UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEAR
CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE MESTRADO ACADMICO EM HISTRIA
RAIMUNDO NONATO NOGUEIRA DE OLIVEIRA
A IGREJA CATLICA NO PIRAMBU: AS RELAES DE PODER
PRESENTES NO DISCURSO DA TEOLOGIA DA LIBERTAO E DA
RENOVAO CARISMTICA CATLICA (1968-1986).
FORTALEZA CE
2014
RAIMUNDO NONATO NOGUEIRA DE OLIVEIRA
A IGREJA CATLICA NO PIRAMBU: AS RELAES DE PODER PRESENTES
NO DISCURSO DA TEOLOGIA DA LIBERTAO E DA RENOVAO
CARISMTICA CATLICA (1968-1986).
Dissertao apresentada ao Programa de
Mestrado Acadmico em Histria do Centro
de Humanidades da Universidade Estadual do
Cear, como requisito parcial para obteno do
ttulo de Mestre em Histria.
rea de Concentrao: Histria e Culturas.
Orientador: Prof. Dr. Antnio de Pdua
Santiago de Freitas.
FORTALEZA CEAR 2014
minha me Alzira Nogueira de Oliveira (in memoriam)
que tambm fez parte da histria do Pirambu.
Eridan, Dbora e Lara por estarem sempre prximas.
AGRADECIMENTOS
Agradeo a todas as pessoas que direta e indiretamente ajudaram durante o exaustivo e
instigante processo de elaborao desta dissertao de mestrado, sem as quais este trabalho
no seria possvel.
Inicialmente gostaria de agradecer ao Professor Antnio de Pdua Santiago de Freitas,
orientador e amigo, que tambm deu sua contribuio para a construo da histria do
Pirambu, juntamente com o pessoal da Casinha da Praia.
Aos moradores do Pirambu e s pessoas entrevistadas: Jos Maria Tabosa (liderana
comunitria), Francisco Carlos da Silva o Carlos Careca (artista e liderana comunitria),
Francisco de Assis Barroso (professor e liderana comunitria), Airton Barreto (advogado e
organizador do Projeto 4 varas no Pirambu), Francisco Jos Gomes de Sousa, NJ (padre e
importante representante da RCC no Pirambu), Maria Luiza Fontenelle (estagiria da Escola
de Servio Social no Pirambu na poca do Padre Hlio Campos, ex-prefeita de Fortaleza e
amiga do Padre Haroldo Coelho), que abriram suas caixas de ferramentas para a construo
da memria viva do Pirambu.
Ao pessoal do CPDOC/Pirambu, em especial: Maria Dalva, Elizaudo e Antnio Preto,
que abriram os arquivos desta entidade, facilitando deste modo a realizao de nossa pesquisa.
Ao companheiro Alexandre Tvora (ex-assessor do Padre Haroldo), que incentivou o
nosso trabalho de pesquisa cedendo um rico material sobre a trajetria do Padre Haroldo
Coelho no Pirambu.
quelas pessoas que deram sua contribuio na efetivao de nossa pesquisa,
facilitando nos contatos, ajudando nas entrevistas, cedendo material etc., os companheiros:
Nildo Sobral, Airton Amaral, Valentim Santos.
quelas pessoas que fizeram e fazem parte da histria do Pirambu: Padre Hlio
Campos, Padre Jos Haroldo Coelho, Padre Gaetan Minette de Tillesse, Frei Memria, Frei
Sabino, Vicente Ferreira da Silva (Vicente Boca Rica), Expedito Viana Valente, Jos Moreira
Lima (Deca), Maria Eullia Rola (Dona Lalinha), Aldaci Barbosa, Miguel Peixoto, Vicente
Duarte Tavares, Gilton Barbosa, Francisco Antnio Manjath, Jos Lopes Macedo, Eri Brasil,
Irm Rosa, Z Maria Tabosa e tantos outros.
Aos professores Samuel Carvallheira de Maupeou (UECE) e Manfredo Arajo de
Oliveira (UFC) pela disponibilidade de participarem na banca examinadora e pelas ricas
contribuies que deram durante o processo de qualificao.
Aos professores do MAHIS: Antnio de Pdua Santiago de Freitas, Gerson Augusto
de Oliveira Junior, Francisco Carlos Jacinto Barbosa, Altemar da Costa Muniz, Gleudson
Passos Cardoso, Marco Aurlio Ferreira da Silva, Erick Assis de Arajo, que durante o ano de
2013 nas disciplinas ministradas no mestrado contriburam para o enriquecimento de nossa
pesquisa.
Aos funcionrios da Secretaria do MAHIS (Adauto Neto e Rozilda Martins) sempre
prontos a ajudar nas nossas necessidades acadmicas.
Aos colegas da turma 2013, Ana Paula, Alex Farias, Adaiza, Aryana, Claudia,
Elcelane, Flvio, Lucas, Natlia, Nathan, Rafaela Gomes e Rafaela Moreira, pelo convvio
enriquecedor.
Aos colegas da Ps-graduao em Histria do Brasil do INTA, com quem tive o
prazer de passar domingos maravilhosos, ricos de aprendizagem e de bom humor.
Aos professores do INTA, com os quais tive o prazer de compartilhar o meu projeto
de Pesquisa: Carla Silvino, Francisco J.G. Damasceno e Thiago Tavares, e que deram
significativas e enriquecedoras sugestes.
Aos colegas professores do Dom Fragoso, do JBM e do Colgio Integral que sempre
acreditaram no meu potencial e valorizaram o meu trabalho.
Aos velhos amigos do Pirambu, com os quais pude compartilhar grandes momentos
nos grupos de jovens, grupo de teatro, nos movimentos sociais e nos grupos de catequese e
crisma.
Enfim, a todos aqueles que sempre acreditaram em mim, e mesmo muitas vezes
distantes, sempre se fizeram presentes no meu corao.
RESUMO
O Pirambu, desde o seu povoamento na dcada de 1930, sempre foi lembrado pelos discursos
polticos e expostos nas manchetes de jornais locais como um bairro violento e marginalizado.
Esse estigma, que durante dcadas foi carregado pelo povo desse logradouro, contudo, passa a
ser superado a partir das lutas e organizao dos moradores que teve frente um representante
da Igreja Catlica. E, finalmente, o povo estigmatizado tornou-se sujeito de uma histria de
um tempo presente. Desta feita, nossa pesquisa visa analisar a Igreja Catlica no Pirambu a
partir das relaes de poder presentes no discurso da Teologia da Libertao e da Renovao
Carismtica Catlica entre os anos de 1968 e 1986. Ao longo de trs captulos procuramos
apresentar a Igreja Catlica como um espao de sociabilidade, de conflitos e relaes de
poder. Buscamos, pois, entender os discursos e as prticas das Comunidades Eclesiais de Base
e sua relao com os Movimentos Sociais e, por fim, compreender como se deu a relao
entre as prticas religiosas da Renovao Carismtica Catlica e o discurso poltico da
Teologia da Libertao. Para a efetivao de nossa pesquisa, utilizaremos fontes orais
(entrevistas com moradores, religiosos e lideranas polticas), alm de artigos de revistas,
jornais e documentos da Igreja, utilizaremos tambm uma bibliografia bastante diversificada
que passa pela histria, pela filosofia, pela sociologia, pela literatura cearense, pela cincia
religiosa e pela teologia.
PALAVRAS - CHAVE: Igreja Catlica; Poder; Discurso; Teologia da Libertao;
Renovao Carismtica Catlica.
RSUM
Le Pirambu depuis sa colonisation dans les annes 1930 a toujours t rappel par les
politiciens et expose dans les gros titres des journaux locaux discours, comme un quartier
violent et marginaliss. Cette stigmatisation, qui pendant des dcennies a t tlcharg par
les gens de Pirambu, arrive cependant surmonter des luttes et l'organisation de rsidents qui
avaient un reprsentant la tte de l'Eglise catholique. Et enfin, les personnes stigmatises,
ont fait l'objet d'une histoire d'un temps prsent. Cette fois, notre recherche vise examiner
l'Eglise catholique en Pirambu des relations de pouvoir au sein du discours de la thologie de
la libration et du Renouveau charismatique catholique entre les annes 1968 et 1986 Au
cours des trois chapitres, nous prsentons l'Eglise catholique comme un espace social, conflit
et les relations de pouvoir. Nous cherchons donc comprendre les discours et les pratiques
des communauts de base chrtiennes et leur relation avec les mouvements sociaux et enfin
comprendre comment tait la relation entre les pratiques religieuses du Renouveau
Charismatique Catholique et le discours politique de thologie de la libration. Pour la
ralisation de notre recherche utilisera des sources orales (entretiens avec les rsidents, les
chefs religieux et politiques), ainsi que des articles de magazines, journaux et documents de
l'Eglise, nous allons galement utiliser une littrature assez diversifie qui passe pour
l'histoire, la philosophie, la sociologie, la littrature Cear, sciences religieuses et en
thologie.
MOTS - CLS: glise catholique; puissance; Discours; Thologie de la Libration;
Renouveau charismatique catholique.
