1
GRUPO DE TRABALHO 6
TEORIA E PENSAMENTO SOCIAL NO BRASIL
SOBRE O CONTEÚDO DA SOCIOLOGIA NA
ESCOLA:
O ENSINO E A PROBLEMÁTICA DOS
OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS
Eduardo Carvalho Ferreira
2
SOBRE O CONTEÚDO DA SOCIOLOGIA NA ESCOLA:
O ENSINO E A PROBLEMÁTICA DOS OBSTÁCULOS EPISTEMOLÓGICOS
Eduardo Carvalho Ferreira *
Resumo
Este trabalho focaliza uma das dimensões essenciais do processo escolar capitalista: as condições de
produção e de apropriação do conhecimento científico pelos estudantes do Ensino Médio. Nesse
sentido, o desafio é refletir sobre as tessituras internas dos processos de conhecimento e de
aprendizagem da Sociologia na escola. Para caracterizar essa discussão, nosso objeto trata de
investigar a “realidade” desta disciplina no campo escolar, e considerando toda sua natureza
ontológica e epistemológica, propõe-se analisar os seus fundamentos, validade, limites e
possibilidades. Com efeito, pressupõe-se que a partir da problemática dos obstáculos
epistemológicos que se impõem nas práticas pedagógicas, abre-se uma possibilidade teórica de
estabelecer algumas definições pertinentes à Sociologia do Conhecimento Escolar a fins de avançar
na análise da tríade ensino – aprendizagem – conhecimento de Sociologia no Ensino Médio.
Palavras-chave: Sociologia no Ensino Médio – Conhecimento científico – Ensino/Aprendizagem –
Obstáculos epistemológicos.
1. Considerações preliminares acerca do problema
Talvez, para que nossas posições possam soar com mais clareza, é preciso antes de tudo,
fazer uma digressão no caminho que nos conduziu até elas. Durante os últimos quarenta anos, a
partir do marco inaugurado pela obra “A reprodução” de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron
(1970), os debates que cercam de perto os elemento de crise dos sistemas educacionais,
principalmente o processo de escolarização, tem colocado aos cientistas preocupados com o campo
educacional não apenas as reflexões exclusivamente referentes as políticas públicas, mas também o
desafio de sugerir novos referenciais teóricos para compreensão da questão escolar. Esse período
ficou marcado por um longo processo de reformulação das perspectivas e dos objetos de estudo que
cercam a educação escolar, dando uma nova ênfase para a escola e o conhecimento por ela
produzido.
Nesse sentido, o cotidiano da escola, as práticas de ensino, a relação entre professores e
estudantes ganharam relevância nas análises e passaram ser consideradas como partes importantes
do processo educacional. Neste mesmo movimento, as disciplinas escolares também se tornaram
objeto pertinente da investigação científica, buscando-se com o seu estudo compreender que tipo de
conhecimento escolar elas seriam capazes de produzir. Assim, é possível que hoje possamos
visualizar uma renovação dos conhecimentos sobre a escola, e isso compreende uma série de novos
métodos e metodologias que tem alterado e inovado as nossas práticas de pesquisa.
* Graduado em Ciências Sociais (2007), cursando especialização com ênfase no ensino de Sociologia e aluno regular do programa de mestrado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, linha de pesquisa “cultura, poder e sociedade”. E-mail: [email protected]
3
Esse breve, mas importante levantamento, serve para situar a perspectiva teórica presente
neste artigo, pois, nos inserimos no bojo desse movimento que reconhece esses “novos” caminhos
como fundamentais para se invocar a necessidade de pensar e de se interrogar, sobre as práticas
cotidianas que constroem o funcionamento interno das escolas. Em nossa crítica, mesmo que sutil,
está presente também a recusa a algumas formas mais tradicionais de conceber a instituição escolar,
pois, antes é preciso compreender o que significa, enquanto conteúdo, essas modificações
consideráveis que foram sendo introduzidas com o passar dos anos na realidade e nas instituições
sociais. Mas, para isso, sobretudo é preciso deixar de enquadrar todas essas inovações no arquétipo
do individualismo.
Esses novos questionamentos não são por acaso, refletem todo um ciclo de mudanças,
mesmo que por vezes em pequena escala, mas que estão acontecendo na sociedade moderna. A
contestação dos conteúdos e das formas tradicionais de ensino, assim como o questionamento sobre
o tipo de relação tradicional entre professores e estudantes, representam um caminho necessário
para a pesquisa social preocupada com as questões educacionais de classe. Deixar de questionar o
conteúdo do ensino (e a sua estrutura), só porque este tem como tarefa a transmissão de saberes
objetivos, significa aderir completamente as posições reacionárias que sempre são proclamadas em
face aos primeiros sinais de descontentamento e, formaliza o pragmatismo que tem determinado a
nossos tempos.
