1
HÁBITOS ALIMENTARES DE PESSOAS IDOSAS VINCULADAS À
IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO E SÃO BENEDITO
DE UBERLÂNDIA.1
Jeremias Brasileiro2
Mônica Chaves Abdala3
RESUMO
Esta é uma discussão a respeito dos hábitos alimentares de personagens sexagenários e até
próximos aos cem anos de idade, vinculados à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de
São Benedito de Uberlândia, Minas Gerais. Pretende-se verificar de que maneira as
transformações ocorridas na produção, manipulação e industrialização dos alimentos afetaram
a vida dos pesquisados e ainda como esses sujeitos lidaram e continuam lidando tanto com as
permanências quanto com as novas formas de alimentação na atualidade. Este trabalho teve
início por meio de um projeto desenvolvido junto a FAPEMIG-MG sobre o hábito de jantar
de idosos. As várias descobertas a partir das entrevistas possibilitaram ampliar o foco, dando
continuidade às análises devido à relevância e ineditismo da pesquisa no contexto do Congado
na cidade de Uberlândia. Por se tratar de relatos de memórias sobre hábitos alimentares,
trabalhamos com metodologia qualitativa, optando por roteiro pré-sistematizado para servir de
orientação no diálogo com os entrevistados.
PALAVRAS-CHAVE: idosos - memórias - hábitos alimentares – tradições e resistências.
Se existe algo inerente e comum às sociedades humanas é o ato de se alimentar. Na
perspectiva deste estudo, hábitos alimentares extrapolam as questões biológicas, avançando
para as recordações de vidas compartilhadas juntamente com as memórias desses hábitos,
envolvendo etapas como de produção, de preparação e de consumo de alimentos.
Assim, nos valemos do relato de pessoas idosas4, que vivenciaram transformações nos
hábitos que buscamos compreender. Essas pessoas, vinculadas à Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e de São Benedito, uma instituição cultural e religiosa próxima de
completar cem anos de existência na cidade de Uberlândia, nos permitem pensar que várias
mudanças observadas se deram com suas vindas para a cidade, pois muitos eram oriundos da
zona rural, como trabalhadores em fazendas, executando serviços braçais e domésticos.
Ouvir os relatos dos personagens entrevistados foi não somente viajar junto com as
pessoas para tempos e lugares distantes, mas vivenciar no presente o sentido das coisas do
1 Pesquisa financiada pela FAPEMIG-MG. 2 Mestre em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Email: [email protected] 3 Docente doInstituto de Ciências Sociais e dos Programas de Pós Graduação em História e Ciências Sociais da
Universidade Federal de Uberlândia. 4 Pessoas com mais de 60 anos.
2
“antes”, recordar com elas o cheiro dos fazeres alimentares, a preparação da comida,
impregnada em algumas falas emocionadas, como o depoimento do Sr. Matias5:
[...] Aí uma semana depois, pega a banha com a concha, coloca na panela, e
enquanto a banha está esquentando e coloca o arroz para afogar, poxa, os
vizinhos falam: “a pessoa está fritando carne de porco!” Só com o cheiro, ele
vai longe! Nossa! Sentiu o cheiro, dá fome na hora! Dá vontade de comer da
comida! Aí pega a carne, a banha e coloca na panela de ferro, aqui em casa a
gente ainda usa muito a panela de ferro! Panelas que eram da minha bisavó
estão comigo até hoje!”.6
Este relato do Sr. Matias soava naquele instante de um modo quase inédito para nós
pesquisadores, que talvez surpreendidos estivéssemos ao perceber de forma definitiva a
possível inexorabilidade de tais vivências ali compartilhadas, que estariam perdidas na
“poeira dos tempos”, como tantas outras não acessíveis em tempo hábil, antes da morte de
muitos destes personagens ansiosos por relatar suas memórias, fragmentos de um passado que
a maioria das pessoas – inclusive seus próprios familiares – no tempo da “fácil modernidade”,
pouca importância dão.
Torna-se pertinente, portanto, refletirmos a respeito da memória, aqui considerada como
um conjunto de elementos apropriados individualmente por um determinado grupo de pessoas
detentoras de uma experiência social e essas informações, transmitidas ou vivenciadas por
diversos sujeitos. Alessandro Portelli apresenta a seguinte concepção sobre o assunto:
Nossa experiência é uma experiência social, mas não se pode submeter
completamente a memória de nenhum individuo sob um marco de memória
coletiva. Cada pessoa tem uma memória, de alguma forma, diferente de
todas as demais. Então, o que vemos, mais que uma memória coletiva, é que
há um horizonte de memórias possíveis.7
Essas memórias, entendemos ser decorrentes de um sistema de dados que pode ser ao
mesmo tempo visualizado ou possível de ser compreendido por meio da oralidade, que nos
ajuda a entender situações vividas num passado mais recente ou mesmo um tanto distante,
ausentes ou fragmentadas em documentos, mas presentes nas memórias das pessoas idosas.
Neste aspecto, Samuel Raphael observa que a evidência oral torna possível escapar de
algumas falhas dos documentos:
5 Os nomes são fictícios de modo a preservar o anonimato dos participantes da pesquisa. 6 Entrevista realizada em agosto de 2013. 7 ALMEIDA, Paulo Roberto de; KOURY, Yara Aun. História Oral e Memórias: entrevista com Alessandro
Portelli. História & Perspectivas. UFU, jul/dez, 2001, jan/jul, 2002, p. 31.
3
Há verdades que são gravadas nas memórias das pessoas mais velhas e em
mais nenhum lugar, eventos do passado que só eles podem explicar-nos,
vistas sumidas que só eles podem lembrar [...] a evidência oral pode nos dar
contextos novos que os documentos, por si mesmos, apesar de muito
trabalhados, não fornecem.8
O idoso é importante para nosso estudo porque, segundo nos mostra Bósi (1994), ao
rememorar, “[...] desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir
o começo ao fim, de tranquilizar as águas revoltas do presente alargando suas margens”.9 Essa
rememoração não é uma repetição do passado, e nem um reviver, mas sim re-fazer, refletindo
e construindo o agora a partir do outrora. Neste sentindo, torna-se relevante a percepção de
Paul Thompson, ao afirmar que “recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento
de identidade”.10 Já Queiroz (1987), citando Franz Boas, aponta que condutas e valores “são
encontrados na memória dos mais velhos, mesmo quando estes não vivem mais na
organização de que haviam participado no passado, e assim se pode conhecer parte do que
existira anteriormente e se esmaecera nos embates do tempo”.11
Ao trabalhar com memória, percebemos o quanto a mesma não é uma forma de
recordação estática. Ao contrário, é construída, fornecendo assim diferentes possibilidades de
ser compreendida, não se limitando apenas a uma idealização unívoca do passado. Nesse
sentido, Raphael Samuel, atribui à memória uma perspectiva “revisionista” quando entende
que a mesma não é dada a priori, como definitivamente pronta, sendo então por isso mesmo,
flexível. Ela “[...] porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido.