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ACB Ao Catlica Brasileira
ACR Ao Catlica Rural
ACO Ao Catlica Operria
AI-5 Ato Institucional n 5
AP Ao Popular
CDPDH Centro de Defesa e Promoo dos Direitos Humanos
CEB Comunidade Eclesial de Base
CELLAM Conselho Episcopal Latino Americano
CERIS Centro de estatstica religiosa e investigaes sociais
CNBB Conferncia Nacional dos Bispos do Brasil
COC Crculos Operrios Catlicos
CPT Comisso Pastoral da Terra
DRT Delegacia Regional do Trabalho
FASE Federao de rgos para a Assistncia Social e Educacional
FBFF Federao de Bairros e Favelas de Fortaleza
GTAP Grupo de Teatro Amador do Pirambu
JAC Juventude de Ao Crist e Juventude Agrria Catlica
JEC Juventude Estudantil Catlica
JESCRIST Juventude Esportiva e Crist de Santa Terezinha
JESP Juventude Esportiva e Social do Pirambu
JESUS Juventude Evanglica Sempre Unidos no Senhor
JIC Juventude Independente Catlica
JOC Juventude Operria Catlica
JUC Juventude Universitria Catlica
LEC Liga Eleitoral Catlica
LCT Legio Cearense do Trabalho
MEB Movimento de Educao de Base
MFA Movimento Feminino pela Anistia
MOCUP Movimento de Cultura Popular do Pirambu
PC do B Partido Comunista do Brasil
PCB Partido Comunista Brasileiro
PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
PJMP Pastoral da Juventude do Meio Popular
PROAFA Programa da Assistncia s Favelas da Regio Metropolitana de Fortaleza
PRO Partido Revolucionrio Operrio
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
TdL Teologia da Libertao
RCC Renovao Carismtica Catlica
SEHAC Secretaria Especial de Habitao e Ao Comunitria
UCGF Unio das Comunidades da Grande Fortaleza
UDN Unio Democrtica Nacional
SUMRIO
INTRODUO ..................................................................................................................... 11
CAPTULO 1A Igreja Catlica: espao de sociabilidade, conflitos e relaes de poder. ..................................................................................................................................................28
1.1. Pirambu: um bairro estigmatizado; uma Parquia atuante...........................................29
1.2. A Igreja Catlica e o poder...........................................................................................51
CAPTULO 2O Pirambu de costas para o poder: As CEBs e os Movimentos Sociais..67 2.1. As CEBs: seus discursos e sua prtica..............................................................................68
2.1.1. CEBs: O mtodo ver-julgar-agir e os encontros intereclesiais.......................................84
2.1.2. A dimenso simblica e a prtica poltica no bairro......................................................93
2.2. A Igreja e os Movimentos Sociais...................................................................................103
CAPTULO 3O conflito na Igreja: As prticas religiosas da Renovao Carismtica Catlica e o discurso poltico da Teologia da Libertao..................................................131
3.1. O Movimento de Renovao Carismtica e o contexto de mudanas na Igreja Catlica135
3.1.1. As prticas religiosas carismticas................................................................................144
3.1.2. A Renovao Carismtica Catlica na Parquia do Cristo Redentor no Pirambu........149
3.2. A Teologia da Libertao e a renovao da Igreja Catlica na Amrica Latina e no
Brasil.......................................................................................................................................159
3.2.1. O discurso da Teologia da Libertao e a anlise marxista..........................................164
3.2.2. A experincia progressista na Parquia de Nossa Senhora das Graas do
Pirambu...................................................................................................................................172
3.3. O declnio da Teologia da Libertao e o predomnio da Renovao Carismtica Catlica
no bairro do Pirambu...............................................................................................................178
CONSIDERAES FINAIS.................................................................................................188
FONTES..................................................................................................................................192
REFERNCIA BIBLIOGRFICA........................................................................................195
ANEXOS................................................................................................................................209
11
INTRODUO
Quem vinha a Pirambu, perdia o bom nome diante do povo. Era nome feio. Os
prprios habitantes, quando fora, evitavam dizer onde moravam. Seria uma
desmoralizao1.
A epgrafe acima foi retirada do livro Pirambu: Uma Parquia em Renovao, de
autoria do Padre Jos Marins, que em 1965 veio de So Paulo participar de um curso na
Arquidiocese de Fortaleza, e aproveitou a oportunidade para concluir suas anotaes sobre o
bairro do Pirambu. Foi a partir das conversas com Padre Hlio, Aldaci Barbosa e moradores
do Pirambu que nasceu esse livro, o qual conta a histria do bairro que acabou se
transformando numa Parquia viva e atuante.
O emprego da epgrafe demonstra o quanto os moradores desse bairro de Fortaleza
carregam em seus corpos o estigma da violncia e da misria. Assim como nos revela
Foucault:
(...) sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do mesmo
modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele tambm se
atam e de repente se exprimem, mas nele tambm eles se desatam, entram em luta,
se apagam uns aos outros e continuam seu insupervel conflito.2
O retrato estigmatizado do povo marginalizado pelo olhar do outro fez com que o
Pirambu se tornasse um bairro esquecido durante muito tempo pelas autoridades locais, sendo
o mesmo lembrado apenas nos discursos dos jornais que se reportavam a ele, como sendo
reduto de bandidos, prostitutas e tuberculosos.
Como vimos, o estigma carregado pelo bairro do Pirambu percebido principalmente
nos comentrios pessoais e destaques miditicos (jornais, rdio e televiso), que apenas
parte da realidade e no a sua totalidade, como retratada em maior parte das aluses a esse
bairro da periferia de Fortaleza. No podemos esquecer que (...) a ideia de estigmatizado
1 MARINS, Pe. Jos. Pirambu: uma Parquia em Renovao. So Paulo: Movimento por um Mundo
Melhor/Melhoramentos, 1965, p.14. 2 FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder. Traduo de Roberto Machado. 12.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p.22.
12
como marginal, perigoso, est ainda presente no imaginrio de parte da populao, por fazer
parte da cultura abstrata, aquela que est em nosso inconsciente.3
O estigma da violncia e da misria carregado pelo bairro do Pirambu desde a sua
formao na dcada de 1930. De acordo com Pdua Santiago (2002)4, antes do boom das
favelas esse atributo que torna o Pirambu diferente de outros bairros recaa sobre os subrbios
de Alto Alegre, Barro Vermelho e, sobretudo, do Arraial Moura Brasil, que eram
considerados pela imprensa e pela polcia como os mais perigosos da cidade. Conforme
assinala Goffman (1988)5, o estigma uma ideologia criada para explicar a inferioridade de
um grupo social, contudo preciso dar conta do perigo que ela representa, racionalizando
algumas vezes uma animosidade baseada na diferena de classe social.
Assim, o estranho que passou a ocupar os terrenos da Prefeitura ou da Unio, no caso
do Pirambu, passou a receber por parte da classe mdia e alta o atributo que o torna diferente
de outros, os quais se encontram numa categoria que pudesse ser includo, sendo, portanto,
considerado indesejvel, recebendo o esteretipo de pessoa m e perigosa. Nesse
entendimento, Goffman nos diz:
Assim, deixamos de consider-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa
estragada e diminuda. Tal caracterstica um estigma, especialmente quando o seu
efeito de descrdito muito grande algumas vezes ele tambm considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem e constitui uma discrepncia especfica entre a identidade virtual e a identidade social real.
6
Contudo, esse atributo de indesejvel resultado do esteretipo que um grupo de
status social elevado cria para classificar um determinado tipo de indivduo desacreditado.
De acordo com Goffman, o termo estigma, portanto, ser usado em referncia a um atributo
profundamente depreciativo.7 No caso do bairro do Pirambu, o estigma da violncia e da
misria estar presente desde a sua formao. Esse logradouro se formou na dcada de 1930,
3 ANDRADE, Marisa de. O Estigma da Periferia. Porto Alegre: Da Casa Editora, 2010, p.137.
4 SANTIAGO, Pdua. A cidade como utopia e a favela como espao estratgico de insero na cultura urbana
(1856-1930). In: Trajetos: revista de histria da UFC. Fortaleza: Departamento de Histria da UFC, 2002. - vol.
1, n. 2, p.127. 5 GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro, RJ:
LTC, 1988, p.15. 6 IDEM, p. 12.
7 IBIDEM, p.13.
13
no contexto em que as favelas se proliferaram em nossa cidade devido ao aumento do fluxo
migratrio, conforme relata Silva (1992).8
De acordo com dados do Governo do Estado,9 a formao do Pirambu, considerado o
maior bairro popular de Fortaleza, data de 1932. Seu povoamento se deu em decorrncia das
migraes provocadas pelas secas e tambm pelo avano do mar sobre a Praia de Iracema,
que desalojou muitas famlias que buscaram outras paragens. Pdua Santiago (2002) relata
que os pescadores que viviam no Arraial Moura Brasil comearam a migrar em direo ao
Pirambu, conhecido na poca por Arpoadores, ncleo de pescadores. Esses migrantes
experimentaram dois estigmas, dois tempos, dois universos de compreenso e experimentao
da vida e da morte.10
Contudo, o estigma da violncia e da misria no conseguiu apagar a importncia
desse bairro para a histria da cidade, pois o Pirambu, o bairro mais populoso de Fortaleza,
no pode ser lembrado apenas como espao de pobres, pois ali nasceram e viveram: pintores,
escultores, msicos, poetas, escritores e artistas que aprenderam a fazer cinema na escola das
lutas e experincias cotidianas.
E foi nessa escola de lutas que eu nasci no ano de 1965, dois anos aps a famosa
Marcha do Pirambu. Na adolescncia tive a oportunidade de conhecer o Morro do Japo, a
Lagoa do Mel e a Lagoa Funda. No Salo Paroquial Lar de Todos fiz a minha primeira
eucaristia e, quando no espao deste foi construda a Escola Moema Tvora, tive a
oportunidade de cursar meu primeiro grau. Em 1981 ingressei no Grupo de Jovens
JESCRIST, que era coordenado pelas irms de Santa Terezinha. Nos anos seguintes
desenvolvi atividades de preparao de crianas e adolescentes para a primeira eucaristia e
crisma.
No Pirambu tive a oportunidade de conhecer a atuao do Padre Haroldo Coelho,
vigrio da Parquia de Nossa Senhora das Graas no perodo de 1981 a 1985. Nesses anos de
efervescncia poltica no bairro participei de reunies nas CEBs, Congressos de Jovens e
8 SILVA, Jos Borzacchiello da. Quando os incomodados no se retiram: uma anlise dos movimentos
sociais em Fortaleza.-Fortaleza: Multigraf Editora, 1992, p. 29. 9 GOVERNO DO ESTADO DO CEAR SECRETARIA DE ADMINISTRAO. As Migraes para
Fortaleza. Fortaleza: Departamento de Imprensa Oficial, 1967, p. 52. 10
SANTIAGO. Op. Cit., p. 129.
14
grupos de teatro popular. Em 1985 nos engajamos na campanha do Partido dos Trabalhadores
para a Prefeitura de Fortaleza, quando Maria Luiza Fontenelle concorreu com Paes de
Andrade, o candidato do PMDB que estava no topo das pesquisas; e tambm com o candidato
dos Coronis. Nessa poca o PT j estava bem organizado atravs dos ncleos de bairro de
vrias categorias profissionais. A militncia estava bem articulada na cidade. O Pirambu
contava com importantes lideranas comunitrias, como Z Maria Tabosa, Gilton Barbosa,
Ery Brasil, Jos Lopes Macedo, Carlos Martins de Oliveira, Francisco Antnio Manjath,
Francisca Alves da Costa e outras lideranas ligadas ao Sindicato dos Metalrgicos, que tinha
sede no Pirambu. Sem infraestrutura e sem apoio da mquina governamental, Maria Luiza foi
eleita com o apoio do movimento popular.
