou que já está cansado de você! Não quer olhar mais para sua cara!
Assustado, João vai até Marcos e xinga ele. Sem reação Marcos ameaça bater em
João na saída.
Horas depois, na saída, os dois começam a se pegar. Quando os dois pararam e se
perguntaram porque João xingou Marcos. João respondeu:
- Porque o menino falou que você me xingou.
- É mentira.
Ai já sacaram que o menino tinha tramado isso. Os dois se uniram de volta e
bateram no menino. E nunca mais ninguém desrespeitou eles.
(Melhores amigos - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.21).
Certo dia dois amigos foram para a escola e se apaixonaram por uma mesma
garota que era muito bonita. Quando descobriram que gostavam da mesma garota,
começaram a brigar e saíram no tapa [...]
(trecho de Dois amigos e amigas – uma história de amor - Histórias de
Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.19).
[...] Certo dia Tato não aguentou Deole chamar ele de gordo, partiu pra cima de
Deole e começaram a brigar [...]
(Trecho da história Os dois trapalhões - Histórias de Adolescentes, Histórias para
Adolescentes, p.20).
Certo dia na escola havia dois jovens brigões chamados João e Pedro. Eles batiam
em todos da escola. Todos que os enfrentavam, apanhavam e apanhavam feio.
Um dia eles pegaram um menino, o Marcos, que era um pouco forte. E todos
começaram a brigar feio [...]
(Trecho da história Os dois jovens brigões - Histórias de Adolescentes, Histórias
para Adolescentes, p.25).
Certo dia, meu melhor amigo se meteu em uma cilada na escola, só por causa de
uma garota. Era um dia de segunda-feira, iniciavam-se as aulas e os dois amigos
iam juntos para a escola, quando um garoto foi logo falando:
- Por que você deu em cima da minha garota?
Aflito com essa situação ele respondeu:
- Olha eu não sabia que você gostava dela.
O garoto estava morrendo de raiva, quando chegou em casa pegou uma arma que
estava guardada no armário e foi para a escola.
De repente todo mundo escutou um barulho de uma arma:
- POW. POW.
Foram dois tiros. O menino foi para a UTI e o outro se matou. Foi uma morte
trágica. Infelizmente o garoto e o menino morreram.
(O garoto - Histórias de Adolescentes, Histórias para Adolescentes, p.27).
Esse modo de narrar suas vidas nos possibilita conhecer melhor esses adolescentes
e o modo como se relacionam com os fatos. Nesses trechos das histórias, e em outras
27
produzidas pelos adolescentes, há relatos de brigas com socos e tapas, assassinatos, entre
outras situações que parecem estar presentes na vida desses adolescentes de modo real (em
situações presenciadas) ou fictício, (vistos em filmes ou na mídia). Vigotski (1930/2010)
relata a existência de algumas formas de relação entre imaginação e realidade, sendo que
uma delas se dá pelo fato de que toda obra da imaginação se utiliza de elementos adotados
da realidade e das experiências passadas da pessoa para se consolidar. Assim sendo,
conclui-se que “a imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade da
experiência anterior da pessoa” (p.20), já que essas experiências são o material principal da
imaginação. Dessa forma, entende-se que há grande necessidade de ampliar as
experiências dos alunos, a fim de construir bases fortes para que ela desenvolva seu
potencial de criação.
Outro elemento destacado é a aproximação das histórias com a realidade. Parece
que os alunos que escreveram as histórias não conseguem fazer o movimento que Vigotski
relata como sendo de fundamental importância no processo imaginativo:
dissociação/associação/combinação para criar uma história com encadeamento dos fatos.
Então, os enredos criados parecem se valer de “passes de mágica” para sua resolução,
sendo que a imposição do medo no outro pela agressão física é elemento que favorece a
resolução de todos os conflitos abordados nas histórias.
As histórias remetem a situações cotidianas, concretas, da vida do aluno – brigas na
escola. Esse dado poderia indicar que o pensamento abstrato, como forma de produção
decorrente da imaginação não está apropriado por este jovem e daí não ter elementos para
construir uma narrativa com características de ficção. A ausência do pensamento abstrato
dificulta em muito o processo de imaginação, e emperra o desenvolvimento de formas
mais elaboradas de pensamento, mantendo o sujeito preso ao universo concreto que o
28
circunda, além de dificultar o aprendizado de conceitos científicos característicos desta
etapa de escolarização.
Segundo Vigotski (1930/2010), é possível identificarmos dois tipos de atividades
essenciais no processo imaginativo. A primeira, que denomina de atividade reprodutora,
está intimamente ligada à memória, que consiste na produção de atividades que tomam
como base algo já vivido ou experimentado, dando-lhe novas formas ou arranjos.
Entretanto, problematizando esse tipo de criação o autor diz que se o homem se limitasse
apenas a atividades reprodutoras seria um ser voltado ao passado. Assim, para que os
indivíduos possam viver e construir o futuro é necessária outra forma de atividade, a
criadora, que tem como base a imaginação ou fantasia, que seria a capacidade do homem
de combinar elementos do passado para criar o futuro.
Observa-se que no processo de imaginação várias funções psicológicas estão
envolvidas, visto que para Vigotski (1930/2010), a imaginação compõe um sistema,
denominado pelo autor de sistema psicológico. Neste processo, em conjunto com a
imaginação outras funções como a fala, o pensamento e, sobretudo a memória têm papel
fundamental. Portanto, para o autor a memória seria base para o desenvolvimento da
imaginação. Entretanto, somente a memória não é capaz de caracterizar uma atividade
criadora, mas sim uma atividade reprodutora.
Frente à possibilidade de realizar uma atividade criadora, os alunos recorrem à
memória, ou seja, a situações vividas em sua vida cotidiana e como as lembram, relatando
situações muito frequentes na vida desses jovens, como por exemplo, a relação entre
amigos, namoro e escola.
Não estamos dizendo que a memória se constitui como uma função menos
importante que a imaginação, ao contrário, reconhecemos sua importância na manutenção
29
e no desenvolvimento da humanidade, pois, como vimos, sem ela não seria possível
conhecermos todos os feitos do homem ao longo de sua história, e nem poderíamos,
enquanto pesquisadores, acessar as informações que compõem o cotidiano e o fenômeno a
serem investigados. O que queremos afirmar é que a produção escrita dos alunos nos
revela um pensamento mais concreto, característica da infância, em que a memória parece
assumir predomínio em detrimento do pensamento e da imaginação.
Parece que esses alunos não possuem experiências que favoreçam o
desenvolvimento do pensamento abstrato e da imaginação. Observamos por meio das
histórias dos alunos um comportamento quase primitivo, em que a força física prevalece
em detrimento do diálogo.
Essa acepção nos conduz a questionar se essa simbolização da violência como
modo de resolver problemas tem sido objeto de problematização na escola, com vista a
promover a reflexão dos alunos sobre o que significa, sobre suas consequências,
oferecendo novos repertórios de experiências mais saudáveis, já que o contexto escolar
aparece como espaço em que se desencadeiam conflitos e agressões.
Vejamos algumas histórias escritas pelos alunos em que a escola aparece como
protagonista:
Em um belo dia, dois amigos João e Willian estavam brigando quando seu
professor muito chato começou a dizer:
- Meninos, parem de brigar! Vão vocês dois para a diretoria agora! Já.
E todos começaram a dizer:
- Eu vou chamar seu pai aqui para conversarmos.
Chamaram os pais para conversar. Depois daquele dia o João e o Willian nunca
mais levaram reclamação para os pais que ficaram felizes.
(Trecho da história João e Willian - Histórias de Adolescentes, Histórias para
Adolescentes, p.24).
30
Era uma vez um menino muito briguento que batia em todo mundo da sua escola, e
todo dia sua mãe ia na escola e sempre ouvia a mesma coisa da diretora:
- Seu filho tem que aprender a se comportar.
E sua mãe respondia:
- Eu não tenho culpa se ele é assim.
E todo santo dia era assim, a diretora falava, a mãe respondia e ia embora. [...]
(Trecho da história Amizade - Histórias de Adolescentes, Histórias para
Adolescentes, p.14).
Observe-se, nas histórias acima, o modo como os conflitos envolvendo os alunos
são encaminhados pela escola, que, via de regra, se utiliza da punição, visto a menção à
conversa com diretor, suspensão ou a presença dos pais na escola. As histórias dos alunos
nos revelam que muitas das ações na escola são voltadas para a imposição do sentimento
de medo no outro, indicando que as práticas punitivas ainda prevalecem nesse contexto em
detrimento do diálogo. E, segundo Souza (2005), quando o sentimento de medo está
presente é porque a autoridade falhou.4.
Ao trazerem elementos importantes para compreendermos o modo como vivem e
empreendem essas modalidades de relações, as histórias dos alunos se aproximam da
atividade reprodutora que, como vimos, faz parte do processo da imaginação, mas tem
como característica o predomínio da memória como função psicológica superior. Para que
ocorra o desenvolvimento da imaginação, é preciso a formação de novos nexos entre as
funções e que essas ganhem em qualidade no seu modo de funcionar, ou seja, é necessário
que a memória se una à fala e principalmente ao pensamento, o que dá a pessoa a
possibilidade de recorrer aos conteúdos memorizados e pensar sobre eles, criando algo
novo, colocando em movimento a atividade criadora. Isto reafirma o que Vygotski
(1934/1991) propõe sobre as funções psicológicas enquanto um sistema.
