Grupo de Trabalho: Controle social, segurança pública e direitos humanos
Os diferentes discursos e tratamentos do estado brasileiro à situação de rua
Karoline Strapasson – PUCPR
Amanda Carolina Buttendorff Rodrigues Beckers –PUCPR
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Os diferentes discursos e tratamentos do estado brasileiro à situação de rua
Karoline Strapasson1
Amanda Carolina Buttendorff Rodrigues Beckers 2
A extrema pobreza urbana é um fenômeno multidimensional que decorre de um complexo sistema de carências e
recursos que culmina na privação, ausência de repouso, higiene adequada e exposição à violência. O objetivo
deste trabalho é apresentar as diferentes formas de atuação do Estado frente às pessoas em situação de rua,
partindo da terminologia e comandos empregados na legislação. O estudo desta temática teve início em sede de
dissertação de mestrado em Direito Econômico e Socioambiental já concluída: “Controle social da unidade de
atendimento para pessoas em situação de rua de Curitiba: Centro POP de Resgate Social”. O fenômeno ora
estudado, recebeu diferentes terminologias e tratamentos do Estado, revelando uma relação conturbada e
contraditória relação entre os detentores do poder e deste grupo social heterogêneo e fragilizado. Após a
Constituição Federal de 1988 ocorreu uma significativa mudança de paradigmas entre a atuação do Estado e a
situação de rua, o que antes integrava uma postura a ser combatida e considerada contravenção penal passou a
ser uma questão social a ser enfrentada por meio da construção de redes de assistência e garantia de direitos. No
entanto, foi a partir de 2005 depois do massacre da Sé, que uma série de atos administrativos alterou
gradativamente a atuação do Estado, em conjunto com o engajamento social da população em situação de rua,
modificando as políticas públicas e forma de atendimento.
Palavras-chave: Situação de rua, Políticas públicas, Atuação do Estado.
1. INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2016 a Prefeitura Municipal de Curitiba foi questionada por
empresários e comerciantes acerca o aumento das pessoas em situação de rua, e de quais
ações poderiam ser feitas para a sua retirada inclusive mediante força.3 A justificativa para
essas ações são o receio da população local frente as pessoas em situação de rua e a sua
rotulação como provável ameaça à segurança pública. Em uma sociedade de produtores e
consumidores, determinados estratos que não consomem tendem a ser excluídos dos projetos
de construção da ordem, no entanto isso não deveria impedir o acesso aos direitos e garantias
1 Conciliadora. Mestra em Direito Econômico e Socioambiental e Bacharela em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. 2 Advogada. Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do
Paraná. Especialista em Direito, Logística e Negócios Internacionais pela PUCPR. Especializanda em Direito e
Processo do Trabalho pela UNINTER. Bacharel em Direito pela PUCPR. 3 GALINDO, Rogerio Waldrigues. Associação de bares pede remoção de moradores de rua “à força”. Gazeta do
Povo. Caixa Zero. Noticiada publicada em: 19 de janeiro de 2016. Disponível em:
<http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/associacao-de-bares-pede-remocao-de-moradores-de-rua-a-
forca/>. Acesso em 18 abr. 2016.
3
fundamentais, a produtividade e o consumo não deveriam ser critérios do que seria digno ou
não.
Enquanto parte da sociedade se ajusta aos modelos de trabalho e manutenção de vida,
outros podem não se ajustar ou faltaram condições e oportunidades de adequação. Desse
modo, parte da sociedade integra uma categoria híbrida entre a inclusão e a exclusão social.
Indo contra a paisagem projetada em sua estética, limpeza e organização. A construção da
ordem implica encontrar um espaço adequado e executar funções adequadas. O caos consiste
em seu oposto, ou seja, algo que não está no lugar adequado ou não está em sua função
apropriada. Desse modo, aqueles sem domicílio e função seriam os últimos a impedir a
conclusão da construção da ordem. 4
Estes embates entre comerciários e a cobrança pela atuação do Estado revelam as
intricadas relações entre o Estado e as pessoas em situação de rua. Para fazer uma releitura
desta relação, escolheu-se analisar os textos legislativos que pautaram essa relação que
inicialmente ocorreu por meio do Direito Penal.