O Pirambu teve um papel significativo na vitria de Maria Luiza, alm do
engajamento das lideranas e de moradores, a figura do vigrio da Parquia de Nossa Senhora
das Graas teve um papel fundamental. Tal fato pode ser evidenciado com a realizao da
Missa de ao de graas pela vitria de Maria Luiza, realizada pelo Padre Haroldo Coelho, na
Parquia de Nossa Senhora das Graas, no dia 23 de novembro de 1985. Dessa missa
participaram cerca de duas mil pessoas que receberam de forma calorosa a Prefeita eleita e
participaram ativamente da grande festa.
Era nesse bairro que o Partido dos Trabalhadores e o Partido Comunista do Brasil
tinham forte atuao, onde surgiram muitas associaes de moradores, grupos de jovens,
grupos de orao, grupos de teatro e o famoso grupo Casinha da Praia, composto inicialmente
por dez jovens que, seduzidos pela opo pelos pobres, animava a ala progressista da Igreja
Catlica, conforme relata Pdua Santiago (2008) em seu trabalho intitulado Da experincia
de vida do pesquisador ao estudo da experincia vivida pelos moradores da Favela do
Pirambu. Esse grupo de jovens que queria mudar a sociedade tinha sua utopia alimentada
pela Teologia da Libertao, por um socialismo das comunidades eclesiais de base e pela no
violncia ativa.11
O objetivo era a criao de um movimento conduzido pelos prprios pobres,
uma espcie de autogesto. Alm desses grupos atuantes e polticos, no Pirambu existia o
Instituto Religioso Nova Jerusalm, fundado em 1981 pelo padre belga Gaetan Minette de
Tillesse. Esse Instituto formado por jovens vocacionados que desejam uma congregao
11
SANTIAGO, Pdua. Da experincia de vida do pesquisador ao estudo da experincia vivida pelos moradores
da Favela do Pirambu. In: Pesquisa histrica: fontes e trajetrias. SANTIAGO DE FREITAS et el... Fortaleza:
EdUECE/ABEU, 2008, p. 110.
15
radical em suas vidas ao Senhor Jesus, baseado na orao e no amor, onde acreditam
encontrar a resposta de Deus para a humanidade.12
Sem qualquer engajamento social e poltico, chega ao Pirambu a Renovao
Carismtica Catlica, cujo idealizador local fora o Padre Gaetan de Tillesse. Esse movimento
nasceu em 1967 no meio universitrio, em Pittsburgh, no Estado da Pensilvnia, EUA,
quando um grupo de professores e estudantes da Universidade de Duquesne passa a se reunir
em retiro espiritual, em um fim de semana, com a inteno de renovar os votos do Batismo e
da Crisma. Nesse encontro, asseguram ter recebido os dons do Esprito Santo, iniciando, pois,
uma nova prtica de orao. As razes desse movimento de Renovao do Esprito encontram-
se na tradio de Pentecostes. Esse movimento de Renovao em pouco tempo se estendeu
por vrias partes do mundo.
A Renovao Carismtica Catlica foi introduzida no Brasil em 1969, por iniciativa
dos padres jesutas Harold Joseph Rahm e Eduardo Dougherty. Ambos chegaram ao pas no
fim da dcada de 1960. De acordo com Ronaldo Jos de Sousa (2005),13
o padre americano
Harod Rahm chegou ao Brasil em 1968, vindo do Mxico. Instalou-se em Campinas (SP),
numa fazenda, onde comeou a ministrar curso de orao e estudos sobre a obra do Esprito
Santo. Nessa poca estava de frias no Brasil Eduardo Dougherty, seminarista do curso de
teologia no Canad. Ele era natural de New Orleans (EUA) e em 1969, antes de ser ordenado
sacerdote, experimentou pela primeira vez o batismo no Esprito Santo. O padre Eduardo j
havia estudado no Brasil numa faculdade em So Paulo, que aps o Golpe Militar de 1964 foi
fechada e, por conta disso, ele foi estudar no Canad. Ao voltar para o Brasil, j como
sacerdote, passou a morar com o padre Harold Rahm e participar dos encontros de orao. Foi
a partir desses encontros realizados nos finais de semana que nasceu o movimento carismtico
brasileiro, que rapidamente se espalhou por vrios Estados do pas.
Motivados pela expanso dos grupos de orao e pela extenso que tomava a
Renovao Carismtica Catlica, os padres Harold Rahm e Eduardo Dougherty, juntamente
com a irm Juliette Schuckenbrock, organizaram em Campinas o I Congresso Nacional da
12
COSTA, Maria Gonalves et al. Historiando o Pirambu. Fortaleza: CPDOC/Seriartes Edies, 1995, p. 47. 13
Cf. SOUSA, Ronaldo Jos de. Carisma e instituio: relaes de poder na Renovao Carismtica Catlica
do Brasil. Aparecida, SP: Editora Santurio, 2005.
16
Renovao Carismtica no Brasil, em meados de 1973. Nesse encontro realizado num fim de
semana compareceram cerca de 50 lideranas do movimento com o propsito de discernir a
obra do Esprito Santo no Brasil. No ano seguinte o movimento reuniu lideranas de Mato
Grosso, Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro, Santos e So Paulo, no II Congresso
Nacional da Renovao Carismtica Catlica.
No incio da dcada de 1980, a Renovao j havia se consolidado institucionalmente,
espalhada por todo o territrio nacional, passou a ocupar espaos na mdia, sendo objeto de
notcias nas grandes redes de comunicao do pas. Alm de ocupar espaos nos programas
de rdio e televiso, suas lideranas investiram na produo de livros de formao e cnticos.
Em pouco tempo o Movimento atravs do programa televisivo Anunciamos Jesus, j cobria
60% do territrio nacional, sendo, pois, veiculado por trs redes de televiso.
Em Fortaleza, a Renovao Carismtica chega em 1975 e tem o bairro do Pirambu
como o seu centro de atuao, coordenado pelo padre Gaetan Minette de Tillesse, que levou
para a comunidade sua experincia no Mosteiro Cisterciense (Trapista) de Orval, na Blgica,
que poderia ser vivida pelos leigos: homens, mulheres e crianas.
Esse o Pirambu, um caldeiro de conflitos polticos e religiosos. Um bairro
estigmatizado desde a sua origem. Uma Parquia viva e atuante nascida a partir da luta pela
desapropriao das terras do bairro. Pirambu, do Padre Hlio Campos, que teve maior
visibilidade a partir da famosa Marcha de 1962. Pirambu, do Padre Gaetan de Tilesse, que
transformou a Parquia do Cristo Redentor no centro de atuao da Renovao Carismtica
em Fortaleza.14
Pirambu, do Padre Haroldo Coelho, que transformou a Parquia de Nossa
Senhora das Graas, na pequena Nicargua, centro de conspirao e utopia da Teologia da
Libertao.15
Essa pesquisa nos motiva a buscar respostas para as seguintes indagaes: Quais os
discursos produzidos pela Teologia da Libertao e pela Renovao Carismtica Catlica e
que tipo de ideologia estava por trs de tais discursos? Como se deu intelectualmente o
14
Essa corrente do catolicismo a expresso de uma religiosidade mais voltada para a orao que passou a
predominar no Brasil a partir da dcada de 1990. 15
Foi uma corrente hegemnica durante duas dcadas na Igreja Catlica no Brasil e tambm na Amrica Latina,
imprimindo, assim, na Igreja um carter contestador da ordem social.
17
processo de construo da representao da Teologia da Libertao e da Renovao
Carismtica Catlica no bairro do Pirambu? A perda de espaos institucionais estratgicos na
Igreja Catlica, ao longo dos anos 1980, enfraqueceu o discurso da Teologia da Libertao?
Qual foi a estratgia montada pela Igreja e pelos meios de comunicao para silenciar os
tericos da Teologia da Libertao? Ser que a Teologia da Libertao morreu?
Foram estas questes que conduziram a elaborao deste trabalho. Da ser necessrio
compreender a organizao da Igreja Catlica no Pirambu e como essas duas correntes da
Igreja se entrelaavam: primeiramente conhecendo quem eram os intelectuais que produziram
a Teologia da Libertao e aqueles que difundiram a Renovao Carismtica Catlica, para
posteriormente entender a estrutura das relaes de poder presentes nos discursos de ambas.
Nessa perspectiva, percebemos a necessidade de realizarmos uma investigao sobre a
Igreja Catlica no bairro do Pirambu, para alm daquilo que recebe maior visibilidade: a
violncia, que estigmatiza esse bairro de Fortaleza. Contudo, entendemos que da mesma
forma que se exacerba a violncia no bairro, se oculta a histria dos movimentos sociais e o
conflito ideolgico entre Teologia da Libertao e Renovao Carismtica Catlica. Dois
movimentos na Igreja Catlica pautados no processo de libertao, mas que se encontram em
campos opostos da prtica eclesial.
Com o propsito de entender a Igreja Catlica como espao de disputas, onde se
apresentam dois projetos antagnicos, nossa pesquisa se prope investigar sobre a estratgia
de desarticulao da Teologia da Libertao a nvel mundial, tendo repercusso no bairro do
Pirambu, onde a Renovao Carismtica Catlica passou a predominar a partir de 1986.
Contudo, no podemos esquecer que por meio de um discurso existe uma estratgia de
dominao, que pode gerar resistncias. Assim, no campo religioso as estratgias e as tticas
de resistncias, constituem um par antagnico e conflitante, que so inseparveis. Convm
lembrar que para Certeau (2008) a ttica determinada pela ausncia de poder assim como a
estratgia organizada pelo postulado de um poder.16
16
CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer; 14 ed.Trad. de Ephraim Ferreira Alves. -
Petrpolis, RJ: Vozes, 2008, p. 101.
18
Partindo, pois, das contradies presentes no interior da Igreja Catlica no Pirambu,
nos propomos no presente trabalho a investigar as relaes de poder presentes no discurso da
Teologia da Libertao e da Renovao Carismtica Catlica no bairro do Pirambu. A escolha
do tema surgiu da necessidade de preencher lacunas presentes em alguns trabalhos sobre o
bairro do Pirambu. Apesar da variedade de Trabalhos de Concluso de Curso (TCC) e de
dissertaes de Mestrado, iniciados na Escola de Servio Social de Fortaleza em 1958,
nenhum deles se props a investigar as relaes de poder presentes nos discursos da Teologia
da Libertao e da Renovao Carismtica na Igreja do Pirambu.
O nosso recorte temporal vai de 1968 a 1986. O incio marcado pelas grandes
mudanas ocorridas na Igreja Catlica a partir da II Conferncia Geral do Episcopado Latino-
Americano, realizado em Medellin (1968), onde a Igreja fez uma opo histrica. Como
afirma Leonardo Boff (1988): A Igreja optou pelo povo, pelos pobres, por sua libertao
integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base.17
A partir de 1968, as perseguies se intensificaram contra aqueles que faziam um
trabalho de pastoral. A grande imprensa desenvolveu uma campanha de difamao contra
padres e bispos envolvidos na luta pela libertao do povo. D. Fragoso, a exemplo de D.
