Paulo Srgio Bastos Andrade
HABITAO DE INTERESSE SOCIAL, REPRESENTAO SOCIAL DA
MORADIA, APROPRIAES DE ESPAOS E INTERVENES NO USO.
Estudo de casos: Residencial Jaan e Residencial Xavante II
em Belm, PA
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincias da Arquitetura, rea de concentrao em Racionalizao do Projeto e da Construo.
Orientador: Prof. Mauro Csar de Oliveira Santos, D.Sc.
Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ Faculdade de Arquitetura e Urbanismo FAU
2007
A553h Andrade, Paulo Srgio Bastos Habitao de interesse social e representao social da moradia, apropriaes de espaos e intervenes no uso: Estudo de casos: Residencial Jaan e Residencial Xavante II em Belm, PA. / Paulo Srgio Bastos Andrade.- 2007. 132 f. : il. Orientador: Mauro Csar de Oliveira Santos. Dissertao (Mestrado em Arquitetura) Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. Bibliografia: s. 100-123. 1.HABITAO Aspectos Sociais. 2. MORADIA Representao social. 3. MORADIA Uso. 4. RESIDENCIAL JAAN - Belm (PA) 5. RESIDENCIAL XAVANTE II - Belm (PA). I. Santos, Mauro Csar de Oliveira, orient.
CDD 22th. ed. 711.58
Paulo Srgio Bastos Andrade
HABITAO DE INTERESSE SOCIAL, REPRESENTAO SOCIAL DA MORADI, APROPRIAES DE ESPAOS E INTERVENES NO USO.
Estudo de casos: Residencial Jaan e Residencial Xavante II, em Belm, PA.
Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-graduao em
Arquitetura, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em
Cincias da Arquitetura, rea de concentrao em Racionalizao do Projeto e da
Construo.
BANCA EXAMINADORA:
_______________________________
Prof. Prof. Mauro Csar de Oliveira Santos, D. Sc. (Orientador) PROARQ / FAU / UFRJ
_______________________________
Prof. Ivani Bbursztyn, D. Sc. PROARQ / NESC / UFRJ
_______________________________
Prof. Marco Aurlio Arbage lobo, D. Sc. UNAMA
Rio de Janeiro 2007
DEDICATRIA
minha mulher, companheira, colega e cmplice, pela generosidade e pacincia sem limites.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela condescendncia, a quem tudo devo.
Aos meus filhos, Alberto Neto e Michelle, porque me deram o sentido desta vida.
Aos meus finados pais, Alberto e Oflia, felizes, onde estiverem.
professora Helena Tourinho, da UNAMA, paciente consultora nos primeiros
passos.
Ao professor Marco Aurlio, da UNAMA, consultor, conselheiro e amigo, por sorte.
Aos amigos que possibilitaram a realidade deste trabalho: Arquitetos, Massa Goto,
Samantha Nahon e Emerson Bruno; e Biblioteconomista Maurila Mello e Silva.
Aos professores Ivani Bursztyn e Luiz Tura, da UFRJ, pela consultoria e colaborao
inestimveis.
Aos amigos do PROARQ / UFRJ, Renata Couto, Carol Martins, Gustavo Guimares
e Maria da Guia, pelo apoio sempre presente no Rio de Janeiro.
Aos moradores dos conjuntos Jaan e Xavante II.
E finalmente, ao meu orientador e estimulador sem perdo, professor Mauro Santos,
caboclo paraense honorrio, sem o qual no teria chegado at aqui.
RESUMO
ANDRADE, Paulo Srgio Bastos. Habitao de interesse social, representao social da moradia, apropriaes de espaos e intervenes no uso: estudo de casos: Residencial Jaan e Residencial Xavante II em Belm, PA. 2007. Dissertao de (Mestrado em Cincias da Arquitetura) Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Orientador: Mauro Csar de Oliveira Santos, D. Sc.
Em conjuntos recentes de habitao de interesse social foi constatado que moradores se vm apropriando de espaos coletivos e fazendo intervenes que alteram a sua integridade funcional e aparncia. Este fato contradiz a racionalidade dos projetos, deduzindo-se que h necessidades subjetivas que no tm sido consideradas a priori. Para descobrir razes dessa atitude, foi utilizado o ferramental cientfico da teoria das representaes sociais, de Moscovici, oriunda da psicossociologia. Esta teoria suporta acesso ao inconsciente coletivo do grupo social para revelar essas necessidades obscuras e pr luz o sentido da moradia na viso consensual dos moradores, alm de possibilitar uma massa emprica ordenada que aponta para pontos antes no percebidos. O sentido da moradia encontrado resumiu-se na categoria lxica segurana, com acepo de satisfao pela conquista de bem material precioso a casa prpria. Foi estudada a relao entre arquitetura e moradores, com destaque para o uso dialtico da moradia e foram realizadas pesquisas no Residencial Jaan e no Residencial Xavante II, construdos em Belm-PA nos anos de 1998 e 2000, sobre os quais se colheu as opinies dos moradores. O sentido da moradia posto luz mostrou-se como responsvel pelo problema, estimulando as apropriaes dos espaos e intervenes referidas, alm de que os procedimentos e pressupostos da teoria ainda proporcionaram, adicionalmente, descobertas de conexes empricas importantes, que serviram para suporte de indicativos para concluses e recomendaes para novos projetos, tais como: indispensabilidade de quintal para todas as unidades; flexibilidade projetual, dando como opo o modelo loft nas cozinhas; espao para personalizao ao gosto do usurio; previso de espao coletivo de lazer; eliminao radical de reas sem funo; prever mais de uma vaga de estacionamento e a necessidade de projetos complementares para padronizao de garagens cobertas a serem construdas pelos moradores depois da ocupao. Palavras-chave: habitao de interesse social; representao social da moradia;
uso; e sentido da moradia.
Rio de Janeiro 2007
ABSTRACT
ANDRADE, Paulo Srgio Bastos. Housing of social interest, social representation of residence, appropriation of spaces and intervention on use.
Case Study Jaan Residential and Xavante II Residential in Belm, PA. 2007. Dissertation (Master in Architecture Sciences) -- Faculty of Architecture and Urbanism, of Federal University of Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Advisor: Mauro Csar de Oliveira Santos, D. Sc.
On housing of social, was proved that residents are occupying collective spaces and doing some interventions that change the integrity of appearance and functionality of recent housing estate. These facts contradict the project rationality, concluding that there are subjective necessities that cannot consider these elements a priori. To find out the reasons for these attitudes, the scientific key of social representations, of Moscovici, from psicosociology was used. This theory is supported by the access to the collective unconscious of social group to reveal these unknowing necessities and to clear the consensual vision of the residence, besides making possible the ordinate empiric mass that shows points not observed before. The meaning of residence that was found is summarized in lexical class of security, with sense of effort of precious good material the own house. The relation between architecture and residents was studied, with distinction for the dialectic use of housing and researches were done on Jaan Residential and Xavante II Residential, built in Belm, PA within the period of 1998 and 2000, when the residents had their opinions reported. Whatever the sense of residence showed itsef response of the problem, stimulating the appropriation of spaces and its intervention, besides the procedures and the theory estimated caused the discovered of important empiric connections, that serve to support the indicative for conclusions and recommendations for new projects, as: backyard for all units; projectual flexibility, applying as option the loft model in the kitchens; space for personnel user kind; plan collective space for recreation; eliminate areas without function; prevision for more than one parking space and the necessity of complementary projects for covered garage pattern to be constructed by residents further. KEY WORDS: housing of social interest; social representation; the use of housing.