Frente a essas questões, temos clareza que o não investimento em ganhos
qualitativos no desenvolvimento da fala e do pensamento, pode ser uma das explicações
4 Uma análise aprofundada sobre a questão da autoridade e do respeito na escola pode ser encontrada em
Barbosa, 2012 e Souza, 2005, citadas nas referências bibliográficas.
31
possíveis para a ampliação e desenvolvimento da imaginação desses jovens. Ao realizar a
atividade de ensino por meio do uso de tarefas em que há o predomínio da cópia, não se
coloca os alunos para refletir sobre o conteúdo e nem a falar sobre ele, ficando, muitas
vezes no âmbito dos conceitos cotidianos, sendo que o objetivo fundamental da escola
deveria ser o desenvolvimento dos conceitos científicos, que, segundo Vygotsky
(1934/1991), são aqueles conceitos que se distanciam dos aprendidos em seu cotidiano e
que são base para a apropriação do conhecimento.
Quando o aluno tem acesso aos conhecimentos produzidos historicamente,
enquanto conceitos científicos, tem seu pensamento e sua fala favorecidos, e assim
possibilita a ampliação da experiência e do desenvolvimento da imaginação. Essa função
não é necessariamente desenvolvida por atividades “diferentes” ou lúdicas. Esta pode ser
apenas uma forma de transmitir o conhecimento, e é por meio dele que o indivíduo
desenvolve sua imaginação.
De um modo geral podemos dizer que, a partir de nossas observações, o foco da
escola tem sido o ensino de um conhecimento hermeticamente pronto, sem possibilidade
de se avançar naquilo que se sabe, ou muitas vezes, naquilo que o aluno não sabe e que
serve para culpabiliza-lo por sua não aprendizagem, sendo esta um processo que se dá
somente por meio da memorização, como podemos ver a seguir, nos trechos de diários de
campo:
Em um determinado momento a professora [de inglês] aponta as frases escritas na
lousa e diz:
- Essas frases vocês podem encontrar em joguinhos, sabiam?
Enquanto a professora tenta fazer com que os alunos copiem as frases da lousa, as
alunas na minha frente conversam sobre relacionamentos e viagens com os
namorados (Diário de Campo – 30/10/2013).
O tema da aula [de artes] agora é arte afro-brasileira. A professora escreve um
texto na lousa (texto que ela copia de um livro) e solicita que os alunos copiem em
seus cadernos (Diário de Campo – 30/10/2013).
32
Nesses trechos é possível notar como as atividades de cópia são valorizadas pelos
professores, que a todo o momento pedem que os alunos transcrevam em seus cadernos
aquilo que está na lousa, sem, muitas vezes, contextualizar tal conteúdo. Mas observamos,
também, que esse conteúdo não tem significado e nem sentido para esses alunos.
De acordo com Vygotski (1931/2006), a adolescência, enquanto fase do
desenvolvimento, é caracterizada pela idade de transição. Nesse período, o modo como o
sujeito vivencia suas relações com o meio e com os outros é totalmente diferente dos
estágios anteriores, havendo um avanço qualitativo nos nexos estabelecidos entre as
funções psicológicas. Fato importante a ser destacado é a mudança que se dá nos interesses
e nos motivos que estão na base da ação dos adolescentes.
Essa compreensão apresenta-se como fundamental para pensarmos o processo de
ensino-aprendizagem, na medida em que fornece elementos ao professor para a construção
de seu planejamento de aula. Não restam dúvidas de que há um conteúdo a ser ensinado. A
questão é o como fazê-lo. Atrelado a isso, é preciso ainda tentar responder por que fazê-lo
e para quem se dirige. Se o professor conhece seu aluno, sabe quais são seus interesses,
consegue acessá-los e aproximá-los do conteúdo a ser ensinado, ao mesmo tempo em que
abre a possibilidade de configuração de novos significados e sentidos sobre o que ele
aprendeu.
Nesse processo todo, a imaginação desempenha papel fundamental para o
desenvolvimento do psiquismo ao permitir a criação do novo, a imaginar de que maneira
os conhecimentos construídos contribuem para sua vida, de relacionar acontecimentos já
passados com os que agora acontecem e como poderá ser no futuro. É a possibilidade do
devir que se evidencia.
33
Contudo, verificamos que os alunos se acostumaram com esse método de “ensino”
e preferem copiar algo pronto a pensar junto com o professor, conforme demonstram os
recortes abaixo:
- Dona, fala para a professora passar um texto na lousa para a gente copiar!
- Pesquisadora: mas vocês gostam de ficar copiando?
- É melhor copiar do que ficar fazendo lição. (Diário de Campo – 24/10/2011).
- Pesquisadora: Tenho uma proposta para fazer para vocês. Já faz um tempo que
venho aqui ler contos e crônicas, e percebo que vocês sempre querem participar e
ler também. Que tal hoje vocês fazerem uma história e depois vocês podem vir aqui
na frente contar.
- Ah não, Dona!
- Não gosto de escrever!
- Vamos sim!
- Não sei escrever.
(Diário de Campo – 30/05/2011).
Não se pode negar que a passagem pela escolarização amplia a experiência dos
sujeitos, coloca-os em contato com novas formas de compreender o mundo, constituindo-
se, portanto, como mediação fundamental na promoção do desenvolvimento. No entanto, o
que temos visto em estudos e notícias amplamente divulgadas pela mídia é que a função
primordial assumida pela escola tem sido a garantia do convívio social, e o processo de
ensino-aprendizagem acaba se dando pela via da reprodução, sendo endossado tanto pelo
professor quanto pelo aluno.
Segundo Libâneo (2012), a função da escola não é de amparo social, mas sim
constituir-se como fonte de transmissão de conhecimentos, aprendizagem dos conteúdos
produzidos ao longo da constituição da humanidade. Como vimos nos relatos
apresentados, a escola tem se limitado, em grande parte do tempo, à reprodução de
discursos, de conhecimento, e de comportamento em que não há ação do sujeito, somente
o seu assujeitamento. Desse modo a escola forma pessoas com habilidade de memorizar,
ou seja, que não são capazes de pensar para além do concreto, que não aplicam seu
conhecimento em sua vida cotidiana, que não se vê como autor e ator de seu tempo, de sua
34
história, não se imagina como sujeito participante de sua vida capaz de promover
transformações em sua realidade.
O fato de a imaginação desses alunos ser basicamente fundada na memorização,
mostra que a escola não está favorecendo o acesso ao conhecimento, e, segundo Vigotski
(1930/2010), não há imaginação possível sem o conhecimento. Isso significa que esses
alunos estão sendo afastados da possibilidade de pensar para além da sua realidade. Como
vimos, o processo imaginativo se dá a partir das experiências e do modo como o sujeito as
vivenciam, e isso nos faz questionar quais seriam as possibilidades de ampliação de
experiências que vêm sendo promovidas pela escola. Imaginar diferentes formas de lidar
com algumas situações, de se relacionar com os outros, são elementos que vamos
configurando ao longo do nosso desenvolvimento em relação ao meio no qual nos
inserimos, e a escola, via de regra, parece estar evidenciando a falta (falta respeito,
dignidade, implicação) e revelando um não investimento no potencial do sujeito e naquilo
que ele é capaz de fazer, cerceando suas experiências e limitando-os àquilo que vivem em
seu dia-a-dia.
Acreditamos que o não investimento da escola no enriquecimento das experiências
do aluno e no seu conhecimento além de não favorecer o desenvolvimento da imaginação
também nutre um pensamento baseado no preconceito, categoria que será discutida a
seguir.
35
4.2. O DESENVOLVIMENTO DA IMAGINAÇÃO COMO POSSIBILIDADE DE SUPERAÇÃO
DO PRECONCEITO
Durante a intervenção realizada por Barbosa (2012) foram feitas leituras de
histórias que visavam mobilizar a imaginação dos adolescentes e que, posteriormente, os
ajudassem a expressar ideias sobre os temas abordados por tais histórias. Segundo a autora,
as histórias possuem papel fundamental no desenvolvimento dos sujeitos, uma vez que são
capazes de despertar a imaginação e a reflexão de diferentes acontecimentos e situações, o
que possibilitaria “ao leitor transitar por diferentes mundos sem sair do lugar” (p.48), além
de favorecer o aparecimento de emoções diversas (Barbosa, 2012).
Após as leituras, abria-se um espaço para a discussão entre os alunos, que podiam
livremente, um de cada vez (o que nem sempre acontecia), dizer o que tal história os fazia
pensar. Esses pensamentos, como pudemos observar, estavam intimamente ligados à suas
próprias vidas, e demonstravam situações da vida cotidiana.
No primeiro encontro com os alunos foi contada uma história de Monteiro Lobato
chamada O gato vaidoso5 que, segundo os próprios alunos, discorria sobre um “gato rico
que humilha o gato pobre”. Abaixo, vemos algumas falas de alunos ditas durante a
discussão e registradas em diário de campo:
5Todos os trechos utilizados nesse trabalho referentes ao diário de campo do dia 02/05/2011 são relativos a
essa mesma atividade na qual Barbosa (2012) utiliza o conto de Monteiro Lobato (1884-1948) “O gato
vaidoso”.
36
- Dona! Minha tia é rica, mas nem olha na minha cara!
- Pesquisadora: e como é isso na escola?