Tem estampadas, as paixões dominantes em seu tempo”. 12
No entendimento de Le Goff, a memória é capaz de apreender vários tipos de
conhecimentos que podem nos levar a um “conjunto de funções psíquicas, graças às quais o
homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas”.13
Evidente que na conjuntura em que se insere nosso estudo, sobre memórias de hábitos
alimentares das pessoas idosas ligadas à Irmandade do Rosário, tal pesquisa tanto abrange
memórias pessoais quanto pode contemplar memórias coletivas, uma vez que se trata de
8 SAMUEL, Raphael. História Local e História Oral. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/
Marco Zero, nº 19, set.1989/fev.1990, p. 230 - 231. 9 BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 22. 10 THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: PAZ E TERRA, 1992, p. 208. 11 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciência e Cultura 39 (3).
CERU/Departamento de Ciências Sociais, FFLCH, USP, 1987. P. 272. 12 RAPHAEL, Samuel. Teatros de Memória. Projeto História, n. 14, São Paulo, Educ., p. 44, fev. 1997. 13 LE GOFF, Jacques. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas, SP: UNICAMP, 2003, p. 419.
4
indivíduos pertencentes a uma comunidade específica “de afrodescendentes” que possui
identidades étnicas comuns.
Para que os relatos colhidos sejam satisfatórios é preciso compreender que “uma
entrevista é uma relação social entre pessoas” onde “fundamentalmente, espera-se que o
entrevistador demonstre interesse pelo informante, permitindo-lhe falar o que tem a dizer sem
interrupções constantes [...], por baixo disso tudo está uma ideia de cooperação, confiança e
respeito mútuos”14 esclarece Paul Thompson.
Entendemos que neste aspecto, ao trabalhar com memórias, existe interatividade entre
pesquisador e entrevistado, em que a ausência de credibilidade de uma das partes,
inviabilizaria a pesquisa. Memórias que não se encontram registradas, necessitam de
testemunhos daqueles que viveram em determinada época as coisas que se procura trazer para
o presente. Paul Ricoeur faz considerações a respeito dos testemunhos:
Será preciso, contudo, não esquecer que tudo tem início não nos arquivos,
mas com o testemunho, e que, apesar da carência principal de confiabilidade
do testemunho, não temos nada melhor que o testemunho, em última análise,
para assegurar-nos de que algo aconteceu, a que alguém atesta ter assistido
pessoalmente, e que o principal, se não às vezes o único recurso, além de
outros tipos de documentação, continua a ser o confronto entre
testemunhos.15
De outro modo, o mesmo Paul Ricoeur inspira esta análise ao apontar as dificuldades e
armadilhas que são enfrentadas nos estudos com as memórias, sinaliza que no caso da
memória individual, essa tem vinculação “nos usos da linguagem comum e na psicologia
sumária que avaliza esses usos”16 ressaltando, porém, peculiaridades que favorecem a
memória enquanto uma categoria de caráter individual, as quais, ele denomina “traços”.
Inicialmente o autor esclarece a singularidade radical atribuída à memória, a qual se
transforma numa possessão individual de cada sujeito, pertencimento somente de um, lhe
conferindo assim, a impossibilidade de ser transferida a outro personagem. A memória, por
este viés, se torna em um “modelo de idade, de possessão privada, para todas as experiências
vivenciadas pelo sujeito”.17 Em seguida, Paul Ricoeur destaca que há uma vinculação entre a
energia da consciência em sua relação com o passado e esta força da consciência acaba
residindo na própria memória, assegurando dessa forma a permanência temporal do indivíduo.
14 THOMPSON, op. cit., p. 271. 15 RICOEUR, op. cit., p. 156. 16 Ibid., p. 107. 17 RICOEUR, op. cit., p. 107.
5
Deste modo, a permanência cria a possibilidade de se retornar a uma época passada sem que
exista obrigação de se romper com o tempo presente.
1. Construindo referenciais: alimentação, cultura e sociedade
De um modo geral, quando iniciamos qualquer discussão que envolva a presença de
comidas, notamos na literatura sobre a temática a preocupação com os contextos histórico e
sóciocultural em que determinados saberes e práticas são construídos. A esse respeito,
compartilhamos os apontamentos de Sônia de Magalhães quando a referida autora afirma que:
Qualquer que seja a sociedade, a alimentação está relacionada com uma
forma de comunicação, a ocasiões de trocas e de atos de ostentação, um
conjunto de símbolos que constitui, para determinado grupo, um critério de
identidade: as escolhas alimentares são determinadas, por sua vez, por um
código cultural que define se certos produtos são comestíveis e outros não. E
a sua aplicação é associada a uma profunda consciência de identidade étnica.
Assim, a alimentação assume aspectos específicos em diferentes
sociedades.18
Georg Simmel foi certamente pioneiro nessa discussão. Recuperou extensa literatura
relativa à época medieval, trazendo para o momento contemporâneo uma possibilidade de
refletir a respeito de como foram, ao longo dos tempos, se constituindo modos, maneiras,
hábitos de comer. Nesse aspecto, observa que “em todo o sistema de corporações medievais,
comer e beber em comum constitui um ponto de uma importância tão essencial, que hoje nós
mal podemos revivenciar”.19 Deste modo, o autor evidencia que, diante da incerteza e
“flutuação da vida medieval, isto era um ponto por assim dizer visivelmente estabelecido, um
símbolo de segurança do pertencimento, ao qual sempre se retornava como um ponto de
orientação”.20 Daí as conexões de como um simples ato de comer assume a posteriori um
sentido estético, regularizado e estilizado:
E, com isso, surge o nexo que permite que a simples exterioridade física da
alimentação se apoie, não obstante, no princípio de uma ordem infinitamente
maior: na medida em que a refeição se torna um assunto sociológico, ela
18 MAGALHÃES, Sônia Maria de. A mesa de Mariana: produção e consumo de alimentos em minas gerais
(1750-1850). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004, p. 21-22. 19 SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição. Trad., Edgard Malagodi. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33,
janeiro-junho de 2004, p. 161. 20 SIMMEL, op. cit., p. 161.