Hlder Cmara, era chamado de bispo vermelho. Alm de artigos difamatrios veiculados
na imprensa, o bispo de Crates recebeu cartas ameaadoras de organizaes paramilitares o
brao alternativo da ditadura militar naqueles anos de represso.
Apesar de o pas viver sob a ditadura militar-civil que imps o AI-5, cassando
mandato de parlamentares e implantando o terror, a ala progressista da Igreja Catlica,
juntamente com as CEBs assumiu uma postura crtica diante da conjuntura poltica e
econmica em que se configurava o Brasil. Nas dcadas de 1970 e 1980 a Teologia da
Libertao se estabeleceu como um novo paradigma que passou a dominar a Amrica Latina,
onde predominou o discurso de libertao dos pobres. Esse novo paradigma ocupou o espao
da utopia do Socialismo latino-americano, enfraquecido aps os golpes militares que tomaram
de conta do continente americano. Ao longo dessas duas dcadas ocorreu um boom de
escrita e publicao por parte de intelectuais religiosos, onde se destacaram: Rubem Alves,
17
BOFF, Leonardo. O caminhar da Igreja com os oprimidos. 2.ed. Petrpolis: Vozes, 1998, p. 66.
19
Gustavo Gutirrez, Hugo Assman, Jon Sobrino, Frei Betto e os irmos Leonardo e Clodovis
Boff.
A dcada de 1980 foi marcada por uma crise mundial, que fez do bloco de pases
socialistas a sua principal vtima. Quando a crise chegou ao fim, o Muro de Berlim j no
existia, tampouco a Unio Sovitica. A partir da Revoluo Sandinista a Nicargua se torna
visvel a ponto de incomodar os Estado Unidos e o prprio Vaticano. No podemos esquecer
o martrio de D. Oscar Romero e a represso vaticanista sofrida por Leonardo Boff, alm do
discurso da Revista Veja, que durante o ano de 1980 lanou uma campanha contra a Teologia
da Libertao. No incio dessa dcada, os trabalhadores se mobilizam e passam a exigir
melhores salrios e condies de trabalho. Os movimentos de esquerda emergem para a
liberdade. Surge o Partido dos Trabalhadores (PT), que acabaria por exercer forte influncia
junto aos movimentos populares, notadamente no bairro do Pirambu, de onde saiu o candidato
a governador do Cear em 1986, o ento vigrio da Parquia Nossa Senhora das Graas,
Padre Jos Haroldo Coelho.
Alguns trabalhos da historiografia brasileira nos sero bastante teis para a produo
de nosso trabalho. Podemos citar o livro Os incomodados no se retiram, de Jos
Borzachiello da Silva. Essa obra descreve a formao de Fortaleza em seus aspectos
geogrficos, a progressiva industrializao da cidade e a problemtica das favelas e dos
conjuntos habitacionais. Outra obra importante sobre os movimentos sociais em Fortaleza e a
Igreja Catlica o livro A Poltica de Escassez, organizado por Irlys Barreira, o qual rene
textos de vrios autores, onde se analisam os movimentos, a poltica, a Igreja, os bairros, o
poder do Estado e os sujeitos sociais no espao urbano de Fortaleza. Por sua vez, O reverso
das vitrines, de Irlys Barreira, faz uma anlise dos conflitos urbanos e a cultura poltica em
Fortaleza. Nessa obra a autora destaca a Marcha do Pirambu, a atuao das CEBs e da Igreja
no Pirambu e em outros bairros de Fortaleza.
Outras obras nos ajudaram a compreender a formao do bairro do Pirambu e a
construo da Igreja de Nossa Senhora das Graas, so narrativas e romances. Podemos citar,
como exemplo, o livro Pirambu: uma parquia em renovao, do Pe. Jos Marins; a
narrativa Memria Viva do Pirambu: O Velho Pirambu de Muletas nas Mos, de Geraldo
Valmir Silva e os romances: Pirambu, de Ciro Sampaio e Passado, Presente, Brasil de
20
Gerardo Damasceno. As obras supracitadas foram de grande importncia para a compreenso
da formao desse bairro, a construo da Igreja pelo Padre Hlio Campos e o projeto de
organizao dos moradores. Contudo, um livro que nos chamou ateno de autoria de
Cludio de Oliveira Ribeiro, intitulado A Teologia da Libertao Morreu? Nessa obra o
autor relaciona as mudanas socioeconmicas e polticas do final do sculo passado com a
crise da Teologia da Libertao. Entretanto, duas obras estudadas nos ajudaram a ter uma
compreenso profunda acerca da origem e organizao da RCC e sua relao com a TdL,
estamos falando dos livros Carismas e instituio: relaes de poder na Renovao
carismtica catlica do Brasil de autoria de Ronaldo Jos de Sousa e Um sopro do esprito:
a renovao conservadora do catolicismo carismtico de autoria do socilogo Reginaldo
Prandi.
Para melhor compreendermos a Igreja Catlica no Pirambu e os conflitos entre a TdL
e a RCC, recorremos a alguns peridicos do qual fazem parte os jornais de grande circulao
nas dcadas de 1960 e 1980, so eles: Correio do Cear, Gazeta de Notcias, O Estado, O
Nordeste, O Povo, Tribuna do Cear, Dirio do Nordeste, Correio da Manh, Folha de So
Paulo, O Globo e Jornal do Brasil.18
Alm dos peridicos, outras fontes importantes para o
nosso trabalho foram os documentos da Igreja Catlica.19
Sendo nosso objeto de estudo a Igreja Catlica no Pirambu e as relaes de poder
presentes no discurso da TdL e da RCC entre 1968 e 1986, acreditamos ser de fundamental
importncia uma reflexo sobre a histria do tempo presente, tal qual destaca Rmond
(2003),20
tempo em que tudo seria ento uma relao de poder. Poder esse que h muito j
dizia Foucault estava presente em toda parte. No s no aparato do Estado, mas tambm nas
18
Alguns jornais locais trazem notcias sobre a situao de misria em que viviam os moradores do Pirambu na
dcada de 1960. Um bom exemplo a Gazeta de Notcias, que nas suas pginas passou a denunciar a situao de
excluso dos moradores, encampou o Plano de Recuperao do bairro em 1961 e deu bastante destaque luta
dos moradores e famosa Marcha de 1962. Na dcada de 1980, a violncia, as ocupaes foram destaques nas
pginas do Jornal O Povo e Dirio do Nordeste. Por sua, vez os jornais de circulao nacional trazem notcias
sobre Medelln, Puebla e a Teologia da Libertao. 19
Dentre esses documentos podemos citar: A Palavra de Joo Paulo II no Brasil (Discursos e homilias),
Conferncia Geral do Episcopado Latino-Americano, Puebla: a evangelizao no presente e no futuro da
Amrica Latina, Consejo Episcopal LatinoAmericano CELAM, Discursos de Joo Paulo II no Brasil, Documentos da CNNB: Orientaes Pastorais sobre a Renovao Carismtica Catlica, Documentos da CNNB:
Mensagem ao Povo de Deus sobre as Comunidades Eclesiais de Base, Os Papas falam sobre a Renovao
Carismtica: textos de Joo XXIII, Joo Paulo I, Joo Paulo II, Dirio de Puebla, Puebla ao alcance de todos.
Alm das Encclicas Papais. 20
RMOND, Ren. Uma histria presente. In: RMOND, Ren (Org.) Por uma histria poltica. Traduo de
Dora Rocha. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p.444.
21
prticas religiosas e nos discursos polticos. Nesse sentido, a trama discursiva abre espaos
para o historiador, cuja vocao interrogar-se sobre o sentido dos fatos, formulando
hipteses explicativas acerca de um tempo, aquele em que o acaso o fez nascer e ao qual ele
abraa.21
Desse modo, conforme destacam, Chauveaux e Ttart (1999), a presena do
historiador em seu tempo evolui, portanto, em funo da prpria histria.22
Para que possamos entender as tramas do tempo presente, que no se encontram nos
registros escritos recorremos s narrativas orais relacionadas ao evento que nos propomos
analisar. Nessa perspectiva, direcionamo-nos aos aportes da Histria Oral, pois esta nos
permite o registro de testemunhas e o acesso a histrias dentro da histria e, dessa forma,
amplia as possibilidades de interpretao do passado.23
Sendo a Histria Oral uma metodologia de pesquisa e de constituio de fontes para o
estudo da histria do tempo presente, ela possibilita a coleta e comparao dos depoimentos e
o cruzamento destes com outras fontes. A partir de entrevistas gravadas com indivduos que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente,24
temos a possibilidade de selecionar, fazer recortes e construir o nosso objeto de estudo.
Partindo dessa premissa, nossa pesquisa inclui o trabalho com fontes orais, analisando,
interpretando e situando historicamente os depoimentos e as evidncias orais. Entendemos
que a metodologia da Histria Oral fundamental, j que permite o conhecimento da
reconstruo das vivncias e experincias dos sujeitos sociais.
Portelli (1997)25
entende a histria oral como uma cincia e arte do indivduo que diz
respeito a verses do passado, ou seja, memria. No tocante relao entre histria oral e
memria, percebemos que:
21
Cf. RMOND. Op. Cit., p.13-17. 22
CHAUVEAUX, Agns: TETRT, Philippe. Questes para a histria do presente. Traduo Ilka Stern
Cohen. Bauru, SP: Edusc, 1999, p. 33. 23
ALBERTI, Verena. Histrias dentro da histria. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.) Fontes histricas. 3.ed.-
So Paulo: Contexto, 2011, p.155. 24
IDEM, p. 165. 25
PORTELLI, Alexandre. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexes sobre a tica na Histria Oral.
In: Revista do Programa de Estudos Ps-Graduados em Histria e do departamento de Histria da PUC-
SP. So Paulo: Educ, n.15, 1997, p.16.
22
A memria incontestavelmente da atualidade (...) no sentido bsico do termo, a
presena do passado. A memria (...) uma reconstruo psquica e intelectual que
acarreta de fato uma representao seletiva do passado, um passado que nunca
aquele do indivduo somente, mas de um indivduo inserido num contexto familiar,
social, nacional. Portanto toda memria , por definio, coletiva, como sugeriu
Maurice Halbwachs.26
No caso da Igreja Catlica do Pirambu, entendemos que o uso da memria uma
importante fonte de construo do conhecimento dos sujeitos sociais inseridos na
comunidade. Sendo a Histria Oral uma forma de pesquisa qualitativa, ela nos permite
conhecer diferentes verses sobre a histria da Igreja Catlica no bairro do Pirambu. Essas
verses so marcadas pela posio social de testemunhas vivas.