Rio de Janeiro 2007
SUMRIO
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS . .............................................................. 10
LISTA DE FIGURAS .............................................................................................. 11
LISTA DE QUADROS ............................................................................................ 13
1 INTRODUO .................................................................................................... 14
2 QUESTES DA HABITAO DE INTERESSE SOCIAL .................................. 20
2.1 MORADIA, USO E COMPLEXIDADE .............................................................. 20
2.2 CONCEITO DE HABITAO DE INTERESSE SOCIAL .................................. 29
2.3 POLTICA NACIONAL DE HABITAO DE INTERESSE SOCIAL ................. 31
3 METODOLOGIA ................................................................................................. 38
3.1 UMA VISO DE MUNDO ................................................................................. 38
3.2 TEORIA DAS REPRESENTAES SOCIAIS ................................................. 43
3.2.1 Conceito de representao social ............................................................. 43
3.2.2 Sobre a elaborao das representaes sociais ...................................... 47
3.2.3 A estrutura das representaes sociais .................................................... 47
3.3 A PESQUISA DE CAMPO ................................................................................ 50
3.3.1 Preparao da pesquisa ............................................................................. 50
3.3.1.1 Planificao ................................................................................................ 50
3.3.1.2 Contedo dos questionrios ....................................................................... 51
3.3.1.3 Trabalho de Campo .................................................................................... 52
4 ESTUDO DOS CASOS: XAVANTE II E JAAN.............................................. 54
4.1 ORIGEM DOS STIOS E SITUAO ............................................................... 54
4.2 INFORMAES SOBRE O RESIDENCIAL XAVANTE II ................................ 61
4.2.1 Configurao urbanstica do Xavante II .................................................... 61
4.2.2 Xavante II: Tipologia habitacional .............................................................. 62
4.3 INFORMAES SOBRE O RESIDENCIAL JAAN...................................... 66
4.3.1 Configurao urbanstica do Jaan ......................................................... 66
4.3.2 Jaan: tipologia habitacional ................................................................... 69
4.4 APROPRIAES DE ESPAO E INTERVENES NO USO ....................... 72
5 APRESENTAO E DISCUSSO DOS RESULTADOS .................................. 84
5.1 APRESENTAO E TRATAMENTO DOS DADOS......................................... 84
5.1.1 Os elementos indicativos das representaes sociais ............................ 84
5.1.2 Anlise dos diagramas ............................................................................... 91
5.1.3 Segurana, um elemento ambguo? .......................................................... 92
5.1.4 As indicaes da representao social da moradia ................................. 93
5.1.5 Os testes de confirmao da centralidade ................................................ 95
5.2 OS NMEROS DA AVALIAO PS-OCUPAO: A OPINIO E O PERFIL DOS MORADORES ACERCA DE SUAS MORADIAS........................................... 97
5.2.1 Opinio dos moradores .............................................................................. 97
5.2.2 Localizao originria das famlias pesquisadas ................................... 106
5.2.3 O perfil socioeconmico dos moradores ................................................ 108
6 CONCLUSES E RECOMENDAES ........................................................... 111
6.1 OBSERVAES DO PESQUISADOR .......................................................... 111
6.2 RECOMENDAES E JUSTIFICATIVAS GERAIS ....................................... 113
6.3 RECOMENDAES E JUSTIFICATIVAS ESPECFICAS ............................. 115
6.4 RESUMO DAS RECOMENDAES ............................................................. 117
REFERNCIAS .................................................................................................... 118
ANEXOS ...................................................................................................... 127- 132
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
BNH Banco Nacional da Habitao
CEF Caixa Econmica Federal
CODEM Companhia do Desenvolvimento da Regio Metropolitana de Belm
COHAAB/PA Companhia de Habitao do Par
COHAB Companhia de Habitao
CP Casa Popular
ED Editores
FAT Fundo de Amparo aos Trabalhadores
FGTS Fundo de Garantia por Tempo de Servio
FNHIS Fundo Nacional da habitao de Interesse Social
FJP Fundao Joo Pinheiro
HABITAT I Seminrio promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil IAB, Petrpolis, 1963
HABITAT II Conferncia Brasileira para a HABITAT II Assentamentos mais humanos, Rio de Janeiro, 1996
HIS Habitao de Interesse Social
IAB Instituto dos Arquitetos do Brasil
IBAM Instituto Brasileiro de Administrao municipal
IDESP Instituto do Desenvolvimento Econmico e Social do Par
IPEA Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada
LABHAB Laboratrio de Habitao do PROARQ / UFRJ
OG Organizadores
PROARQ Programa de Ps-Graduao em Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ
RMB Regio Metropolitana de Belm
RSM Representaes Sociais da Moradia
SEDURB Secretaria Executiva de Estado do Desenvolvimento Urbano
SFH Sistema Financeiro da Habitao
SM Salrio Mnimo
SNHIS Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social
UFPA Universidade Federal do Par
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UNAMA Universidade da Amaznia
LISTA DE FIGURAS
Figura 2.1: Afonso Reidy. Conjunto de Pedregulhos, anos de 1950 ...................... 22
Figura 4.1: Morfologia urbana de Belm ................................................................ 55
Figura 4.2: RMB Eixos de expanso urbana e cinturo institucional ................... 56
Figura 4.3: Belm - baixadas, 2005 ........................................................................ 57
Figura 4.4: Belm - baixadas, 2005 ........................................................................ 57
Figura 4.5: Belm e RMB Primeira Lgua Patrimonial ........................................ 58
Figura 4.6: RMB Conjuntos habitacionais ........................................................... 59
Figura 4.7: Outra viso de Belm e Regio Metropolitana ..................................... 60
Figura 4.8: Localizao / situao do Xavante II .................................................... 61
Figura 4.9: Xavante II. Esquema de combinao do mdulo de 4 unidades .......... 63
Figura 4.10: Xavante II. Quintais com muros separadores. (Foto tirada logo aps a ocupao) ............................................................................... 64
Figura 4.11: Xavante II. Vista geral externa, com destaque para a garagem coberta com porto e jardim frontal .................................................... 64
Figura 4.12: Xavante II. Planta baixa, pavimento trreo - unidade de 2 quartos .... 65
Figura 4.13: Xavante II. Planta baixa, pavimento superior - unidade de 3 quartos .. 65
Figura 4.14:Localizao / situao do Residencial Jaan .................................... 66
Figura 4.15: Jaan, implantao geral.................................................................. 67
Figura 4.16: Jaan. Vista da rua ........................................................................... 68
Figura 4.17: Jaan. Vista interna .......................................................................... 68
Figura 4.18: JAAN, Arranjos entre unidades 1 quarto x 1 quarto e 3 quartos x 2 quartos .......................................................................... 70
Figura 4.19: Jaan. Pavimento trreo. Planta baixa, unidade de 1 quarto ........... 70
Figura 4.20: Jaan. Pavimento trreo. Planta, baixa unidade de 2 quartos ......... 70
Figura 4.21: Jaan. Pavimento trreo. Planta baixa, unidade de 3 quartos ......... 71
Figura 4.22: Jaan. Vista interna do patamar da escada ..................................... 71
Figura 4.23: Jaan: parede pichada com alegorias da Copa de 2006 ................. 72
Figura 4.24: Jaan: grades nas janelas ................................................................ 73
Figura 4.25: Construo de coberturas para veculos com invaso de caladas, em frente a bloco interno.................................................................... 73
Figura 4.26: Construo de coberturas em frente ao bloco virado para a rua ........ 74
Figura 4.27: Jaan. Vista do bloco 2 com proteo de toldos e arbustos............. 74
Figura 4.28: Jaan. Vista dos fundos de duas unidades ...................................... 75
Figura 4.29: Jaan. Ampliao no quintal de baixo com apropriao da unidade de cima ................................................................................. 76
Figura 4.30: Jaan. Planta de 1 quarto, pavimentos trreo e superior. Exemplo de ampliao da unidade com ocupao de parte do quintal da unidade trrea .................................................................................... 76
Figura 4.31: Jaan. Interveno. Unidade com padro da cozinha alterado para o modelo loft ............................................................................... 77
Figura 4.32: Xavante II. reas cobertas apropriadas e garagens no jardim ........... 78
Figura 4.33: Xavante II. Duas vistas do jardim e sua inadequabilidade como espao de lazer ............................................................................................... 79
Figura 4.34: Xavante II. Vistas de apropriao do espao coberto ........................ 79
Figura 4.35: Xavante II. Duas vistas diferentes de apropriao dos espaos coletivos.............................................................................................. 80
Figura 4.36: Xavante II. Interferncias: cimentado da garagem e implantao de varandas ........................................................................................ 80
Figura 4.37: Xavante II. Vistas da fachada do: grades nas janelas ........................ 81
Figura 4.38: Xavante II. Vista de ampliao sobre um dos quintais ....................... 81
Figura 4.39: Xavante II. Vista de acesso lateral com porto para o quintal ............ 82
Figura 4.40: Xavante II. Vista dos quintais com a interferncia de um reservatrio elevado em uma das unidades ........................................................... 83
Figura 5.1: Simulao da construo do diagrama de evocaes ......................... 89
LISTA DE QUADROS
Quadro 2.1: Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social nvel decisrio ............................................................................................. 34
Quadro 2.2: Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social nvel executivo ............................................................................................ 35
Quadro 5.1: Evocaes e categorizaes por residencial pesquisado. 2005......... 85
Quadro 5.2: Frmula para clculo das OMEs em cada posio ............................ 87
Quadro 5.3: Xavante II e Jaan. Categorias, freqncias e OMEs. 2005............ 88
Quadro 5.4: Diagramas da provvel estrutura das representaes sociais ........... 91
Quadro 5.5: Xavante II. Distribuio dos moradores, por zona / bairro da moradia anterior ................................................................................ 107
Quadro 5.6: Jaan. Distribuio dos moradores, em quantidade, por zona de moradia anterior ................................................................................ 108
14
1 INTRODUO
A partir da dcada de 1990, o governo brasileiro na chamada Nova Repblica,
apresentou seu modelo para o setor habitacional, batizado de habitao de interesse
social. Era uma frmula que significou a retomada de conceitos aprovados no
passado antes do golpe militar de 1964. Isto ocorrera no encontro denominado
Habitat I, produzido sob a liderana do Instituto dos Arquitetos do Brasil - IAB,
realizado em Petrpolis, no ano de 1963. O foco do debate estava na
inseparabilidade entre a habitao e o processo de desenvolvimento urbano. Esse
conceito, anteriormente enunciado h muito tempo, estava adormecido e tal
encontro visava reaviva-lo, da a importncia de se fazer uma clarificao do
contedo proposto na atual poltica de habitao de interesse social em
contraposio aos valores das polticas anteriores, incluindo a de maior repercusso,
aquela dos tempos do Banco Nacional da Habitao (BNH).
Agora, no lugar de conjuntos gigantescos do perodo BNH, a preferncia por
empreendimentos menores. Esta opo est ligada tradio que criticava a viso
reducionista e setorial que separava a habitao das demais funes urbanas,
tratando-as como se fossem coisas distintas. A viso contempornea oficial, que se
pretende holstica, entende que a habitao de interesse social deve ser cuidada
como um aspecto do desenvolvimento urbano, ou seja, um subsetor da questo
urbana, da a necessidade de aproximar e buscar compatibilizar a moradia com a
cidade. Decorre disto, naturalmente, a necessidade de construir novos conjuntos de
sorte a serem integrados cidade. Para tal, agora so procurados vazios urbanos
ainda disponveis em interstcios da malha urbana, para propiciar aos novos
moradores um sentir-se integrados cidade, aproveitando-se das vantagens e
servios oferecidos pela urbe desenvolvida. Para que isto seja possvel, porm, foi
preciso abandonar a idia dos grandes conjuntos, posto que na cidade, a terra
muito mais cara e s se encontram terrenos relativamente pequenos, cujo preo
possibilitem viabilizar os empreendimentos. E tambm, atualmente se deseja
experincias que dem continuidade natural ao contexto urbano existente.
Todavia, mesmo assim, tm-se constatado, em inmeros conjuntos recentes,
que moradores se apropriam de espaos coletivos e fazem interferncias fsicas
aleatoriamente, colocando em cheque a suposta nova razo com que foram
15
elaborados os projetos. Vale salientar, que a pesquisa se prendeu habitao de
interesse social que hoje, conforme o nome sugere, diferente da antiga viso do
setor que levava em conta a chamada habitao popular, tendo em mente, que no
se trata apenas de mudana de nome, mas de enfoque.