- Aqui tem os pobres da escola pública e os ricos que estudam na escola
particular! (risos)
- Pesquisadora: Qual a diferença entre essas duas escolas?
- Lá eles pagam para estudar!
- Aqui a comida é ruim!
- Dona, já encontrei até um bicho na comida!
- O macarrão daqui é duro, parece o prato (risos)!
- Isso é um problema de POLÍTICA!
- Pesquisadora: Como assim? Política?
- Precisa falar com o prefeito para ele dar uma comida melhor e limpar a escola!
(Diário de Campo - 02/05/2011).
No trecho acima conseguimos nos aproximar das situações vividas pelos
adolescentes em seu dia-a-dia. São as diferenças sociais que assumem relevo,
ultrapassando os limites das cidades e dos bairros, adentrando os muros da escola. Além
disso, é possível dizer que os alunos conhecem as diferenças de se estar em uma escola
particular e em uma pública. Eles sabem que na escola particular os alunos têm que pagar
para ter suas aulas, enquanto eles, que frequentam a escola pública, têm seus estudos
financiados pelo governo, ou ao que parece, pelo prefeito, que seria quem eles deveriam
contatar para haver melhorias na estrutura escolar. Parece-nos que há a ideia de que o
público é gratuito, mas sabemos que não o é, já que o financiamento da educação pública
tem sua fonte nos impostos pagos pela própria população.
Esses são elementos presentes no cotidiano dos alunos que constituem a vida de
cada um deles. Para Heller (2004), a vida cotidiana é a vida de todo homem, pois não há
quem esteja fora dela, e do homem inteiro, na medida em que nela são postos em
funcionamento todos os seus sentimentos, capacidades intelectuais, ideias e ideologias.
Essa autora afirma que todo homem nasce inserido na vida cotidiana, porém não é possível
viver inteiramente nela ou abandoná-la completamente. Portanto, é na vida cotidiana que o
sujeito se constitui como indivíduo, sendo este compreendido como aquele que possui
certa liberdade em fazer escolhas, que é sujeito de sua história e consciente de suas ações
37
no contexto em que está inserido, recorrendo a habilidades características tanto do humano
genérico como de sua particularidade (Heller, 2004).
A particularidade do homem se expressa por suas motivações e interesses, que visa
à satisfação de suas próprias necessidades. Em contrapartida, o humano genérico se orienta
para o “nós”, como um sujeito consciente de suas interferências no contexto social (Heller,
2004). Segundo a autora, na vida cotidiana há um equilíbrio entre o particular e o humano
genérico.
Heller (2004) indica a necessidade de uma gama variada de pensamentos e ações
para a vida cotidiana, considerando que esta é: heterogênea e hierárquica, em relação a seu
conteúdo e à importância atribuída às suas atividades; espontânea, na medida em que
muitas ações são realizadas de forma automática; econômica, levando-se em conta que o
pensamento e a ação manifestam-se e funcionam somente na medida em que são
indispensáveis à continuação da vida; repleta de juízos provisórios e ultrageneralizações6.
Tais necessidades, se absolutamente cristalizadas, ao ponto de impedir que o indivíduo
possa se movimentar, levando à alienação e ao preconceito.
A nosso ver, o preconceito evidencia-se no imaginário dos alunos, na medida em
que eles atribuem rótulos e caracterizações negativas àqueles que são ricos, construindo
juízos provisórios e ultrageneralizações que justificam a conduta dos sujeitos ricos e os
protegem de sua condição enquanto sujeitos da diferença social.
6 Toda ultrageneralização é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento: provisória
porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito
processo de prática. De duas maneiras chega-se as ultrageneralizações características de nosso pensamento e
de nosso comportamento cotidiano: por um lado assume-se estereótipos, analogias e esquemas já elaborados;
por outro eles nos são impingidos pelo meio em que crescemos (HELLER, 2004, p. 44).
38
Com o avanço na discussão com os alunos, estes buscaram justificativas e
explicações para as diferenças socioeconômicas que vivem e percebem, conforme se
observa nas falas abaixo:
- Dona, pessoas ricas são metidas, gostam de humilhar os outros, “se acham”!
- Quanto mais rica a pessoa, mais dinheiro ela quer!
- Dona, tem um garoto aqui na escola que é rico, mas ele é um mala! E também
mariquinha! Só anda com tênis novo!
- As pessoas pobres são mais unidas, já os ricos não, são chatos.
- Pesquisadora: Mas todas as pessoas ricas são chatas?
- Nem todos são assim. Eu conheço pessoas ricas que são legais!
- Mas a maioria é chata. (Diário de Campo - 02/05/2011).
- Dona, rico come caviar, essas coisas! Já pobre come galinha, porco... (risos).
- Não concordo! Eles comem as mesmas coisas que nós, só que vão ao restaurante!
- Rico quando come fica “cheio de dedo” (fez gestos delicados com as mãos).
- Rico compra roupa sempre e usa uma vez só e já joga fora! Já o pobre usa a
roupa até ficar velha! Às vezes nem lava! (risos). (Diário de Campo - 02/05/2011).
Os alunos continuaram a atribuir características negativas ao rico, como
“mariquinha”, “chato”, “arrogante”, entre outras denominações que visam ofender ou
depreciar. Mesmo após a tentativa de promover uma reflexão mais profunda a partir do
questionamento de que “todas as pessoas ricas são chatas” apenas um aluno se manifestou
contrário à opinião dos colegas, enquanto os demais mantiveram-se firmes em suas
posições. Não encontramos nessa situação nenhum indício da mediação de um
conhecimento científico para explicar os motivos que estariam na base destas diferenças
socioeconômicas, elas continuaram a justificá-las com base no preconceito.
Podemos considerar, dessa forma, o preconceito como uma categoria do
comportamento e do pensamento cotidiano, sendo esse fixado na experiência, no empírico,
e nos juízos provisórios, e que tem em sua base a ultrageneralização (Heller, 2004).
39
Segundo Heller (2004) há sempre um afetivo na base dos preconceitos. Considera-
se que existem dois principais afetos que nos ligam a uma opinião, visão ou convicção.
São eles a confiança e a fé.
A confiança relaciona-se ao indivíduo, e se apoia no saber e no conhecimento. Uma
ideia refutada pelo pensamento e pela experiência, ou seja, se um conhecimento científico
a desmistifica, a confiança na ideia ou crença acaba por desaparecer. Em contrapartida, a
fé, que nasce na particularidade do indivíduo, tende a uma maior resistência.
A fé se faz e é alimentada na necessidade do indivíduo e em suas motivações, e ao
servir para cessar essas carências internas sem o auxílio ou a companhia do pensamento e
da reflexão, é o que está na base do preconceito. Considera-se que há um par de
sentimentos sempre presente na fé. O amor-ódio. O ódio não é dirigido tão somente contra
aquilo que não pertence à nossa fé, mas também a quem não compartilhe dos mesmos
ideais, sendo que a intolerância emocional é uma consequência da própria fé (Heller,
2004).
Considerando-se que o conhecimento é o que dá ao homem autonomia para fazer
escolhas, pode-se entender que o preconceito, na medida em que se contrapõe a esse saber,
limita a liberdade do indivíduo (Heller, 2004).
Essas considerações nos permitem dizer que o que está na base das representações
dos alunos é a fé que, como dito anteriormente, alimenta as necessidades do indivíduo. Isto
nos leva a ampliar nossa reflexão questionando: o que estaria na base dessas
representações dos alunos? Se por um lado parece que ser rico para os alunos é algo
negativo, por outro parece que este discurso contra o rico esconde a grande valorização
que atribuem aos bens materiais. Os trechos a seguir ilustram essa acepção:
40
- Dona, têm muitas meninas que casam com um cara rico só por causa do
dinheiro! Tem filhos e depois largam para ficar com a pensão;
- Pesquisadora: Meninas, o que vocês acham disso?
- Eu concordo!
- Pesquisadora: Vocês acham que o importante é o dinheiro do garoto?
- Sim! (Diário de Campo - 02/05/2011).
- Esses dias eu estava no Eldorado e passou um cara com uma BMW e me olhou de
cima para baixo e fez joia! (Diário de Campo - 02/05/2011).
- Dona, têm mulheres que querem dinheiro só para ficarem mais bonitas. Por
exemplo, a Xuxa, aquele olho azul dela e aqueles “peitões” são falsos, ela colocou
lentes e silicone para ficar assim;
- É mesmo, dona. As mulheres querem dinheiro para ficarem mais bonitas!
- Dona, esse garoto aí (apontando para o menino que estava do meu lado) é rico!
Fui a casa dele outro dia e tinha uma televisão tamanho 42!
- Garoto responde: Não sou rico, sou classe média. (Diário de Campo -
02/05/2011).
Essas falas revelam que os alunos valorizam o poder econômico, e que, inclusive,
demonstram uma representação de que ser rico é ter poder, é ser respeitado e sinônimo de
beleza. Neste sentido, parece que os alunos valorizam tanto o poder econômico que ao
serem expostos a impossibilidade de tal ascensão tentam compensar atribuindo
características negativas àqueles que têm acesso a esses bens (como mariquinha, arrogante,
metido, etc) e recorrem a valores morais positivos (como a honestidade e a justiça) para
definir as pessoas com nível socioeconômico menos favorecido.