Dentre essas testemunhas, destacamos moradores do Pirambu que participaram dos
movimentos religiosos, polticos e sociais na dcada de 1980. O primeiro entrevistado o
Senhor Jos Maria Tabosa, residente no bairro Cristo Redentor. Nascido no bairro, sapateiro
de profisso, aposentado, com 73 anos de idade. Participou junto com o Padre Hlio Campos
dos movimentos religiosos no Pirambu, na dcada de 1960. Durante os anos 1970 dirigiu o
sindicato dos sapateiros e conheceu a represso do regime militar vigente no pas. Participou
ativamente dos movimentos polticos para a abertura do regime na dcada de 1980 e fez parte
na administrao popular do Partido dos Trabalhadores (1986-1988). Foi o primeiro
presidente da Grande Entidade do Pirambu (atual Federao dos Movimentos Comunitrios
do Pirambu).
Outros entrevistados so pessoas que participaram dos movimentos religiosos,
polticos e sociais da Parquia de Nossa Senhora das Graas. O segundo entrevistado o
professor Francisco Assis Barroso, ex-presidente do Conselho Comunitrio do Bairro Nossa
Senhora das Graas. O terceiro entrevistado uma pessoa que tambm teve participao ativa
no Bairro de Nossa Senhora das Graas durante a dcada de 1980, foi o articulador dos
movimentos culturais e sociais no bairro, o Senhor Francisco Carlos, conhecido na
comunidade como Carlos Careca. O quarto entrevistado uma pessoa que tambm deu sua
contribuio, falando dos movimentos sociais no Pirambu, foi ex-prefeita de Fortaleza,
Maria Luiza Fontenelle. O quinto entrevistado o advogado Airton Paula Barreto, que atuou
no Conselho Comunitrio da Parquia do Cristo Redentor e do Centro de Direitos Humanos
26
ROUSSO, Henry. A memria no mais o que era. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes.
Usos & abusos da histria oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006, p. 94.
23
do Pirambu. O sexto e ltimo entrevistado o Padre Francisco Jos Gomes de Sousa, NJ
(Vigrio Paroquial do Cristo Redentor). Dentre esses entrevistados, apresentamos tambm
duas entrevistas feitas com o Padre Haroldo Coelho e uma com o Padre Gaetan de Tillesse.
A utilizao da histria oral foi decisiva para elucidar muitas questes sobre a Igreja
Catlica no Pirambu e os movimentos sociais. Contudo, foi necessrio comparar as
entrevistas com outras fontes escritas, para que de um modo mais criterioso possamos
entender as problemticas aqui apresentadas. Nesse sentido, procuramos analisar as
narrativas, romances e as entrevistas, a fim de dar maior consistncia ao nosso trabalho.
A priori, para que a produo de um trabalho histrico seja satisfatria se faz
necessrio, pois, a utilizao de conceitos tericos. Sendo, portanto, nossa pesquisa na rea da
Histria Cultural, esta tem como objetivo compreender as relaes de poder presentes no
discurso da Teologia da Libertao e na Renovao Carismtica Catlica na Igreja do
Pirambu entre 1968 e 1986. Os movimentos sociais e religiosos no bairro trazem na sua
essncia uma riqueza simblica. Isto porque, esses movimentos tinham a capacidade de
mobilizao poltica, sendo, portanto, tambm objeto de estudo da Histria Cultural.
Nesse sentindo, nos fundamentamos em Pesavento (2008), que sugere um caminho de
amplido para a viso de toda a histria, tendo por base a Histria Cultural. Ela entende a
cultura como um conjunto de significados partilhados e construdos pelos homens para
explicar o mundo. tambm uma forma de expresso e traduo da realidade que se
representa de forma simblica.
As representaes construdas sobre o mundo no s se colocam no lugar deste
mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautem a sua
existncia. So matrizes geradoras de condutas e prticas sociais, dotadas de fora
integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivduos e grupos do
sentido ao mundo por meio das representaes que constroem sobre a realidade.27
Pelo que foi exposto, verificamos que a disputa ideolgica que permeia as duas foras
polticas e religiosas no bairro do Pirambu, no perodo em questo, representam a capacidade
de mobilizao e produo de um reconhecimento legitimador da sociedade. Assim, aquele
que tem o poder simblico de dizer e fazer crer sobre o mundo tem o controle da vida social e
27
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Histria & Histria Cultural. 2.ed.Belo Horizonte: Autntica, 2008, p. 39.
24
expressa a supremacia conquistada em uma relao histrica de foras.28 E essa relao de
foras se traduz dentro da Igreja Catlica no bairro do Pirambu, a partir do conflito ideolgico
entre a Teologia da Libertao e a Renovao Carismtica Catlica.
Sendo a nossa pesquisa no campo da Histria Cultural, acreditamos ser de suma
importncia trabalhar os valores de grupos locais, notadamente o bairro do Pirambu e a
questo religiosa nas dcadas de 1960 e 1970, e em especial a dcada de 1980, perodo esse
que coincide com a expanso da Histria Cultural para outras reas do conhecimento.
O interesse por cultura, histria cultural e estudos culturais ficou cada vez mais
visvel nas dcadas de 1980 e 1990.29
Muitos historiadores passaram a utilizar a expresso
Nova histria cultural e se utilizar da obra de tericos como: Mikhail Bakhtin, Norbert
Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu.
Barros (2004)30
nos lembra que a presena da Histria Cultural marcada por
historiadores que tomaram por objeto o discurso cientfico, e, em particular, o discurso
historiogrfico, consolidando, assim, uma linha de reflexes que teve como pioneiro o texto
de Michel Foucault A Arqueologia do Saber (2013). Nessa obra encontramos inmeras
definies de discurso. Por discurso, Foucault entende um conjunto de enunciados apoiados
na formao discursiva. Convm lembrar que as definies de discurso no podem ser
compreendidas isoladamente.
Na Arqueologia do Saber, Foucault apresenta os parmetros que do sustentao
anlise histrica sobre a subjetividade na sociedade ocidental. Ele entende que o sujeito
constitudo por prticas discursivas. Ao referir-se s prticas discursivas, referem-se, tambm,
s prticas sociais, visto que o discurso envolve condies histrico-sociais de produo.31
A
conceituao de discurso como prtica social exposta em A Arqueologia do Saber, se torna
clara na obra Vigiar e Punir (2008) e na clebre aula A Ordem do Discurso (2009), onde
se sublinha a ideia de que o discurso se produz em razo das relaes de poder.
28
IDEM, p. 41. 29
BURKE, Peter. O que histria cultural?- 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008, p. 45. 30
Cf. BARROS, Jos DAssuno. O campo da histria: especialidades e abordagens. Petrpolis, RJ: Vozes,
2004. 31
FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. So Paulo: Intermeios, 2012, p.
28.
25
Em Foucault tudo prtica, tudo est imerso em relaes de poder e saber. Na
verdade, o objetivo de suas anlises estabelecer relaes entre saberes. Machado (1979), na
introduo que fez para o livro Microfsica do poder (Foucault, 1979), sintetiza muito bem
a ideia de Foucault sobre a questo do poder e saber:
O fundamental da anlise que saber e poder se implicam mutuamente: no h
relao de poder sem constituio de um campo de saber, como tambm,
reciprocamente, todo saber constitui novas relaes de poder. Todo ponto de
exerccio do poder , ao mesmo tempo, um lugar de formao de saber.32
Apesar de Foucault aproximar saber de poder, ele entende no se tratar da mesma
coisa. Conforme assevera Veiga-Neto:
As relaes de fora constituem o poder, ao passo que as relaes de forma
constituem o saber; mas aquele tem o primado sobre este. O poder se d numa
relao flutuante, isso , no se ancora numa instituio, no se apoia em nada fora
de si mesmo, a no ser no prprio diagrama estabelecido pela relao diferencial de
foras; por isso fugaz, evanescente, singular, pontual. O saber, bem ao contrrio, se
estabelece e se sustenta nas matrias / contedos e em elementos formais que lhe so
exteriores: luz e linguagem, olhar e fala. bem por isso que o saber apreensvel,
ensinvel, domesticvel, volumoso. E poder e saber se entrecruza no sujeito, seu
produto concreto, e no num universal abstrato.33
O que opera o cruzamento nos sujeitos o discurso, e este, por sua vez, articula poder
e saber. Para Foucault, um saber se define por possibilidades de utilizao e apropriao
oferecidas pelo discurso.34
No podemos esquecer que o discurso um jogo estratgico e polmico, por meio do
qual se constituem os saberes de um momento histrico, marcado por golpes militares no
continente americano. O que de certo modo acabou por enfraquecer a perspectiva de um
socialismo latino-americano. Tal fato motivou o surgimento de um novo paradigma que veio
ocupar esse espao, deslocando o campo de lutas para a Teologia da Libertao, que,
juntamente com as Comunidades Eclesiais de Base, aliou-se aos Movimentos Sociais. No
sentido oposto surgiu a Renovao Carismtica Catlica, um movimento conservador, cuja
preocupao principal era apenas com a libertao espiritual do homem.
32
MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel. Microfsica do poder.
Organizao e traduo de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1979, p. XXI. 33
VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a educao. 2.ed. Belo Horizonte: Autntica, 2007, p. 130. 34
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Traduo de Luiz Felipe Baeta Neves. 8.ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitria, 2013, p. 220.
26
Assim, ao analisar esses dois movimentos no interior da Igreja Catlica, e a produo
do discurso dos mesmos, tentamos, pois, observar as relaes de poder envolvidas. Desse
modo, buscamos no processo de produo de um saber/poder identificar os sujeitos sociais
que deram impulsos a eles. Nessa perspectiva, procuramos identificar os atores sociais
envolvidos no conflito dentro da Igreja Catlica, notadamente, na Igreja do bairro do
Pirambu.
Tratando-se do poder no campo religioso, Bourdieu lembra que (...) a religio est
predisposta a assumir uma funo ideolgica,35 cujo campo religioso recobre o campo das
relaes de concorrncia que se estabelecem no prprio interior da Igreja.36 Contudo, o
discurso da Teologia da Libertao procurou romper com o poder presente no interior da
Igreja, a partir de sua opo pela libertao dos pobres. Porm, esse discurso acabou sendo
absorvido pelo discurso da Renovao Carismtica Catlica.
