Capítulo 5
YouTube: artes, invenções e paródias da vida cotidiana 1
Em princípio, a consagração do dispositivo midiático YouTube junto às novas
gerações parece um mero efeito da moda: são milhões de jovens do mundo inteiro
conectados em rede e os brasileiros ocupam uma parcela importante deste
contingente2. Contudo, um olhar mais atento percebe que se trata de uma experiência
radical de compartilhamento e interacionalidade. O YouTube realiza o sonho de uma
multidão de aficcionados em arte, história, música, literatura, esporte, fotografia,
cinema, televisão, turismo, moda, publicidade, desejosos de construir a sua própria
programação audiovisual. E desta vez, os atores sociais em rede, podem realizar seus
desejos através de procedimentos colaborativos sem precedentes.
A experiência cultural na era da informação é de natureza distinta daquela
realizada no tempo forte da cultura de massa; mudaram as relações entre o autor, o
meio e a obra, o emissor, o meio e o receptor, e mutações importantes ocorreram
também nos modos de subjetividade e de sociabilidade. A cultura audiovisual,
hegemônica desde a época de ouro do rádio, irradiada com o cinema e a televisão, se
transformou bastante graças aos processos de digitalização, conexão, mobilidade e
compartilhamento dos conteúdos.
O YouTube foi criado em fevereiro de 2005 e (a partir daí) teve um crescimento impressionante. Nada menos que 65 mil pessoas publicam diariamente novos vídeos no site, que recebe imagens sem censura prévia. O jornal Los Angeles Times comparou o fenômeno YouTube ao surgimento da rede CNN, que nos anos 90, revolucionou os modelos de televisão adotados no mundo ao lançar uma programação baseada apenas em notícias e informações. O YouTube abriu as portas do mundo da imagem para milhares de cinegrafistas e fotógrafos amadores que passaram a postar imagens, provocando uma mudança radical nos padrões de vídeo jornalístico na imprensa mundial. (Observatório da Imprensa, 26.02.2007).
1 Em colaboração com o pesquisador Paulo Henrique Souto Maior Serrano, PÓSLIN/UFMG.2 A página brasileira do YouTube foi lançada junto com as versões francesa, irlandesa, italiana,
japonesa, holandesa, espanhola, polonesa e para a Inglaterra. Em outubro de 2006, o YouTube foi comprado pelo site de buscas Google por 1,65 bilhões de dólares, dois anos depois de ser lançado no mercado com um valor de mercado estimado em no máximo dois milhões de dólares.
A ação dos fluxos informacionais conectados aos audiovisuais, além de
implicar num simples efeito eletrônico, tecno-cognitivo, abre radiosos feixes de luz
para apreendermos aspectos da realidade esquecidos, escondidos do ângulo da
visibilidade pública ou difíceis de serem captados pelas nossas retinas orgânicas.
Novos desafios se colocam para os historiadores, sociólogos, antropólogos,
jornalistas, educadores, informacionistas diante de uma experiência cultural como a
nossa, inteiramente atravessada pelos fluxos midiáticos
Cumpre entender a dimensão afirmativa da comunicação digital, que
dissemina uma “cultura da virtualidade real” (CASTELLS, 1999), e que não cessa de
instigar novas redes de solidariedade. Como mostram Lévy (1998), Kerckhove
(2008), Di Felice e Pireddu (2010), respectivamente, as teias sócio-informacionais
irrigam uma “árvore do conhecimento” (1992) que dissemina uma forma inédita de
inteligência coletiva conectada.
Os meios digitais provocam estímulos, idéias e interações importantes demais
para serem ignorados, pois se infiltram nos espaços e tempos das experiências
pessoais e coletivas, gerando graves transformações. Logo, é uma passagem
incontornável em nosso percurso e convém tirar partido da nova ambiência cultural.
Na educação, nos negócios, na política tais transformações têm sido percebidas
em obras recentes como A ecologia pluralista da comunicação (SANTAELLA,
2011), Psiquê e technê. O homem na idade técnica (GALIMBERTI, 2006), e A hora
da Geração Digital (TAPSCOTT, 2010), entre outras.
Todavia, a cibercultura consiste numa experiência complexa e evidentemente
resulta em estudos críticos, como o livro O culto do amador. Blogs, MySpace,
YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores
(KEEN, 2009), cujo subtítulo polêmico já instiga um debate caloroso3. Nessa via, há
outros interlocutores, cujas oposições, contribuem para atualizar a nossa interpretação:
The Digital Dialetic (LUNEFELD, 1999), Introdução às teorias da cibercultura, e
Cibercultura e pós-humanismo (RUDIGER, 2007; 2008).
A nossa perspectiva de análise, partindo de um prisma histórico-hermenêutico,
busca interpretar os efeitos do YouTube junto às comunidades, e no que concerne à
posição da comunidade acadêmica nos parece estimulante adotar um princípio
interdisciplinar, “dialógico”, “polifônico”, como sugere o grande intérprete da cultura
3 Ver, a propósito, a entrevista concedida por Andrew Keen ao jornalista Eduardo Socha, Revista CULT, 09/10/2009 http://revistacult.uol.com.br/novo/entrevista.asp?edtCode=2821A2A7-1F12-4309-9FB5-E8B4354FEE9A&nwsCode=F9B3076D-F982-498B-B6B3-3CFE07375D86
Mikhail Bakhtin (1981); logo, enfrentamos as posturas divergentes apostando que este
é um meio de se conseguir um “conhecimento aproximado” do objeto de estudo.
Apoiamo-nos numa base epistemológica, antes de tudo muito atenta a potência
estética, sensorial, comunicante da página eletrônica do YouTube e nos empenhamos
numa reflexão teórica norteada pelas idéias de alguns pesquisadores que tentam
decifrar o sentido da cultura audiovisual e tecnológica emergente.
Para compreender o YouTube, buscamos nos guarnecer de um método e este
flui – quase – espontaneamente do próprio ato de acessar, interagir, compartilhar os
seus conteúdos com as comunidades virtuais que as redes sociais propiciam. Assim, o
primeiro passo é a observação sistemática, o trabalho descritivo da estrutura e
funcionamento do site, uma netnografia, um mapeamento seletivo dos conteúdos à
guisa de análise, crítica e argumentação. Todavia, este processo se realiza
simultaneamente à organização das leituras sobre a área de interesse e sobre o objeto
específico, o que define – hermenêuticamente – um estágio de pré-entendimento.