As experiências vividas por esses adolescentes não permitem que haja um avanço
no modo como eles concebem a realidade na qual se inserem, as possibilidades de
mudanças acabam sendo limitadas, na medida em que essas concepções que perpassam seu
imaginário relacionam-se a um pensamento que tem em sua base o preconceito e a fé,
característico da vida cotidiana. Não há a mediação do conhecimento para favorecer a
ampliação do imaginário destes jovens e, por conseguinte, o desenvolvimento do
pensamento. Sendo assim, o que queremos afirmar nesta categoria é que na ausência do
conhecimento, o que “nutre” a imaginação é o preconceito.
41
Esse modo de narrar sua realidade também aparece nas historias escritas pelos
alunos:
Era uma vez um homem chamado Pedro com 35 anos, que morava em uma casa
humilde. Era muito honesto com sua família e com as pessoas da rua. Havia
também um homem que morava em um apartamento com sua esposa, e gostava de
debochar das pessoas que eram pobres. Ele sempre dizia:
- Ra, ra, ra, esses daí eu nem dou valor porque eles são pobres e não têm
educação.
E sempre o homem humilde estava lá em frente de sua casa e não aguentava mais
ser tratado daquele jeito, então resolveu falar com sua esposa.
- Quero falar com você, amor. Posso?
- Sim, claro que pode, fala o que é.
- Eu estava pensando em desafiar aquele homem que passa aqui na frente falando
aquelas coisas horríveis pra gente. Será que é uma ótima ideia?
- Desafiar em quê?
- Em um luta de boxe.
- Humm, é uma boa ideia, será que ele aceita?
- Tem que aceitar, porque se ele é homem para falar essas coisas para nós, ele tem
que ser homem para lutar boxe.
- É, isso é verdade, ele é muito ignorante com as pessoas humildes. Como você irá
falar com ele?
- Na próxima vez que ele passar aqui em frente.
- Então tá.
O homem passou lá depois de dois dias, e o humilde disse a ele:
- Pare aí. Vamos nos desafiar?
- Em quê?
- Uma luta de boxe, e quem perder nunca mais pisa na cidade do outro.
- Então tá, só se for agora.
- Tá, deixe o carro estacionado nesse local bem nessa calçada, e você pode entrar.
Entraram os dois na casa e vestiram as roupas, colocaram as luvas e iam começar
em alguns minutos.
- Vamos começar, 1, 2, 3, e já.
A briga começou...
Acabou o 1º tempo.
Começou de novo...
E o homem humilde ganhou e venceu a luta. (O Boxe - Histórias de Adolescentes,
Histórias para Adolescentes, p.09).
Observa-se nesta história que o pobre é representado como uma pessoa honesta,
trabalhadora e que possui maior força física, enquanto que o rico é representado como
desrespeitoso, que não sabe dar valor às coisas que possuí. Nota-se o processo de
ultrageneralização no imaginário dos alunos em relação as pessoas ricas, não havendo
nenhum movimento crítico e reflexivo para explicar as diferenças que vivem com base no
42
conhecimento. E segundo Heller (2004), quando o conhecimento não está presente, o
preconceito prevalece.
O que parece estar predominando no pensamento dos alunos é a particularidade, e
não o humano genérico, uma vez que o que se sobressai nessas situações não é o
pensamento e a reflexão, aspectos do âmbito do humano genérico, mas sim os interesses
pessoais de tentar compensar as diferenças que vivem na realidade. A função criadora da
imaginação não se expressa, impedindo que novas formas de vivenciar essa realidade
sejam construídas; os significados e sentidos não são reconfigurados, e as concepções
continuam cristalizadas.
Nota-se também que pela via das histórias os alunos expressam suas concepções
sobre o que é certo, errado, honesto, desonesto, questões estas que nos remetem ao modo
como são apropriados os valores.
Segundo Souza (2005), a princípio a moral é externa ao indivíduo, que com a
mediação da cultura e do social, ou seja, nas e pelas interações estabelecidas com o outro,
torna-a, assim, interna, privada, e, dessa forma, constituinte do seu ser no processo de
autorregulação da conduta. Do mesmo modo os valores vão sendo configurados (ou
reconfigurados) pelos sujeitos, pois ao se relacionar com os outros entra em contato com
aquilo que é falado dele e para ele, atribuindo valor a si e ao outro, constituindo sua
identidade de uma pessoa “boa ou má”, “bonita ou feia”, “digna ou indigna”, e edificando
seu imaginário sobre os outros de suas relações.
Nas palavras da autora:
Se ser é “ser valor” e se o ser é constituído e constituinte do social, logo, é no
processo de interação, por meio da intersubjetividade, que os valores se constroem.
43
Então, quando pais e professores queixam-se dos valores presentes nos
filhos/alunos, deveriam voltar-se para si e perguntar sobre os próprios valores,
sobretudo aqueles que deveriam regular suas condutas de educadores na relação
com os educando (Souza, 2005, p.63).
Além da expressão de valores e da superioridade demonstrada para demarcar as
diferenças socioeconômicas, observamos esses mesmos aspectos para caracterizar a
utilização da força física, como aparecem nas falas dos adolescentes a seguir:
- É verdade! Esses dias fui à minha outra cidade no Paraná e um cara veio me
roubar. Eu estava com uma arma de pressão e dei dois tiros nele, mas ele levantou
a mão para mim e aí eu falei: Eu sou criança se você quiser brigar chamo meu
pai! (Diário de Campo - 02/05/2011).
- Pai pode bater no filho, mas filho não pode bater no pai!
- Pesquisadora: Como assim?
- O pai bate no filho porque está ensinando moral!
- Pesquisadora: O que é moral?
- Não sei!
- Eu sei! É como devemos nos comportar!
- O pai é quem tem que ensinar como devemos nos comportar!
- Esses dias eu não queria ir ao catecismo, então meu pai me deu uma surra! Aí eu
fui ao catecismo com o olho roxo (risos).
- Mas não somos só nós que aprontamos, às vezes os pais também aprontam, fazem
coisas erradas. A diferença é que nós não podemos bater (risos).
- Pesquisadora: O que vocês fazem quando o pai apronta?
- Aí eles mesmos (os pais) sabem que fizeram coisas erradas, eles têm consciência.
(Diário de Campo - 16/05/2011).
- Ele não deu o soco porque era Mariquinha!
- Pesquisadora: O que é ser Mariquinha?
- É quando não bate, fica com frescura! (Diário de Campo - 23/05/20117).
Os trechos acima nos colocam frente a uma contradição: como os valores morais
podem ser colocados como forma de justificar o uso da força física? Parece que para esses
alunos a força física é uma forma de impor respeito, de ser valorizado, de não ser
“mariquinha”. Eles também expressaram a concepção de que a força física é uma forma de
7Todos os trechos utilizados nesse trabalho referentes ao diário de campo do dia 23/05/2011 são relativos a
essa mesma atividade na qual Barbosa (2012) utiliza a crônica “Maluco Beleza”.
44
ensinar os valores morais, conforme se observa na seguinte frase “O pai bate no filho
porque está ensinando moral!”. Novamente nota-se como as experiências e os valores
sociais vão construindo o imaginário desses jovens.
A análise desta categoria nos permite constatar que o que está nutrindo o
imaginário desses alunos não são experiências voltadas ao conhecimento, à reflexão, ao
abstrato; mas sim o cotidiano, em que o preconceito prevalece. Esta constatação nos
preocupa, nos leva a questionar o aluno formado hoje na escola pública, que muitas vezes
aparece identificado sobretudo nas avaliações oficiais como incapaz de questionar,
duvidar, e pôr em xeque os valores da sociedade contemporânea.
45
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo teve como objetivo analisar o papel da imaginação no desenvolvimento
de adolescentes observando o potencial da produção de histórias na agilização dessa
função psicológica e na promoção da criatividade no contexto escolar.
A imaginação possui um papel fundamental na constituição do sujeito e no
processo de ensino-aprendizagem, visto que por meio dela torna-se possível ao sujeito
visualizar conteúdos impossíveis de serem materializados, como por exemplo, os
conteúdos abstratos que compõe o currículo escolar. Também, é com o subsídio da
imaginação que o pensamento abstrato se desenvolve, permitindo ao sujeito pensar para
além de sua realidade concreta.
Entretanto, o que observamos na escola e nas histórias produzidas pelos jovens é
que a imaginação vem sendo pouco utilizada no processo de ensino-aprendizagem dos
adolescentes, o que pode ser identificado como um problema na escola, uma vez que
consideramos que a aprendizagem e a imaginação são processos imbricados e inseparáveis
no que concerne ao desenvolvimento do ser humano.
Nas histórias escritas pelos alunos observamos que os conteúdos se relacionam
com suas vivências cotidianas. Constatamos em nossa análise que a escola não vem
oferecendo um repertório de experiências que promovam o enriquecimento e
desenvolvimento da imaginação.
As histórias dos alunos são reveladoras do modo como se dão suas relações,
principalmente dentro da escola, e mostram que muitas vezes o que medeia o contato entre
alunos e alunos, alunos e professores, e alunos e direção, é a força física e o sentimento de
medo, e não o diálogo e a reflexão. Parece que esses jovens não possuem outras
46
experiências que possibilitem resolver conflitos de modo mais saudável e acreditamos que
a imaginação pode ser uma via de aceso à experiência desses jovens ao mesmo tempo em
que aponta caminhos sobre o modo de se investir em sua formação. Fato é que a escola
carece de criatividade para ampliar seu próprio repertório de ação, oferecendo novas
possibilidades de se aprender e ser para os atores que dela participam.