Todavia, nos últimos 10 anos uma série de políticas públicas federais de caráter
socioassistencial colocaram na pauta os direitos sociais e as garantias fundamentais das
pessoas em situação de rua. Apesar de permanecer a legislação penal tipos que criminalizam a
situação rua, o crime de mendicância foi revogado. No entanto, ao contrário de legislação cuja
vigência pode ser retirada de forma definitiva, por outra lei a superação do preconceito levam
gerações para ter seus efeitos atenuados.
2. OS COMANDOS E OS TERMOS EMPREGADOS PELA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA
A urbanização da pobreza está associada a Revolução Industrial, o crescimento deste
fenômeno social é apontado nas cidades pré-industriais da Europa com os grupos de
campesinos expropriados que passavam a compor o cenário urbano. Todavia, a pobreza é uma
4 BAUMAN, Zygmunt.Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. p. 42-43
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condição constante na História.5 Estre trabalho se restringiu ao estudo da legislação brasileira,
termos e comandos empregados. Para tanto, se faz uma divisão simbólica: antes de 1988 e
após e após o advento da Constituição da República Federativa do Brasil.
O fenômeno da população em situação de rua é encontrado em diversos recortes
históricos, modelos sociais e econômicos.6 Maria Lucia Lopes da Silva descreve alguns
nomes utilizados para definir esse grupo social, inclusive com denominações pejorativas:
“mendigos”, “vagabundos”, “maloqueiros”, “desocupados”, “bandidos”, “contraventores”,
“vadios”, “loucos”, “sujos”, “flagelados”, “rejeitados”, “indesejáveis”, “miseráveis”,
“pedintes”, “encortiçados”, “indigentes”, “toxicômanos”, “maltrapilhos”, “psicopatas”,
“carentes”, “doentes mentais”, entre outros.7 Dois destes termos “vadios”, “mendigos” foram
empregados pela legislação penal.
Todavia, a atual nomenclatura utilizada pela legislação brasileira e nos trabalhos mais
atuais é “população em situação de rua” ou “pessoas em situação de rua.” O uso semântico do
termo “morador de rua” ou “população de rua” (empregados por Cleisa Moreno Maffei Rosa,
Eneida Maria Ramos Bezerra e Maria Antonieta da Costa Vieira em um estudo significativo
acerca deste grupo populacional),8 ainda empregado pelo jornalismo, não é utilizado nas
referências mais recentes. Para Eliane Meneses Melo o contexto do uso “morador de rua”
reforça a compreensão de haver uma categoria humana que tem como endereço a rua,
favorecendo para a naturalização do fenômeno social. Já o termo “situação de rua” pressupõe
um número de brasileiros em situação de não moradia. As ações das políticas públicas são
pensadas para a eliminação de uma anomia, permitindo entender que “morador de rua” está
fora do ideal de cidadania. 9
5 SILVA, Maria Lucia Lopes da. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez,
2009. p. 91. 6 COUTINHO, Marcos Pereira Anjo. Ilícitos administrativos decorrentes das violações aos direitos fundamentais
das pessoas em situação de rua. In: Cf.GRINOVER, Ada Pellegrini et all (Org.). Direitos fundamentais das
pessoas em situação de rua. Belo Horizonte: D´Placido, 2014. p. 784. 7 SILVA, Maria Lucia Lopes da. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez,
2009. p. 119. 8 Cf: ROSA, Cleisa Moreno Maffei; BEZERRA, Eneida Maria Ramos; VIEIRA, Maria Antonieta da Costa
(Org.). População de rua: quem é, como vive, como é vista. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 2004. 9 MELO, Eliana Meneses de. Políticas públicas, população de rua, e os recortes culturais do cotidiano. In:
BONINI, Luci M.M; PANHOCA, Ivone; CIANCIARULLO, Tamara Iwanow. Políticas Públicas: estudos e
casos. 1 ed. São Paulo: Ícone, 2014. p. 577.