6
assume formas mais estilizadas, mais estéticas e mais reguladas supra-
individualmente.21
É interessante discutir como hábitos alimentares são vistos e de que forma vão
assumindo essa ideia estilizada, assim como a complexidade que é falar de alimentação nos
dias de hoje. Segundo Lívia Barbosa, trata-se de tarefa bastante complexa, “porque existe uma
vasta bibliografia sobre ambos [alimentação ou hábitos alimentares] que só fez crescer nos
últimos anos e que deixa o pesquisador com a permanente sensação de que é impossível
dominar toda a produção da área.” 22
Barbosa faz referência às várias conceituações que impregnaram o assunto de modo tal
que, para além dos valores já difundidos e muito importantes a envolver relações de nutrição,
de sociabilidades, tanto do ponto de vista simbólico, quanto histórico e social, está associado
à dimensão “política/ideológica” na qual se verifica um estreito relacionamento de nossos
hábitos alimentares não mais diretamente ligados apenas ao nosso “destino biológico e do
planeta”, mais que isso, abrangem uma gama diversa de comportamentos morais e de
condutas éticas.23
A transposição do ato de comer, que sai do plano da individualidade para se
transformar numa questão pública, e as mudanças ocorridas nos hábitos alimentares, sob a
perspectiva de Lívia Barbosa, mobilizam os indivíduos que se utilizam até de atos mais
radicais no sentido de se contrapor a tendências alimentares que surgem como ameaças aos
hábitos já adquiridos e enraizados nas populações. Nas palavras da autora:
[...] Desse modo, suscitaram reações das mais diversas e virulentas e,
também provocaram a organização de pessoas em torno de temas
relacionados à alimentação. [...] Algumas dessas reações variam desde a
destruição de redes de fast food e de lojas de patê de foie gras-e de tudo
aquilo que elas representam em termos de “ameaça aos hábitos alimentares
tradicionais” e aos direitos dos animais – até outras mais comedidas, como
as políticas públicas que regulam a produção de, a comunicação sobre e o
consumo de alimentos. Tudo isso e mais ainda, como as denúncias acerca da
indústria de alimentos e do desenvolvimento tecnológico, que nos fazem
comer coisas que não sabemos que estamos ingerindo [...].24
21 SIMMEL, loc. cit. 22 BARBOSA, Lívia. Feijão com arroz e arroz com feijão: o Brasil no prato dos brasileiros. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano 13, n. 28, p. 87-116, jul./dez. 2007, p. 89. 23 Como referencial a essas concepções, Lívia Barbosa cita autores como Goody, 1982; Lévi-Strauss, 1966;
Lima, 1999; Mintz; Du Bois, 2002; Mennell, 1985; Nogueira, 2005; Silva, 2005; e Warde, 1997. 24 BARBOSA, op. cit., p. 89.
7
Se de um lado as insatisfações das pessoas se traduziram em medidas radicais e de
resistência a algumas novidades que interferiam (ou interferem) nos hábitos alimentares, de
outro é preciso problematizar a respeito de como essas populações lidam com os atos de
comer e beber, de que forma esse processo poderia ser compreendido a partir do olhar dos
próprios indivíduos, questão que nos interessa de modo especial neste trabalho.
Segundo esta autora, “embora muito se escreva sobre alimentação, existem poucos
estudos que falem sobre comida e que abordem os hábitos alimentares das sociedades
nacionais contemporâneas sob uma perspectiva mais ampla e sob a ótica das populações que
têm esses hábitos”.25 Assim, as discussões ficam no plano da sistematização de dados
quantitativos que trabalham, sobretudo com parâmetros estatísticos baseados em setores
produtivos, comerciais, com enfoque para a circulação dos produtos, através de abordagens
que contemplam questões nutricionais e econômicas.
Difícil se torna dissociar as considerações acima esboçadas das relações de consumo
nas sociedades contemporâneas, cuja modernidade aponta para questões que envolvem
distinções sociais e econômicas traduzidas no ato de comer e beber. Com a consolidação da
economia de mercado e a concorrência que é estabelecida entre os produtores, vem sendo
criada e recriada uma infinidade de produtos. Fíuza e Silva (2006) afirmam que, por este
motivo, os consumistas passam a revisar, do ponto de vista histórico, as suas ligações com os
produtos, optando pela valoração ou pelo sistema de trocas dos mesmos, dependendo do
acesso a esses bens, “ou ainda, e talvez, principalmente, o seu valor de uso, espaço
continuamente redefinido por valores culturais, étnicos, religiosos, que podem ser herdados,
adquiridos ou criados pelos grupos e indivíduos”.26
Talvez por estas razões acima expostas, seja a alimentação um dos nossos grandes
problemas modernos, conforme acepção de Fischler (1995). Para o autor, tanto do ponto de
vista oficial quanto informal, a questão alimentar, a partir da relação do consumismo, tem sido
abordada pela imprensa, pela medicina e literatura, tratando constantemente desse assunto.
Fischler observa que desde o final do século XIX, “el Occidente bien alimentado se ha dado a
una disciplina médica especializada, la nutrición, que cada día más se impone la exigencia
de situar los peligros, de recomendar las mejores opciones, de decir dónde están el bien y el
mal alimentarios”.27
25 BARBOSA, op. cit., p. 89. 26 FIUZA, Ana Louise De Carvalho; SILVA, Diene Ellen Tavares. O consumo do orgânico como objeto de
distinção social. ALASRU / Congresso Latino-americano de Sociologia Rural, Quito, 2006, p. 11. 27 FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro. El gosto, la cocina y ele cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995, p.12.