E, é sempre salutar estabelecer uma contextualização histórica e social, no
exercício de contemplação do mundo digital, no caso, as formas culturais na era da
comunicação eletrônica colaborativa, mas sem jamais perder de vista a necessidade de
atualização na área. Assim, alguns estudos específicos podem ser fundamentais:
YouTube e a Revolução Digital (BURGESS & GREEN, 2009), Watching Youtube.
Extraordinary videos by ordinary people (STRANGELOVE, 2010), The YouTube
Reader (VONDERAU & SNICKARS, 2009), YouTube in Music Education
(RUDOLPH & FRANKEL, 2009).
O estado da cultura na “era da informação” tem sido analisado diferentemente
por vários autores, como André Lemos (2004) examinando as mídias digitais, a partir
de uma “antropológica do ciberespaço”; Marcondes Filho (1996) apreciando
criticamente a “cultura comunicacional, as tecnologias e a velocidade das mídias”;
Primo (2007) explorando a “interação mediada por computador”; Parente (2007)
examinando a cultura das redes como uma nova dimensão da comunicação; Arlindo
Machado (1998, 2000, 2002) e Santaella (2004) analisando as mídias e as suas
interfaces nos campos da arte, linguagem, estética e tecnologia.
Estrutura e funcionamento do YouTube
O YouTube é produto de uma gigantesca corporação (Google) surgida no
âmbito do turbocapitalismo, programado para acelerar a rentabilidade do lazer e
entretenimento, mas escapa às limitações de um produto simplesmente
mercadológico, devido ao potencial como vetor de obra de arte audiovisual, rizoma
colaborativo - emanando sentido em todas as direções - que atua vigorosamente sobre
a percepção sensorial, a memória afetiva e a inteligência coletiva.
Por meio de uma razão lúdica, os usuários descobrem diversos modos de
saber-fazer e de interagir nos espaços públicos digitais. Ferramentas como o YouTube
propiciam a formação de redes sociais e geram modos de conhecimento, mesmo
quando parecem voltadas apenas para a diversão e o entretenimento.
Proativamente, recolhemos alguns dos “mosaicos conceituais” do pesquisador
mcluhaniano Kerckhove (2009) para repensar o YouTube, “quando a televisão se casa
com o computador na auto-estrada da informação”. Nessa perspectiva o site atua sob o
“stress da velocidade, aceleração e crise”, sem deixar de forjar uma “arte salvadora”,
quando queremos “ver mais, ouvir mais e sentir mais” (p.131). E gera assim uma
usina de idéias que ativa as redes neurais e a inteligência coletiva conectada.
Ao abrirmos a página principal do YouTube, numa primeira leitura,
percebemos - na sua configuração, desenho e engenharia - um reflexo sócio-técnico
dos modos de ser, pensar e agir do ser humano pós-industrial, principalmente das
novas gerações. Logo, as matrizes reticulares da internet revelam as matrizes culturais
(estéticas, semiológicas, cognitivas) dos atores sociais que formaram uma consciência
do mundo através dos audiovisuais e que estão atuando na esfera pública digital.
Na composição da página inicial lemos os títulos e subtítulos, hiperlinks (nós,
ligações), que designam as entradas, vias de acesso aos “vídeos”, “canais” e
“comunidades”, enunciados como referências operacionais. Isto é, tecnicamente
funcionam como meios de acesso aos conteúdos. Mas no plano da imaginação
vigilante e criadora, como sugerem Bachelard (1996), e Durand (1994), ao clicarmos
com o mouse sobre cada link, sobre cada uma dessas frases eletrônicas, entramos em
sintonia com as comunidades afetivas dispersas na cartografia da vida cotidiana.
A internet consiste numa hipermídia cujo público-alvo é preferencialmente a
“geração ponto.com”, do pós-cinema (MACHADO, 2002), pós-televisão, pós-MTV;
Trata-se de uma estratégia socio-tecno-informacional específica das “culturas do
consumo” (BACCEGA, 2008) “culturas juvenis do século XXI” (BORELLI &
FREIRE FILHO, 2008), “culturas de convergência” (JENKINS, 2008), que
caracterizam a realidade eletrônica contemporânea.
Ao mergulharem nas águas profundas da cibercultura, em sites como YouTube,
os jovens têm acesso a uma ambiência tecnológica, em que atuam com vigor, usando
uma competência comunicativa em que se aliam inteligência cognitiva, percepção
sensorial, agilidade de raciocínio e cooperação tecno-comunicacional.
A ambiência midiática, em que fulgura o YouTube, forma-se uma esfera
pública midiatizada, típica da “sociedade do pós-espetáculo” (NOVAES, 2005), “em
que não há mais distinção entre palco e platéia”, em que os personagens cedem lugar
aos avatares, a representação clássica dá lugar à simulação interativa. Novos regimes
de cognição, afetividade e socialidade concorrem para a realização dessa experiência
inédita na história da civilização, em que se conjugam o imaginário e o simbólico, o
concreto e o virtual, a mídia colaborativa e a sensibilidade tecnológica.
Em verdade, configura-se na paisagem cotidiana uma formação cultural
bastante recente, que contagia os usuários de todas as idades. Esta nova configuração
exige a paciência de uma nova epistemologia, e de um “novo espírito científico”
(BACHELARD, 1995). Requer novas “imagens conceituais” para decifrarmos a
conexão dos suportes audiovisuais, telemáticos, digitais e a convergência de distintas
formações culturais, em que a oralidade, a escrita, a impressão, a audiovisualidade e a
tecnicidade, interpenetram-se de maneira importante (SANTAELLA, 2003).
Convém atentar para a paisagem sociocultural e política que se transformou,
fomentando novas “positividades”, outras epistemes (FOUCAULT, 1995), impondo
um novo paradigma científico em ruptura com o da modernidade industrial. Hoje, na
era do turbocapitalismo, agita-se um “bios midiático” (SODRÉ, 2002), “estranha
forma de vida” gerada por processos tecno-comunicacionais, solicitando um enfoque
analítico distinto do pensamento linear, analógico, cartesiano.
Empiricamente, descrevemos as estruturas e o modo de funcionamento do
sistema midiático gerado pelos websites de vídeos, e estrategicamente elegemos o
YouTube, como objeto de contemplação; a partir daí formulamos alguns elementos
argumentativos para uma análise e apreciação crítica, e para uma aproximação
possível desta experiência tão recente na história da cultura e da comunicação, mas
que no entanto tem causado reviravoltas no âmbito da escola, do trabalho, dos
mercados, da ação política, da vida em comunidade.