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2.1 PUNIR E PROIBIR: “MENDIGOS” E “VADIOS”
Em um primeiro momento verifica-se uma configuração de exclusão e prisões e
institucionalização. A primeira remissão legislativa aplicada no Brasil foi o Livro Quinto das
Ordenações Filipinas datado de 1603, título LXVIII, que dava um prazo de 20 dias para que o
desocupado que chegasse à cidade ou vila encontrasse um trabalho, do contrário, seria preso
ou açoitado publicamente.10 Com o passar de dois séculos as penas foram se agravando. As
Leis Criminais do Império de 16 de dezembro de 1830 destinavam o capítulo IV denominado
“Vadios e Mendigos” para tratar a questão. Os artigos 295 e 296 definiam que aqueles que
não tivessem uma ocupação honesta, depois de serem advertidos, seriam presos durante 8 a 24
dias. Caso estivessem aptos a trabalhar, fingissem doenças ou chagas, ou se fossem inválidos,
mas estivessem reunidos em quatro ou mais (com exceções a parentes, esposas, ou guia, caso
fossem cegos) seriam presos de 8 a 30 dias.11
Com o passar dos anos o legislador aumentava dos dispositivos punitivos, e incluída
um número maior de classificados nos tipos penais. O Código Penal da República, Decreto n.
847, de 11 de outubro de 1890, tratou a questão em dois capítulos distintos: o capítulo XII –
Dos mendigos e ébrios, e o capítulo XIII – dos vadios e capoeiras. 12 O capítulo XII, formado
pelo artigo 391 ao 398, classificava com mais detalhes os tipos encontrados nas ruas, com o
agravamento das penas para até 4 meses de prisão, para réus primários. Os tipos legais variam
de pessoas saudáveis e aptas para o trabalho que pediam dinheiro; pessoas inaptas para o
trabalho; aqueles que pediam dinheiro em bando; quem permitisse que menor de 14 anos
pedisse dinheiro; e aquele que embriagar-se habitualmente ou estar em locais públicos ébrio.
13
10 PORGUTAL. Ordenações e leis do Reino de Portugal: recopiladas por mandado d’El-Rey D. Philippe I.
vol. 5. Edição de Cândido Mendes de Almeida, Rio de Janeiro: Instituto Philomathico, 1870 Disponível em: <
http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5p1217.htm>. Acesso em: 26 dez. 2014. 11 BRASIL. Codigo Criminal do Império do Brazil. Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em:<http
://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso em 27 jul. 2014 12 BRASIL.Codigo Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de
1890.Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 24
jul. 2014. 13 BRASIL.Codigo Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de
1890.Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 24
jul. 2014.
6
O capítulo XIII do artigo 399 ao 401 apresentava punições mais graves para a figura
do vadio, que seria a pessoa que deixa seu serviço e, portanto, fica sem meios de subsistência
e domicílio. O tratamento para adolescentes com mais de 14 anos nessas condições incluía o
recolhimento em estabelecimentos disciplinares até completar 21 anos. Para o réu primário, a
pena seria de 15 a 30 dias, caso reincidente, o infrator seria recolhido por três anos podendo
ser reaproveitados presídios militares para as prisões. Os estrangeiros nas situações de
mendicância ou vadiagem seriam deportados. Já o artigo do 402 ao 404 condenava a prática
da capoeira em locais públicos e penalizava seus praticantes de forma semelhante aos
vadios.14
O termo “mendigo” não foi aplicado apenas na legislação penal, mas também na
Constituição de 1934. Ela trata em seu artigo 108, alínea c, na hipótese de considerar os
mendigos inalistáveis para o exercício dos cargos eletivos. Importa ressaltar, que no capítulo
dos direitos e garantias individuais, ficava resguardado o “o direito de prover à própria
subsistência e à de sua família, mediante trabalho honesto”.15 Ficando a cargo do Poder
Público o dever de amparar, na forma da lei, os que estejam em indigência. Segundo Tomás
Henrique de Azevedo Gomes Melo, essa alteração era fruto de uma nova leitura acerca da
vadiagem e da mendicância, ficando por objeto de punição o ócio voluntário, não a falta de
emprego. Em vista da falta de trabalho, a subsistência do desempregado e de sua família
ficaria a cargo do Estado.16
A Lei de Contravenções Penais ainda vigente no ordenamento jurídico manteve a
tradição legislativa de criminalização a situação de rua. A legislação trata em seu art. 59 da
pessoa que pode trabalhar, mas que opta pela ociosidade, ela poderia ser presa de 15 dias a
três meses, todavia se tivesse renda para a subsistência a pena seria extinta. O art. 62 tem por
objetivo penalizar a pessoa em estado de embriaguez com a prisão simples de 15 dias a três
meses. A Lei também descrevia o crime de mendicância, previsto no art. 60, que reprimia a
14 BRASIL.Codigo Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Decreto n. 847 de 11 de outubro de
1890.Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66049>. Acesso em: 24
jul. 2014. 15 BRASIL. Constituição (1934) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil: promulgada em 16
de julho de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>.