Nosso trabalho est dividido em trs captulos. O primeiro intitulado A Igreja
Catlica: espao de sociabilidade, conflitos e relaes de poder. Neste captulo procuramos
historicizar o nosso objeto, a partir da anlise da formao do bairro do Pirambu, o estigma da
violncia e da misria que sempre o acompanhou. Alm do processo de organizao dos
moradores antes e depois da construo da Parquia de Nossa Senhora das Graas, do
Pirambu. Em seguida nos deteremos anlise da relao da Igreja Catlica com o poder, os
discursos e as prticas desta instituio religiosa em relao ao estado autoritrio que
predominou no Brasil de 1964 a 1985.
No segundo captulo, cujo ttulo O Pirambu de costas para o poder: as CEBs e os
Movimentos Sociais nossas anlises se voltam para a atuao das Comunidades Eclesiais de
Base e seu envolvimento com os movimentos sociais e culturais no bairro do Pirambu. Por
fim, a questo da f e da poltica, prticas e discursos que aproximam e afastam os moradores
e as tenses dentro da Igreja no Pirambu.
J no terceiro captulo, intitulado O conflito na Igreja Catlica: as prticas religiosas
da Renovao Carismtica e o discurso poltico da Teologia da Libertao, abordaremos o
35
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simblicas. Introduo, organizao e seleo Srgio Miceli.
7.ed.-So Paulo: Perspectiva, 2011, p.46. 36
IDEM, p.63.
27
processo de mudanas na Igreja Catlica verificado a partir do Conclio Vaticano II (1962-
1965) e o nascimento do Movimento de Renovao Carismtica nos Estados Unidos no
perodo ps-Conferncia de Medelln, em 1968. Foi tambm no contexto de renovao da
Igreja Catlica na Amrica Latina e no Brasil que a Teologia da Libertao se formou pela
ao de telogos latino-americanos, comprometidos com a elaborao de um pensamento
teolgico pautado na temtica da libertao. Tambm refletimos acerca do discurso da
Teologia da Libertao e sua relao com o marxismo, alm dos conflitos entre a RCC e a
TdL no Bairro do Pirambu. Por fim, buscamos entender as estratgias montadas pelo Vaticano
e pelos grupos conservadores da Igreja Catlica, para desmontar a Teologia da Libertao e as
razes que levaram o movimento carismtico predominar sobre a TdL no Bairro do Pirambu.
28
CAPTULO 1- A IGREJA CATLICA: ESPAO DE SOCIABILIDADE,
CONFLITOS E RELAES DE PODER.
Os anos de 1968 a 1986 foram compostos de cenas e tramas bastante incomuns, no
s para a sociedade brasileira, mas para o mundo como um todo. 1968 foi o ano de rebeldia
por parte da juventude em vrias partes do mundo. No Brasil, o estopim do movimento
estudantil foi a morte do estudante secundarista Edson Luis. No Cear, o movimento contou
com a solidariedade da Igreja Catlica, tendo o representante dessa instituio, o Arcebispo
Dom Delgado, divulgado inclusive uma nota de apoio aos estudantes.
No geral, o ano de 1968 associado a diferentes processos polticos e sociais. Para a
Igreja Catlica ele foi bastante complexo. Pois a decretao do Ato Institucional n 5 (AI-5),
alm de atingir a hierarquia progressista, mexeu tambm com os setores de centro e at com
os conservadores do episcopado. No caso da Igreja Catlica no bairro do Pirambu, a sada do
Padre Hlio Campos acabou por desarticular a organizao dos moradores. Pois o vigrio do
Pirambu fora nomeado Segundo Bispo na Diocese de Viana, no Estado do Maranho, em 03
de agosto de 1969.
Para a Igreja Catlica na Amrica Latina, o ano de 1968 foi de renovao. E essa
renovao foi levada a cabo a partir da reunio de Medelln (Colmbia), quando a Igreja fez a
sua opo pelos pobres, por sua libertao integral e pelas Comunidades Eclesiais de Base.
Enquanto a Igreja progressista avanava, a ala conservadora se movimentava no intuito de
reconquistar os espaos perdidos para os pentecostais, para as religies afro-brasileiras e
orientais, investindo, pois, no Movimento de Renovao Carismtica Catlica (MRCC). Tal
movimento nasceu nos Estados Unidos em 1967 e chegou ao Brasil em 1968, num contexto
de crise do catolicismo tradicional, passando a responder, mesmo que de forma intuitiva, s
necessidades de evangelizao catlica.
Tratando-se da Igreja Catlica no Pirambu, uma questo nos leva a fazer uma
profunda reflexo: O que motivou em 1968 o monge trapista Gaetan de Tillesse escolher
morar no Pirambu? No podemos esquecer que esse religioso especialista no estudo bblico
29
foi um dos idealizadores do Movimento de Renovao Carismtica em Fortaleza. Ser que o
Pirambu representava uma ameaa para o poder vigente?
Contudo, os anos de silncio impostos pelo AI-5 foram rompidos a partir da transio
poltica (1974-1985), quando a Igreja Catlica a partir das CEBs teve um engajamento
bastante significativo junto aos movimentos sociais e partidos de esquerda. No Cear, essa
participao se deu particularmente com Dom Alosio Lorscheider em Fortaleza e Dom
Fragoso em Crates.
A dcada de 1970 foi marcada pela abertura poltica, a revogao do AI-5, suspenso
da censura e a decretao da Anistia aos presos polticos. J na dcada de 1980, temos a
mobilizao dos trabalhadores, que passam a exigir melhores salrios e condies de trabalho.
Os movimentos de esquerda emergem para a liberdade. Surge o Partido dos Trabalhadores
(PT), partido esse que acabaria exercendo forte influncia junto aos movimentos populares em
Fortaleza, notadamente no bairro do Pirambu. Foi desse bairro que saiu o candidato ao
governo do Cear em 1986, o ento vigrio da Parquia de Nossa Senhora das Graas, o
Padre Jos Haroldo Coelho Bezerra.
Neste captulo, inicialmente nos deteremos anlise da formao do bairro do
Pirambu e da organizao dos moradores a partir da edificao da Parquia e da atuao do
Padre Hlio Campos. Por fim, trataremos a questo do poder dentro da Igreja Catlica e dos
discursos da Teologia da Libertao e da Renovao Carismtica Catlica.
1.1 Pirambu: um bairro estigmatizado; uma Parquia atuante.
Entardecer, maro de 1968, sexta-feira. A brisa que sopra do mar parece combinar
com a calmaria do fim da tarde. Nas dunas brancas do Pirambu, quase deserto
naquele momento, avistam-se ao longe algumas crianas a brincar37
.
Esse o Pirambu, das dunas brancas, ruelas estreitas, belas lagoas, de um povo rude e
humilde, que desde o incio do povoamento, na dcada de 1930, soube enfrentar bravamente
as intempries da natureza e o estigma da excluso social.
37
DAMASCENO, Gerardo. Passado, Presente, Brasil. Fortaleza: Seriartes Produes, 1991, p. 14.
30
Pirambu, do passado e do presente, retratado nas pginas do romance do escritor
pirambuense Jos Gerardo Damasceno. Romance que transporta o leitor ao passado, fazendo-
o conviver com personagens vivas e reais que deram imensa contribuio para a formao
cultural, poltica e religiosa desse bairro de Fortaleza.
Dentre esses personagens, o autor destaca Padre Hlio Campos, um sacerdote que
chegou ao bairro em 1958, permanecendo at 1968. Durante essas duas dcadas revolucionou
o Pirambu e edificou uma Parquia viva e atuante, alm de liderar a Marcha sobre Fortaleza
em 1962, a qual deu maior visibilidade a esse bairro.
Damasceno, como outros jovens das dcadas de 1960, 1970 e 1980 tinha a utopia de
buscar uma sociedade justa, livre das divises sociais. Tal utopia foi vivenciada por dez
jovens que em maro de 1984 conheceram o bairro e lanaram as bases de um movimento
conduzido pelos pobres em favor de sua libertao. Esse grupo conhecido pelos moradores do
bairro como Casinha da Praia desenvolveu um importante trabalho de resgate da memria,
apoio jurdico, alfabetizao, sade, habitao e gerao de emprego e renda38
. Mas o que
marcou de fato foi a luta contra a violncia no bairro.
A violncia dentre um dos muitos estigmas que marcou o Pirambu. Inferimos essa
realidade nas narrativas de Geraldo Walmir Silva: Ser que algum dia j se viu no Brasil
bairro to perigoso quanto este aqui no Cear? Por um nada, as facas apareciam nas mos dos
perigosos39. De acordo com esse autor, o Pirambu nunca foi visto a olho nu pelas autoridades
do Estado. De fato, o que se olhava apenas era o lado ruim do bairro. Os prprios moradores
alimentavam o atributo de que eram diferentes de outros que se encontrava em melhores
condies financeiras.
Estando o morador do Pirambu em outro bairro, este temia revelar o nome do seu local
de moradia receando ser desacreditado e/ou excludo. De acordo com Silva (1999), no prprio
logradouro existia uma vergonha por parte de muitos moradores de se declarar pirambuense.
Os soaites, tambm filhos do Pirambu, negavam morar no torro venenoso. Diziam que 38
Cf. SANTIAGO, Pdua. Da experincia de vida do pesquisador ao estudo da experincia vivida pelos
moradores da Favela do Pirambu. In: Pesquisa histrica: fontes e trajetrias. SANTIAGO DE FREITAS et el...
Fortaleza: EdUECE/ABEU, 2008, p. 110. 39
SILVA, Geraldo Walmir. Memria viva do Pirambu: o velho Pirambu de muletas nas mos. Fortaleza: Seriartes Produes, 1999, p.24.
31
moravam no bairro de Nossa Senhora das Graas. Pirambu era s a partir de uma certa
diviso40.
Desde a sua origem o Pirambu carrega o estigma da inferioridade. Entre os moradores
perpassava a ideia de que aqueles que moravam em barracos em condies sub-humanas
seriam portadores de uma doena terrvel: a misria. Sendo, portanto, alvos fceis da
violncia e por isso desacreditado e excludo.
Goffman (2008) nos diz que o indivduo estigmatizado ou muito agressivo ou
muito tmido e que, em ambos os casos, est pronto a ler significados no intencionais em
suas aes41. Essa caracterstica pode ser observada entre os moradores do Pirambu e aqueles
que frente a esses indivduos estranhos, ignoram suas qualidades e passam a olhar apenas
com descrdito, atribuindo-lhes a condio de pessoa m e perigosa.