O YouTube: a escola, o mercado, o domicílio eletrônico
As categorias de vídeos disponibilizados no YouTube são fixadas em função
das demandas dos clientes da internet, e resultam da atividade exaustiva das pesquisas
de marketing digital, opinião e mercadologia. E aqui a palavra mercado, para além do
seu sentido meramente mecânico, funcional, e deve ser entendida também no vigor do
seu sentido orgânico, social e simbólico. O espírito de Hermes nos revela: o mercado
é por excelência o lugar de exercício das trocas simbólicas vitais, do intercâmbio
lingüístico-cultural, dos acordos, negociações e permutas coletivas. O e-comerce, o
tele-marketing, o pay-per-bit “glocais” hoje evidenciam a sua gritante empiricidade.
Não se pode ignorar a potência simbólica que assegura a vigor da
“comunicação e as culturas do consumo”: são teias que forjam as identidades, os
níveis de sociabilidade e de empoderamento coletivo. Nesse contexto, o YouTube
revela os modos do sentir e fazer coletivos, formas de identificação e pertencimento,
uma percepção das artes e mídias como vetores estéticos, sensoriais, cognitivos.
Nessa direção, conviria consultar os estudos Culturas do consumo
(BACCEGA, 2008), A hora da geração digital (TAPSCOTT (2020), Cultura da
Interface (JOHNSON, 2001), A cultura digital (2002), A ecologia pluralista das
mídias locativas (SANTAELLA, 2011).
Os links de acesso aos vídeos estão intitulados sob a forma de curiosas
rubricas: “animais”, “ciência e tecnologia”, “educação”, “entretenimento”,
“esportes”, “filmes e desenhos”, “humor”, “instruções e estilo”, “música”, “notícias e
política”, “pessoas e blogs”, “veículos”, “viagens e eventos”.
O menu principal apresenta uma classificação aparentemente aleatória, mas
que aponta para a própria natureza e sentido do nicho sócio-técnico-comunicacional
que nos rodeia. Ou seja, o site é organizado em meio a uma aparente dispersividade de
hipertextos que compõem as páginas eletrônicas.
Se o sistema de classificação, indexação e distribuição, por um lado mostra-se
volátil, disperso, aleatório, por outro, indica um novo estado da arte tecnológica,
encarnado pelo YouTube, que sabiamente se organiza e se comunica por meio de uma
intuição enciclopédica, atenta aos jargões, gírias e idioletos que fervilham no
cotidiano midiatizado 4. Mesmo efêmero, provisório, mutante, o repertório das redes
4 “Este vídeo não está mais disponível pois a conta do YouTube associada a ele foi encerrada. Desculpe!”. O prosaico “aviso eletrônico” no site revela o caráter volátil da informação em rede.
expressa grande parte dos discursos, saberes, fazeres e invenções sócio-colaborativas
do mundo presencial, que se atualizam permanentemente no mundo digital.
Verificamos um agendamento de temas que se organizam como os “mais
recentes”, “mais comentados”, “mais conectados”, “mais respondidos”, “mais
vistos”, “populares anteriores”, “destaques recentes”, “adotados como favoritos” e
“bem avaliados”: o superlativo - genericamente - aponta para designações que
parecem aleatórias, nômades, transitórias, mas resultam de um refinado planejamento
de marketing pós-industrial, que revela a “tentação do híbrido” cortejando os corações
& mentes, no estágio atual da nossa experiência cultural em veloz transformação.
A palavra “mais”, característica da nossa cultura do consumo e da competição
acirrada, enfatiza a vontade de poder e o imperativo de visibilidade expressos nas
escolhas dos usuários. E, apesar do caráter provisório da formatação, a enunciação dos
temas demonstra o perfil cognitivo dos e-leitores, consumidores, cibercidadãos, que
tentam se organizar – colaborativamente – na nova terra-pátria digitalizada.
A categorização dos vídeos nos permite compreender os seus encadeamentos
lógico-funcionais, a sua intencionalidade. A configuração tecno-semiótica do site nos
leva a interpretar os seus conteúdos como objetos imateriais, eletronizados, com alta
potência sócio-comunicativa. E sua estrutura interacional permite aos usuários
elaborarem eficientes “dispositivos sociais de resposta” (BRAGA, 2006).
Como por um efeito de feed back mediado pela tecnologia, os links sugerem
novas idéias, remontagens e operacionalidades que, reenviadas às redes, podem vir a
arrefecer esta cultura organizacional e interativa, constantemente revisitada por
numerosos experts, estudiosos, clientes, voluntários e ciberativistas.
Atentos à configuração visual, gráfica, sensorial e semiótica da página inicial,
perpassada por várias entradas, atalhos e mecanismos comutativos, podemos
“cooperar”, enviando informes analíticos, apreciações, comentários, críticas, réplicas e
observações, pois a rede está aberta às sugestões e intervenções - instigando
modalidades inéditas de gestão dos processos interativos.
Transitando por meio dos “canais”, encontramos um labirinto com diferentes
passagens que nos lançam no fluxo de diferentes redes de sociabilidade, várias
comunidades afetivas e de interesse, formadas por “comediantes”, “diretores”,
“gurus”, “músicos”, “parceiros”, “patrocinadores”, atores sociais e entidades “sem
fins lucrativos”. Convém notar, o agendamento dos canais do YouTube, resultando
das escolhas seletivas dos clientes, apesar do seu caráter volátil, efêmero, projeta uma
amostra do conjunto de consumidores potenciais que participam do mercado digital.
Essa aparente desordem hipermidiática é similar à organização dos códigos
que regem a existência tecno-social cotidiana. O pulsar das cibercidades se assemelha
ao pulsar das “cidades de verdade”. E relembrando Walter Benjamin, o importante
aqui não é a linha de chegada, mas o próprio caminho, a passagem, o itinerário, a
contingência de ser e estar, a oportunidade para novas relações. Trata-se de um lócus
privilegiado em que encontramos personagens e situações inusitadas, em que
realizamos cotidianamente novas relações de sentido, fazemos escolhas, enfrentamos
desafios e contemplamos novos horizontes.
O link que nos acessa à rubrica “Comunidade” nos revela um novo conceito
dessa experiência, que se estrutura (e se realiza) com base em procedimentos tecno-
informacionais geradores de formas inéditas de ciber-sociabilidade, em que incidem
encaixes pessoais, comunitários e tribalizações imprevistas: a realidade virtual em
muitos aspectos é similar ao real histórico do século 21, nas megacidades, em que as
identidades se encontram em permanente cambialidade.