Acesso em: 24 jul.2014. 16 MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a
luta por reconhecimento da população em situação de rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011.p.99.
7
prática de pedir esmola de modo ameaçador, fraudulento, simulando moléstia, ou em
companhia de menor de idade. Este último tipo penal foi revogado pela Lei 11.983/2009.17
O Código Penal atual, Decreto-Lei n. 2.848/1940, em seu art. 247, IV, descreve como
tipo penal a permissão do responsável legal para que menor de 18 anos mendigue ou sirva a
mendigo para fomentar comiseração dos outros.18 Com o advento da Lei 9.099/1995 os tipos
ligados à ociosidade e ao estado de embriaguez se tornaram infrações penais com menor
potencial ofensivo e passaram a gozar de benefícios processuais como a alteração da pena
privativa de liberdade por prestação de serviços. Além do art. 59 e 62 Lei de Contravenções
Penais, existem diversas legislações municipais que coíbem a mendicância.19
Os marcos legislativos anteriores a 1988 apresentavam um discurso combativo, por
meio de prisões e punição. É interessante verificar que mesmo após a Constituição de 1988
foram editadas leis municipais com o tom de proibição e de encaminhamento das pessoas a
estrutura municipal, o que reforça o discurso de punitivo. Poder-se-ia alegar que as ações
administrativas serviriam para admoestar as pessoas em situação de rua, e que os crimes de
menor potencial ofensivo como as contravenções penais têm penas brandas, e pouca eficácia
prática, e que restam no ordenamento jurídico como resquício de uma legislação arcaica.
Porém, em Uberlândia ocorreu a captura e denúncia de cerca de 250 pessoas em situação de
rua, consideradas “mendigos profissionais”, no ano de 2007, antes da revogação do delito de
mendicância.20 Já em 2012, a Polícia Militar de Santa Catarina, na cidade de Florianópolis,
prendeu 62 moradores de rua em flagrante por vadiagem. Posteriormente, o Juizado Especial
Criminal arquivou os procedimentos por falta de provas. 21
17 BRASIL. Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/decreto-lei/del3688.htm>. Acesso em: 24 jul. 2014. 18 Atualmente o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990) reforça o combate à exploração de
crianças, e em seus art. 5º e 19, proíbe a negligência, discriminação, violência e exploração contra seus direitos
fundamentais, inclusive o tratamento desumano, violento, vexatório ou constrangedor. 19 A Lei Orgânica de Varginha 2.962/1997 apresenta um Código de Posturas Municipais e um capítulo próprio
para a mendicância, o art. 52 dispõe que não é permitida, nem em vias públicas como em residência ou
estabelecimentos comerciais, devendo o infrator ser encaminhado à Prefeitura Municipal. Conteúdo semelhante
é encontrado em outros municípios, a exemplo de Poços de Caldas, que aprovou a Lei 7.736/2002, que institui a
colocação de placas indicativas: “Não dê esmolas: encaminhe à Secretaria Municipal de Assistência Social”. 20 Ministério Público denuncia “mendigos profissionais” de Urbelândia. Cotidiano. Folha de São Paulo, Notícia
Publicada em 21 de agosto de 2007. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/
ult95u321754.shtml>. Acesso em: 24 jul. 2014. 21 Polícia prende 62 moradores de rua. Gazeta do Povo. Vida e Cidadania. Notícia Publicada em 14 de março
de 2012. Disponível em:< http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1233331>.