Durante os momentos de reflexão a partir das histórias contadas por Barbosa
(2012), os alunos demonstraram um modo de pensar muito preso a realidade, sendo que o
conhecimento científico não foi utilizado em nenhum momento para explicar a realidade
que vivem. Em nossa concepção tal constatação é que sustenta o pensamento dos alunos
pautado no preconceito. Constatamos que quando o sujeito não possui uma experiência
rica e ampliada principalmente pelo conhecimento, o que “nutre” a imaginação desses
adolescentes é o preconceito.
O principal tema abordado pelos alunos nas discussões realizadas foi a diferença
socioeconômica, sendo que para explicar a diferença que vivem e percebem, recorrem a
representações baseadas no preconceito. Não houve nenhum movimento de reflexão acerca
de como nossa sociedade se constitui, sobretudo no nosso país em que a desigualdade
social é dominante. Assim sendo, consideramos que a escola não favorece o avanço deste
modo de pensar, na medida em que não oferece a mediação do conhecimento, o que alija
os alunos de pensar para além da realidade concreta, de desenvolver uma consciência mais
ampliada.
Ante o exposto, a discussão acerca do papel da imaginação e sua importância no
contexto escolar não pode ser confundida ou associada a atividades diferenciadas ou de
lazer, mas como uma função desenvolvida a partir do acesso ao conhecimento e
fundamental para o desenvolvimento do pensamento abstrato.
47
Se por um lado observamos o quanto a imaginação parece não ser compreendida
pelos educadores e por conseguinte pouco valorizada no Ensino Fundamental, por outro
nos perguntamos acerca da instrução desses educadores ao longo de sua formação no que
tange a temática da imaginação. Será que tal temática é abordada nos cursos de formação?
Se sim, de que modo? A partir de qual perspectiva? Estas são questões a serem
respondidas por estudos futuros.
De nossa parte, cabe destacar a necessidade de a imaginação ser considerada como
função importante no processo de ensino-aprendizagem, e acreditamos que o Psicólogo
Escolar pode trazer contribuições para as situações descritas e analisadas neste estudo, por
meio de reflexões sobre o importante papel da imaginação na adolescência com os
professores e a equipe gestora. Enfatizamos também a contribuição das histórias em
intervenções com adolescentes, visto sua potencialidade em despertar a imaginação, a
reflexão sobre diferentes fenômenos da realidade, a vivência e elaboração de diferentes
emoções e sentimentos.
Por fim, realçamos a necessidade de estudos que abordem como tema a imaginação
na adolescência a partir da perspectiva da Psicologia Histórico-cultural, principalmente no
que se refere ao modo como professores e equipe gestora percebem o papel da imaginação
no desenvolvimento dos alunos.
48
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(Original publicado em 1934).
51
7. ANEXOS
a. ANEXO 1 - CATEGORIAS DE ANÁLISE
FONTE CATEGORIA INDICADORES
Imaginação e memória: pares de opostos que se
complementam
DIÁRIO
DE CAMPO
24/10/2011
- Dona fala para a professora passar um texto na
lousa para a gente copiar!
- Pesquisadora: mas vocês gostam de ficar copiando?
- É melhor copiar do que ficar fazendo lição.
Atividade
Reprodutora
DIÁRIO
DE CAMPO
30/05/2011
- Pesquisadora: Tenho uma proposta para fazer para
vocês. Já faz um tempo que venho aqui ler contos e
crônicas, e percebo que vocês sempre querem
participar e ler também. Que tal hoje vocês fazerem
uma história e depois vocês podem vir aqui na frente
contar.
- Ahh não Dona!
- Não gosto de escrever!
- Vamos sim!
- Não sei escrever.
Atividade
Reprodutora
DIÁRIO
DE CAMPO
30/10/2013
Em um determinado momento a professora aponta as
frases escritas na lousa e diz “essas frases vocês
podem encontrar em joguinhos, sabiam?”.
Enquanto a professora tentar fazer com que os
alunos copiem as frases da lousa, as alunas na minha
frente conversam sobre relacionamentos e viagens
com os namorados.
Atividade
Reprodutora
DIÁRIO
DE CAMPO
30/10/2013
O tema da aula era ‘propaganda’. Eles teriam que
usar cartolina, jornal canetas, tesoura e cola para
montar uma propaganda.
Atividade
Criadora
DIÁRIO
DE CAMPO
30/10/2013
O tema da aula agora é arte afro-brasileira. A
professora escreve um texto na lousa (texto que ela
copia de um livrinho) e solicita que os alunos
copiem em seus cadernos
Atividade
Reprodutora
JOÃO E
WILLIAN
(livro)
Em um belo dia, dois amigos João e Willian estavam
brigando quando seu professor muito chato começou
a dizer:
- Meninos, parem de brigar! Vão vocês dois para a
diretoria agora! Já.
E todos começaram a dizer:
- Eu vou chamar seu pai aqui para conversarmos.
Chamaram os pais para conversar. Depois daquele
dia o João e o Willian nunca mais levaram
reclamação para os pais que ficaram felizes.
Atividade
Reprodutora
52
AMIGOS
PARA
SEMPRE
(livro)
Era uma vez um menino chamado Bruno que
gostava muito de brigar na escola, só para não fazer
lição, e todo dia sua mãe Maria tinha que estar lá na
diretoria.
Certo dia chegou um aluno novo na sala que se
chamava João. Ele tinha a fama de ser nerd. Quando
João chegou na sala de aula, o Bruno mandou ele
fazer sua lição de casa, mas João falou:
- Não!
Bruno respondeu:
- Tem certeza?
- Tenho.
Bruno e João começaram a bater um no outro.
Depois Bruno ficou muito arrependido do que fez e
falou para João:
- Me desculpa, estou muito arrependido do que fiz.
João respondeu:
- Eu te desculpo, mas não é só porque eu não fiz sua
lição que você pode sair batendo em todo mundo
assim!
- Está bem, vou tentar me controlar.
Então, os dois alunos se abraçaram e viraram amigos
para sempre.
Atividade
Reprodutora
DOIS AMIGOS
E DUAS
AMIGAS -
UMA
HISTÓRIA DE
AMOR
(livro)
Certo dia dois amigos foram para a escola e se
apaixonaram por uma mesma garota que era muito
bonita. Quando descobriram que gostavam da
mesma garota, começaram a brigar e saíram no tapa.
A garota, percebendo a situação, não quis nenhum
dos dois e saiu com outro garoto. Os dois pararam de
brigar e ficaram olhando para ela.
Eles ficaram muito tristes, mas em compensação
foram para uma balada e se divertiram a noite
inteira, e no outro dia arrumaram duas amigas muito
bonitas. Eles saíram juntos com suas amigas para as
festas. Mas teve um dia que eles se apaixonaram por
elas, e resolveram contar para elas. Quando elas
ficaram sabendo, ficaram muito felizes e foram falar
com eles. Com o tempo se casaram e tiveram filhos.
Atividade
Reprodutora
53
AMIZADE
(livro)
Era uma vez um menino muito briguento que batia
em todo mundo da sua escola, e todo dia sua mãe ia
na escola e sempre ouvia a mesma coisa da diretora:
- Seu filho tem que aprender a se comportar.
E sua mãe respondia:
- Eu não tenho culpa se ele é assim.
E todo santo dia era assim, a diretora falava, a mãe
respondia e ia embora.
O Bruno, o menino briguento, já tinha brigado com
quase todos os meninos da escola, menos com Lucas
que era muito inteligente, mas os outros meninos o
chamavam de nerd. Lucas não tinha nenhum amigo.
Certo dia tinha alguns meninos zoando o Lucas, e o
Bruno chegou e empurrou o Lucas que caiu no chão.
Dias depois os meninos começaram a zoar o Bruno,
menos o Lucas que era diferente. Depois da briga
Lucas perguntou para o Bruno:
- Você quer ser meu amigo?
E o Bruno respondeu:
- É claro, agora eu entendo o que você sentia quando
aqueles garotos ficavam zoando com você.
Na hora do intervalo, quando os garotos viram o
Bruno e o Lucas andando juntos e dando muitas
risadas, alguns entraram na frente deles e
perguntaram:
- Do que vocês estão rindo?
E o Bruno respondeu:
- Não posso falar, isso é coisa de amigo, você não
iria entender.
Depois que o Bruno falou isso, chamou o Lucas e
saíram de lá, e nunca mais nenhum menino zoou o
Bruno, muito menos o Lucas.
Atividade
Reprodutora
OS DOIS
TRAPALHÕES
(livro)
Era uma vez dois trapalhões chamados Deole e Tato.
Eles viviam em uma vida de aventuras, só risos e
curtiam o dia como se fosse uma festa. Deole,
sempre de bem com a vida, adorava apelidar Tato de
gordo.
Certo dia Tato não aguentou Deole chamar ele de
gordo, partiu pra cima de Deole e começaram a
brigar.
Depois eles pararam e perceberam que era bobeira
brigar. Voltaram a ser como era antes, uma dupla
que sempre acorda de bem com todo mundo.
Viveram pelas ruas e sempre com o sorriso
estampado no rosto, sempre atentos a algum
apelido.Hoje Deole e o Tato fazem parte de um circo
que traz alegria para todos que ali estão.