No YouTube nos identificamos com os fragmentos de uma “história recente
real”, que nos seduz e nos inclui no espírito comum, tribalista, a partir das sensações
de pertencimento a uma comunidade de cidadãos virtuais. E sendo estas forjadas por
imagens, sons e tecno-afetividades, as suas regras de funcionamento cada vez mais
têm modelado o sentido das comunidades presenciais, que, a seu turno, já são – ao
longo da história - mediadas tecnologicamente. A diferença básica, no cibermundo, é
que pela primeira vez na história, os anônimos, dispersos em meio às brumas do real,
doravante, afetivamente e tecno-socialmente conectados podem se reencontrar.
A categorização em termos de “Grupos”, “Concursos” e “Blogs” expressa o
resultado de cuidadosas estratégias de marketing digital; demonstram funcionais
recursos mercadológicos, que não deixam de ser atravessados por novas fundações
estéticas, sociais e políticas instauradas no próprio campo das hipermídias, como culto
ou como sátira, mas sempre como o resultado de um “pensar-pulsar” coletivo.
As comunidades do YouTube são irradiadas pelas mediações dos usuários-
cidadãos advindos de diferentes nichos socioeconômicos e culturais, que participam
ativamente dos “concursos” tramados pelos gestores das redes. E, como uma
ferramenta da comunicação interativa, que serve de matriz para o jornalismo on line, o
blog instalado na página do YouTube, atua como canal informativo aberto igualmente
à participação dos internautas, muitas vezes modificando a forma, a direção e o
significado da proposta originalmente inscrita na página eletrônica.
3. Competência técnica, educação estética e memória afetiva
Os processos hipermidiáticos são eficazes na partilha das informações, na
experiência cognitiva e no trabalho educativo. Nessa direção, as contribuições de
Braga & Calazans (2001) nos ajudam a distinguir os “sistemas educativos” dos
“sistemas midiáticos”, e estes, dos distintos “processos comunicacionais” e
“educacionais”. Caberia retomar esta perspectiva contextualizando ambos os sistemas
e processos numa ambiência social mediada pela tecnologia.
Na sociedade midiatizada, como sugere Morin (1997), a experiência
educacional envolve, de maneira complexa, as dimensões biológicas, psicológicas,
sociais, ético-políticas e cognitivas do ser humano, e ultrapassa o âmbito dos sistemas
educativos tradicionais, circunscritos às práticas pré-formatadas da escolarização5.
Pode-se aprender usando o YouTube, em sala de aula e em casa, na conexão
com os grupos de interesse, na convergência de diferentes comunidades, captando e
partilhando imagens, sons e discursos. Os vídeos do YouTube, como exuberantes
janelas da vida cotidiana, são bons condutores de informação e reveladores das facetas
do mundo social e cósmico que geralmente ocorrem desapercebidamente.
Logo, a ambiência virtual gera percepções educativas. Não o faz, é claro, nos
moldes tradicionais, mas envolve os processos biopsicológicos, neuro-sensoriais,
tácteis, físicos, corporais. O YouTube ativa a cognição por meio de um envolvimento
total em que o corpo e a mente são mediados pelas infotecnologias conectadas nos
terminais da inteligência coletiva6. E cumpre ressaltar, esse fenômeno é
ontologicamente anterior à configuração tecnológica atual, pois está ligado à vontade
de saber, à curiosidade e ao senso de sobrevivência e expansão das culturas humanas.
No que concerne à realidade mediada pela tecnologia, caberia ressaltar aqui a
influência do pensador Gilles Deleuze (1925-1995), também atuando vigorosamente
no domínio da filosofia das artes e ofícios, das técnicas e da comunicação.
5 Sobre as inferências de Edgar Morin na educação, ver - a propósito: “Os sete saberes necessários à educação do futuro” (MORIN, 2001). http://ufpa.br/ensinofts/artigo3/setesaberes.pdf
6 Num certo sentido, o ciberespaço atualiza a utopia dos grandes pedagogos, realizando a experiência da “aula sem paredes”, em sintonia com o pensamento de Paulo Freire (1921-1997), John Dewey (1859-1952), Jean Piaget (1986-1980), Carl Rogers (1902-1987), Maria Montessori (1870-1952), Anísio Teixeira (1900-1971), Vygotsky (1896-1934).
Estudando a internet, notamos que em nossa época, a experiência
educomunicacional transcende a área de concentração dos sistemas educativos e
midiáticos. Da empiricidade das redes tecnológicas de comunicação à reflexão
teórico- metodológica, assim como a sua aplicabilidade (dentro e fora de sala de aula),
há um vasto caminho tem sido realizado.
A propósito, para uma exploração acerca do fenômeno de convergência
escola-comunidade-tecnologia, uma parcela importante de professores-pesquisadores
tem formado grupos de trabalho na área, e têm incansavelmente despendido esforços
para contribuir no sentido de superarmos as contradições que separam a modernidade
tecnológica e o projeto de modernização social, alguns trabalhos disponibilizados em
rede podem comprová-lo7.
(OROZCO) discute as novas tecnologias, a comunicação e a educação como um conjunto importante para a formação do cidadão na sociedade democrática. Chama a atenção para a importância da desnaturalização das tecnologias, mostrando como elas aparecem e são orientadas no sentido de políticas voltadas para o mercado e o consumo, menosprezando a lógica dos interesses de cada Estado-nação e das diferentes culturas. Outro aspecto que salienta é o da vinculação das novas tecnologias à educação. Aborda este tema a partir da racionalidade eficientista e da racionalidade da relevância. No primeiro caso, a prática consiste em incorporar as novas tecnologias ao processo educativo já estabelecido, sem preocupação com a efetiva aprendizagem. No segundo caso, trata-se de priorizar o aprendizado, reorientando a lógica das tecnologias para uma apropriação que parte da realidade cultural do educando e tem como finalidade a transformação do sentido da instituição escolar. Ao final, destaca o papel do comunicador na reorientação dos
7 Ver na Revista de Comunicação & Educação, ECA/USP, um acervo de papers bastante pertinentes: “Novas tecnologias da comunicação” (SENA, 2009); “A tecnologia em favor da ficcionalização da violência, ou como tornar a violência atraente” (TONDATO, 2009); “Jornalismo cidadão e Independent Media Center” (TARGINO, 2008); “Brincando e aprendendo nos mundos virtuais: o potencial educativo dos games de simulação” (CRUZ & ILHA, 2008); “O homem nas teias da comunicação midiática: uma análise de O Show de Truman” (CASAQUI, 2008); “Arte e mídia: a gestão da comunicação no Arte na Escola on-line” (KONDZIOLKOVÁ, 2007); A ferramenta wiki: uma experiência pedagógica (GOMES, M.R., 2007); “A mediação tecnológica nos espaços educativos: uma perspectiva educomunicativa” (SOARES, I. O., 2007); “Televisão digital interativa: expectativas de uso cultural e educativo” (SACRINI, 2006); “Os meios de comunicação de massa na era da internet” (OROZCO, 2006); “Uma proposta para a leitura crítica dos videogames” (CURI, 2006); O que aprendi com educação a distância (CASTILHO COSTA, 2006); “A televisão e a prática do zapping: interatividade com a audiência” (ANDRELO, 2006); “Fale com eles: mídia jovem e visibilidade juvenil” (MELO ROCHA, 2006); “Comunicação, educação e tecnologia: interação” (BACCEGA, 2005); “Internet: um novo paradigma de informação e comunicação” (RODELLA, 2005); “Câmera e vídeo na escola: quem conta o que sobre quem?” (MARICATO, 2005); “Tecnologia e construção da cidadania” (BACCEGA, 2003); “Educação a distância – entre o entusiasmo e a crítica” (CASTILHO COSTA, 2003); “Educom.TV: um curso on line para a rede pública” (SOARES, I.O., 2003); “Informática na educação especial”. (ALMEIDA, A. L., 2002); “Comunicação, educação e novas tecnologias: tríade do século XXI” (OROZCO, 2002).