Na busca de compreender melhor esse fenmeno, muitas avaliaes que
usam mtodos convencionais, medindo resultados em aspectos tcnico-construtivos,
funcionais, e at comportamentais, foram exaustivamente realizadas e, mesmo se
tratando de procedimentos teis e importantes, h vezes em que no foram
suficientes para explicar e muito menos para recomendar a superao dessas, visto
que podem estar encobertas por necessidades subjetivas nas sombras do
inconsciente dos moradores, sendo inacessveis por meios convencionais.
Em vista disso, pesquisas tm sido conduzidas pelo Laboratrio de Habitao
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LABHAB/ UFRJ). Com diversos
mecanismos exploratrios, usando mtodos e tcnicas com objetivos de obter
informaes sobre aspectos objetivos, mas tambm subjetivos que possam estar
conformando o comportamento ou determinando a relao do morador com sua
morada.
Santos (2004) refere-se necessidade de avanar nessa rea, e um dos
caminhos que se apresenta e que tem sido utilizado no LABHAB/ UFRJ est na
abordagem estrutural da teoria das representaes sociais, um sistema complexo de
investigao cientfica nascido na psicossociologia, que introduz na arquitetura, a
viso sociolgica do ambiente construdo em uso, visando a desvendar no
inconsciente coletivo dos moradores, o sentido que a moradia tem para eles, ou, dito
de outra forma, buscar saber qual o aspecto mais importante da moradia segundo
eles a entendem consensualmente. Conhecer esta imagem, carregada de
significados e construda consensualmente pelos moradores em grupo, serve para
completar a apreenso arquitetnica da moradia e sua avaliao.
Alis, a aplicao de seus pressupostos tericos e procedimentos prticos
permitiram levantar um universo emprico especfico, que serviu para, alm da
visualizao da representao procurada, possibilitar confrontar seus resultados
empricos com outra massa de dados, esta colhida diretamente da opinio dos
16
moradores, dos levantamentos documentais, da observao crtica dos projetos e
memoriais disponveis, alm das evidncias da realidade construda.
Atravs de pesquisa direta com aplicao de questionrios e procedimentos
metodolgicos pertinentes se chegou s elaboraes significantes dos moradores
em relao moradia. Segundo a teoria, eles formatam, no uso concreto da
habitao, as expresses ou unidades semnticas que para eles representam a
moradia, concisa e consensualmente, que o sentido que atribuem moradia.
Desta maneira, a presente pesquisa tem como objeto, no mbito da moradia
de interesse social, estudar a relao entre morador, moradia e seu uso, este ltimo
considerado como elemento ativo e dinamizador do cenrio dialtico que liga
moradores de um lado e moradia de outro, que na dinmica do uso da habitao
multifamiliar de interesse social, parece provocar desvios de comportamento que
levam apropriaes dos espaos e interferncias que mostram atitudes que
contradizem a lgica projetual tradicional, esta que se cala em necessidades
aparentes e entendimentos prprios do projetista, tidos como racionais.
Desta forma, o trabalho teve como objetivos:
estudar a habitao de interesse social e sua relao com seus usurios;
desvendar o sentido da moradia e avaliar sua relao com as apropriaes
dos espaos coletivos e intervenes havidas em conjuntos habitacionais
recentes; e
encontrar relaes e conexes empricas que permitam mostrar caminhos
projetuais e recomendaes para novos projetos.
Neste enfoque, levantou-se toda a base documental e se ps a nu, em toda
sua dimenso, o atual sistema nacional de habitao de interesse social, mostrando
sua estrutura normativa, organizao institucional, fontes de recursos e rgos
envolvidos.
Alm disto, por ter sido observado que a habitao contm grande
complexidade em si mesma, uma reviso bibliogrfica foi realizada para aprofundar
o conhecimento do tema, buscando clarificar todos os aspectos que o envolvem, na
17
coleta da opinio de bom nmero de autores reconhecidos que tratam da moradia
sob variados enfoques. Procurou-se, assim, consolidar uma imagem conceitual que
tivesse utilidade para sua melhor compreenso e, tambm, auxiliasse na descoberta
de eventuais conexes empricas depois da pesquisa realizada.
Destarte, a pesquisa se justifica, em primeiro, pelo interesse de se conhecer
melhor a habitao de interesse social, com foco no sistema oficial do poder pblico
e no pblico usurio. Depois, pela possibilidade de se contribuir, com levantamento
de informaes e concluses que podem, eventualmente, ser teis para novos
projetos. Em seguida, pela necessidade de se avanar nas avaliaes a respeito das
distores encontradas em conjuntos recentes, produzidas pelos moradores, apesar
da racionalidade com que os projetos devem ter sido elaborados. E, tambm, pela
oportunidade de se conhecer e aplicar uma metodologia de ponta que vem sendo
largamente utilizada, no s na arquitetura, mas igualmente em outras reas como
matemtica, sade pblica, qumica, dentre outras, um procedimento que,
aparentemente, ainda no foi utilizado nesta regio, o que d ao trabalho, um
relativo grau de originalidade. Pela experincia em si, foi criada a oportunidade para
se medir a eficcia desse mtodo, que agrega a viso social arquitetura para
avaliaes qualitativas de conjuntos habitacionais. E por ltimo, por se tratar de
pesquisa que avana dentro da linha explorada pelo mestrado que a racionalidade
do projeto e da construo.
Para compreenso mais clara da teoria das representaes sociais, foi feita
uma reviso bibliogrfica no campo epistemolgico, para esclarecer e conhecer
melhor os princpios filosficos que lhes do sustentao, conforme recomendam
diversos autores do campo da metodologia cientfica. O esclarecimento da dialtica
e sua viso da realidade foram muito teis como meio auxiliar de apreenso da
teoria, dos seus conceitos, um enfoque social que parte do princpio de que no se
pode separar sujeito do objeto, ou, no caso, morador da moradia.
Depois, foram procedidos estudos da verso estrutural da teoria em questo,
dentro da profundidade possvel neste escopo. Ficaram evidentes seu conceito,
aplicabilidade, e sua base centrada na dialtica e no reconhecimento de que existe
diferenciao de saberes e dentro disto, que respeita o senso comum como uma
categoria de saber, que existe independentemente de outros, como os saberes
18
sociais ou saberes da arquitetura. Os procedimentos metodolgicos desta teoria se
mostraram um meio eficaz para revelar elementos importantes normalmente ocultos
do olhar comum.
Para aplicao da metodologia estipulada, dentre muitos conjuntos existentes,
foram escolhidos o Residencial Jaan, iniciado em junho de 1998 e inaugurado em
1999; e o Residencial Xavante II, iniciado em outubro de 1999 e inaugurado em
2000, empreendimentos da COHAB/PA, em Belm. Estes conjuntos mereceram
ateno, mais que outros, por estarem entre os primeiros que foram construdos
dentro da atual poltica de habitao de interesse social, e ademais, por tratar-se de
implantaes que revisaram exemplos bem sucedidos na histria e se basearam em
rica fundamentao. Tm, alm disto, similaridades e diferenas entre si, que valeria
a pena um exerccio comparativo.
O trabalho comea verdadeiramente no Captulo 2, com o exame de questes
relacionadas com a habitao de interesse social, onde se oferece uma reflexo
acerca da complexidade que envolve a moradia, com destaque para seu uso; depois
clarificando seu conceito segundo os parmetros do programa oficial, incluindo
estrutura normativa, organizacional e operacional, evidenciando seus propsitos,
objetivos, condies de financiamento e fontes de recursos.
Em seguimento, no Captulo 3 est a parte referente metodologia, sendo
por primeiro apresentado os aspectos filosficos referidos anteriormente e que do
sustentao teoria das representaes sociais, que a base terico-metodolgica;
adianta-se uma reflexo a respeito de sua elaborao; e finalmente, feita a
exposio dos procedimentos utilizados na pesquisa de campo e sua preparao em
detalhes.
No Captulo 4, so apresentados os casos estudados, Residencial Xavante II e
Residencial Jaan. So mostradas as situaes espaciais; origem dos respectivos
stios; a configurao urbanstica de cada caso; e as tipologias habitacionais das
respectivas moradas.
No Captulo 5, so apresentados e depois discutidos resultados dos dados
colhidos e trabalhados, revelando, com a representao social da moradia, o sentido
19
da habitao para o grupo social trabalhado, alm de informaes sobre a opinio e
o perfil scio-econmico dos moradores com as discusses pertinentes, informaes
cuja base emprica possibilitou a identificao de inmeros nexos complementares
que serviram para moldar uma viso avaliadora das propostas estudadas.
E finalmente, no Captulo 6, esto as concluses e recomendaes
decorrentes, as quais podero ser teis para a elaborao de novos projetos, bem
como ilaes para reflexo, consideradas oportunas neste espao.
20
2 QUESTES DA HABITAO DE INTERESSE SOCIAL
2.1. Moradia, uso e complexidade
O objetivo deste item comentar e mostrar como visto o universo da
moradia em seu uso, segundo o entendimento de diversos autores importantes.
Esses autores, cada qual segundo uma viso particular, vm oferecer destaque ao
uso da moradia num conjunto de pontos de vistas que, no conjunto, atestam a
existncia de uma matria sutil, de difcil compreenso para observadores
desavisados.
A identificao deste cenrio e a valorizao do uso da moradia, conformadas
pela perspectiva de arquitetos, vm referendar e autenticar a existncia de conexes
subjetivas ou fenmenos da espiritualidade extra-arquiteturais incompreensveis, s
vezes, numa comoo social intensa que gera smbolos e leva os sentidos comuns
para todas as direes.
Deste modo, a utilidade de uma interferncia psicossocial com outro
referencial terico-metodolgico de grande utilidade. Mais afeito a ambientes
desse tipo, onde campeia o pensamento grupal e um profcuo inconsciente coletivo,
a teoria das representaes sociais uma categoria cientfica chancelada por
inmeros trabalhos em que tem sido aplicada, fazendo rastreios em diversos
campos do conhecimento como alguns dos exemplos que sero citados mais a frente.