8
Fischler reitera em suas argumentações que a imprensa e setores de comunicações
contemporâneas produzem constantemente discursos sobre os hábitos alimentares e, por
conseguinte, a respeito da alimentação, onde a questão alimentar aparece nos diálogos
cotidianos da sociedade, sendo que a dieta e a gastronomia estão igualmente na ordem do dia,
além de que outras preocupações passaram a fazer parte dos costumes alimentares como
declara o autor:
En el último cuarto del siglo XX, el espíritu del tiempo está a la vez en la
restricción y en el placer, en el régimen y en el arte culinario. «¿Qué comer,
cómo corner?», son preguntas que vuelven sin cesar. Todo se plantea como
si el acto alimentario fuese, em esencia, un problema delicado, difícil, acaso
insoluble, para el individuo.28
O excesso de informações cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas faz com
que estejam expostas constantemente às mais diversas formas, nem sempre coerentes, de
pensar o ato de comer e o que consumir. Deste modo, segundo o sociólogo Claude Fischler,
“as pessoas passaram a ser expostas a múltiplas e contraditórias informações e, conselhos
conflituosos sobre o que poderiam, ou melhor, deveriam comer ou não”.29
Tendo como pressupostos as considerações dos autores acima elencados, ao longo
deste estudo com as memórias das pessoas idosas vinculadas à Irmandade do Rosário de
Uberlândia, procuramos compreender os hábitos alimentares desses indivíduos e como as
relações com tais hábitos são encaradas na atualidade.
2. O gosto das coisas antes: memórias de cheiros, sabores e saberes sobre hábitos
alimentares.
Os relatos sobre hábitos alimentares suscitam nos entrevistados o desejo de retorno a
um tempo que se apresenta nostálgico, das “coisas” saudáveis de “antes”, do gosto das
“coisas” de antigamente, diferente dos “sabores” das “coisas” atuais. Reportam-se a saberes
que vão além do simples consumo para atender necessidades orgânicas, envolvem aspectos
sentimentais paralelos a outros comportamentos em que os gostos de alimentos são evocados
em consonância com a própria natureza e com lugares que avivam as memórias,
possibilitando assim compreender a função alimentar relacionada com outras necessidades
cotidianas das pessoas.
28 FISCHLER, loc. cit. 29 GOLDENBERG, Mirian. Cultura e gastro-anomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com
Claude Fischler. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 36, jul./dez. 2011, p. 237.
9
Deparamos-nos, então, com um tipo de conhecimento adquirido pela experiência da
prática constante e o tempo de memorização das “coisas” que propicia um saber individual de
manipulação de alimentos, de carnes de vaca e de porco, cujos fundamentos faziam e fazem
parte da memória, distantes até dos manuais e das regras alimentares inscritas no papel,
mesmo porque a maioria absoluta, se não quase todos os personagens envolvidos com a
criação, produção e manipulação das “coisas” se encontrava fora dos bancos escolares.
Deste modo, podemos pensar como foi que a macarronada – um dos pratos prediletos
citados constantemente por quase todos os entrevistados na pesquisa – perdeu o sabor, o gosto
de antigamente; que motivos podem de fato fazer com que essa mudança de gosto esteja
vinculada à manipulação dos produtos atuais, à industrialização acelerada dos alimentos e às
novas tecnologias de produção e, para além desses fatores, a necessidade de considerar a
“ciência” presente nos testemunhos, nos depoimentos dos personagens, “ciência” esta
impregnada de memórias que evocam o tempo das “coisas” passadas como sendo de boa
qualidade, por se tratar de uma relação mais estreita dos homens com a própria natureza.
2.1. Do gosto da macarronada
Ao iniciarmos este estudo não tínhamos a dimensão apropriada do que ele poderia
permitir em termos de reflexões sobre hábitos alimentares. Pensávamos que o mesmo ficaria
focado nas memórias de jantar, no entanto, à medida que o trabalho ia avançando e o número
de personagens aumentava, algumas falas terminavam por se completar em outras quando a
discussão se concentrava na produção de alguns pratos, entre os quais nós destacamos a
macarronada. Este prato tão típico e comum a quase todos os participantes da pesquisa nos
chamou a atenção quando observamos um discurso comum em todas as falas: “o gosto da
macarronada não é mais o mesmo”, “ o gosto de antigamente era bem melhor do que o gosto
de hoje”.
Faz sentido, nessa conjuntura, indagarmos se realmente o que se propõe nos dias de
hoje como algo saudável, bom para saúde, de acordo com discursos médico-nutricionais, pode
ser de fato o que todos almejam e assumem enquanto tal. Ao dialogarmos com pessoas que
poderíamos considerar portadoras de conhecimentos “simples”, do ponto de vista científico,
acadêmico, notamos que conseguem acessar com muita profundidade as motivações que
levaram às alterações dos “gostos das coisas”, como das macarronadas, a partir de um
emaranhado de situações que envolvem desde a chuva, o capim, o leite, os insumos e a
10
produção do queijo. A coerência de Dona Mariana ao discorrer sobre este assunto é
interessante para início desta discussão que aqui propomos:
[...] Macarronada de hoje o povo coloca carne [...] hoje é tudo moderno né?
Aí parece que o gosto era diferente, para mim era diferente! O queijo era
caseiro né? Tirava o leite da vaca e já fazia o queijo! Aí parece que o gosto
da macarronada era diferente de hoje. Agora muita gente faz macarronada e
põe carne, aí pra mim já não é macarronada. Lá em casa eu faço é assim,
cozinho o macarrão, faço o molho, ponho uma camada de macarrão, molho e
queijo por cima, depois outra camada de macarrão, mesmo assim não dá
aquele gosto como era antigamente né? Esses queijos de hoje em dia não têm
nem gosto de queijo, antes usava só o coalho para taiar o leite para fazer o
queijo, hoje não! É uns queijos branco, num têm gordura, os queijo de
primeiro você pegava assim e estava amarelinho da manteiga, daquela
gordura assim! Por isso dava mais gosto, passava o gosto do queijo pro
macarrão, porque é a manteiga que dava gosto no queijo. Hoje não! O
queijo é branco, se coloca o queijo no macarrão não dá nem gosto, pode por
queijo adoidado que não dá gosto!30
Evidente que os tempos de fazenda no passado, tanto quanto os momentos atuais de
urbanidade, quando nós falamos de hábitos alimentares, são muito diferentes. No entanto,
seria um equívoco desconsiderar que as pessoas não se movimentam de forma unânime,
cegamente, submissas a uma lógica de mercado consumidor que prima pelo fato de que
consumir os produtos alimentícios de hoje é melhor do que aqueles que nossas bisavós,
nossas avós e nossos pais sexagenários tinham como base alimentar ou conheciam em seu
cotidiano.