Atividade
Reprodutora
54
MELHORES
AMIGOS
(livro)
Em um belo dia, dois meninos João e Marcos eram
os melhores amigos na escola. Todo mundo da
escola tinha inveja da amizade deles, quando um
menino pensou em fazer eles brigarem. Minutos
depois o menino falou para o João:
- O Marcos falou que já está cansado de você! Não
quer olhar mais para sua cara!
Assustado, João vai até Marcos e xinga ele. Sem
reação Marcos ameaça bater em João na saída. Horas
depois, na saída, os dois começam a se pegar.
Quando os dois pararam e se perguntaram porque
João xingou Marcos. João respondeu:
- Porque o menino falou que você me xingou.
- É mentira.
Ai já sacaram que o menino tinha tramado isso. Os
dois se uniram de volta e bateram no menino. E
nunca mais ninguém desrespeitou eles.
Atividade
Reprodutora
OS DOIS
JOVENS
BRIGÕES
(livro)
Certo dia na escola havia dois jovens brigões
chamados João e Pedro. Eles batiam em todos da
escola. Todos que os enfrentavam, apanhavam e
apanhavam feio.
Um dia eles pegaram um menino, o Marcos, que era
um pouco forte. E todos começaram a brigar feio.
A inspetora levou o João e o Pedro para a direção da
escola e o s dois foram suspensos por 5 dias.
As mães fizeram eles copiar a frase: “nunca mais
vou brigar”.
E o Pedro disse:
- Ah, mãe, eu não vou mais brigar com o João.
- Tem certeza, filho?
- Tenho mãe.
- Então faz as pazes com ele.
- Tá.
Ele chegou no João e disse:
- João, me desculpa.
- Claro, meu irmão.
E os dois nunca mais bateram em ninguém na escola.
Atividade
Reprodutora
O
ESTUPRADOR
(livro)
Em um belo dia uma menina chamada Renata estava
passeando na praça, quando um estuprador a
sequestrou levou para um hotel e a estuprou com
uma faca.
O estuprador foi preso e ficou na prisão por 5 anos.
Depois deste tempo, ele foi solto e continua
estuprando. A família de Renata sente muito, como
todos da cidade.
Atividade
Reprodutora
55
O GAROTO
(livro)
Certo dia, meu melhor amigo se meteu em uma
cilada na escola, só por causa de uma garota. Era um
dia de segunda-feira, iniciavam-se as aulas e os dois
amigos iam juntos para a escola, quando um garoto
foi logo falando:
- Por que você deu em cima da minha garota?
Aflito com essa situação ele respondeu:
- Olha eu não sabia que você gostava dela.
O garoto estava morrendo de raiva, quando chegou
em casa pegou uma arma que estava guardada no
armário e foi para a escola.
De repente todo mundo escutou um barulho de uma
arma:
- POW. POW.
Foram dois tiros. O menino foi para a UTI e o outro
se matou. Foi uma morte trágica. Infelizmente o
garoto e o menino morreram.
Atividade
Reprodutora
A MENINA
DAS ROSAS
VERMELHAS
(livro)
Era uma vez uma menina que vendia rosas
vermelhas na porta de um bar. Certo dia essa menina
morreu, mas todo dia a garota oferecia rosas à meia
noite na porta do bar. Um dia passou uma mulher
que não quis comprar rosas, a menina saiu correndo
atrás dela para oferecer rosas. Essa mulher ficou com
muita dó da menina e comprou uma rosa. A moça
levou a rosa para sua casa e foi logo amaldiçoada.
De repente a mulher viu um vulto passando pela
janela, quando virou viu a menina e ficou com muito
medo. Em um piscar de olhos a menina sumiu.
No outro dia que a moça estava voltando do trabalho
ela passou em frente do bar e perguntou:
- Onde está aquela menina que vendia rosas aqui na
frente?
E o homem respondeu:
- Essa menina morreu há séculos, ela está enterrada
em um túmulo que tem muitas bonecas.
No outro dia a mulher foi visitar o túmulo da
menina, quando entrou no cemitério e chegou perto
da cova, a porta do cemitério se fechou. Os mortos
se levantaram e a menina apareceu e a mulher ficou
aterrorizada. A menina falou:
- Moça eu preciso que você me ajude. Eu preciso
pegar três colares de cruz e colocar no pescoço das
bonecas que estão dentro da minha cova à meia
noite, senão vai ser amaldiçoada para sempre. Se
você fizer isso eu posso ir para o céu e nunca mais
ninguém irá mexer com você.
A mulher procurou em todas as casas e encontrou as
cruzes, aí a mulher pegou as bonecas e colocou a
cruz em cada boneca à meia noite. E nunca mais
ouviu falar da menina, nem em sonho.
Atividade
Criadora
56
FONTE CATEGORIA INDICADORES
O desenvolvimento da imaginação como
possibilidade de superação do preconceito
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Que o gato rico humilha o gato pobre, mas que
no fim eles são irmãos.
- Dona, pessoas ricas são metidas, gostam de
humilhar os outros, “se acham”!
- Quanto mais rico a pessoa, mais dinheiro ela
quer!
- Dona, tem um garoto aqui na escola que é rico,
mais ele é um mala! E também mariquinha! Só
anda com tênis novo!
- As pessoas pobres são mais unidas, já os ricos
não, são chatos.
- Pesquisadora: Mais todas as pessoas ricas são
chatas?
- Nem todos são assim. Eu conheço pessoas ricas
que são legais!
- Mas a maioria é chata.
Pergunto o que mais eles acharam da história:
- Dona tem mulher que querem dinheiro só para
ficarem mais bonitas. Por exemplo, a Xuxa,
aquele olho azul dela e aquele “peitões” são
falsos, ela colocou lentes e silicones para ficar
assim;
- É mesmo dona. As mulheres querem dinheiro
para ficar mais bonitas!
- Dona esse garoto aí (apontando para o menino
que estava do meu lado) é rico! Fui na casa dele
outro dia e tinha uma televisão tamanho 42!
- Garoto responde: Não sou rico, sou classe média.
Rico
depreciação:
mariquinha,
chato, injusto.
Diferenças
socioeconômicas
Rico
valorização:
bonito, bens
materiais.
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Li na bíblia que rico e pobre não podem se
misturar, porque o rico “judia” e manda no pobre.
Outro Garoto:
- É verdade isso está na pág. 160 (senão me
engano) no salmo X (Falou o numero, mas não me
recordo);
- Deus fala que somos todos irmãos!
- É eu sei, mas nesse trecho na bíblia está escrito
que eles não podem se misturar, pois o rico vai
mandar no pobre;
Rico
Depreciação
Diferenças
socioeconômicas
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Achei legal, mas às vezes o rico não sabe usar o
dinheiro e isso é pecado.
- Pesquisadora: Como assim?
- Às vezes as pessoas roubam dinheiro para
comprar drogas, cocaína, essas coisas Dona.
Diferenças
socioeconômicas
57
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- É verdade! Esses dias fui na minha outra cidade
no Paraná e um cara veio me roubar. Eu estava
com uma arma de pressão e dei dois tiros neles,
mas ele levantou a mão para mim e aí eu falei: Eu
sou criança se você quiser brigar chamo meu pai!
Força física
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Dona tem muitas meninas que casam com um
cara rico só por causa do dinheiro! Tem filhos e
depois largam para ficar com a pensão;
- Pesquisadora: Meninas, o que vocês acham
disso?
- Eu concordo!
- Pesquisadora: Vocês acham que o importante é o
dinheiro do garoto?
- Sim!
Valorização do
poder
econômico
Diferenças
socioeconômicas
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Rico tem carro importado!
- Esses dias eu tava no Eldorado e passou um cara
com uma BMW e olhou eu de cima para baixo e
fez joia!
- Pesquisa: o que você sentiu?
Diferenças
socioeconômicas
DIÁRIO DE
CAMPO
02/05/2011
- Dona, rico come caviar, essas coisas! Já pobre
come galinha, porco..(risos);
- Não concordo! Eles comem as mesmas coisas
que nós só que vão no restaurante!
- Rico quando come fica “cheio de dedo” (fez
gestos delicados com as mãos).
- Rico compra roupa sempre e usa uma vez só e já
joga fora! Já o pobre usa a roupa até ficar velha!
Às vezes nem lava! (risos)
- Dona! Minha tia é rica, mas nem olha na minha
cara!
- Pesquisa: e como é isso na escola?
- Aqui tem os pobres do Jamil e os ricos que
estudam no Ângulo! (risos)
- Pesquisadora: Qual a diferença entre essas duas
escolas?
- Lá eles pagam para estudar!
- Aqui a comida é ruim!
- Dona já encontrei até um bicho na comida!
- O macarrão daqui é duro, parece o prato (risos)!
- Isso é um problema de POLITICA!
- Pesquisadora: Como assim? Política?
- Precisa falar com o prefeito para ele dar uma
comida melhor e limpar a escola!
- Pesquisadora: O que mais?
- Dona, aqui todo mundo é igual, não tem
diferença entre rico e pobre.
Diferenças
socioeconômicas
58
DIÁRIO DE
CAMPO
16/05/2011
- Do filho que bate no pai e vira mostro! (todos
concordaram)
- O filho que bate no pai e se transforma em
corpo-seco, mas e o pai que bate do filho? Como
fica? (risos)
Nesse momento chamo a atenção dos demais
alunos e pergunto o que eles acham do comentário
da colega.
- Pai pode bater no filho, mas filho não pode bater
no pai!