A intromisso, agora, preciso esclarecer, no no campo do arquiteto ou da
arquitetura. Trata-se de um vetor que se introduz justamente no vazio em que o
conhecimento arquitetnico no transita com clareza, como o caso do ambiente
das relaes sociais. Justifica-se, ento, a sua utilizao, pela natureza dos
fenmenos que existem meio que veladas no ambiente da arquitetura, como ser
mostrada, a partir do pensamento de conhecidos e respeitados arquitetos.
A moradia, quando ocupada normalmente, um repositrio de vida; salta aos
olhos o imvel como coisa viva, possuda de valor e encantamento. Esta
constatao banal faz ressaltar imediatamente a importncia do uso na arquitetura,
que se afirma como um atributo fundamental que deve ser observado atentamente
em suas aparncias e transcendncias funcionais.
21
Compreendido seu destaque, entende-se, conseqentemente, que sua
importncia est no papel que representa, ao mesmo tempo, como elo que junta
sujeito e objeto; e como a cadeia que garante inseparabilidade destes elementos.
Morador e moradia, entre trocas variadas, anseios, dilemas e contradies, do vida
moradia. Esta relao, todavia, no se d a frio, mas sob forte tenso social, que
lgica numa comunidade de vizinhana que disputa espaos e interesses, divide
sentimentos e convive com gostos e desejos, muitas vezes, contraditrios. Este
cenrio refora a necessidade de se procurar uma chave apropriada para abrir
portas e subtrair vus emaranhados de elementos que so gerados individualmente,
testados coletivamente e transformados socialmente at se constiturem em
consenso grupal inconsciente.
A Arquitetura e, eventualmente a habitao, no se enquadra nas categorias
de artes visuais ou artes plsticas. Porm, de maneira autnoma, arte, como a
msica ou a poesia, que tem sustentao prpria. Arquitetura confundida, algumas
vezes e erradamente, com a escultura, sobremodo nos monumentos urbanos
comemorativos em praas pblicas. Mas no deveria, porque o atributo, que sua raiz
essencial, privativa e exclusiva, o seu uso.
O uso, porm, no tudo, mas deve ser atendido nas funes primeiramente,
e depois, cabe ser transcendido, para que a arquitetura ocupe seu espao no lugar
consagrado s artes.
Ademais, arquitetura tem ainda outros atributos como espao, matria, lugar,
tecnologia e outras especificidades que podem at ser objeto de discusso, mas o
uso, seja objetivo ou simblico, que a diferencia de outras manifestaes artsticas.
Arquitetura, como habitao de interesse social, tanto mais arte ser quanto
mais souber enobrecer-se por um uso adequado pela expresso. No lcito negar
habitao de natureza social uma condio de arquitetura superior. Por simples e
econmica que seja, a habitao de interesse social pode e deve, num uso intenso,
revelar-se como objeto exemplar, a partir da sua racionalidade, da sua forma, dos
seus arranjos, economicidade e outros fatores. O conjunto Pedregulhos, de Afonso
Reidy, no Rio de Janeiro, respeitado internacionalmente como exemplo de
arquitetura habitacional e como obra de arte (FIGURA 2.1).
22
Figura 2.1- Afonso Reidy. Conjunto de Pedregulhos. Fonte: Habitao e encosta. IPT, 1981. Disponvel em
http://www.arq.ufsc.br/~soniaa/arq1206/2003/luciana/ ApresHabitacaoEncosta.pdf.
No ambiente multifamiliar da habitao de interesse social, a arquitetura se
desdobra, os limites oramentrios so estreitos e os espaos privados so
geralmente exguos. A sada tradicional, ou a nica, tem sido a valorizao dos
espaos coletivos e o incremento, tanto quanto possvel, das reas privadas, porm,
sem construo, como quintais e jardins, por exemplo.
Em conjuntos habitacionais com um ano ou mais de implantados, pode-se
registrar exemplos de apropriaes irregulares de espaos pblicos e interferncias
fsicas nas moradias e em logradouros coletivos; so observaes at comuns. Que
razes levam esses moradores a estas intervenes? O que os motiva? No
passado, os projetistas e as instituies estavam de costas para seus muturios;
predominava a tecnocracia1 do BNH. Porm, no novo sistema nacional de habitao
de interesse social, a preocupao primeira est no conforto do usurio. Acontece
que os conjuntos projetados atualmente, muitos deles pelo menos, sofrem do
mesmo mal. Modificao de paredes, espaos, funes e cores so objeto de
interferncias quase correntes.
Mas o que pode estar levando a isto que incomoda a projetistas e estudiosos?
As consideraes so diversas.
1 Tecnocracia, segundo o Dicionrio Houaiss (2001): sistema de organizao poltica e social fundado na
supremacia dos tcnicos.
23
O significado de intimidade, por exemplo um dos atributos caractersticos da
habitao nunca dado a conhecer claramente; necessrio procur-lo, indo
alm dos comportamentos e das palavras, ambos sempre codificados. No contexto
domstico da habitao contempornea, como anuncia a teoria das representaes
sociais, no inconsciente coletivo que se reviver, como sugere o arquiteto Ranun
(1991), gestos, preces e sonhos, j que o indivduo associou determinados espaos
e certos objetos a seu ser, quer dizer, no intimo do seu ser (p.211).
Por outro lado, o fator tempo, aparentemente externo ao contexto, se mostra
presente, j que as elaboraes no nascem e no se consolidam imediatamente.
H que haver a passagem do tempo para que a suavidade vena as tenes e
possibilite as elaboraes mentais. Desta forma, prossegue Ranun:
A lembrana-espao, [...] o jardim, a lembrana-objeto so muito particulares, todavia seu sentido, que codificado para olhos externos, perfeitamente compreensvel para o grupo a que pertence, O social dotou de potencialidades tais lugares e objetos (op. cit. 1991, p.211).
Assim, o tempo, como fator relativista da convivncia social no habitar refaz o
sentido do ntimo, transformando-o e, ao mesmo temo, permitindo a impregnao da
matria com elementos energticos das tenses, alterando o significado dos lugares
fsicos.
A habitao, dessa maneira, por mais banal que seja, podendo ser o menor
dos espaos arquitetnicos, a que tem maior carga de significados. H, como
visto, uma relao dialtica entre os moradores e suas moradias que, deste modo,
se influenciam mutuamente. Tanto o sujeito influencia a habitao como
influenciado por ela. O morador a alma da moradia e tem o poder de transform-la,
alterando seus elementos constitutivos; mas igualmente influenciado e afetado
pelos ambientes, paredes, cores e tudo o mais. A relao ambivalente.
Por conta disto, a casa desocupada (sem o morador) no passa de uma obra
construda. Muitos autores como Hertzberger (1996), Bachelard (1989), Okamoto
(2002), Tuan (1983), Rybczynski (1996) e Ranum (1991) crem numa relao
intercambivel entre morador e moradia a qual, apesar de ser uma obra material,
troca impulsos e energias e chega a afetar o comportamento humano.
24
De acordo com Tuan (1983), este fenmeno a relao intercambivel entre
sujeito e objeto uma transcendncia das questes funcionais e materiais que
decorre da unicidade que se forma na prtica, na experincia cotidiana do uso da
habitao, com influncias recprocas entre homem, a famlia, os vizinhos e o
espao de morar.
J o arquiteto Okamoto2 (2002) tem a opinio radical de que o ser humano
o complemento inalienvel da moradia, a qual no passaria de mera construo se
estiver desocupada. Sem o m orador, a moradia no existe como tal; um homem
sem um brao ainda um homem; mas um brao s, sem o corpo, no constitui um
homem. Assim, o homem ele mesmo sem a moradia, mas a moradia no existe
sem sua ocupao. Eis aqui aflorando, a velha inseparabilidade dialtica do modelo
sinptico proposto. A construo projetada para morar, s moradia depois de
ocupada. Alis, esta idia desenvolvida por Fabrcio (2002), que defende a idia
do projeto arquitetnico como um processo contnuo, de natureza tambm social,
que s acaba com a ps-ocupao e a organizao comunitria.
Cabe destacar que nesta relao tipicamente dialtica vai ocorrendo um
esmaecimento dos contornos das imagens e dos significados que flutuam no campo
das discusses e do pensamento, decorrendo que, naturalmente e aos poucos, vai
se dando um distanciamento gradativo entre a razo do sujeito na relao e a leitura
que ele faz do objeto, como uma perda de foco da retina. Este descolamento visual
e mental provoca a transformao das imagens anteriores, assim como respectivos
significados, em novas imagens e outros significados. O envelhecimento e a
banalizao comportamental no uso parecem afastar dos seres humanos o
reconhecimento claro do objeto com que trocam emoes e sentido; tenses se
intensificam, at pela disputa de espao fsico, doando moradia mais atributos e
significados, tornando-a, aos olhos do homem, um objeto especial, mutante e
diferente daquele que percebido por pessoas fora do contexto.
Na habitao, qualquer que seja, h muitos aspectos que no conjunto, tornam-
se uma massa complexa. Espacialidade, lugar, funcionalidade, domesticidade,
2 Okamoto (2002, p.166-167) refere-se a vrios estudos a respeito de interpretaes culturais sobre os espaos
entre as pessoas, noes de territrio, etc., chegando obra de Deasy (1985) que estabelece as bases da teoria
proxmica, segundo a qual, o homem tem necessidades de quatro categorias de espao territorial ou limites de
proximidade: intimo, pessoal, social e pblico.
25
identidade, segurana, privacidade, conforto, dentre outros, so atributos que,
envolvidos por grupos de vizinhana, com eventuais interesses contrrios, emoes,
disputas, etc., formatam cenrios inatingveis para um observador externo. Esses
atributos vo gerar nexos especficos numa comunidade de habitao multifamiliar.
Desta maneira, matria, movimento e energia se digladiam e se adaptam, formando
massas-imagens que se distanciam da realidade aparente.