No caso da macarronada, de acordo com Dona Mariana, a tradição de fazê-la não é
mais a mesma devido ao surgimento ou acréscimo de outros produtos, como no caso da carne
moída e a problemática do queijo não ser tão curado, não trazer as essências do passado, da
manteiga, da gordura, daquilo que passava sabor à macarronada, dando ao prato um paladar
diferenciado em decorrência de um queijo bom. O sabor do queijo curado está fixado na
memória das pessoas como lembrança de um modo de fazer macarronada cujo gosto não se
consegue mais atingir. Quando Dona Mariana nos falava sobre a mudança de gosto da
macarronada, o Sr. Josias que participava do diálogo, nos interrompeu e disse enfaticamente:
Tem controvérsia nisso, não é o gosto que mudou, ele ficou diferente, é que
a qualidade do capim influencia na produção do leite, pasto de capim
gordura, capim jaraguá, aumenta a qualidade do leite ... hoje é só baquearia,
capim ruim ... [a qualidade do leite] resulta na produção de queijo melhor, é
preciso um bom queijo para uma macarronada ficar gostosa, que o sabor
30 Entrevista realizada em setembro de 2013.
11
depende do queijo curado, do tomate, num é só do macarrão, do tempero, da
cozinheira ser boa ou ruim.31
Se por um lado a mudança está associada às transformações ocorridas no campo,
refletidas nas diferenças atuais de produção do queijo, menos saboroso, por questões
climáticas – secas prolongadas, pastagens ruins – e, sobretudo devido ao uso do capim
braquiária em substituição ao capim gordura e jaraguá – estes dois últimos faziam com que as
vacas produzissem um leite de melhor qualidade –, de outro, podemos pensar até que ponto o
aumento de produção em escala acelerada para suprir o mercado consumidor modificou o
processo de produção do macarrão. Sr Joaquim, que trabalhou em uma empresa uberlandense
cuja especialidade era a produção deste, nos ajuda a pensar nas possíveis mudanças ocorridas
com o processamento e os ingredientes utilizados na produção das massas:
[...] O macarrão de hoje num tem mais gosto como antigamente, antigamente
eles faziam as misturas da farinha, vitaminado mesmo, era vitaminado
mesmo, ia aqueles corante mais puro pro macarrão ficar corado, assim
amarelo, então eles punham a mistura, ali eles punham tudo, punha aqueles
baldes de ovo, porque era muita farinha que eles misturavam, muita mesmo!
Era muito bem produzido, era muito bem mesmo, então mudou mesmo o
macarrão, hoje eu ainda não posso falar se eles põe mesmo a mistura que
punham antigamente, eu não posso falar, porque eu não fui mais lá, né? Mas
que antigamente era mais fácil os ovos né, as galinhas, essas coisas, hoje só
de granja né, ovo sem aquela gema amarela firme, né? É amarela de ração,
não de milho, né? Então acho que hoje, capaz que nem ovo eles põe mais!
Eu tenho essa superstição minha, né? Agora eu não posso falar que eles tirou
o ovo! E óleo né, eles põe o óleo na farinha né? Portanto depois que eles
batiam ela lá [massa], você pegava na mão assim e você via que elas tinha
produto né, jogava na máquina, ela espremia e já fazia o macarrão. Era
gostoso o macarrão de antigamente! Hoje tem um cheiro forte, já o gosto
dele não é tão gostoso como era! 32
São surpreendentes as conexões negativas ou positivas que identificamos nas diversas
falas dos entrevistados a partir de seus suportes de memórias e experiências práticas de vida.
Notamos, por exemplo, uma oposição entre banha de porco, que muitos continuam a utilizar,
e o óleo (de soja), que passa pelo acréscimo de produtos químicos para sua produção e, por
esta razão, não é bem visto. E é Dona Quinha que nos diz das implicações do uso de
determinados óleos em frituras: “- ouvi contar que num restaurante [...] na hora da limpeza
dos restos das frituras [...] aparecia aquela gosma assim tipo plástico né, do resto dos óleos
31Entrevista realizada em setembro de 2013. 32Entrevista realizada em setembro de 2013.
12
das frituras, agora imagine essa gosma, essa coisa né, que estrago num faz no estômago da
gente, né?”.33
2.2 A ciência das coisas é o tempo que ensina: a “maldade da carne”
Os dados que fomos coletando durante as entrevistas ou informações verbais de nossos
personagens nos credenciam a dizer que nas tradições dos hábitos alimentares, o quintal surge
como extensão da própria cozinha. Nossos informantes oriundos de várias regiões de Minas
Gerais e residentes em Uberlândia há mais de sessenta anos, nos revelam a variedade de
frutas, legumes, verduras nos quintais, as aves soltas ou em galinheiros, patos, pombos,
abastecendo as cozinhas e a convivência direta, próxima aos chiqueiros onde criavam porcos,
numa percepção nostálgica dos hábitos de comer e de viver presentes na atualidade. Tanto as
famílias urbanas quanto aquelas provenientes do campo mostraram essa ligação estreita com
os quintais.34 Dona Mariana nos revela como essa relação era parte integrante de sua vivência
na juventude, juntamente com o hábito de alimentar os animais criados nos quintais e abatê-
los para consumo:
Para nós o porco era tudo, a gente entrava no chiqueiro descalço, pegava
bicho de pé, era um pé na cozinha, um pé no quintal, casinha simples, num
tinha diferença pra gente não, no tempo de matar porco então era assim, a
gente esperava assar pele, cozinhar pele, sapecar o rabinho do porco, então a
gente não sabia se ficava na cozinha ou no quintal, arrumava porco na palha
de bananeira, no chão do quintal mesmo, pra sapecar o porco né!35
Esse consumo que persiste no cotidiano da entrevistada – sempre que possível ela
consome carne e banha de porco – demonstra que as experiências partilhadas na infância e
adolescência contribuíram para a continuidade do modo tradicional de se alimentar, no qual a
carne de porco se tornou um produto indispensável na cozinha, não só por este ser criado no
quintal, quanto pela presença cotidiana do mesmo circulando nos chiqueiros ou soltos pelos
grandes quintais. Deste modo, nossos estudos e apontamentos ajudam-nos a pensar sobre a
importância que o porco assumia, desde a colonização, na alimentação e na economia
doméstica dos mineiros:
33 Entrevista realizada em junho de 2013. 34 Mesmo contrariando fiscalizações sanitárias do município, ainda há famílias que mantêm galinheiros
improvisados nos quintais, onde criam frangos e pombos, tanto em bairros periféricos quanto nos mais centrais. 35 Entrevista realizada em setembro de 2013.