meios de comunicação e no acompanhamento do processo educativo. (OROZCO, 2002)
A comunicação que se articula no domínio do YouTube retoma o seu sentido
anterior, original, histórico-conceitual, ligado à idéia de comunitas, a medida comum,
e assim realiza a idéia da linguagem como formadora de comunidades, forjando
aproximação das fronteiras simbólicas e sociais que separam os humanos, como lugar
de fundação do ethos e da convivência em comum.
Os websites de vídeos consistem num eficiente campo de produção de
conteúdos, mas a sua principal virtude está em seu aspecto relacional, ao promover
novas relações de sentido que alimentam o conhecimento dos seres humanos. A
realização plena desta experiência vai depender evidentemente da forma como
utilizaremos tais meios, mas cumpre entender que os websites apresentam
antecipadamente as condições instrumentais e semiológicas para assegurar o êxito de
um acontecimento tecno-social, político e comunicacional sem precedentes.
A internet, como uma nova paidéia midiática, pode ser utilizada enquanto um
vetor importante no trabalho de formação e iluminação do espírito; nessa direção
cumpriria recorrermos às idéias de Orozco (2007) e suas ponderações acerca da
conexão que reúne o campo dos saberes e práticas educativas tradicionais e o campo
das tecnologias da comunicação como mola propulsora do saber-fazer e do
compreender, liberando vigorosas modalidades de empoderamento pessoal e coletivo.
Basta uma varredura nos sistemas de busca para encontrarmos um repertório
formidável de vídeos contendo o “melhor” da música clássica, das artes plásticas, e os
produtos celebrados da publicidade, jornalismo, moda e entretenimento.
Relembrando Paulo Freire (2000) e os seus postulados em favor de uma
“pedagogia da autonomia”, e atualizando o seu contributo no contexto da economia e
sociedade informacional, entendemos o sentido das palavras, imagens, sons e textos,
como elementos geradores de sentido. Assim, apostamos ser preciso negociar com
linguagens próprias do universo dos usuários, e-leitores, cibercidadãos imersos na
“cultura da virtualidade real”, para estimular e atualizar novos hábitos de leitura.
Em verdade, as narrativas telemáticas dos vídeos de filmes disponibilizados
em rede geram novos modos de ler as imagens, sons e textos; é neste sentido que
Santaella mostra a entrada em cena do “leitor imersivo” (2004b), para interpretar os
atuais procedimentos de leitura, percepção e cognição, em que ocorre o envolvimento
neuro-sensorial, perceptivo e cognitivo total. E convém notar, falamos em 2011, antes
da popularização dos dispositivos locativos audiovisuais conectados à tecnologia 3D.
4. A paródia e o riso da praça pública digitalizada
O YouTube é um canal de diversão e entretenimento mas consiste em uma
experiência que nos leva a aprender coisas, mesmo quando parecemos estar jogando.
E importa saber de que aprendizado estamos falando: instrumental, lúdico, comercial,
ético-político, técnico, científico, artístico-cultural? Partimos da suspeita que a
resposta vai depender do uso que fizermos do YouTube.
Aprendemos com o site na medida em que percebemos que naquele ambiente
tecnoinformacional se projetam as expressões da cultura e do seu contrário. Ou seja,
tudo aquilo que não faz parte da cultura oficial, nem da cultura popular, nem de massa
(pois não são exatamente coisas da televisão), nem foram sedimentados no repertório
da contracultura, mas consistem numa parte essencial das estruturas do cotidiano
presencial e digital. São fatos, ocorrências e temas incorporados pelos milhões de
usuários, que tratam de viralizá-los e assim, fabrica-se um acontecimento, que passa a
ser incorporado às conversações dentro e fora das redes sociais.
Cumpre destacar um trabalho pioneiro no Brasil sobre o YouTube, realizado
por Erick Felinto (2006), “Videotrash: O YouTube a Cultura do ‘Spoof’ na Internet”.
A partir da sua leitura entendemos que o autor reconhece nos vídeos postados bons
difusores de informação, são expressões de uma poética tecnológica, mas funcionam,
sobretudo, como paródias, desmontagens e remontagens do sentido de outros produtos
midiáticos, como a TV, o cinema e a publicidade.
A expansão exponencial da internet como banco de dados tem favorecido a preservação e difusão de informação tradicionalmente considerada como descartável ou de pouco valor cultural. Vídeos pessoais, produções independentes, álbuns de fotografias ou trabalhos colegiais constituem apenas alguns exemplos do tipo de material que começa a multiplicar-se no espaço da rede. “datasmog”, ou “nuvem de dados”, difícil de analisar e inédita na história da humanidade, antes caracterizada essencialmente pela escassez da informação. Dentre essa produção crescente, destaca-se a prática que vem sendo denominada como “spoof”, ou seja, as virtualmente infinitas variações paródicas em torno de produtos midáticos de grande circulação, como comerciais e seriados de televisão (FELINTO, 2006, pág. 1).
Há outra perspectiva de análise pertinente a uma mirada no YouTube, quanto
ao seu poder de revelar a alteridade da cultura, e que pode ser considerada a partir de
uma apropriação da teoria estética e social formulada por Muniz Sodré, que nomeia o
kitsch, a “parte maldita”, a estranheza da cultura midiática como uma “comunicação
do grotesco” (1983). E num livro mais recente, Sodré (em parceria com Raquel
Paiva), lança um olhar sobre a relação entre a comunicação e a cultura, sob o grifo de
“O império do grotesco” (2002). Assim, perseguindo os rastros de uma estética do
“mau gosto” na literatura, nas artes plásticas, no cinema, na televisão, os autores nos
oferecem algumas bases epsitemológicas para repensarmos a complexidade moral das
culturas populares e sua transcrição na signagem da cibercultura.