Acesso em 26 dez. 2014.
8
O Direito Penal tem por condão no ordenamento jurídico pátrio ser a ultima ratio,
última instância para coibir uma conduta. Além das privações que a situação de rua apresenta,
e da insegurança deste ambiente, existem riscos de abusos por parte do Estado e casos de
violência institucional. As violações e mortes das pessoas em situação de rua, em razão de
seus laços fragilizados com familiares e comunidade terminam sem a devida investigação ou
punição dos agressores, sejam eles autoridades públicas ou particulares. Em 1993, no Rio de
Janeiro, oito jovens que dormiam na praça da Igreja da Candelária foram executados a tiros,
tendo sido condenados três policiais militares pelo crime. Em 1997, Galdino, líder indígena da
etnia pataxó-hã-hã-hãe, ao dormir em uma praça, foi confundido por três adolescentes com
um “mendigo”, e foi queimado vivo. Em 2004, a Praça da Sé foi palco de uma chacina em
que morreram sete pessoas em situação de rua, e feridas outras oito, com suspeita da
participação de policiais militares em esquemas de segurança clandestinos.22 Após 2004 que
se iniciou uma articulação entre movimentos sociais e Governo Federal em prol de uma
Política Nacional para a População em situação de rua.
2.2 AMPARAR E ASSISTIR: “POPULAÇÃO” E “PESSOAS”
A Constituição Federal de 1988 foi o início de uma alteração significativa para a
legislação voltada à população em situação de rua. O Estado Democrático de Direito
constituído em 1988 destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais,
pautado na liberdade, bem-estar, igualdade, em sua sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social. Alguns dos fundamentos da República estão
interligados profundamente com a superação da situação de rua: a cidadania, dignidade,
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, alcançando o desenvolvimento social por
meio da erradicação da pobreza, marginalização e da redução das desigualdades.23
Um dos canais para garantir dos direitos é por meio da Assistência Social definida no
art. 194, cuja finalidade é o atendimento às necessidades básicas e a universalização dos
22Cf: MATA, Paulo Henrique Nogueira Romariz.O massacre da Praça da Sé. Campinas: PUC-Campinas,
2006. 23 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/constituicao/constituicao.htm> Acesso
em: 15 nov. 2013.
9
direitos sociais, por meio do amparo estatal. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS),
Lei 8.742/1993, traça os princípios e diretrizes da assistência estatal e confere aos municípios
a competência de promover políticas de enfrentamento da pobreza e prestar atendimento às
ações assistenciais emergenciais. No ano de 2005, por meio da Lei 11.258/2005, foi incluída
no art. 23, II na LOAS, a necessidade de programas de amparo “às pessoas que vivem em
situação de rua”. Ressalta-se o emprego dos termos “pessoas”, em contraposição a
terminologia anteriormente empregada pelo Direito Penal. 24
Maria Lucia Lopes da Silva questiona o motivo para que somente em 2005 o
atendimento à população em situação de rua constasse na Lei Orgânica de Assistência Social.