13
Nessa conjuntura, o porco era o centro da economia doméstica. Criado nos
quintais ou debaixo dos soalhos, nas casas construídas sobre pilastras, era
alimentado com as sobras dos pratos e panelas. Aproveitava-se a banha do
animal para torresmos e conservação da carne, que podia ser salgada. Do
mocotó, fazia-se a geleia, do sangue, o chouriço; das tripas, linguiças e a
pele aproveitava-se no feijão ou frita – a pururuca. Pés, rabos, focinhos,
orelhas serviam para o feijão dos escravos.36
Isto posto, pensamos discorremos sobre os fatores que levaram e ainda levam muitos
dos entrevistados a optar por um consumo de alimentos considerados não saudáveis de acordo
com algumas recomendações médicas e pesquisas atuais. Cumpre salientar que a concepção
de saúde não deve ser tratada de maneira unilateral, nem tudo que se considera “pesado”,
perigoso, ruim para a saúde, necessariamente o é para os entrevistados.
Há idosos na faixa dos 70 a 80 anos ainda lúcidos e com facilidades de se alimentar à
base de banha de porco, e idosos na faixa etária dos 60 aos 70 anos que não possuem mais
condições de saúde para consumir tais alimentos considerados gordurosos e
consequentemente prejudiciais, ainda que alguns deles teimem em consumi-los, como é o
caso do Sr. Guimon: “eu como banha diária (...) Larga de comê óleo e entra no toucinho pra
ocê ver! É outra coisa, num adoece, num tem nada, eles fala que num pode, faz mal, dá
congestã. Dá nada sô, fosse assim eu num tava vivendo [risos].”37 Comentário idêntico faz
Dona Ivone: "quando eu vou ao médico, vive brigando comigo [...] Frango caipira faz mal
não pode comer. [...] Tem muita coisa que o médico fala que eu não posso comer e o que eu
mais como é aquele torresmo com aquela gordurinha.”38
Há, sobretudo quando lidamos com nossos entrevistados a respeito dos alimentos e de
seu consumo, um conhecimento adquirido pelo tempo e pela prática constante que os leva a
fazer uso de suas “ciências” como fator de compreensão no instante de produzirem, matarem
e prepararem as carnes dos animais, como de vacas e porcos, principalmente; regras, modelos
e disciplinas culinárias apreendidas com os pais, os avôs, os tios, ou os mais velhos da
família, sabendo lidar com as diferentes maneiras de manuseio dos alimentos e de modos
alternativos de consumi-los, tornando tais atos numa tradição do próprio grupo familiar. Ao
fazer uma abordagem considerando as diversidades alimentares presentes nos grupos sociais e
culturais, Claude Fischler nos dá uma ideia de que essas diferenças podem ocorrer por
motivos tanto históricos, quanto econômicos, mas de natureza simbólica, religiosa e social.39
36ABDALA, M. C. Receita de Mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro. Uberlândia:
EDUFU, 1997, p. 59 - 60. 37 Entrevista realizada em outubro de 2013. 38 Entrevista realizada em abril de 2013. 39 FISCHLER, C. El (h)omnívoro. El gosto, la cocina y ele cuerpo. Barcelona: Anagrama, 1995, p.90.
14
Por isto entendemos que ainda é singular, relevante, dialogarmos sobre os modos de
alimentar dos nossos personagens e de como o conhecimento deles contribui para a
elucidação de algumas informações que são importantes quando tratamos de alimentação, de
gosto, do que é indigesto e de como o procedimento na hora de matar um animal, sem as
devidas observâncias e cuidados necessários, interfere no seu gosto no instante de consumi-lo,
como nos relata Dona Quinha, de Uberlândia com seus 93 anos de vida:
Eu ia pra casa de meu tio, ele matava aqueles capados! Aqueles “porcão”!
Aquela coisa boa, aquela comidona! A coisa da “reima”, acho que o povo
num sabe, acho até que tinha menos “reima” antigamente que hoje, porque
os antigo tinha mais ciência das coisas né? Num matava os bichos de todo
jeito não! Aqueles “capado”! Tinha o jeito de sangria dos “capados”, né?
Tinha de saber o ponto certo na testa na hora de matar uma “reis”, sabe? 40
Dona Nilze, que nasceu em Uberlândia diz: “ tem carne que a gente acaba de comer, dá
dor de barriga na gente, de frango é mais. A carne de porco é reimosa, o que não é reimosa é o
lombo! Mas o resto o povo diz, pode ter reima né! A carne do porco que não é castrado, a carne
dele fede.”41 Dona Jussara tece comentário parecido: “Carne reimosa! Ah, se matava e
cozinhava a gente sabia pelo cheiro, as vezes o cheiro enganava e se a pessoa comia, a dor de
barriga era certa, passava mal mesmo, de não ficar em pé, ficava acamada e sofrendo muito
com a carne reimosa, nunca comi não, mas conheci gente que comeu e passou muito mal.”42 E
Dona Lucinda conclui que: “carne da reima era sim coisa mais do porco né, não castrava ele
direito, marroa no cio se matasse dava carne reimosa, mais o povo sabia mais diferenciá as
coisas.43
Para que os antigos tivessem mais “ciência das coisas” era necessário um aprendizado
resultante da experiência prática dessas “coisas”. Essa experiência conosco partilhada por
meio de diversos informantes –, sendo três deles da cidade de Rio Paranaíba, no Alto
Paranaíba em Minas Gerais, onde desenvolvemos um estudo similar – nos permite afirmar
que “saber o ponto certo na testa na hora de matar uma reis (vaca, boi)” era uma técnica de
açougueiros que nos matadouros municipais ou nas próprias pastagens abatiam esses animais
geralmente com o chamado “olho do machado”, desferindo um golpe certeiro em sua fronte.