De maneira alguma, se está desprezando a dimensão de aparelho ideológico de reprodução
social que se reflete nas práticas da escola e na educação. As relações de poder não serão
neutralizadas, já que não se trata de separar os elementos subjacentes ao sistema de ensino dos
outros dispositivos estruturais que estão em ação na sociedade capitalista. Pelo contrário, esse
estudo revindica-se crítico justamente por compreender esse elemento de complexidade entre escola
e sociedade, e trata, no extremo, de uma tentativa de aproximação teórica entre as análises da
dimensão conjuntural exterior com os entendimentos acerca da dimensão interior das instituições
escolares.
Feitas essas considerações, é preciso deixar claro que a nossa discussão gira em torno da
constituição de uma disciplina escolar em construção e os seus efeitos sociais, a dizer, a inserção da
Sociologia no Ensino Médio. Nossa investigação esta preocupada em saber que tipo de
conhecimento a Sociologia pode produzir na escola. Isso significa a necessidade de se aplicar uma
vigilância nessa disciplina em vias de se fazer, a partir da investigação do seu estatuto, no que
concerne as suas práticas, tanto na sua dimensão ontológica como epistemológica.
Para esse fim, resgatamos para a educação a noção de obstáculo epistemológico. O que
queremos demonstrar com a aplicação dessa noção para compreender as práticas escolares de
ensino de Sociologia, é que ela nos permite identificar o registro de alguns aspectos que são
4
definidores do estatuto de uma disciplina, na medida em que os obstáculos epistemológicos
obscurecem a percepção do que e como se está ensinando, e interferem diretamente na forma em
que se aprende, ou como se conhece o mundo, fato que produz conseqüências trágicas para a
formação dos estudantes. O desafio, portanto, é pensar a Sociologia enquanto um saber escolar que
se apresenta permeado destes obstáculos epistemológicos, fator esse que pode alterar radicalmente a
sua premissa e aplicabilidade no Ensino Médio. Vamos perceber que essas barreiras podem se
desenvolver por diversas razões, no decorrer do artigo tentaremos apresentar algumas delas.
Ainda em caráter introdutório, outra questão importante para pensarmos nosso objeto, é o
fato curioso de que as Ciências Sociais, de maneira geral, ainda não se preocuparam em
compreender a lógica da Sociologia no Ensino Médio. A exemplo disso, podemos fazer menção à
uma entrevista recente, onde o sociólogo José de Souza Martins, reconhecido professor da
Universidade de São Paulo, afirmou que o movimento pela Sociologia no Ensino Médio, está hoje
perturbado pela compreensão empobrecida que dele tem os governos, as escolas e os professores.
Diz tratar-se de uma crise de referência, onde de um lado estão aqueles que crêem numa economia
de resultados, em que o bom ensino é confundido com o número de alunos que uma escola aprova
no vestibular. E do outro, aqueles que atribuem como missão do professor de Sociologia arrebanhar
os jovens para a militância nos partidos de esquerda.
Obviamente que essa observação é passível de contestação e deve ser sujeitada a uma
investigação mais sistemática, mas em certo grau Martins parece ter razão. Cabe notar que em sua
análise ele esqueceu de incluir no conjunto da crítica as próprias representações da academia sobre
o tema. As conseqüências desse preconceito das Ciências Sociais brasileiras com a questão do
ensino de Sociologia nas escolas – não sei se essa característica se estende pelos outros países – são
visíveis quando já é lugar comum nas publicações referentes ao tema “ensino de Sociologia” a
afirmação de que essa é uma temática ainda pouco explorada, e que a falta de discussões no
ambiente acadêmico, seja o das Ciências Sociais ou mesmo da Pedagogia, justificaria nossas
limitações em definir “o que fazer” com a Sociologia no Ensino Médio.
Não reúno agora condições objetivas para afirmar ao certo qual seria a raiz dessa capitulação
das Ciências Sociais em se preocupar com as questões relativas ao ensino, isso seria outro objeto de
pesquisa, mas é inegável essa situação. Nesse sentido, temos poucos estudos na área sobre ensino
de Sociologia, e segundo Takagi (2007) em sua dissertação de mestrado, os que existem se resumem
em duas tendências:
o processo de institucionalização da disciplina e a aplicação de uma prática. Na
primeira, observa-se uma discussão exaustiva sobre os processos históricos que a
disciplina seguiu na educação básica, e na segunda, apresenta-se uma prática de
ensino, temática bastante difundida no campo educacional, constituída por uma
prática defendida pelo pesquisador. (TAKAGI, 2007, p. 18)
5
A partir dessa bifurcação dos caminho percorridos pelos estudos sobre o ensino de
Sociologia, assim como faz Takagi (2007), podemos também situar nossa contribuição como que
tentado explorar uma terceira via ou um outro percurso possível, pois, de fato, nesse momento não
nos propomos a discutir nem o processo de institucionalização e nem advogar em defesa de uma
metodologia de trabalho específica. Propomos algo próximo do que podemos chamar de um estudo
das práticas, quer dizer, a idéia é fazer um análise das práticas de ensino de Sociologia nas escolas,
principalmente aquelas referentes a epistemologia dos professores, demonstrando como que
algumas delas constroem obstáculos epistemológicos à apropriação dos conhecimentos científicos
pelos estudantes, e que somadas aos outros fatores exteriores, contribuem para uma certa crise de
sentido do ensino de Sociologia no Ensino Médio.