A autora considera as atividades à época incipientes e fragmentadas, apesar de possuírem
cunho universalizante, eram aplicadas de modo residual e restritivo, especialmente pelo
confronto com as características do perfil deste grupo populacional. As exigências formais de
apresentação de documento de identificação pessoal e endereço domiciliar, a pouca
articulação das políticas setorais, a falta de capacitação dos agentes públicos e o enraizamento
do preconceito e da estigmatização concorrem para a ideia de que a população de rua não
seria merecedora de direitos sociais e políticos. 25
Todavia o ano de 2005 foi o estopim para as alterações legislativas na LOAS e,
principalmente, para a abertura ao tema da situação de rua, em virtude do Massacre da Sé
ocorrido em 2004 na cidade de São Paulo. O aumento da população em situação de rua, a
ausência de políticas estruturadas e a intensificação de ações violentas fizeram com que a
população de rua e os catadores de materiais recicláveis se unissem em cooperativas de
trabalho, constituídas e desenvolvidas nos centros urbanos. Em conjunto com esta situação
ocorreu o fortalecimento do Movimento Nacional de População de Rua (MNPR).
No ano de 2005 ocorreu o I Encontro Nacional sobre a População em Situação de Rua,
em Brasília, conduzido pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.26 Na
mesma época surgiram outros atos administrativos federais para aprimorar o acesso aos
serviços públicos para a população em situação de rua, projetos de financiamento para 24 BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03
/leis/l8742.htm>. Acesso em: 25 jul. 2014. 25 SILVA, Maria Lucia Lopes da. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez,
2009. p. 174. 26 MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a
luta por reconhecimento da população em situação de rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. p. 114.
10
inclusão de pessoas em situação de rua e o restabelecimento de seus vínculos (Portaria 566, de
14 de novembro de 2005, do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS)) e a criação de
um grupo de trabalho interministerial para estudar e elaborar propostas para essa população
(Decreto presidencial de 25 de outubro de 2006) foram as primeiras contribuições para a
criação de uma política pública de proteção a este grupo populacional.27 28
No mesmo sentido, o MDS e a UNESCO realizaram uma pesquisa nacional sobre a
população em situação de rua entre os anos de 2007 e 2008. A pesquisa contabilizou 31.922
adultos, estimando a existência de 50.000 pessoas nessa situação em todo o território
brasileiro. Os principais motivos que levaram essas pessoas à situação de rua foram o
alcoolismo/drogas (35,5%), o desemprego (29,8%) e as desavenças com pai/mãe/irmãos
(29,1%). A pesquisa traçou o perfil deste grupo populacional. Cerca de 82% são do sexo
masculino, 53% com idade entre 25 a 44 anos, 67% são negros, 52% recebem entre R$ 20,00
e R$ 80,00 reais por semana, 70% trabalham em atividades remuneradas, 15% pedem
dinheiro como principal meio de sobrevivência, cerca de 30% dorme na rua há mais de 5
anos, 22% costumam dormir em albergues ou outras instituições, 95% não participam de
movimento sociais, 24% não possuem qualquer documentação de identificação, 88% não
recebem benefícios sociais de órgãos governamentais. 29
O Grupo de Trabalho Interministerial (Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome, da Justiça, da Saúde, da Educação, das Cidades, do Trabalho e Emprego,
dos Esportes, da Cultura e da Secretaria Especial de Direitos Humanos) gerou um debate mais
consistente, verificando a necessidade de envolver de modo ativo a população a ser atendida
para a construção de uma lei federal que comprometesse cada um dos Ministérios envolvidos.
No II Encontro Nacional de População em Situação de Rua, em 2009, foi consolidada a
proposta da Política Nacional para a População em Situação de Rua, que se tornou o Decreto
7.053/2009. 30
27 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. Portaria nº 566, de 14 de novembro de 2005. Disponível
em: < http://goo.gl/AUlbD1>. Acesso em: 27 dez. 2014. 28 BRASIL. Decreto presidencial de 25 de outubro de 2006. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br
/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Dnn/Dnn11024.htm>. Acesso em: 27 dez. 2014. 29 BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social. População em situação de Rua. Disponível
em<http://www.mds.gov.br/falemds/perguntas-frequentes/assistencia-social/pse-protecao-social-especial/popu
lacao-de-rua/populacao-em-situacao-de-rua>. Acesso em: 30 dez. 2012. 30 MELO, Tomás Henrique de Azevedo Gomes. A rua e a sociedade: articulações políticas, socialidade e a
luta por reconhecimento da população em situação de rua. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes. Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011. p. 114.