Uma pessoa sem conhecimento, ou um sangrador nervoso, em dia de raiva, assusta o
animal ao desferir um golpe de fúria e esta raiva ao matar o animal poderia ocasionar e ainda
40 Entrevista realizada em junho de 2013. 41 Entrevista realizada em setembro de 2013. 42 Entrevista realizada em setembro de 2013. 43 Entrevista realizada em outubro de 2013.
15
ocasiona o que ficou denominado como sendo “maldade da carne”. Recorremos ao relato de
Dona Lica, de Rio Paranaíba-MG, pois é o que melhor sintetiza essa questão:
É quando mata o animal com violência, quando erra a facada na hora da
sangria, então a carne não fica bonita, ela fica escura. Acontece que o sangue
não derrama né! Ele taia! O sangue entremeia na carne e aí a carne fica
manchada, ela fica escura, fica em algumas partes preta, pega um gosto
ruim, não fica uma carne gostosa, saborosa. Quando a gente vai ao açougue
e olha a carne, às vezes a gente vê uns pedacinhos escuros, ainda mais
quando é carne com osso, tipo costelinhas, costelas, aquelas partes escuras
que aparecem em algumas peças, nuns pedacinhos de carne, pode ser por
causa disso, da maldade da carne, do jeito que mataram o animal.44
Quem mais com tal competência poderia nos ensinar as “ciências das coisas” que não
aqueles que são os próprios protagonistas destas tradições alimentares? Há negações
explícitas quanto ao consumo da carne atualmente proveniente de uma mortandade dos
animais dentro dos corredores dos frigoríficos, em que sequer os homens que trabalham com
as máquinas transmitem rituais de sentimento, bons ou ruins, como antes: o sangrador poderia
alimentar o animal antes de matá-lo ou sangrá-lo, dar de beber, conversar com o próprio
animal.45 A “maldade da carne” no tempo de hoje assume novas configurações, que podem ser
detectadas por meio de um olhar desses nossos informantes e possuidores das “ciências das
coisas”, rejeitando vários tipos de carnes e embutidos encontrados nas prateleiras de
supermercados e nos açougues.
Quanto à questão da “reima” informada por Dona Quinha, talvez tenhamos
encontrado uma sugestão altamente relevante sobre o tema, coletado anteriormente em nossas
andanças de pesquisas pelo Alto Paranaíba, na cidade de Rio Paranaíba-MG. Após
sistematizar as informações resultantes de diálogos com vários congadeiros, chegamos à
conclusão de que podemos considerar “reima” de quatro modos distintos abaixo elencados a
partir das constatações de Dona Lica, Sr. Mendes e Sr. Tião:
44 Entrevista realizada em maio de 2013, em Rio Paranaíba-MG. 45 Interessante que todos os entrevistados falam sobre a carne de frango, dizem que aquela originária da roça
(caipira) era melhor, tinha sabor, enquanto que a carne produzida em granjas não possui gosto por ser resultante
de tratamento a base de ração, fazendo com que o tempo de engorda diminua consideravelmente em relação ao
modo tradicional de criação dessa ave.
16
A carne reimosa pode ocorrer durante o período de alteração hormonal da
porca, ela fica prenhe, a carne fica com cheiro de urina; a carne fica
espumante, sai espuma no momento de sua fritura, fica um cheiro forte, uma
carne complicada que pode fazer mal depois da ingestão; a porca não
castrada deixa a carne reimosa. É quando mata uma “marroa” que não é
castrada! E tem muita gente que mata esses porcos que é “roncôi”, num
serve pra comer porque a carne fica com cheiro forte de porco “cachaço”.
Então é assim, isso tem de ter muita ciência! A “marroa”, isso mata demais!
Às vezes ela tá na lua, tá de calor, aí se mata ela no calor, a carne fica
reimosa. Quando dá calor não pode matar, que se não a carne fica reimosa.
Principalmente se for uma mulher que está de dieta, de resguardo, se comer,
passa mal mesmo, não pode comer. A “marroa” tem o tempo de dá calor,
deu calor, espera passar três dias e aí pode matar, que a carne já não vai ficar
reimosa mais. Ela dá calor assim, quando fica urrando no chiqueiro, num
gosta de comer! Fica desatinada pra poder por um porco com ela! Mais aí
num põe e daí três dias depois que acabou a calor pode matar que num tem
nada não! Por isso que quem num sabe e mata nesse período (de calor),
come uma carne reimosa, que não faz bem de jeito nenhum pra saúde. Tem
muita gente que num presta atenção, principalmente gente de açougue! A
pessoa compra às vezes a carne num dá cheiro, a pessoa numa sabe, come, e
depois passa mal! O porco inteiro é diferente, ele tem de castrar, se não a
carne dá mau cheiro mesmo! Tem gente que num sabe, e castra só um grão,
o de fora, e fica outro, de dentro, então, a carne fica reimosa do mesmo jeito.
Já aconteceu muito das pessoas matar um porco “roncôi”, castrar só um
“grão” e depois ter de jogar toda a carne fora, porque num castraram os dois
“grão”. As coisas de comer têm de ter muita ciência! Muita ciência
mesmo!.46
Os hábitos de jantar atualmente
Quanto aos hábitos alimentares, um detalhe que chama atenção está relacionado aos
costumes que a maioria dos pesquisados ainda mantêm quando se trata da tradição de jantar.
Além de notarmos que trazem vivos na memória os hábitos de jantar de seus tempos de
infância, verificamos que a maioria continua tomando essa refeição regularmente, quer seja
no período da tarde ou à noite. Essa permanência nos suscita algumas indagações que
pensamos ser pertinentes. Uma delas se refere ao fato de que aproximadamente 80% dos
nossos entrevistados – em um universo de 22 entrevistas concluídas – continuam com o
hábito, inclusive muitos desses fazendo questão do uso da banha de porco em suas
alimentações e para tal maneira de consumir usam de várias táticas para burlar proibições da
46 Informações coletadas em maio de 2013, na cidade de Rio Paranaíba-MG.
17
"vigilância sanitária" relativas à comercialização da carne e consequentemente da "banha de
porco" sem o devido alvará de licenciamento.
Fator perceptível da sociabilidade das famílias pesquisadas é que muitas delas, ainda
que compostas por um casal de idosos, preparam a refeição noturna como se fosse para dois,
mas na expectativa de que familiares ou visitas poderão surgir a qualquer momento,
principalmente nos finais de semana.