Assim, queremos neste captulo entender o Pirambu, que durante muito tempo
carregou o atributo de bairro violento e miservel, e que acabou se projetando a partir da
construo da Parquia de Nossa Senhora das Graas, sendo, portanto, um espao de lutas e
expresso poltica na dcada de 1960, notadamente a partir da luta pela desapropriao das
terras, o que se configurou com a Marcha sobre a Cidade de Fortaleza em 1962. Outro ponto
marcante foi o embate ideolgico na dcada de 1980 entre a Renovao Carismtica Catlica
e a Teologia da Libertao.
Para entendermos as razes desse conflito na Igreja do Pirambu, faz-se, pois
necessrio conhecermos o processo que configurou a formao do bairro e o contexto em que
se deu a construo da Parquia de Nossa Senhora das Graas. Por isso, recorremos a jornais
locais, romances, narrativas e depoimentos de moradores e outros que vivenciaram os
movimentos sociais no bairro no perodo em estudo.
Os documentos escritos nos sero de grande valia, mas as memrias guardam uma
riqueza fenomenal, pois alimentam a nossa inteno de salvar o passado para servir ao
40
IDEM, p.27. 41
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulao da identidade deteriorada. 4.ed. Rio de Janeiro, RJ:
LTC, 1988, p. 27.
32
presente e ao futuro42. De tal modo que as nossas lembranas possam permanecer coletivas
e no apenas lembradas por outros, pois elas so objetos de construo histrica. E so essas
memrias vivas que nos daro subsdio para que possamos conhecer a histria do povo do
Pirambu e a importncia da Igreja Catlica nesse processo de construo de uma identidade
social.
E, por falar em memrias, encontramos nas Vivncias, lutas e memrias de Jos
Maria Tabosa (2002), informaes importantes para a construo da memria viva do
Pirambu. O autor nos conta:
Nasci aqui no Pirambu, no dia 25 de maio de 1941. (...) Pequenino, passei muitas
dificuldades. (...) Eu era muito magro, disso eu sei. Da Rua Sete de Setembro para o
mar, era muito longe, ento meu pai me carregava nos braos. A gente ia tomar
banho no mar. (...) Dia de domingo a gente ia pra missa com a mame, todo
arrumadinho, na Igreja dos Navegantes.43
As memrias do senhor Jos Maria Tabosa nos trazem do passado do Pirambu
histrias de famlias que migraram para o bairro, quando o mesmo era um espao pouco
povoado, porm cheio de belezas naturais. Outro aspecto que deve ser levado em conta o
religioso, que predominava na maioria dessas famlias. Vejamos o que diz Marins (1965)
sobre o bairro:
O Pirambu localiza-se na orla martima de Fortaleza. Sua topografia bastante
acidentada, oferecendo srios problemas quanto a um possvel nivelamento. O
aglomerado de dunas sem vegetao de fixao facilita o amontoado de casebres,
dando origem a ruelas sinuosas e estreitas. Movendo-se de acordo com as foras dos
ventos que sopram do mar, ora soterram casas, ora obstruem ruelas44
.
Por ser um bairro localizado na zona oeste, beira-mar e por estar a 3 km de distncia
do centro da cidade, o Pirambu tornou-se um local atrativo para as famlias, que, devido s
condies difceis, se aventuraram a fugir do serto, migrando para Fortaleza procura de
dias melhores.
42
LE GOFF, Jacques. Histria e memria. Traduo de Bernardo Leito. 7.ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2013, p. 437. 43
TABOSA, Jos Maria. Vivncias, lutas e memrias: histria de vida e luta comunitria em Fortaleza. In: CEARAH Periferia. Vivncias, lutas e memrias: histria de vida de lideranas comunitrias em Fortaleza.
Coord., Guillaume Cabanes. Introd. Jos Borzacchiello da Silva. Anlise de Elza Franco Braga. Fortaleza:
Edies Demcrito Rocha, 2002, p. 04-05. 44
MARINS, Pe. Jos. Pirambu: uma Parquia em Renovao. So Paulo: Movimento por um Mundo
Melhor/Melhoramentos, 1965, p.14.
33
No s o Pirambu, mas outros bairros pobres de Fortaleza tm sua origem em
decorrncia dos constantes deslocamentos de lavradores sem terras e pequenos proprietrios
que chegavam cidade devido rigidez da estrutura fundiria vigente em nosso pas, que
ainda hoje impede o acesso do campons terra e a outros meios de produo.
Nesse entendimento, Silva (1992) afirma que as favelas se proliferaram a partir de
1930 devido ao aumento do fluxo migratrio. E nesse contexto se formaram aglomeraes de
edificaes precrias na periferia da cidade. Cabe lembrar que:
Data do incio da dcada de 1930 a origem desses aglomerados com caractersticas
de favelas. Entre 1930-1935 surgiram as seguintes favelas na cidade: Cercado do Z
Padre (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933), Morro do Ouro (1940), Varjota
(1945), Meireles (1950), Papoquinho (1950), Estrada do Ferro (1954)45
.
As migraes se intensificaram nos perodos de estiagem mais prolongada, quando
centenas de famlias deixaram sua terra natal e se deslocaram para a capital, visto que esta
oferecia melhores condies e dispunha de empregos nas indstrias nascentes na periferia da
capital46
.
Muitas das famlias que chegaram do interior do estado acabaram por se abrigar ao
longo das praas, ou se dispunham a vagar sem rumo pelas ruas do centro da cidade. Essas
famlias passaram a procurar lugares que pudessem oferecer abrigo, mesmo que esses fossem
temporrios. Os becos, favelas, reas alagadas, zonas de difcil acesso passaram ento a
abrigar a massa de agricultores vindos do interior, pois eram os nicos locais possveis de
moradia longe do olhar disciplinador e higienizador do poder local.
O povoamento do Pirambu se insere no contexto do intenso xodo rural que ocorre a
partir da dcada de 1930, e da expanso da ferrovia. De acordo com o depoimento de um
antigo morador, a ferrovia facilitou o povoamento do Pirambu.
Quando os retirantes chegavam a Fortaleza desembarcavam na estao do Otvio
Bonfim e se deslocavam para o Pirambu, onde existia um Campo de Concentrao.
45
SILVA, Jos Borzacchiello da. Quando os incomodados no se retiram: uma anlise dos movimentos
sociais em Fortaleza. Fortaleza: Multigraf Editora, 1992, p.29. 46
De acordo com Silva (1992, p.41) A maior concentrao industrial estava localizada na Zona Oeste da Cidade
de Fortaleza (rea da Av. Francisco S), onde se fixou maior percentual da populao urbana.
34
Em pouco tempo a rea concentrou uma grande massa de excludos, que se tornaram
esquecidos pelas autoridades e passaram a viver de uma maneira marginal47
.
Durante a dcada de 1930, a antiga rea martima, situada no lado oeste de Fortaleza,
passou a concentrar retirantes desembarcados em Fortaleza, caracterizando-se, assim, como
um territrio habitado inicialmente por pescadores e depois por migrantes48
que chegaram ao
bairro e logo se alojaram na maioria das vezes em reas sujeitas inundao, nas dunas ou
morro, com muita dificuldade de acesso49. Surgiram muitas habitaes, sem nenhum
planejamento, sem ruas, sem luz, sem gua e higiene. Assim se formou o maior bairro popular
de Fortaleza, o Pirambu50
.
As famlias recm-chegadas ao Pirambu passaram a habitar os casebres localizados
entre as dunas, que se moviam de acordo com as foras dos ventos que sopravam do mar e
que muitas vezes soterravam as casas ou obstruam as ruelas sinuosas e estreitas. Essas
famlias comearam a se organizar bem antes mesmo da chegada do Padre Hlio Campos.
Motivados pela situao de extrema misria e excluso social, os moradores do Pirambu se
engajaram no movimento em prol do bairro. Muitas reunies foram realizadas nas casas de
alguns moradores, que a partir de um discurso referente necessidade da luta pela
desapropriao da terra, acabam por assumir uma posio de liderana.
preciso, portanto, se fazer um levantamento da situao do Pirambu a partir de seu
povoamento de 1930 at 1962, quando o processo de organizao dos moradores culminou na
marcha sobre a cidade de Fortaleza. Porm, convm observar que, at 1930, o Pirambu
contava com uma paisagem composta de dunas brancas, coqueiros e lagoas. Do morro do
Japo podia-se avistar grande parte da cidade. Alm do mais, no podemos esquecer que a
Lagoa do Mel e a Lagoa Funda enchiam de beleza esta parte da orla martima, que, mesmo
sendo esconderijo dos indesejados, era tambm um espao reservado construo de casas de
47
Entrevista com Francisco Carlos da Silva, o Carlos Careca, morador do Pirambu. Entrevista realizada em
15/10/2010, em sua residncia no bairro de Nossa Senhora das Graas. 48
Cf. GOVERNO DO ESTADO DO CEAR SECRETARIA DE ADMINISTRAO. As Migraes para Fortaleza. Fortaleza: Departamento de Imprensa Oficial, 1967, p. 52; SANTIAGO, Antnio de Pdua. A cidade
como utopia e a favela como espao estratgico de insero na cultura urbana (1856-1930). In: Trajetos: revista
de histria da UFC. Fortaleza: Departamento de Histria da UFC, 2002. - vol. 1, n. 2, p.127. 49
SILVA, Jos Borzacchiello da. Op. Cit., p.64. 50
GOVERNO DO ESTADO DO CEAR, Op. Cit., p. 52.
35
veraneio destinadas ao repouso das elites da cidade. O morador Jos Maria Tabosa,
relembrando sua infncia, nos conta que:
Em 1951, quando eu tava com dez anos, comecei a ver as belezas que tinham aqui
no Grande Pirambu, da Marinha at a Barra do Cear... Muitas dunas, muitas
lagoas, muitos barcos... A gente tinha muita felicidade, pois havia mais espaos para
o lazer. Naquela poca aqui era como no interior...51
Contudo, a partir da dcada de 1940, o Pirambu j havia se tornando um local bastante
populoso, se enquadrando, pois, dentro de processo de favelizao que teve incio em nossa
cidade por volta de 1930.