Buscando compreender a significação desta experiência tecno-comunicacional
forjada pelos sites de vídeos na internet, fizemos um mapeamento seletivo de alguns
vídeos à guisa de interpretação, que poderiam caracterizar - em níveis diferenciados -
as expressões do lixo midiático, do kitsch, do grotesco no contexto do YouTube, sem
esquecer a dimensão irônica, positivamente desconstrutiva e dialógica da
comunicação colaborativa, assim como a sua dimensão estética, social e filosófica.
a) Um dos episódios mais célebres da internet foi o caso da modelo e
apresentadora de tv Daniela Cicarelli, que consiste numa devassa à intimidade da
celebridade; uma filmagem da modelo fazendo amor com o seu parceiro numa “praia
deserta” da Espanha, o que resultou num vídeo partilhado por milhões de internautas.
Este é um fato controverso, sensacionalista, que consiste num elemento forte para
entendermos as nuances da relação entre as mídias e a “cultura do espetáculo”.
O vídeo apresenta elementos para discutirmos a questão delicada da ética, da
censura e do controle social da informação no terreno das “novas mídias”, uma vez
que o vídeo foi retirado do YouTube por decisão de um juiz brasileiro, constituindo
um dos primeiros casos de censura no campo da comunicação digital. Mas isto não
impediu que os internautas voltassem a postar o vídeo-tabu, da “Cicarelli na praia”, e
principalmente, instalassem paródias desmontando o sentido do “vídeo original”.
b) As visões escatológicas do enforcamento de Saddam Hussein encerram um
episódio que condensa um outro lado do “terror midiático”, do grotesco com ênfase
no escatológico e revelam elementos para compreendermos as atrações dos
espectadores pelas imagens extremas, pela simulação do crime e castigo ou
simplesmente pela projeção do mal na segurança das redes e telas.
Milhões de usuários acessaram ao vídeo com as imagens radicais do
enforcamento, o que significa um novo estilo de espetacularização, a banalização da
morte midiatizada, um flagrante do voyeurismo do horror contemporâneo, enfim uma
característica tristemente presente na nossa cultura, marcada pelo “imperativo da
visibilidade”, em que se consolidam formatos midiáticos como o Big Brother que, por
sua vez, resulta das tecnologias do voyeurismo intensificadas com as micro-câmeras
instaladas nos computadores domésticos.
c) A divulgação no YouTube de um vídeo exibindo socialities do Rio de
Janeiro, do alto de suas coberturas, atirando divertidamente ovos nos carros e
pedestres, constitui um elemento grotesco que traduz o horror dos nossos abismos
sociais, um indício revelador dos traços canhestros da nossa formação sociocultural.
A sua positividade reside em conceder transparência e visibilidade à falta de
ética e a irresponsabilidade por parte de segmentos da elite econômica. Mas,
principalmente instiga a uma reflexão acerca da supressão das fronteiras entre o
campo da esfera privada e da vida pública. A videocultura do self , no YouTube, nos
alerta para a apologia do valor de exibição, em detrimento dos valores humanos;
d) O humor do teatro foi instalado na internet através dos vídeos de um grupo
cênico, chamado de Terça Insana, mostrando - por novos canais audiovisuais - as
maneiras como a sociedade pode se ver e se autocriticar. Se por um lado, revela os
traços de nossos tempos minados pelos “medos líquidos”, na solidão das grandes
cidades, por outro lado, revela, de modo politicamente incorreto, as estratégias de
desmontagem das pequenas verdades narcísicas cotidianas; além disso, se constitui
num surpreendente canal de divulgação das artes minimalistas do teatro alternativo,
que ganham outras modulações e extensividades na contracultura das redes, e migram
para outros espaço de encenação após a sua popularização na internet.
e) Por sua vez, as charges animadas do desenhista Maurício Ricardo,
disponibilizadas no YouTube, significam competentes expressões gráficas, animações
eletrônicas, articulando o design arrojado e a inteligência mediada pelos recursos das
artes ciber-tecnológicas. É vetor de difusão de uma modalidade de expressão estética
corrosiva, por meio das sátiras políticas, dos costumes urbanos, tornando-se uma
mania nacional, que ganhou repercussão global, principalmente quando postadas no
YouTube, desdenhando os poderes coercitivos, as celebridades, as zonas de tensão da
cultura. E, convém notar que a potência de um dispositivo minimalista como o
YouTube não cessa de contaminar as mídias anteriores (jornal, rádio, televisão),
atualizando os seus conteúdos, politizando as suas mensagens e, enfim, conferindo
novos à ambiência tecno-comunicacional.
f) O caso mais expressivo no tocante à arte minimalista do YouTube talvez
seja a extraordinária audiência do vídeo Tapa na Pantera8, interpretado pela atriz
Maria Alice Vergueiro, que simulando uma peça de teatro do absurdo, descreve as
experiências com a maconha. O vídeo é importante porque expressa a originalidade
dos jovens cinegrafistas (e videastas) que, de maneira transgressiva, ousaram saber se
utilizar dos dispositivos telemáticos. Estes jovens instalaram procedimentos de crítica
aos valores cristalizados pelos segmentos sociais mais fechados à discussão dos temas
tabus, como o uso dos alucinógenos. Isto é, por intermédio de um expediente
midiático corriqueiro, os jovens iniciados na prática audiovisual e informacional,
colocaram em discussão alguns problemas de ordem moral, jurídica, social e política.
Desnudaram os valores de uma sociedade que parece ter-se realizado em termos de
modernização tecnológica, mas que permanece sem competência para discutir
questões tocantes aos direitos humanos e às liberdades individuais.
A experiência é relevante ao resgatar o talento da atriz Maria Alice Vergueiro,
um ícone da dramaturgia nacional e que talvez ficasse desconhecida pelas novas
gerações se não fosse a iniciativa dos jovens videastas, conhecedores da importância
publicitária de uma hipermídia como o YouTube. E, cumpre ressaltar a maneira como
a partir da divulgação do vídeo da atriz-personagem experimentou migrações para
outros nichos midiáticos, como a televisão.
São produtos, visitados por milhões de internautas, que constituem o outro
lado do humor, ligado à paródia, à comicidade, ao riso da praça pública virtualizada.