Comeam a se diferenciar, realidade e verdadeiro. O resultado que a
moradia acaba sendo vista pelos seus moradores atravs de um vidro canelado,
uma viso real, mas deturpada, como uma representao. A habitao complexa,
principalmente porque quase nunca real, um smbolo dotado de imagem
construda num dado espao concreto.
Morar pressupe, antes de tudo, a existncia de um espao construdo ou
aproveitado para tal finalidade. A histria do homem , tambm, a da moradia.
Destarte, cada palavra para designar o morar, pode demandar vrios pontos de
vista. O morar dinmico, o exerccio e o experimento humano o uso. Esta
dinamicidade inclui, necessariamente, funes variadas e valoradas que se
desdobram em muitas outras. O lcus desse exerccio, em princpio, o espao
geomtrico vai perdendo sua natureza de espao comum, banal, dimensional, para
transformar-se em espao com qualidades.
Tuan (1997) chama ateno para a relao dialtica que h entre espao e
lugar. Em sua opinio, a experincia do homem no uso do espao lhe confere
qualidades e significaes que o eleva a outras categorias. Assim, o espao
arquitetnico pode transformar-se em lugar. Alis, ainda segundo Tuan, noes de
espao, lugar e ambiente, por ntimos que sejam, no podem ser esclarecidos ou
definidos em separado. Com os pensamentos convergentes de Graeff (1986) e Tuan
(1977), lcito concluir que lugar arquitetnico um espao animado3 e por isso,
enriquecido de significados. H lugares por toda a natureza, mas h os que so
produzidos especialmente pela presena e ao do homem. Assim, existe o lugar do
trabalho, do lazer e, claro, o de mora. Elvan Silva (1994), mais radical, conceitua a
3 A diferenciao ou a categorizao como objeto da arquitetura se justifica para se evitar confuses semnticas ou conceitual, j que h outras vises, outros tipos de espao, como o espao da poesia, propsito por Bachelard (1983).
26
arquitetura como sendo construo de lugares e ambientes, e que espao, no
sequer, a sua essncia, e sim o material trabalhado, mesmo quando o espao neste
envolvimento seja o fator a diferenciar os lugares. Silva no est considerando
explicitamente a ocorrncia do uso, mas o est sim, se o conceito de ambiente
estiver envolvendo a participao do homem.
Tuan (1997) defende a idia de que a casa, como objeto construdo pelo
homem, pode aperfeioar a sensao e a percepo humana. Argumenta que
claro que em situao de espao no arquitetnico, o ser humano capaz de
distinguir diferenas entre interior e exterior; fechado x aberto; luz x escurido;
privado e pblico. Mas este tipo de conhecimento rudimentar. O espao
arquitetnico mesmo sendo uma simples choa rodeada por uma clareira pode
definir estas sensaes e transform-las em algo concreto. Uma simples moradia
pode ser um smbolo do cosmos (TUAN, 1997, p.114).
Por conta dessas consideraes, aceitvel ver o espao como entidade
ativa, no passiva, como sendo algo mais do que uma entidade inerte, imune
interveno do homem. O espao habitado no pode ser s um simples amontoado
de vazios entre paredes, teto, etc. Razes, incompreenses e contradies do
drama humano se desenvolvem no cotidiano; emoes digladiam-se e magnetizam
esses vazios deixando-os cheios de tenso. Por fim, a matria que aparentemente
cerceia esses espaos, que os reprime, tambm, mais um plasma a contribuir para
que a moradia seja transcendente a categorias geomtricas e materiais. O espao
da moradia vibra noutra dimenso, vivo e imanente a influenciar comportamentos4.
Wiltold Rybczynski (1996) em sua obra Casa, pequena histria de uma idia,
descreve detalhadamente, desde a antigidade, como noes e termos de clara
significao atual, como isolamento, propriedade, proteo, intimidade, privacidade,
conforto, aconchego, funcionalidade, etc. demoraram sculos a se revestires dos
sentidos como os conhecemos hoje.
Por sua vez, Bachelard (1993) afirma que a casa
4 Por exemplo, do senso comum o fato de que h real influncia das cores dos ambientes no humor e comportamento dos indivduos.
27
[...] uma das maiores foras de integrao para os pensamentos, as lembranas e os sonhos do homem [...] O passado, o presente e o futuro do casa dinamismos diferentes, que no raro interferem no comportamento.[...] (p.26).
Deste modo, mais um que vem se juntar idia da casa como
transcendente objeto que ultrapassa sua funcionalidade e materialidade. Ele
considera
[...] a casa, na vida do homem, uma entidade que afasta contingncias e multiplica seus conselhos de continuidade. [e conclui] Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela como um templo e a imagem do universo. (BACHELARD, 1993, p.26)
O autor defende que os componentes da moradia so como estados da alma,
onde seus compartimentos tm significados diversos e podem ser aspectos da
personalidade humana, ou o contrrio. Com isto reconhece a influncia do espao e
da matria sobre o comportamento humano. Em seguimento, ele salienta a situao
de habitada, onde a personalidade da habitao dada pela sua relao com o
morador5. Contudo, esta relao no se d a frio: h trocas e influncias mtuas:
Veremos a imaginao construir paredes com sombras impalpveis, reconfortar-se com iluses de proteo ou inversamente, tremer atrs de grossos muros [...] Em suma, na mais interminvel das dialticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo (BACHELARD, 1993, p.25).
A casa, a moradia, tambm um smbolo feminino, com o sentido de refgio,
de proteo materna, ou o repouso do guerreiro, no dizer popular, e dentro da
moradia que os sujeitos se despem, mostram, se tornam ntimos e se aliviam das
tenses externas, substituindo papis que desempenham na vida l fora, por outro,
no interior da habitao, na vida domstica e no convvio do grupo de vizinhana.
No deixa de ser oportuno mencionar que estes argumentos reforam claramente a
idia de segurana como o sentido da moradia segundo seus moradores.
O depoimento de Bachelard um argumento valoroso e definitivo para
demonstrar a complexidade do ambiente subjetivo e envolto em vus de baixa
transparncia e difcil viso, cenrio invisvel para o arquiteto projetista, reafirmando
a necessidade de um ferramental afeito s questes de natureza social a socorrerem
na elucidao procurada.
5 mais um depoimento favorvel importncia do modelo sinptico e viso dialtica.
28
Casa, moradia, habitao, apartamento e outras expresses so palavras que
servem para designar uma mesma coisa: o local de morar. Poder-se-ia ainda inserir
neste conjunto, lxicos como lar, domiclio, residncia e, qui, outros mais, fazendo
uma lista muito longa. Dicionrios consultados, Houaiss (2001), Nascentes (1988) e
Ferreira (1980), basicamente, definem esses termos como meros sinnimos6, uns
remetendo aos outros e referindo-se expresso casa, preferencialmente como o
edifcio, espao ou construo destinado habitao. O fato que tal polissemia
irrelevante, pois todos sabem com preciso, sem maiores retricos, que trata-se, a
moradia, do objeto feito para morar. Mostra apenas o quanto de complexa pode vir a
ser esse objeto.
Poderia o lxico remeter imaginao de condies variadas como de
estrutura fsica e material da habitao, salientando paredes, divisrias, instalaes,
teto. Ou pensar nas caractersticas de natureza funcional, como dormir, comer,
cozinhar, que embutem a, a ao do homem, o prprio ato de morar, o uso da
habitao. E em outros ainda, aspectos de natureza subjetiva como idias de
conforto, segurana, privacidade, convivncia e at significados csmicos, etc. Le
Corbusier ao observar a casa simplria de um pescador, manifestou-se com
eloqncia:
[...] construda na sua verdade absoluta incontestvel, meus olhos, um dia mergulhados na arquitetura, no fato arquitetnico eterno, descobriram-na subitamente. Esta casa, disse a mim mesmo, um palcio! (LE CORBUSIER, 2004, p.161).
Na verdade, conforme foi visto, parece ser imprprio supor que esses termos,
casa, moradia, etc., possuam significados importantes independentes do sentido
comum constante em todos que o seu papel fundamental de objeto de morar, nem
mais nem menos. Parece pacfico, no entanto, de que esta concluso no reduz a
complexidade do objeto na medida em que traz no seu uso, a relao com seus
proprietrios (objeto e sujeitos relacionados).
Depois dessas consideraes, no fica difcil imaginar porque a moradia
parece ser o objeto material maior do desejo humano, pelo menos na cultura
ocidental, e nem deve causar surpresa, o fato de compreender-se o termo
6 Casa, principalmente, alm da conotao aqui atribuda, tem muitos outros significados semnticos, como casa da famlia real, Casa de Leis, etc. que no interessam ao escopo deste trabalho.
29
segurana como um estado de esprito decorrente da satisfao pela propriedade da
moradia.
2.2. Conceito de habitao de interesse social
Nos idos do Banco Nacional da Habitao (BNH), a expresso habitao
popular tinha um significado claro e restrito, uma conotao exclusiva. Tratava-se de
programa do sistema para atender famlias na faixa de renda entre 0 e 3 salrios
mnimos (SM) intervalo que mais tarde foi aumentado para 0 a 5 SM. Era um
segmento cuja responsabilidade de cadastramento da demanda, comercializao,
assistncia social, construo e cobrana das prestaes pertencia s COHABs,
que operavam com a aprovao de projetos e viabilizavam os emprstimos
efetuados diretamente do BNH. No caso do Par, pelo menos, a parte destinada
infra-estrutura urbana (cerca de 30% do total do projeto) era repassada para o
governo do estado que assumia a dvida. Eram custos que no entravam na
composio do preo da casa, sendo, portanto, subsdios.
Depois da era BNH, a partir de 1986, o setor habitacional ficou praticamente
parado em torno de dez anos; depois, outros tantos programas foram implantados,
porm, nenhum teve a importncia daquele, pelo grande saldo de habitaes
construdas, variedade de tipologias, configuraes e complexidade de estruturao
formal. De modo geral, os que se sucederam depois, seguiram mais ou menos a
mesma poltica, repetindo frmulas semelhantes e sem maiores reflexes.