11
Alguns dos temas tratados pela Política Nacional para a população de rua são: o
incentivo ao acompanhamento e avaliação de políticas públicas por parte da população em
situação de rua por meio da organização de grupos de controle. Outras questões significativas
acerca do atendimento envolvem ações educativas para a superação do preconceito, a
capacitação de servidores para a melhoria do atendimento, a democratização do acesso ao
espaço público e as exigências de manutenção de um padrão básico de qualidade das unidades
de acolhimento.31
Em relação a temática da saúde foi a Portaria 3.305, de 24 de dezembro de 2009,
instituiu um Comitê técnico de Saúde para a População em situação de rua, com a finalidade
de melhorar o atendimento, 32 e a Portaria nº 940, de 28 de abril de 2011, do Ministério da
Saúde (MS) que permitiu que fosse superado o preenchimento do campo, residência dos
formulários para atendimento à saúde pública, o que, por muito tempo, foi óbice para o
atendimento. Já a Portaria 122, de 25 de janeiro de 2011, apresenta as diretrizes para
organização de Equipes de Consultório na Rua que fazem uso de equipes multidisciplinares
para o atendimento às pessoas em situação de rua, com especial cuidado aos casos de pessoas
com transtornos mentais ou dependência química.33
Outra superação de ordem burocrática foi a falta de residência fixa para o
preenchimento dos formulários e realização do cadastro único para acesso aos programas
sociais do Governo Federal (CadÚnico), entre eles, o programa de transferência de renda
Bolsa Família (Lei 10.836/2004). A solução encontrada foi a identificação e o
encaminhamento aos postos de cadastramento, utilizando o endereço do Centro de Referência
em Assistência Social do Município para preenchimento do respectivo campo no cadastro.34
Apesar das conquistas alcançadas permanecem as violações aos direitos e garantias
fundamentais desta população. Segundo o MNPR, as violações ocorrem em diferentes tipos
de intensidade: chutes enquanto dormem, expulsão compulsória para além dos limites do
31 BRASIL. Decreto 7.053 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/cc
ivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7053.htm >Acesso em: 15 nov. 2013. 32 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.305, de 24 de dezembro de 2009. Disponível
em:<http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2009/prt3305_24_12_2009.html>. Acesso em:27 jul. 2014 33 BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 122, de 25 de janeiro de 2011. Disponível em:<http://bvs
ms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0122_25_01_2012.html>. Acesso em:27 jul. 2014. 34 BRASIL. Instrução Operacional Conjunta da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania, da Secretaria
Nacional de Assistência e do Ministério do Desenvolvimento Social n. 07 de 22 de novembro de 2010. (BRASIL, 2010). Disponível em:<http://goo.gl/cL7CJa>. Acesso em: 27 dez. 2014.