Ácidos e inteligentes, os conteúdos dos vídeos postados no YouTube traduzem a
maneira como os artistas, criadores, voluntários e aficcionados se utilizam do meio
para expressar ao seu modo uma “ironia da comunicação”, que coloca em xeque os
valores políticos, morais e socioculturais, como escreve Jeudy (2001). Estes sites
atualizam, uma carnavalização da vida cotidiana nos termos descritos por Roberto da
Matta, no livro Carnavais, malandros e heróis (1983); só que no YouTube foram
modificados os procedimentos estéticos e ideológicos da antropofagia.
8 Vídeo de ficção com Maria Alice Vergueiro, dirigido por Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes. Produção Ioiô Filmes www.ioiofilmes.com.
5. Das narrativas da televisão às narrativas telemáticas
O YouTube é signo de diversão e entretenimento mas o seu poder de resgatar
imagens e significações “antigas” implica também numa outra maneira de se conhecer
e de se reescrever a história. O cenário vai mudar: Cronos (e a legiferância do relógio)
cederá terreno a Hermes (e a estratégia da interpretação dos símbolos e alegorias).
A convergência das imagens e sons do presente e passado, por meio das info-
tecnologias, reunindo distintas temporalidades, favorece a desconstrução digital da
“memória cristalizada” e propicia uma nova e vigorosa contemplação do mundo.
Para entender a cultura tecnológica que estrutura a dimensão do imaginário
contemporâneo, convém contextualizar historicamente a inserção de uma organização
sociocultural e política como a nossa, na chamada “era da informação”: porque os
conteúdos audiovisuais da mídia analógica estão migrando para o campo das mídias
digitais, e porque as gerações do teatro, da televisão e do cinema estão se encontrando
nos espaços abertos pela cibercultura, por exemplo, no YouTube, que armazena,
atualiza e coloca a disposição dos assinantes-usuários-cidadãos imagens e sons que
alimentam a sua consciência lúdica, política, ético-comunicacional.
E nessa direção, é de bom presságio atentar para as sugestões de Barbéro &
Réy (2001), que examinando as culturas latinas, apontam para a importância da
conexão entre a oralidade presencial e a sociotecnicidade, como caminho explicativo
do estágio atual da nossa formação cultural e das interculturalidades tramadas nas
sociedades contemporâneas globalizadas. E por essa via se abrem os caminhos para a
construção das identidades individuais e coletivas.
Assim, vislumbramos uma cultura audiovisual instalada pela mídia eletrônica,
particularmente pela televisão, em seus diversos nexos temporais. Desde as sessões
matinais e vespertinas, passando pelo longo trabalho da teledramaturgia e pelas
repetições da “sessão coruja”, na televisão, que fustigaram o imaginário de quatro
gerações, nos anos 60, 70, 80 e 90, encontramos as origens da atual cultura latina
midiatizada, hoje animada também pela ficção digitalizada.
Hoje, podemos revisitar o passado audiovisual recente através da internet. As
imagens e sons da teledramaturgia são disponibilizados nos sites de vídeos, acessíveis
em DVDs e outros dispositivos locativos, e assim, nas tramas da cultura digital,
atualizam a relação entre as narrativas da história e as narrativas de ficção.
Um bom exercício nas salas de aula pode ser experimentado a partir da captura
de vídeos no YouTube, condensando imagens, sons e textos da Revolução de 30,
Golpe de 1964, retorno dos exilados, abertura política, movimento pelas eleições
diretas, morte de Tancredo Neves, impeachment de Collor e eleição do Presidente
Lula. Um exercício de comunicação comparada que pode ser exitoso através dos
meios tecno-colaborativos e monitoramentos realizados pelos cidadãos conectados.
O website YouTube libera as memórias afetivas e sentimentais das gerações
dos anos 60, 70, 80 e 90, mas principalmente apresenta uma memória do futuro, que -
através da interacionalidade - atualiza as nossas percepções e experiências cognitivas,
a partir das imagens sons já inscritos nas ficções do século passado.
O armazenamento e partilha dos vídeos instalados na internet leva - de maneira
similar - a uma atualização das leituras estéticas e sociais do cinema mundial, assim
como instiga novos modos de se ver e rever o cinema mundial, em suas versões
nacionais, estrangeiras, globais, locais, dubladas, legendadas e interativas.
Doravante, quase todos os filmes do mundo estão ao alcance dos cinéfilos,
esetas, jornalistas e pesquisadores; os filmes de Chaplin, Os dez mandamentos, 2001
uma odisséia no espaço, Asas do Desejo, por exemplo, obras clássicas da
cinematografia, que têm povoado a imaginação de milhões de pessoas há décadas,
encontram-se à disposição para análises, críticas, remontagens e novas degustações.
E o melhor de tudo isso é que os fotógrafos, músicos, cinegrafistas e videastas
autônomos e independentes, empoderados pelas tecnologias, têm a chance de
apresentar o seu trabalho para uma grande audiência sem sair de casa.
No Brasil, particularmente, do qual se fala que não se reputa exatamente por
uma preocupação com a memória nacional, verificamos que a partir da “invenção”
dos websites de vídeos é possível se falar na reconstrução de uma memória do cinema
nacional. E o mais importante, a renovação da crítica cinematográfica que pode ser
conectada em rede por leitores, cinéfilos, pesquisadores.
No YouTube encontramos fragmentos de obras como as chanchadas, os filmes
raros como Limite, Bye Bye Brasil, O pagador de promessas, Terra em Transe,
Macunaíma, Dona Flor e seus Dois Maridos, assim como as relíquias do cinema
novo, do super-oito, das pornochanchadas e do cinema marginal.
As obras primas dos documentários nacionais, por meio dos processos digitais,
podem ser revistos, criticados, parodiados e reformatados. Igualmente reencontramos
trechos de documentários raros e prestigiados como Aruanda, Ilha das Flores, Aqui
estamos nós que esperamos por vós, Janelas da Alma: singularidades da cultura
audiovisual, que sendo capturados nos sites e armazenados na segurança dos novos
meios, tornam-se farto material de estudo e vigoroso instrumento de aprendizagem.
Faz-se necessário introduzir nos currículos dos cursos de arte e mídias uma
teoria contemporânea dos audiovisuais, com base numa epistemologia complexa,
reunindo um feixe teórico abrangendo uma teoria do cinema, do vídeo, do rádio, da
televisão. Tais teorias devem estar conectadas aos domínios da antropologia, história,
semiótica e sociologia da comunicação. Esta é uma estratégia que pode ajudar na
interpretação do sentido dos audiovisuais como elementos propulsores das
experiências fundamentais da estética, poética e catarse.