- Pesquisadora: Como assim?
- O pai bate no filho porque está ensinando moral!
- Pesquisadora: O que é moral?
- Não sei!
- Eu sei! É como devemos nos comportar!
- O pai que tem que ensinar como devemos nos
comportar!
- Esses dias eu não queria ir no catecismo, então
meu pai me deu uma surra! Aí eu fui no catecismo
com o olho roxo. (risos)
- Mas não são só nois que aprontamos, às vezes os
pais também aprontam, fazem coisas erradas. A
diferença é que nois não podemos bater (risos)
- Pesquisadora: O que vocês fazem quando o pai
apronta?
- Aí eles mesmos (os pais) sabem que fizeram
coisas erradas, eles têm consciência.
A força física
como forma de
ensinamento dos
valores morais.
59
DIÁRIO DE
CAMPO
23/05/2011
- Ele não deu o soco porque era Mariquinha!
- Pesquisadora: O que é ser Mariquinha?
- É quando não bate, fica com frescura!
- Dona ele é mariquinha! (apontou o dedo para um
aluno). Na outra aula ele fez assim com a mão
(Fez um gesto de mão caída) – risos.
- Pesquisadora: O que vocês acham disso?
- Não Pode Dona!
- Isso é errado!
- Isso é Bullying!
- Pesquisadora: O que é Bullying?
- É xingar os outros!
- É ofender!
- Não! É agressão verbal!
- Isso mesmo é agressão verbal!
Quando fiz essa pergunta: “O que é Bullying?”
Todos os alunos se manifestaram, dizendo algo, e
apresentou uma resposta imediata, algo que
parecia já estar pronto, “na ponta da língua”.
- Pesquisadora: E como o Bullying está na escola?
- As pessoas ficam xingando e isso é Bullying!
- Pesquisadora: Quem faz o Bullying? Os alunos?
- Sim! Porque colocamos apelidos nos outros!
- Dona, mas às vezes os apelidos não são para
ofender.
- É! Alguns são de brincadeira!
Depreciação do
rico: Mariquinha
Expressão de
valores
RACISMO
(livro)
Fabio era bando e Marcos, negro. Um dia Fabio
na escola xingou o Marcos de macaco e gorducho.
Marcos partiu para agressão, deu um murro no
rosto de Fabio e disse:
- Eu vou quebrar seus dentes.
E Fabio respondeu:
- Coitado de você!
- Então você vai ver quem é coitado.
Deu um murro na boca do Bruno que caiu no chão
desmaiado.
Os dois foram para diretoria, chamaram as mães
deles para conversar e eles foram suspensos por
uma semana.
Força física
60
O BOXE
(livro)
Era uma vez um homem chamado Pedro com 35
anos, que morava em uma casa humilde. Era
muito honesto com sua família e com as pessoas
da rua. Havia também um homem que morava em
um apartamento com sua esposa, e gostava de
debochar das pessoas que eram pobres. Ele
sempre dizia:
- Ra, ra, ra, esses daí eu nem dou valor porque eles
são pobres e não têm educação.
E sempre o homem humilde estava lá em frente de
sua casa e não aguentava mais ser tratado daquele
jeito, então resolveu falar com sua esposa.
- Quero falar com você, amor. Posso?
- Sim, claro que pode, fala o que é.
- Eu estava pensando em desafiar aquele homem
que passa aqui na frente falando aquelas coisas
horríveis pra gente. Será que é uma ótima ideia?
- Desafiar em quê?
- Em um luta de boxe.
- Humm, é uma boa ideia, será que ele aceita?
- Tem que aceitar, porque se ele é homem para
falar essas coisas para nós, ele tem que ser homem
para lutar boxe.
- É, isso é verdade, ele é muito ignorante com as
pessoas humildes. Como você irá falar com ele?
- Na próxima vez que ele passar aqui em frente.
- Então tá.
O homem passou lá depois de dois dias, e o
humilde disse a ele:
- Pare aí. Vamos nos desafiar?
- Em quê?
- Uma luta de boxe, e quem perder nunca mais
pisa na cidade do outro.
- Então tá, só se for agora.
- Tá, deixe o carro estacionado nesse local bem
nessa calçada, e você pode entrar.
Entraram os dois na casa e vestiram as roupas,
colocaram as luvas e iam começar em alguns
minutos.
- Vamos começar, 1, 2, 3, e já.
A briga começou...
Acabou o 1º tempo.
Começou de novo...
E o homem humilde ganhou e venceu a luta.
Rico como
honesto.
Rico: gosta de
debochar.
Pobre como
honesto e que
tem maior força
física.
61
b. ANEXO 2 - ROTEIRO PARA OBSERVAÇÃO NA ESCOLA
o Há espaço para a imaginação em sala de aula?
o De que modo ela se expressa?
o Observar:
- Conteúdo da aula
- Como está sendo ensinado esse conteúdo?
- Qual é a qualidade da comunicação do professor?
- Os alunos parecem entender o que o professor está explicando?
- Os alunos fazem a atividade solicitada pelo professor? De que modo?
- Em que momento os alunos falam?
- Quem fala mais, o professor ou os alunos?
- Qual é o conteúdo dessas falas?
- Qual é a forma como falam (baixo/alto, com gírias, ...)?
- Como o professor intervém na fala dos alunos (faz interrupções, correções, ...)?
62
c. ANEXO 3 - DIÁRIO DE CAMPO (30/OUT/2013)
Ao chegar à escola fui levada até a sala dos professores, que estavam tomando café
e se preparando para a primeira aula do dia. Eve olhou no quadro as aulas que os 8º anos
teriam no primeiro período. Como não encontrou resolveu perguntar para uma professora,
que coincidentemente daria aula de artes para o 8º1. Eve me apresentou dizendo meu
nome, que eu era uma estagiária de psicologia e que estava iniciando uma pesquisa que
visava identificar a questão da imaginação nos adolescentes, e perguntou se ela se
importaria que eu assistisse à aula dela nessa sala. A professora pareceu não se importar e
até mesmo demonstrou que seria bom ter alguém diferente em sala. Outro professor (mais
tarde descobri que lecionava matemática) que estava perto falou que o 8º1 era a sala mais
difícil e que seria maldade me colocar lá direto, mas que a turma precisava muito de uma
psicóloga, uma vez que era a turma mais difícil de toda a escola.
Como ainda havia um tempo até a aula começar, Eve nos levou para conhecer a
escola. Durante nosso passeio uma aluna chega correndo e a abraça. Elas começam a
conversar. Eve nos apresenta, dizendo que a menina é bailarina e que quer ser
fisioterapeuta. A menina pretende prestar enfermagem no Cotil no próximo ano, e está
muito preocupada, pois acredita não ser capaz de passar uma vez que não tem aula direito
nem acesso a material.
Bate o sinal e vamos em direção à sala dos professores novamente.
Acompanhei a professora até a sala e perguntei se poderia me apresentar para a
turma. Ela respondeu que sim, mas que gostaria que eu esperasse até que todos estivessem
dentro da sala, levando em conta que o sinal havia acabado de tocar e que muitos alunos
ainda estavam no corredor. Enquanto esperávamos ela disse que eu poderia me sentar onde
eu preferisse. Perguntei então se os alunos tinham lugar marcado. Ela respondeu que sim e
pegou o mapa de sala que se encontrava dentro de uma pasta vermelha. Nesse momento
começou a apontar o nome de algumas alunas e disse “essas são as alunas problema”.
- Está ouvindo essa gritaria no corredor? São elas!
Quando todos os alunos já estavam dentro da sala e a porta havia sido fechada, a
professora tentou dizer aos alunos quem eu era, mas a conversa (com muita gritaria) não
parava. Virei-me para ela e disse que eu poderia me apresentar. Desloquei-me até o meio
da sala, fiz alguns barulhos com a garganta, chamei a atenção de todos até que houvesse
silêncio. Não achei que conseguiria, mas após um tempo todos estavam quietos olhando
para mim com muita curiosidade.
Me apresentei e logo começaram as perguntas:
- Mas o que você vai fazer?
- Dona, porque essa sala? Você é louca, dona! Essa é a pior sala de todas!
Escolhi um lugar vago e me sentei, peguei meu caderno e comecei a fazer minhas
observações.
1ª aula – AULA DE ARTES
A professora não consegue fazer com que a turma faça silêncio. Todos falam ao
mesmo tempo. Todos gritam ao mesmo tempo. Usam muitas gírias e palavrões. Um aluno
levanta e começa a mexer na bolsa da professora, que grita “o que você está fazendo?
Você não pode mexer nas minhas coisas! Saia daí agora!”.
Pela sala voam muitas bolinhas e aviões de papel. A professora pergunta para um
aluno se não está na hora do “aeroporto fechar”.
Enfim a professora consegue começar a aula.
- Como amanhã é halloween quero que vocês façam um desenho sobre isso.
Uma aluna vai até a mesa da professora, pega uma caneta de lousa e pergunta se eu
sei como se escreve halloween. Eu dito e ela escreve na lousa. Faz embaixo da palavra o
63
desenho de uma bruxinha. Muitos não gostam do tema e reclamam. Um aluno faz alguma
coisa que a professora não gosta e ela olha irritada para ele. No mesmo momento outro
aluno diz “a dona ta pensando em fazer exorcismo!”.