O mdico Ciro Sampaio (1971) traa um perfil do bairro, em seu romance intitulado
Pirambu:
O bairro crescia. Casas de taipa e taperas se amontoavam em favelas. E surgiram
ruas estreitas e sem alinhamento. A imundice formava monturos nos terrenos e
cantos de ruas. O vento frio do mar tangia papis de ndoas repugnantes que se
juntavam aos ps de paredes. Porcos e jumentos, galinhas e cachorros tinham
predominncia sobre tudo aquilo.52
Pela descrio do bairro do Pirambu, inferimos que o mesmo se achava abandonado
por negligncia de seus supostos donos, os aforadores do Domnio da Unio e as famlias
Fontenelle e Carvalho, que s aps o povoamento do local e da valorizao dos imveis,
envidaram todos os esforos no sentido de reaver suas propriedades.53
As pessoas que se diziam proprietrios das terras do Pirambu faziam muita presso
sobre os moradores com o objetivo de expuls-los de suas casas, como assevera Tabosa:
Aqui, acol chegavam os capangas e jagunos deles que derrubavam as casas,
queimavam , batiam nas pessoas. At essa poca, isso acontecia muito, mas eu no
tinha assimilado. E como ns construmos nossa casa que ficou melhor, apareceu
ameaa deles. A um dia vieram cinco capangas na nossa casa, durante o dia,
51
Entrevista com Jos Maria Tabosa, morador do Pirambu. A entrevista foi realizada no dia 15/06/2013 em sua
residncia no Bairro do Cristo Redentor. 52
SAMPAIO, Ciro. Pirambu. Fortaleza: s.n., 1971, p.91. 53
MARINS, Op. Cit., p. 15.
36
intimando minha me e minha irm, Zeza, dizendo que ns tnhamos que sair ou
ento comprar o terreno. Seno eles iam derrubar a casa da gente.54
Essa situao era comum entre os moradores do Pirambu. As famlias ameaadas de
despejo procuravam o Sr. Vicente Boca Rica,55
que antes da chegada do Padre Hlio exercia
uma forte liderana sobre os moradores do bairro. Sua residncia era utilizada para as
reunies que aconteciam no bairro, onde era discutida a situao dos moradores ameaados
constantemente de despejos. De acordo com Jos Maria Tabosa, foi a partir dessas reunies
que comeou a organizao dos moradores em torno da luta pela desapropriao das terras do
Pirambu.
Jos Maria Tabosa nos diz que, apesar da organizao, os moradores do Pirambu
tinham dificuldade de comunicao com as autoridades governamentais, para que as mesmas
pudessem ouvir suas reivindicaes. Tal situao motivou as lideranas do bairro a procurar o
vigrio da Parquia dos Navegantes, no vizinho bairro de Jacarecanga. Depois de se inteirar
da situao dos moradores do Pirambu, Padre Hlio Campos concordou em celebrar missas
nesse bairro de pessoas excludas e marginalizadas.
Segundo Marins (1965), antes de se tornar vigrio do Pirambu, o Padre Hlio recebeu
do Arcebispo de Fortaleza autorizao para celebrar missas numa casa localizada na Rua
Nossa Senhora das Graas. Tratava-se da antiga Gafieira do Arcanjo.56
O proprietrio da
antiga casa de diverso, j idoso, acabou se convertendo, tornando-se um dos homens
seguidores do Padre Hlio. Por tal motivo vendeu sua propriedade ao Padre, que transformou
o prdio em sede provisria da Igreja Matriz do Pirambu. Mais tarde, o local foi transformado
na fraternidade das Irmzinhas de Foucauld.57
54
TABOSA. Op. Cit., p.16. 55
Vicente Ferreira da Silva era proprietrio de uma mercearia na Rua So Serafim. Na dcada de 1950 era uma
das lideranas polticas mais influentes do Pirambu, pois pertencia aos quadros do PTB, mantendo inclusive forte
contato com o deputado Carlos Jereissati. 56
A Gafieira do Arcanjo, juntamente com: Castanhola, Riso da Noite, Maracanguaia, Pau-do-Meio e Gozo do
Siri so entre as 11 gafieiras existentes no Pirambu na poca, as mais famosas. As Gafieiras eram locais de
bebidas, danas e mercado de meretrcio. 57
Em 1958 o Padre Hlio Campos abriu no Pirambu a Casa das Irmzinhas de Jesus. Ordem religiosa iniciada na
espiritualidade do beato catlico francs Charles Eugne de Foucauld (1858-1916), sendo divulgada na Igreja
pelo padre Ren Voillame, fundador dos Irmzinhos de Jesus. Foi na passagem desse padre por Fortaleza em
1958, quando proferiu palestra sobre a espiritualidade de Charles de Foucauld , na Faculdade de Filosofia, onde
estudavam jovens que, motivados pelas palavras do religioso, acabaram entrando para a fraternidade feminina
Jesus Caritas.
37
Assim, de acordo com Marins (1965), at o dia 19 de maro de 1958, as missas no
Pirambu eram celebradas na capela da fraternidade das Irmzinhas de Jesus, do Padre
Foucauld. A partir dessa data foi criada a Parquia de Nossa Senhora das Graas do Pirambu,
sendo o Padre Hlio Campos nomeado seu primeiro vigrio, pelo ento Arcebispo de
Fortaleza, Dom Antonio de Almeida Lustosa.
Na verdade, tratava-se de uma sacristia onde futuramente seria construda a Igreja do
Pirambu, conforme destaca Marins:
No espao de um ms a sacristia estava concluda e passou a funcionar como Igreja
paroquial. Foram os homens de Pirambu que providenciaram tudo pediram tijolos, improvisaram-se em mestres de obras, transportaram materiais, deram horas de
servio extra, recolheram tbuas desmantelando velhos caixes (...) destes, alguns
serviram para que finalmente, se fizesse a primeira porta da casa paroquial. Mas
dada a primeira experincia, a casa paroquial continuaria sempre aberta para todos a
todas as horas. No raro o trabalho prolongava-se at duas horas da madrugada. Os
protestantes colaboraram trabalhando alguns dias, juntamente com os demais, 20
horas continuam. O primeiro altar foi feito por um comunista.58
Antes de sua total concluso, a Igreja do Pirambu apresentava um sino pendurado ao
lado de um muro, que esperava o revestimento definitivo. Aos domingos, o templo religioso
reunia muitos moradores do bairro, O padre havia ganhado pouco a pouco a confiana de
muitos.59 Pessoas se sentiam desmoralizadas ao se declararem moradores do bairro.
Predominava o estigma de que l era violento, o que, de certo modo, desacreditava seus
moradores diante do olhar daqueles que tinham um status social mais elevado.
O Pirambu havia se tornado em pouco tempo um bairro bastante populoso, mas a
realidade era deprimente, pois faltava infraestrutura bsica, as famlias habitavam barracos
sem nenhum saneamento, infestados de verminoses, as mes davam luz no nico cubculo,
numa esteira de palha.
As ameaas de despejo eram constantes, o que levou o Padre Hlio Campos a adotar
uma postura crtica em relao ao poder local. Tal fato pode ser evidenciado a partir do
depoimento de um antigo morador do Pirambu, no qual podemos perceber a coragem do
58
MARINS. Op.Cit., p.27. 59
SAMPAIO. Op.Cit., p.139.
38
Padre na sua luta a favor dos pobres, enfrentando aqueles que se diziam proprietrios das
terras e as autoridades policiais.
Uma vez, quando a polcia quis derrubar uma casa, o Padre Hlio subiu no telhado e
gritou de cima, que podiam comear. (...) Ele bem organizou a sua defesa e um
sistema de alarme que podia avisar no perodo de uma hora quarenta mil
paroquianos. (...) Mesmo depois de uma declarao jurdica oficial em favor dos
proprietrios, o Padre continuava a defender os pobres, pois duvidava do valor e
legalidade dos documentos apresentados. (...) Quando 19 famlias deviam deixar
suas casas, ele mandou soltar quatro horas antes 19 foguetes, e imediatamente
juntaram-se, bem em ordem, os homens do Pirambu, para impedir o trnsito nas
entradas do lugar. As mulheres e as crianas formavam um crculo bem fechado, ao
redor das casas comprometidas. O resultado? No se pensa mais na possibilidade, de
desterrar o povo do Pirambu, sabendo que qualquer nova tentativa provocaria uma
revolta pblica na cidade, pois os estudantes e operrios entrariam logo no primeiro
alarme do Padre Hlio, em ao.60
As tticas utilizadas pelo Padre Hlio Campos refletem o processo de organizao dos
moradores contra as ameaas de despejos. Utilizando o tempo e o espao de forma racional
procurou isolar o campo de luta, minando assim qualquer tentativa de reao por parte do
inimigo. Nessa perspectiva, Michel de Certeau nos fala que:
As tticas so procedimentos que valem pela pertinncia que do ao tempo s circunstncias que o instante preciso de uma interveno transforma em situao
favorvel, a rapidez de movimento que mudam a organizao do espao, s relaes
entre os momentos sucessivos de um golpe, aos cruzamentos possveis de durao e ritmos heterognios etc.
61
Alm de mobilizar os moradores contra as ordens de despejo, o Padre Hlio passou a
denunciar na imprensa a situao de misria do povo do Pirambu. O padre, ento, se apropria
do discurso com seus poderes e seus saberes. 62
Contando com a ajuda da jovem assistente
social, Aldaci Barbosa63
, o reverendo passou a se reunir com os moradores do Pirambu no
espao da recm-construda Igreja de Nossa Senhora das Graas.
60
Entrevista com Francisco Carlos da Silva, o Carlos Careca, morador do Pirambu. Entrevista realizada no dia
15/10/2010 em sua residncia no Bairro Nossa Senhora das Graas. 61
CERTEAU, Michel de. A inveno do cotidiano: 1. Artes de fazer. 14.ed. Traduo de Epharim Ferreira
Alves. Petrpolis, RJ: Vozes, 2008, p. 102. 62
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collge de France, pronunciada em 2 de
dezembro de 1970. Traduo de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 18.ed.So Paulo: Loyola, 2009, p.44-45. 63
Aldaci Barbosa conheceu o Padre Hlio Campos quando fazia estgio como assistente social em uma fbrica
de tecido localizada bem prxima casa paroquial da Igreja dos Navegantes, em Jacarecanga. Na poca, a jovem
assistente social sentia-se incomodada com as exigncias dos dirigentes da fbrica, cuja mentalidade era a de
que o Servio Social fosse utilizado como instrumento de controle dos operrios, dificultando assim a
39
Convm lembrar que antes as reunies dos moradores ocorriam na residncia do Sr.
Vicente Boca Rica. Contudo, o Padre Hlio, defendia que tais reunies deveriam acontecer
num espao distante dos discursos partidrios, no caso um espao de neutralidade, a Igreja.
De acordo com Jos Maria Tabosa, tratava-se, na verdade, de uma relao de poder
entre as antigas lideranas do b
Top Related