No sistema atual, a poltica nacional de habitao foi revista em profundidade
e trabalha agora com a expresso habitao de interesse social, que contempla um
universo de renda familiar bem mais amplo do que a classe de 0 a 3 SM. Seu
conceito pode ser fixado por dois vetores:
a) inclui habitaes que sofrem de uma ou mais carncias relativamente
localizao inadequada ou de risco; baixa qualidade construtiva; ausncia ou
baixa freqncia de coleta de lixo e de transporte pblico; falta de
saneamento bsico; e
30
b) trata-se de habitao construda ou projetada cujo valor no ultrapasse
R$35.000,00 (100 SM)7 (BRASIL, 2005).
Com isto, o governo reconheceu que h necessidade de atender demandas
situadas alm das classes de renda mais baixas, considerando que existem muitas
famlias que tm ganhos acima desse patamar mas que tm mltiplas carncias
como as acima mencionadas, e que fazem jus s vantagens oferecidas nos
programas de habitao de interesse social por se enquadrarem no seu conceito.
Assim, a poltica nacional de habitao de interesse social introduz uma viso
menos restritiva da demanda, aceitando faixas de renda que chegam a 20 SM. A
atual poltica se esfora para reduzir os dficits habitacionais das camadas mais
pobres, mas igualmente contempla faixas de renda mais elevadas, como o caso de
funcionrios pblicos estaduais, por exemplo.
A prioridade do novo sistema continuava sendo para atendimento da faixa de
0 a 3 SM, que foi ampliada recentemente para at 5 SM, pois neste intervalo que
ainda se concentra fortemente o dficit habitacional. Recentemente o presidente do
Instituto de Pesquisa Econmica Aplicada do Ministrio do Planejamento (IPEA) d
conta de que os investimentos nas faixas de at 5 SM tm sido liberados aqum da
respectiva demanda. provvel que o governo ainda no tenha encontrado um
adequado sistema de subsdios e soluo exeqvel para atender, com
sustentabilidade, a essa populao (IBAM,8 2006).
Segundo a Fundao Joo Pinheiro (FJP, 2005), com a retomada das
operaes oficiais, o dficit habitacional bsico em Belm, era de 73.977 unidades;
deste montante, cerca de 58.000 unidades (78,40%), correspondiam classe de
renda entre 0 a 3 SM. Para faixas acima desse patamar, at 10 SM, a demanda era
bem menor, 15.977 moradias (21,60%), mas ainda um dficit considervel que,
tambm, mereceu ateno do governo. Nesta classe, que est longe de ser de
famlias ricas, justamente onde se encontram funcionrios pblicos da rede
estadual e municipal e professores do segundo grau, justamente o universo para o
7 R$35.000,00. Valor fixado pela Medida Provisria n. 252, de 15/06/2005 que alterou o valor anterior que era de R$20.000,00 (BRASIL, 2003 apud IBAM, 2006).
8 IBAM: Instituto Brasileiro de Administrao Municipal. Rio de Janeiro.
31
qual se destinaram prioritariamente os projetos Residencial Xavante II e Residencial
Jaan.
2.3. Poltica Nacional de Habitao de Interesse Social
At o BNH, em 1964, os empreendimentos habitacionais para as classes
baixas no eram aes de governo e a produo de habitao pobre flutuava
segundo os interesses da iniciativa privada. A Casa Popular foi exceo, mas de
atuao tmida; por aqui nunca se apresentou. Os empreendimentos dos Institutos
de Aposentadoria e Penses (IAP), tinham um horizonte de atendimento muito
diversificado; acudiam diversas categorias profissionais e operavam em faixas de
renda baixa, mdia e alta, porm, tambm produziram quantidades inexpressivas
diante dos milhes de moradias realizadas posteriormente pelo BNH.
Nada provm do nada. Para a construo do atual sistema nacional de
habitao de interesse social, geraes lutaram, na academia e nas organizaes
da sociedade civil, criticando e propondo, cujo ponto alto, parece, foi o seminrio
promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) em 1963, na cidade de
Petrpolis, Rio de Janeiro, num evento que ficou conhecido como HABITAT I.
Com o golpe militar de 1964, foi criado o BNH e o Sistema Financeiro da
Habitao (SFH) que no comeo abraavam os princpios do HABITAT I, mas em
pouco tempo, interesses externos questo mudaram o rumo do sistema, que
passou a preocupar-se mais com a quantidade do que com a qualidade, e assim foi
at sua falncia, com o fechamento do banco em 1986.
Depois dos militares, outros programas se seguiram mas mantiveram, em
linhas gerais, as mesmas preocupaes bsicas do sistema anterior, sem, todavia, e
apesar das crticas, puderem se comparar quele, tamanho foram nmeros
deixados. As demais iniciativas oficiais, passando por Sarney, Collor, Itamar e
Fernando Henrique, no se interessaram seriamente em comprometer-se com a
questo habitacional e por isso, todos eles, geraram programas pfios e sem
expresso e foram apenas lances episdicos e tentativas desarticuladas sem
maiores conseqncias ou comprometimentos.
32
Alguns aspectos das diversas fases da habitao oficial foram muito
criticados, e o governo Lula tem tratado de no reedit-los, reorganizando um novo
sistema. O ponto mais negativo dos empreendimentos passados se concentrava no
entendimento de que grandes conjuntos representavam uma produo em escala,
mais ligeira e, portanto, com maiores dividendos polticos.
Entretanto, uma produo macia (conjuntos com mil ou mais unidades) s
eram viveis em stios afastados dos centros dinmicos da cidade, longe dos
empregos e sem muito de infra-estrutura, onde os terrenos eram mais baratos, pela
distncia e pelo tamanho.
O quadro era to mais srio, porquanto, as negociaes para a viabilizao
dos empreendimentos no levavam em conta os interesses dos municpios no
caso daqui, Ananindeua, que foi onde se mais construiu no Par e os prefeitos
relutavam em aceitar os novos conjuntos, porque, em curto prazo, representavam
grandes demandas por servios pblicos para os quais no estavam preparados,
mesmo sabendo que tempos depois, uma vez organizados, os novos cidados
contribuiriam com impostos.
Embora estes conjuntos tenham se transformado em verdadeiras cidades
depois de tanto tempo, de se registrar que os moradores que se mudaram para
esses endereos novos, h 20 anos ou mais, foram hericos pioneiros. Esta
mudana de endereo, alis, apesar dos sacrifcios que significaram no incio, uma
constatao clara de que, na viso do muturio, o sonho da casa prpria estava se
realizando, e que valia, por conseguinte, qualquer esforo. Isto destacvel por ser
um reforo ao argumento que explica o sentido da moradia embutido no termo
segurana, que foi encontrado aqui, no estudo das representaes sociais.
Com a extino do BNH em 1986, ainda decorreriam mais de 10 anos para
que a chamada nova repblica (depois dos militares) redefinisse com clareza novos
rumos para o setor. Nos governos de Collor e Fernando Henrique, como j foi dito,
algumas experincias isoladas foram postas em prtica, mas nenhuma sequer teve
a inteno de ser um sistema realmente prioritrio e ficaram longe da dimenso
estratgica e importncia que teve o sistema BNH.
33
Neste hiato e depois, contudo, as camadas mais pobres continuavam sem
capacidade de assumir os programas oferecidos, a no ser os do tipo lotes
urbanizados, que nunca deixaram de existir, mais para, eventualmente regularizar
invases e abafar algum movimento pontual com repercusses polticas.
Vale lembrar que em outubro de 1988, dois anos apenas do fechamento do
BNH, foi elaborada a nova Constituio Federal, um documento considerado por
muitos como avanado para a poca, pois que j trazia no bojo, nos seus artigos
1829 e 183, destaque especial para a questo urbana e seu principal instrumento, os
planos diretores urbanos, e aspectos da propriedade e da ocupao urbana, onde,
implicitamente, esto envolvidos os problemas da habitao de interesse social
(BRASIL, 1988).
Todavia, no que pese as obrigatoriedades institudas na Constituio, nada se
fez no curto prazo para desenvolver polticas ou as leis complementares necessrias
a dar provimento aos desejos constitucionais. S no governo Lula, em 2001, 13 anos
depois, foram regulamentados os referidos artigos da Constituio, atravs da Lei n.
10.257, conhecida como o Estatuto da Cidade10 (BRASIL, 2001) e, mais adiante, em
2005, foi criada a estrutura organizacional e operativa do novo sistema, o qual
tratava da cidade, como o grande foco e a habitao de interesse social como um
subsistema do primeiro. Vale considerar que a inseparabilidade do urbano e da
habitao j traz, no mago, a viso dialtica da sociedade que rene aspectos que
no poderiam ter sido separados nunca.
Segundo (BRASIL, 2005), a nova estrutura estabelecida para conduzir a
poltica habitacional de interesse social no pas foi criada pela Lei n. 11.124, de 16
de junho de 2005. Com ela so constitudos o Sistema Nacional de Habitao de
Interesse Social (SNHIS); o Fundo Nacional de Habitao de Interesse Social
(FNHIS) e o Conselho Gestor do FNHIS (Quadro 2.1).
9 Art. 182: atribui funo social propriedade privada de terra na cidade e cria instrumentos de
desapropriao em favor da aplicao de polticas urbanas e o Art. 183 garante o ttulo de domnio e concesso de uso a ocupantes moradores em terrenos com at 250m
2 e por mais de cinco anos.
10 Lei complementar n. 10.257 de 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituio Federal de 1988.
34
Quadro 2.1 - Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social.
Em termos executivos e operacionais, o comando est no Ministrio das
Cidades, que tem seu ncleo pensante na Secretaria Nacional da Habitao (SNH);
como agente operador, a Caixa Econmica Federal (CEF) e podero contratar
operaes, os mais diversos rgos, dos governos estaduais e municipais. Tambm,
outras organizaes da sociedade civil como, cooperativas, associaes e at
agentes financeiros, desde que autorizados pelo Conselho Monetrio Nacional,
podero atuar. Na conformao geral, a atualidade assemelha-se com o sistema
BNH, onde vrias organizaes tinham papel estabelecido e financiavam imveis
atuando em diversos patamares de renda familiar.