12
município, fechamento de abrigos em razão de insegurança e insalubridade, casos de morte
por hipotermia, mal tratos por parte de agentes públicos, como também a violência por grupos
antissociais de forma velada ou não. Impera a invisibilidade de um estrato populacional
vulnerável socialmente. Apesar da estrutura de assistência social para esta população, as
unidades municipais possuem limites operacionais. 35
O papel da segurança pública é fundamental para coibir ações abusivas contra a
população de rua, mas para tanto se faz necessário alterar de modo significativo a forma de
tratamento das forças de segurança pública em relação a esta população. Segundo pesquisa
desenvolvida em quatro capitais brasileiras (Curitiba, Rio de Janeiro, São Bernardo do
Campo, Salvador) entre os meses de março a outubro de 2013, foram entrevistados agentes
das forças de segurança pública (polícia civil, militar, bombeiros e guardas municipais) sobre
os recursos humanos e materiais, e a capacitação para o tratamento da população em situação
de rua. A pesquisa teve o apoio das lideranças nacionais do MNPR, mas encontrou certa
resistência na participação das instituições de segurança. A pesquisa teve por resultado que o
atendimento a esse grupo populacional não se reproduz em nível interinstitucional, sendo
considerada frágil e incipiente, especialmente em relação ao critério de formação e
capacitação dos agentes de segurança pública.36
Após a Copa do Mundo, foram divulgados dossiês de violações aos direitos humanos
nas cidades sede pelo Centro Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da População em
Situação de Rua e dos Catadores de Materiais Recicláveis, que, em sua maioria, foram
perpetradas por agentes de segurança pública ou agentes públicos municipais. O dossiê consta
com denúncias de São Paulo, Salvador, Belo Horizonte e Rio Grande do Sul. Entre as ações
denunciadas estão a retirada de pertences e moradias improvisadas sem assistência após a
ação, jatos de água a noite sobre a população e relatos de violência física por policiais
militares.37 Apesar de a cidade de Curitiba não estar apresentada no dossiê anteriormente
35 MOVIMENTO POPULAÇÃO DE RUA. Violação a moradores de rua no contexto paranaense. Disponível
em:<http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/MNPR_Violacao_a_moradores_de_rua_no_co
ntexto_paranaense.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2014. 36 GUINDANI; Miriam Krenzinger (Coord). Pesquisa Segurança Pública e Populações em situação de rua.
Nós da rua (website). Disponível em:<http://nosdaruaufrj.blogspot.com.br/2014/06/primeiros-resultados-da-
nossa-pesquisa.html>. Acesso em: 01 jun. 2014. 37 CENTRO NACIONAL DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE
RUA E DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS. Relatório das violações de direitos da
população em situação de rua nos meses que antecedem a realização da Copa do Mundo. Disponível: <
13
citado, o MNPR informa que, de abril de 2011 a novembro de 2013, ocorreram cerca de 104
casos de violação a esta população, dos quais 45 foram homicídios.38
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Estado brasileiro ao longo de sua transformação social e histórica de modo
inequívoco criminalizou a população em situação de rua. A legislação penal tinha por objetivo
coibir e punir a ociosidade, e, deste modo, empregou a terminologia mendicância, já
revogada, e, vadiagem, ainda presente no ordenamento jurídico. Esses termos e o caráter
combativo da legislação, permanecem ainda no imaginário popular e associada reforçando a
impressão de que as autoridades municipais e os agentes de segurança pública poderiam
encarcerar ou retirar a força as pessoas em situação de rua.
Apesar do discurso de “retirada” das pessoas em situação de rua sugerir, em um
primeiro momento, a proteção e defesa da dignidade humana, quando associado com a
compreensão de que seria aceitável o uso da força pelas autoridades públicas, termina
reforçando o estigma social, e a violação de direitos e garantias fundamentais. As saídas para
este problema social envolvem o acesso aos direitos sociais, a valorização e reinserção social,
na contramão da naturalização da situação de rua como elemento comum da paisagem urbana.
Não obstante a mudança significativa na utilização dos termos “vadios” e “mendigos”
para “população” e “pessoas”, e da implementação de uma Política Nacional, essas alterações
foram motivadas por grandes violações aos direitos humanos. Os massacres, em especial o
ocorrido na Praça da Sé em 2004, e a articulação da própria população, por meio de um
movimento nacional foram essenciais para a conquista destas alterações. Reforçando o caráter
de que os direitos humanos e os direitos e garantias fundamentais são fruto de lutas por
reconhecimento um produto construído por meio da articulação dos atores sociais. No
entanto, para que seus efeitos não sejam apenas simbólicos é necessária a alteração dos
valores sociais, reconhecimento e respeito à dignidade humana sem discriminações.
http://apublica.org/wp-content/uploads/2014/06/Viola%C3%A7%C3%B5es-Copa-do-Mundo-12-06-14-1.pdf>.
Acesso em: 28 dez. 2014. 38 MOVIMENTO NACIONAL DE POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA. Panfleto sobre o dia 19 de
agosto dia de luta da população em situação de rua. Disponível em: <http://goo.gl/bnn4ZR>. Acesso em: 31
dez. 2014.
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15
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16
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