A perspectiva do jantar arraigado na vida diária dessas famílias foi de certo modo
surpreendente e ao mesmo tempo nos provoca a dar continuidade futura a tais reflexões e
pesquisas, buscando agregar um universo maior de idosos vinculados à Irmandade do Rosário
no sentido de posteriormente observarmos se essa tendência do hábito de jantar em seus lares,
produzindo a própria refeição, é uma constante possível de se verificar no referido grupo.
O jantar rotineiro – segunda a sexta feira – é geralmente trivial, composto de arroz,
feijão, verduras, algum tipo de carne e macarrão, geralmente puro, ou com caldo, cebolinha,
salsinha ou outro ingrediente. Aos sábados e domingos, há variações como a presença de
frango, macarronada, carne assada, lasanha, e outros pratos, dependendo das eventualidades,
como da visita de familiares que de repente aparecem sem aviso prévio.
Comer à mesa não era comum e sim quase uma exceção. As famílias se serviam e
tomavam suas refeições sentadas em cadeiras, tamboretes, bancos de madeira, no espaço da
cozinha e do quintal. Mesmo atualmente, não cumprem o ritual cotidiano de jantar à mesa, a
não ser quando recebem visitas.
No passado, o fogão à lenha era natural para essas famílias e os utensílios se
constituíam desde colheres e garfos de pau, cuias de cabaça, gamelas de madeira, às panelas
de ferro. O uso da marmita tem a ver com a sociabilidade e com as novas relações
trabalhistas, revelando modos interessantes e uma relação com a confecção da comida no
período noturno. Como diz Dona Josefa: "meus irmãos, meu pai, minhas irmãs, tinham de
trabalhar, de levar a marmita! Lá em casa fazia era o jantar mesmo, porque tinha de levar
marmita". Dona Quinha fala que é do tempo das "cuias", "coités": "a gente na fazenda fazia
aqueles caldeirões de comida e servia os peões, era na cuia, aí depois veio o caldeirão, a
marmita de alumínio, as de plástico, né? Foi bem depois, agora tem de tudo né, marmita,
marmitex, de tudo, né?".
Para o Sr. Matias, a marmita surgiu em consequência do trabalho, uma vez que saía de
casa de madrugada: "eu fui comer de marmita porque saía do Luizote [Bairro] 03 horas da
manhã, então eu tinha uma marmita, minha esposa preparava à noite, eu trazia para UFU –
18
Universidade Federal de Uberlândia – era álcool, uma latinha, três pregos, a marmitinha em
cima, foi mais de anos assim". Já Dona Josefa lembra da preparação do jantar e de como
acondicioná-lo para não azedar a comida que deveria ser posta no caldeirão para ser
consumida no dia seguinte: "na minha família por exemplo era à noite, medo de errar a hora,
deixava numa vazia com água assim, deixava assim os caldeirões com a tampa assim não
tampando para não "suá", jogava um pano em cima, e, é isso que as pessoas faziam, para não
azedar a comida no outro dia".
Desse modo, conclui –se que o caldeirão e a marmita assumem funções diferenciadas
de sociabilidade, sendo que num primeiro momento estão associados ao contexto rural,
fazendas, lavouras, e trabalhadores se alimentando juntos a partir de um enorme caldeirão, e
de outro, o caldeirão na cidade, e especialmente a marmita, que vai individualizar os modos
de se alimentar na hora do almoço nos locais de trabalho, tendo em vista a dificuldade de
locomoção do trabalho à residência, visto que ambos geralmente se encontravam distantes.
Por certo que ao propormos esta análise sobre hábitos alimentares e formas de
sociabilidade na alimentação cotidiana, não poderíamos imaginar que deste grupo surgissem
tantos outros detalhes relativos à alimentação e modos de vida para além das memórias de
jantar. De fato, essa descoberta nos possibilita avançar em outros campos de estudos e inserir
esse grupo como parte relevante de pesquisas a respeito de memórias focadas nos hábitos
alimentares.
Referências
ABDALA, M. C. Receita de Mineiridade: a cozinha e a construção da imagem do mineiro.
Uberlândia: EDUFU, 1997.
ALMEIDA, Paulo Roberto de; KOURY, Yara Aun. História Oral e Memórias: entrevista com
Alessandro Portelli. História & Perspectivas. UFU, jul/dez, 2001, jan/jul, 2002. p.
BARBOSA, L. Comida e sociabilidade no prato do brasileiro. BARBOSA, L.; PORTILHO,
F.;VELOSO, L. (Org.). Consumo, cosmologias e sociabilidades. Rio de Janeiro: Mauad;
Seropédica, RJ: EDUR, 2009.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
BRASILEIRO, Jeremias. O ressoar dos tambores do Congado - entre a tradição e a
contemporaneidade: cotidiano, memórias, disputas. (1955-2011). Dissertação (Mestrado em
História). Programa de Pós-Graduação em História. Universidade Federal de Uberlândia.
Uberlândia, 2012, 193f.
19
FISCHLER, Claude. El (h)omnívoro. El gosto, la cocina y ele cuerpo. Barcelona: Anagrama,
1995.
FIUZA, Ana Louise De Carvalho; SILVA, Diene Ellen Tavares. O consumo do orgânico
como objeto de distinção social. ALASRU / Congresso Latino-americano de Sociologia
Rural, Quito, 2006.
GOLDENBERG, Mirian. Cultura e gastro-anomia: psicopatologia da alimentação cotidiana.
Entrevista com Claude Fischler. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 17, n. 36, p.
235-256, jul./dez. 2011.
MAGALHÃES, Sônia Maria de. A mesa de Mariana: produção e consumo de alimentos em
minas gerais (1750-1850). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2004.
QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. Relatos orais: do “indizível” ao “dizível”. Ciência e
Cultura 39 (3). CERU/Departamento de Ciências Sociais, FFLCH, USP, 1987. p. 272-286.
SAMUEL, Raphael. História Local e História Oral. Revista Brasileira de História. São
Paulo: ANPUH/ Marco Zero, n. 19, set.1989/fev.1990, p.
SIMMEL, G. Sociologia da refeição. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 33, jan/jun.2004.
p.159-166.
THOMPSON, Paul. A Voz do passado: história oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
Top Related