Cabe destacar que o ncleo pensante da habitao de interesse social, quase
perdido com a extino do BNH, foi entregue Secretaria Nacional de Habitao
(SNH), que ficou responsvel pela formulao dos instrumentos, para a implementao
da poltica nacional de habitao. o ncleo que reflete acerca do sistema e prope
estratgias para equacionamento dos dficits habitacionais dentro de uma viso
articuladora das polticas urbana, fundiria e de saneamento (QUADRO 2.2).
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Quadro 2.2 - Sistema Nacional de Habitao de Interesse Social.
Complementam o FNHIS j mencionado, recursos originrios do Fundo de
Amparo dos Trabalhadores (FAT) e do FGTS, alm de outros que vierem a ser
formados ou designados.
Vale ainda destacar oito aspectos principais que vm traar o entendimento
do governo e sua poltica habitacional, conforme est contido no citado diploma
legal:
i talvez, a caracterstica notvel no SNHIS esteja em sua inteno explcita de
ser aberto participao da sociedade civil, que faz sua insero atravs do
Conselho das Cidades e outros tantos;
ii dos mais importantes aspectos a exigncia operacional e projetual de se
compatibilizar as polticas setoriais, sobretudo habitao, saneamento e
transporte;
iii nos projetos para as faixas de menor renda, esto previstos subsdios11;
iv os recursos disponveis se destinaro, prioritariamente, para as classes de
menor renda;
v buscar espaos inseridos na malha urbana dotados de infra-estrutura no
utilizada ou sub-utilizada;
vi priorizar terrenos de propriedade do poder pblico;
11
No sistema BNH, embora no assim abertamente, tambm havia subsdios, pois os custos com a infra-estrutura urbanstica no eram repassados para os muturios e ficavam sendo de responsabilidade do governo do estado. Tais custos ficavam em torno de 25% e 30%.
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vii garantir sustentabilidade econmica, financeira e social dos
empreendimentos; e
viii implantar a sistematizao de avaliaes dos empreendimentos.
Dessa base legal institucional resultam alguns corolrios que merecem ser
comentados, at porque j vm sendo contemplados em empreendimentos
recentes.
No mais concebvel a implantao de conjuntos habitacionais fora do
permetro urbano e estranho ao seu entorno salvo casos especiais em rea
rural;
Em conseqncia, os empreendimentos sero implantados no meio urbano,
buscando-se terrenos em vazios ainda disponveis e miolos de quadra;
Os projetos devem maximizar seu componente racional buscando o melhor
partido, a melhor distribuio, e mxima economicidade;
Os empreendimentos devem se localizar em situao contemplada por todos
os servios pblicos que a cidade tradicional oferece;
Os empreendimentos devem ser contextualizados, inseridos naturalmente na
malha sem interferir na paisagem urbana existente, ser visto como parte
natural desta;
Os espaos coletivos devem ter, todos, uma definio funcional clara, no
sendo aceitas reas residuais, que tendem ao baldio e ao ajuntamento de
lixo, seja em ambientes internos ou externos;
desejvel prever reas de verdes para o lazer adulto e espao para
crianas, propiciando a aproximao da vizinhana e ao convvio social;
Em empreendimentos com unidades de 1, 2 ou 3 dormitrios, evitar a
possibilidade de segregao por nvel de renda; as unidades maiores e
menores devem se misturar, tanto quanto possvel, sendo inaceitvel, blocos
com apenas um tipo de unidade, o que levaria fatalmente ao separatismo
odioso; e
37
Para evitar interferncia que descaracterize o entorno, os empreendimentos
tero poucas unidades, em torno de 50 a 100 unidades.
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3 METODOLOGIA
3.1. Uma viso de mundo
Enquanto, na mecnica clssica, as propriedades e o comportamento das partes determinam as propriedades e o comportamento do todo, a situao na mecnica quntica inversa; o todo que determina o comportamento das partes (CAPRA, 1983).
A compreenso do que est institudo, como Habitao de Interesse Social
(HIS), a carga simblica com que seu morador define seu ambiente de moradia
como um todo vem sendo melhor conceituada em seus detalhes a partir da
utilizao de ferramental avaliador de base cientfica, que transcende simples
avaliao objetiva e o comportamento consciente dos sujeitos dando um salto ao
inconsciente coletivo12. Este ferramental leva em considerao o saber do senso
comum, que permite a que se entenda o contedo sociolgico nos grupos em volta
do ambiente estudado.
A opo por esta teoria se deve sua natureza dialtica que permite obter
conhecimento da realidade que normalmente codificada ou representada pelo
grupo de moradores que tem, como hiptese intrnseca, um saber coletivo do senso
comum que constri inconscientemente e subjacente s suas interatividades as
representaes sociais, que de modo simples, podem ser entendidas como o
smbolo consensual da moradia ou o sentido da moradia que a comunidade elabora,
uma viso exclusiva por resultar de uma trama social nica envolvendo o convvio
em vizinhana.
Por conta disto, este item aqui ocupa seu lugar como resultado de estudos na
direo de compreenso elementar da teoria das representaes sociais. Como
necessidade imperiosa, imps-se uma reviso epistemolgica para uma clarificao
satisfatria de conceitos fundamentais que do sustentao teoria, comeando por
12
O inconsciente coletivo um conceito de Jung, que nasce da equivalncia do conceito originrio, inconsciente individual ou Id, parte da mente que vive submersa ao consciente ou ego, o lado da mente que aparece, porm influenciado pelo primeiro e forado a codificar suas percepes, seja em sonhos ou comportamento, como foi descoberto e desenvolvido anteriormente por Freud, do qual Jung era inicialmente discpulo e depois divergente (JUNG, 1980).
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questes bsicas como as que tratam das relaes sujeito-objeto; a construo do
conhecimento como processo; e a relativizao e racionalidades diferenciadas do
saber.
A base de sustentao da teoria da representao social est, sobretudo, na
dialtica, mtodo cientfico de anlise da realidade defendida em diversas correntes
filosficas e empregada por pensadores como Bachellard (1993), Heigel (apud
POLITZER, 1997) Marx (2006), Sandra Jovchelovitch (2000), Politzer (1970),
Richardson (1999), Okamoto (2002), Hessen (2000) e Souza (2006). Esta explicao
necessria, segundo Richardson (1999) que adverte para que as diversas reas
do conhecimento humano em trabalhos cientficos estejam sempre ligadas e
comprometidas com fundamentos filosficos, sendo recomendado que no se pode
pensar em utilizar um mtodo de avaliao para a obra arquitetnica sem considerar
sua sustentao epistemolgica, mormente em se tratando de consideraes
nascidas na psicossociologia, portanto, fora da teoria da arquitetura.
Em fins do sculo XIX reinava absoluta, uma imagem do universo que era
sustentada pela mecnica de Newton e a lgica cartesiana. At ento o mundo era
visto como uma grande engrenagem cujo movimento tinha lgica prpria,
independente, e que regulava tudo. A conscincia, os seres humanos e a
inteligncia criativa seriam subprodutos acidentais merc do movimento material.
Em termos epistemolgicos, o sujeito (o homem) estava sempre separado do objeto
(as coisas) (OKAMOTO, 2002).
Foi quando se deu o acontecimento de profundas transformaes13 no
pensamento, em meados do sculo XIX e princpios do sculo XX. na dialtica de
Hegel, reeditada por Marx e Engels e nas teorias da fsica que se vai encontrar esse
divisor de guas, com a teoria da relatividade de Albert Einstein enunciada em 1903.
Posteriormente, ainda no sculo XX, a teoria da fsica quntica (CAPRA, 1983) vem
corroborar as mudanas que se processavam no pensamento. Foram diversas as
resultantes em todos os campos do conhecimento, mas a transformao
epistemolgica mais importante dessas mudanas foi que, sujeito e objeto,
13
O termo dialtica veio de Herclito que viveu no sculo VI a.C. Herclito ensinou que tudo est em transformao, num total processo de mudana constante. J em Scrates, a dialtica era usada como mtodo de ensino para descobrir as contradies do pensamento, provocando no discpulo a ecloso do conhecimento a maiutica (SOUZA, 2006).
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passaram, definitivamente a ter um s corpo sob a observao cientfica de um
determinado fenmeno. A realidade vista assim, passa a oferecer vises e estados
fsicos ou simblicos diferenciados e at conflitantes, sem que esta seja rompida,
como os estados da gua, que pode ser encontrada sob a forma-aparncia de
lquido, gelo e o vapor, situaes que no mudam sua essncia que o composto
qumico H2O; patro e empregado, apenas dois aspectos de uma relao de
trabalho numa produo qualquer; e, em arquitetura, interior e exterior, aspectos do
mesmo objeto arquitetnico.
O que h, no entendimento dialtico, dentre outras caractersticas,
identificar sujeito e objeto, num dado fenmeno, social, animal, geogrfico, etc., com
aspectos variados durante um tempo mudando as feies sem aviso, sem que a
realidade em volte seja alterada ou rompida. Vises simultneas num mesmo evento
ou fenmeno podem conviver em aparente contradio. Cabe destacar por fim, que
nas relaes entre objeto e sujeito o primeiro no mais uma entidade meramente
passiva; ele atua, influencia e at muda comportamentos do sujeito.
A relao sujeito-objeto sempre foi uma questo central da filosofia. Pode-se
encontrar, cronologicamente, na Histria:
a) a primazia do sujeito, que conforma e determina a si mesmo;
b) a autonomia do objeto, existente independentemente do sujeito;
c) a relao dualista sujeito-objeto, como sendo dois plos independentes, mas
que se relacionam;
d) a relao dialtica, onde, dadas certas condies, sujeito e objeto trocam
foras e se transformam, mas so inseparveis; e
e) o paradigma holstico, que semelhantemente dialtica, no aceita separar
sujeito e objeto (CERQUEIRA FILHO, 1999); a realidade totalizada e
inseparvel. Holismo e dialtica so formas filosficas diferentes, porm,
ambas compreendem o universo como uma totalidade em movimento e
mudana permanentes, e por isso, so conceitos aplicveis ao mesmo tempo
em determinadas situaes.