Em síntese, os audiovisuais que, são interessantes como objetos empíricos e
objetos de contemplação, adquirem outro status fenomenológico quando
reterritorializados na ambiência do ciberespaço, principalmente porque podem ser –
doravante – conectados com outros “actantes” (atores-redes de informação), podem
compartilhar conteúdos com outros internautas e podem atualizar e revitalizar os
projetos artísticos culturais presenciais.
O processo de interculturalidade, que caracteriza a cultura audiovisual e
tecnológica atual, adquire força poética a partir das narrativas conectadas na atual
cultura de convergência, em que concorrem a fotografia, a música, a literatura, o
rádio, o cinema e a televisão na configuração de um meio novo, a internet.
Esta convergência de mídias vem moldando a percepção sensorial, a memória
afetiva, a inteligência conectiva, as identidades e sociabilidades contemporâneas, além
de abrir oportunos espaços nos mercados emergentes.
A compreensão do papel das “velhas mídias” (e os seus processos de
transformação pelas “novas mídias”) pode levar os pedagogos, estetas, intelectuais,
jornalistas, formadores de opinião - educados pelas matrizes culturais analógicas
tradicionais - a adquirirem outra atitude face à efervescência cultural contemporânea,
a se empenharem numa comunicação mais interativa com as novas gerações.
6. A arte de contar estórias breves na internet
Os sites de vídeos nos permitem contemplar fotos, músicas, filmes, animações,
artes plásticas - desde as obras primitivistas e religiosas, passando pelo renascimento,
barroco, romantismo, realismo, vanguardas históricas até as expressões pós-modernas.
Podemos igualmente rever as cenas raras do chamado “cinema de arte”, ilustre
desconhecido da “geração Harry Potter” e podemos ainda nos inteirar das novíssimas
experiências estéticas, em que se mesclam filmes de animação, games eletrônicos,
vídeos musicais, todos conectados em rede e compartilhados nos sites de conversação.
Contudo, o fundamental nos sites de vídeos é a instauração de um lócus
privilegiado para o exercício da potencialidade criativa dos novos artistas.
Como exemplo admirável da ciberarte, encontramos o vídeo intitulado
i.mirror, uma epifania dos fenômenos trans-estéticos, em que as narrativas e
conversações se realizam nos ambientes virtuais.
Por meio de uma inteligência coletiva conectada, nos comunicamos com
nossos semelhantes, outros avatares, num contexto semiotizado pelas experiências
simuladas. A grande diferença, em relação ao mundo da ficção científica, é que neste
novo mundo podemos formatar as nossas identidades, nossas relações afetivas, ético-
políticas e modificar – daí por diante – as instâncias do mundo virtual e presencial.
A artista chinesa Cao Fei, publicamente conhecida por meio do seu nickname,
avatar, apelido virtual China Tracy, produziu os personagens, os cenários, as
conversações, uma bela trilha sonora, os instalou no metaverso do website de
relacionamento Second Life. E, além disso, armada de uma câmera digital, realizou
uma espécie de documentário “machinímico”, resultando num objeto “sublime
tecnológico”, que participou da Bienal de Veneza de 2007, uma instalação, na qual os
espectadores bem acomodados numa estrutura inflável puderam assistir ao vídeo.
Em verdade i.mirroir é constituído por três vídeos formando o que entendemos
como a atualização do desejo de realização da obra de arte total, uma poética
tecnológica da interacionalidade, que traduz a beleza da arte na hipermodernidade.
Eis um leque de imagens insólitas, fantásticas, transcendentais, em que
apreciamos o som e o silêncio no ecossistema das redes.
As narrativas de animação virtual, com o “i.mirroir” criam uma ciberpaisagem
em que interagem, simbioticamente, o concreto e o virtual, os seres humanos e as suas
extensões mentais encarnadas nos seus avatares. E estamos a um passo da convivência
entre pessoas e avatares, no espaço doméstico infoconectado em 3D.
O vídeo i-mirroir atualiza o complexo de Ícaro. Na realidade virtual do
Seconde Life, é simulada a experiência de teletransporte dos corpos. No cibermundo
isto é possível; uma atualização radical do desejo ancestral do homem voar.
Assistindo ao vídeo, observamos a potência semiótica e cognitiva gerada pela
convergência de meios. A conexão em rede dos usuários do Second Life, YouTube,
FaceBook, Twitter, etc., permitindo capturas acertadas e sacadas inteligentes, como
diversão ou como cognição, a videocultura do YouTube não deixa os usuários
impunes; introduz o germe da curiosidade, da transcendência ou da perplexidade.
O vídeo do YouTube, em questão, o i-mirroir, consiste num caso de
digitofagia, pois resulta da assimilação e transformação de uma vídeo-narrativa,
gerada no site de relacionamento Second Life.. É um exemplo vigoroso de Art-NET,
cujo itinerário se inicia na imaginação criativa de uma especialista em computação
gráfica, passam pelas fibras óticas das redes sociais, e chega ao espaço público digital,
irrigando as conversações on line com lirismo e poesia.
7. Para concluir: Uma visão mitopoética da TV do futuro
Observando o YouTube, obtemos as pistas para compreendermos os rumos
dessa formação cultural recente em que se reúnem o analógico e o digital, o virtual e o
ficcional. Cumpre observar como - neste percurso - se instauram outras modalidades
do saber-fazer, novas inteligências, sensorialidades e competências, que nos levam a
uma inusitada e gratificante contemplação do mundo virtual.
Deparamos com um produto cultural e comunicante radicalmente novo. E ao
mesmo tempo, compreendemos o sentido de uma experiência em fase antecipada de
transformação e já em vias de desaparecimento, sem deixar de sugerir as pistas para a
emergência de novos procedimentos sócio-tecno-comunicacionais, corrigindo,
ultrapassando e otimizando o seu desempenho9.
Convém persistir na apreciação destas novas modulações da arte & mídia, que
fascinam pela sua intersecção poético-tecnológica, em que os atores sociais plugados
em rede não cessam de interagir. Mas devido ao seu próprio caráter de novidade -
assim como o excesso, as repetições e a extrema liberdade de acesso e utilização -
estes novos produtos exigem o rigor de um olhar seletivo. Convém separar o joio e o
9 Para atualizar a nossa argumentação, resgatamos o estudo de Michael Wesch, “An anthropological introduction to You Tube” (2008), uma pesquisa de cunho quantitativo e qualitativo, explorando o site no contexto das novas modalidades de comunicação e comunidade virtual.
trigo, esvaziando a lixeira e apreciando as pepitas de ouro jogadas no exuberante
manancial que jorra das águas da cibercultura.
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