A maioria dos alunos faz a atividade, mas sem parar de conversar. É visível que
grande parte dos alunos não possui material, uma vez que gritam pedindo “lápis de lição”,
apontador, lápis de cor.
Um aluno desenha uma caveira. Se levanta e mostra para a professora, que diz que
se ele arredondar um pouco mais as curvas, o desenho ficará mais parecido com uma
caveira de verdade. Ele volta para o seu lugar e continua o trabalho.
Alunas riem quando a professora pede que elas se mantenham no lugar marcado
pelo mapa de sala e falam que elas vão ficar onde bem quiserem. Elas reclamam muito,
mas acabam sentando-se nos lugares marcados.
A professora se senta em sua mesa e passa a chamar a atenção dos alunos de lá.
Um menino desenha dois Batman na folha de desenho e diz “meu pai é o Batman e
eu também”.
Durante a aula uma das “alunas problemas” começa a fazer uma tarefa (que depois
entendi ser uma tarefa que substituiria uma suspensão) de outra matéria. A professora se
irrita com a situação e mais uma vez a aluna diz que vai fazer tudo o que quiser. A
professora então diz que a escola recebeu dinheiro para que sejam instaladas câmeras
dentro das salas de aula.
- Isso é ridículo! Essa escola ta virando uma prisão!
Os alunos reclamam que a escola não vai fazer festa de halloween e que a outra
escola vai. Começam a cantar a música do patati patata.
Professora diz que aluno precisa melhorar o desenho e quer que ele pinte o
desenho, porém ele fala que não tem lápis de cor.
- Que professora chata!
- Me fala uma legal...
Bate o sinal. A professora sai da sala, e os alunos continuam fazendo seus
desenhos.
2ª aula – AULA DE INGLÊS Professora entra na sala e pede para que os alunos sentem-se em seus lugares
segundo o mapa de sala. Ao perceber que um dos alunos estava fora do lugar pede que ele
mude. O aluno então diz que daquele lugar ele não presta atenção, e a professora responde
dizendo que “bom aluno é bom aluno em qualquer lugar” e enfatizando que ele deve sentar
no lugar certo.
Ao olhar o diário de sala a professora constata que a turma tem muitas anotações,
que se as coisas continuarem dessa forma ela terá que chamar os pais para conversar
novamente. A partir disso os alunos começam a discutir sobre a possibilidade de
receberem novas suspensões (“já tenho várias anotações, mais uma e é certeza que levo
suspensão...”).
Objetos como pedaços de papel, lápis e cadernos continuam voando pela sala.
Enquanto a professora se mantém sentada na mesa do professor e confere o diário
de sala, alunas fazem tarefa de outra matéria (ciências) e me fazem perguntas.
Muitos alunos continuam a fazer os desenhos da aula anterior, enquanto algumas
alunas conversão sobre religião e sobre seus medos de alguns rituais. Elas estavam muito
perto de mim e o tempo todo me olhavam, o que me fez parar de escrever por um período
de tempo, e assim perdi os detalhes dessa conversa que acredito serem importantes.
Após 25 minutos do início da aula a professora, ainda sentada, começa a falar sobre
a matéria. Mesmo assim os alunos não param de conversar e abafam a voz da professora,
que acredito ninguém estivesse conseguindo ouvir (eu tentei e não consegui).
64
Os alunos mudam de lugar constantemente, afastam as carteiras e brincam de
escorregar pela sala. Duas alunas se levantam, vão até o fundo da sala e ficam de costas
para a professora, que se incomoda, vai até elas e pede que elas retomem seus lugares.
Bravas, elas obedecem.
Até esse momento parece não haver espaço algum para a imaginação. Porém em
um determinado momento a professora aponta as frases escritas na lousa e diz “essas
frases vocês podem encontrar em joguinhos, sabiam?”.
Enquanto a professora tentar fazer com que os alunos copiem as frases da lousa, as
alunas na minha frente conversam sobre relacionamentos e viagens com os namorados.
Essas alunas dizem a professora que não vão fazer a atividade simplesmente porque não
querem, e a professora então as ameaça com uma prova. Mesmo assim os alunos não se
intimidam e continuam sem copiar os exercícios que a professora solicita.
Outro aluno concorda com essas garotas e a professora diz a ele: “você não engana
só a mim, está se enganando”.
Meninas saem da sala sem permissão e ao voltarem a professora anuncia que
marcou o nome delas no diário. Irritadas, a chamam de pedófila, pois só anota o nome de
meninas.
O sinal que anuncia o final da aula bate e os alunos fazem festa. Assim sendo, a
professora não conseguiu dar aula.
3ª aula – AULA DE LINGUA PORTUGUESA
Antes do início da aula fui até o lado de fora da sala para me apresentar a
professora e perguntar se eu poderia assistir sua aula. Antes que eu pudesse chegar a porta
a diretora entrou na sala e começou a conversar com os alunos. Disse que ela havia
recebido reclamações sobre eles, e perguntou se eles não tinham vergonha de agir daquela
forma na frente da psicóloga que tinha vindo de tão longe para conhecê-los.
Em seguida a professora entrou na sala e fez um sinal de que eu poderia ficar ali.
Novamente me apresentou aos alunos. Uma aluna fica surpresa de saber que eu era
psicóloga, mesmo eu já tendo me apresentado e a diretora ter acabado de falar.
O tema da aula era ‘propaganda’. Eles teriam que usar cartolina, jornal canetas,
tesoura e cola para montar uma propaganda.
Os alunos xingam a professora, a pedem para ir fazer a atividade no pátio, e mesmo
assim ela autoriza.
Enquanto caminhamos até o pátio, professora me fala que essa é a sala mais difícil
de lidar, e que está procurando novos métodos para tentar fazer com que os alunos prestem
atenção à aula, como por exemplo, a utilização da criatividade. Pelo o que pude observar
até esse momento essa foi a aula que os alunos mais demonstraram interesse, pois mesmo
com toda conversa e bagunça eles estavam realizando a atividade proposta.
A professora durante todo o tempo olha para mim, sorri e parece tentar justificar o
modo de agir dos alunos, como se sentisse vergonha e precisasse de aprovação.
De repente alguns alunos se levantam e começam a brigar, se batendo e com
olhares de raiva. Eu estava muito longe deles e tudo começou muito rápido, portanto, não
sei o que motivou a briga. A professora titular e um ajudante separaram os dois meninos.
Mesmo vendo alguns dos alunos realizarem a tarefa, fica claro para mim que
muitos utilizam o fato de estarem fora da sala para bater papo e não fazer nada. Também
observo que o “ir ao banheiro” é uma das atitudes dos alunos para fugir da atividade.
Essa é a primeira professora que parece conseguir estabelecer uma comunicação
mais consistente com os alunos.
4ª aula – AULA DE ARTES
Todo o espaço que havia para a imaginação na primeira aula parece sumir na
segunda. O tema da aula agora é arte afro-brasileira. A professora escreve um texto na
65
lousa (texto que ela copia de um livrinho) e solicita que os alunos copiem em seus
cadernos, porém apenas uma aluna realiza a tarefa.
- Faz o favor de começar a copiar!
Os alunos aparentam estar mais calmos, mas continuam conversando muito, porém
mais baixo, sem tanta gritaria.
- No final é para vocês desenharem uma roda de capoeira. Não quero palitinho!
Não quero palitinho!
- A porta está aberta! Vou fugir! – diz uma das alunas rindo, e em seguida volta
para sua carteira.
INTERVALO
5ª AULA – AULA DE LINGUA PORTUGUESA
Os alunos continuam a fazer a atividade da 3ª aula, porém agora em sala, segundo a
professora por ordem da direção.
As quatro meninas mais bagunceiras entram na sala correndo e socando um
menino. Depois, quando chamam a professora e ela não atende por estar conversando com
outro grupo, começam a cantar. As meninas, que estão perto de mim vêm conversar
comigo sobre o porquê eu estou ali, dizem que a escola é muito ruim e que recebem
suspensão por qualquer coisa, enquanto outros alunos fazem o que quiserem sem ter
nenhum tipo de problema.
A turma, até então mais calma se descontrola, e a gritaria e a correria voltam. Uma
tesoura voa pela sala. Alguns alunos usam os materiais para bater nos colegas.
Alunas levantam, vão até a frente da sala e pedem que nenhum aluno lembre o
próximo professor que ele havia marcado prova.
Professora vai até um grupo e pede que façam uma correção no cartaz, porém um
dos meninos diz que não vai arrumar. “O trabalho é nosso, dona! Eu faço o que eu
quiser!”. “Se você fizer assim vai tirar zero!”.
Após chamar a professora e não ser atendido, um aluno se levanta, vai até a lousa, e
começa a bater nela, chamando a atenção de todos.
Menino usa uma caneta como cigarro e pergunta se alguém quer.
A preocupação com a instalação das câmeras gera alvoroço por parte dos alunos,
que acham que essa é uma medida que irá torna-los ainda mais “prisioneiros” (como eles
mesmo dizem) da escola.
As meninas que reclamaram de receber suspenção por nada discutem sobre mudar
de escola juntas no próximo ano, mas no final decidem desistir da ideia, por terem medo
de a outra escola ser pior. A professora chega até elas e olha a propaganda que fizeram.
Observo que há erros de concordância no cartaz (venha nos visita), mas até o final da aula
a professora não faz nenhum tipo de correção, nenhum feedback sobre a atividade para os
alunos. Nada é discutido.
Bate o sinal e a aula termina.
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