41
Cerqueira Filho (1999) e Jovchelovitch (2000), mostram que, dentro da
filosofia cartesiana e a mecnica de Newton, prevalecia a separao entre sujeito e
objeto. Nos dias atuais, o pensamento dialtico ou mesmo holstico, considera sujeito
e objeto como inseparveis: passaram a ser vistos como, epistemologicamente, uma s
categoria filosfica ou uma entidade inquebrantvel.
Em seu livro, Percepo ambiental e comportamento: viso holstica da
percepo ambiental na arquitetura e na comunicao, Okamoto critica a viso de
Bruno Zevi, considerada por ele, conservadora:
[...] para Bruno Zevi a matria prima do arquiteto o espao interno do edifcio construdo [...] uma conotao fsica do espao. (Porm) a arquitetura vai alm do abrigo das necessidades e atividades e, no meu entender, seria um meio de favorecer e desenvolver o equilbrio, a harmonia e a evoluo espiritual do homem, atendendo s suas aspiraes, acalentando seus sonhos, instigando as emoes de se sentir vivo, desenvolvendo nele um sentido afetivo em relao ao lcus e ao topos. [...] so esses espaos perceptivos e vivenciais que constituem a matria-prima da arquitetura (OKAMOTO, 2000, p.15).
Okamoto procura desmistificar como o objeto, na criao, enredada por
aspectos subjetivos fundamentais que o ligam definitivamente ao sujeito.
Jovchelovitch (2000) esclarece que no campo da psicologia social, o sujeito
somos ns mesmos, e o objeto a estudar, pode ser um objeto qualquer, um fato, ou
um outro ser humano, sozinho ou em grupo. Num dado momento, um diante do
outro, os dois mantm relaes dinmicas, sendo nessas que se fundem idias, se
constroem conceitos e significados, dentro de saberes sociais, que no so saberes
cientficos, mas nem por isso saberes menores, so saberes do senso comum. Por
decorrerem de relaes sociais que ocorrem num dado tempo e numa certa
situao, esses saberes so construdos na dinmica das relaes e, portanto, no
podem existir a priori.
Deste entendimento, decorre que o desenvolvimento do mundo depende de
relaes. Tudo so produtos de relaes. Se assim , no pode haver um s saber,
uma s certeza, um s conhecimento. A viso holstica hodierna, conforme explica
Cerqueira Filho (1999), trata a realidade, ou o objeto de estudo como uma
totalidade: tudo se relaciona numa rede gigantesca onde quaisquer dessas relaes
sempre afetaro mais ou menos outras, de onde se depreende que sempre haver
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resultados, mutaes, ou situaes circunstanciais que se esto e estaro,
construindo a cada momento.
Destarte, a realidade humana a que se constri histrica e socialmente. A
grande luta para o entendimento entre os homens palco onde esforos da
diplomacia, da poltica e at das guerras, so o grande exemplo disso. Assim, a
construo da realidade sempre uma negociao, branda como a diplomacia, a
poltica, ou conflituosa, como as guerras. assim a realidade, porque produto de
contradies e interesses nem sempre convergentes, e o equilbrio muitas vezes
precrio; o que real para uns hoje, pode no s-lo amanh, e o mesmo se pode
dizer da verdade: o que era verdade h duzentos anos atrs, hoje no mais.
Existiro sempre vrias realidades, a prpria e a do outro, e assim por diante. Ento,
o que interessa, aquilo que ultrapassa os limites do indivduo; a realidade social
historicamente construda na qual prevalecem grupos, e no indivduos; o que se
quer ver como percebida essa realidade por um determinado grupo estudado,
destacando a observao de que em sociologia, o grupo aqui referido no um
ajuntamento qualquer de pessoas, do grupo social14 que se est falando, onde h
uma reunio de pessoas que interagem entre si, conflitam ou no, tm uma
identidade e se reconhecem como integrantes (GALLIANO, 1981).
Para concluir, resta clarificar dois pontos fundamentais. O primeiro d conta
de que o saber um instituto relativo, e dentro desta viso se considera que h
diferena entre realidade e verdade. Certas representaes que h por a so reais,
de acordo com o senso comum, mas no so verdades, necessariamente.
O segundo ponto, dentro da relativizao do saber acima referida, que o
saber humano no homogneo. O saber cientfico um tipo de conhecimento que
tem suas regras, ele se distingue da sabedoria comum, do saber popular: o do senso
comum que , tambm, um tipo de saber que adquirido atravs das geraes,
boca a boca. H o saber de cozinhar, o saber de manipular ervas medicinais, etc.
Embora no sejam de natureza cientfica, esses saberes, ditos do senso comum,
14
Em Sociologia, um grupo um sistema de relaes sociais, de interaes recorrentes entre pessoas. Tambm pode ser definido como uma coleo de vrias pessoas que compartilham certas caractersticas, interajam uns com os outros, aceitem direitos e obrigaes como scios do grupo e compartilhem uma identidade comum. Para haver um grupo social, preciso que os indivduos se percebam de alguma forma como afiliados ao grupo (GALLIANO, 1981).
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tambm, so importantes, e no devem ser considerados saberes inferiores; so
saberes diversos e que detm alguma forma de racionalidade prpria. No h
saberes superiores, no h uma hierarquia entre saberes. Construir uma
embarcao de 60 toneladas certamente no deve ser fcil sem o saber cientfico;
mas so sim, fabricadas, apenas com o saber emprico da prtica, ensinado de
gerao para gerao, de boca a boca.
E por fim, cabe observar que os saberes no so cristais imutveis, eles
tambm se transformam. Na verdade, os vrios tipos de saber se relacionam, se
enfrentam, e podem sofrer transformaes.
Assim, o entendimento das representaes sociais decorre dessa viso de
mundo onde a realidade social e natural, os homens e a matria, passam por e so
resultados de relaes e transformaes, como entidades totalizadas, temporais,
mveis e mutantes. Esta viso aqui trazida espera suportar as consideraes
tericas e mais adiante os discursos prticos no desenvolvimento do trabalho.
3.2. Teoria das representaes sociais
3.2.1. Conceito de representao social
A viso estrutural da Teoria das Representaes Sociais (TRS), tem sido
largamente empregada em vrios estudos de diversas reas do conhecimento, como
exemplos ilustrativos a seguir. Em sade pblica (TURA, 2004), em Matemtica
(RAMOS, 2004), e em Pedagogia (GRAA; MOREIRA, 2006), alm de inmeras
pesquisas realizadas no Laboratrio de Habitao Social (LABHAB) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A moradia, no caso de uma construo multifamiliar habitada, onde existe o
relacionamento de vizinhana prxima, adquire, em relao ao grupo que a possui,
uma reunio de significados em que o pensamento e a simbologia so transferidos
da moradia para o indivduo e vice-versa, e de um morador para outro, num
processo a construir um ou mais conceitos e significados que vo sendo aceitos e
acabam internalizados socialmente, sob a forma de um saber intuitivo, um senso
comum gradativamente se ancorando, objetivando e consolidando como verdades
no grupo todo (MOSCOVICI, 1976). Este saber constitudo no calor das
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contradies sociais da vida privada em comunidade. So saberes que assumem
um patamar estandardizado sobre um objeto, comum e duradouro. Representam
que e qual importncia tem certos atributos para essas pessoas associadas na
elaborao inconsciente de imagens qual do, depois, um significado. Estas
imagens que vo sendo formatadas e dotadas de significados especiais pertencem
ao grupo, exclusivamente, e normalmente no so percebidos por quem est de
fora. Este desconhecimento na viso exterior que leva, muitas vezes, aos
equvocos das propostas ditas racionais. No a toa que os espaos das moradias
so em grande nmero apropriados e modificados: podem ser intervenes que
buscam aproximar suas moradias de suas representaes.
O objeto de estudo deste trabalho a complexa moradia multifamiliar e sua
relao, no uso, com seus moradores. A partir da, busca-se a clarificao de uma
imagem significativa que a representao social para seus moradores. Se a
habitao em si conceitualmente ambgua e funcionalmente complexa, a moradia
coletiva o muito mais ainda; ocupada, cumprindo sua funo de morar, o lcus
da convivncia social intensa por excelncia; da inter-relao grupal no escolhida.
Por conta disto, moradia e moradores em certa situao so um todo indissolvel
(sujeito e objeto como um sistema fechado) e o conjunto habitacional se v numa
rede de inmeras conexes subjetivas e contraditrias onde h desde interesses
pessoais a questes ideolgicas e scio-culturais, elementos que acabam por
produzir, de modo espontneo e inconsciente, uma forma particular e exclusiva com
que os usurios vm a moradia.
Atravs desta teoria foi possvel levantar, a partir da produo espontnea
dos sujeitos envolvidos um rico universo emprico, o qual trabalhado permitiu a
obteno de vises realistas que podem servir como diretrizes para a avaliao dos
casos em estudo e, tambm, como recomendaes para novos empreendimentos.
A representao social tem seu conceito fundamental formulado em 1961
com a publicao da tese de doutorado de Serge Moscovici, cujo trabalho foi revisto
em 1976 e traduzido por Cabral (1978). Seu conceito encontra nascedouro na
definio das representaes coletivas, de Durkheim (1985).
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Ao estudar os elementos de Durkheim, Moscovici observou que estavam
conceitualmente subestimados esses elementos, os quais se tratavam na realidade,
em alguma coisa mais profunda, complexa e significativa do que havia pensado
Durkheim. A representao coletiva a que ele se referira no era apenas um
episdio aleatrio ocorrido numa coletividade primitiva - ambiente em que Durkheim
realizou seus estudos. No era somente um padro sem importncia surgido
ocasionalmente numa certa coletividade. No poderiam ser denominadas de
coletivas apenas por isso. Moscovici, ao acreditar na inseparabilidade entre sujeito e
objeto, anteviu essas representaes como algo muito mais importante, u
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