O objetivo é demonstrar como que, de maneira geral, a concepção pedagógica desse ensino
escolar da Sociologia que se está promovendo negligencia o sujeito epistêmico, e gera obstáculos à
construção de uma relação entre ensino e aprendizagem de Sociologia mais contundente, no sentido
de se aproximar do que poderíamos categorizar como uma proposta de “ressocialização” do
estudante. Tomado por diferentes ângulos, o tema de que nos ocuparemos nesta análise é, desde o
princípio, demasiado complexo e cheio de controvérsias, pois, muito dessa complexidade e
controvérsia reside na dificuldade de não se ter um entendimento unívoco sobre as atribuições da
Sociologia no Ensino Médio, por razões tanto históricas quanto sociais e culturais.
2. Alguns obstáculos epistemológicos ao ensino de sociologia
O obstáculo epistemológico inicial que deve ser transposto é o da elaboração de uma
prática de ensino de Sociologia que demonstre claramente o que fazemos, de que falamos, como se
realizam os nossos procedimentos, e mais importante, dadas as características do contexto escolar,
saber com quem falamos. Ensinar Sociologia requer um cuidado muito específico no trato com os
conceitos, teorias e métodos, o que serve não somente para demonstrar ao estudante sua finalidade
mais prática, mas, principalmente, para mostrar como que cada noção e conceito dá origem a outro,
como as teoria e os conceitos se influenciam e se relacionam, como se processa a explicação
sociológica, ou seja, expor os elementos próprios do metier do sociólogo.
O ensino da ciência na escola serve, entre outras coisas, para o estudante saber que as
idéias e os fatos estão inseridos dentro de um sistema de pensamento, e por isso não podem ser
compreendidos individualmente como algo descolado e desprovido de relações sociais.
O objetivo, ao contrário, é situar o conhecimento, ir à sua raiz, definir os seus
compromissos sociais e históricos, localizar a perspectiva que o construiu,
descobrir a maneira de pensar e interpretar a vida social da classe que apresenta
esse conhecimento como universal. Podemos, assim, entender a linguagem das
diferentes classes, essa linguagem que se oculta sob a forma de perspectiva e de
6
maneira de pensar, que define os limites de sua expressão. [...] ultrapassar ao invés
de simplesmente recusar, descobrir toda a amplitude do que se acanha
limitadoramente sob determinados conceitos, sistemas de conhecimento ou
métodos. (FORACCHI; MARTINS, 1984 , p. 02)
Mas a questão, é que comumente essa premissa tem escapado as preocupações dos
professores de Sociologia no Ensino Médio, seja por um motivo ou por outro, o que acaba se
fixando como obstáculo ao conhecimento. A observação e a experiência tem nos mostrado que uma
das maiores fragilidades do ensino de Sociologia reside, justamente, na dificuldade encontrada em
definir seu objeto e as funções do seu discurso na escola. Nossa hipótese, é que muito disso se dá
em virtude da confusão causada pela tentativa de transposição didática que os programas e as
próprias práticas pedagógica adotam na ânsia de explicar a “realidade” através da aproximação do
conhecimento científico com a realidade particular dos estudantes.
De fato, o equívoco não se encontra nessa aproximação, ela é condição sine qua non para a
produção de conhecimento. A lacuna, é que na maioria dos casos, essa aproximação costuma ser
confundida com uma abordagem que prima pela redução dos conceitos e teorias, só para entrar em
conformidade com as demandas de seu público, o que desqualifica com propriedade o ensino da
ciência. Existem momentos lógicos da reflexão sociológica que não podem ser desprezados, pois,
sem eles seu ensino dificilmente se completa, e o produto intelectual corre o sério risco de realizar-
se apenas como descrição ou ideologização.
É preciso perceber, que mesmo sujeito a adaptações necessárias no campo da linguagem e da
estética, o objeto da Sociologia no Ensino Médio continua sendo o mesmo da Sociologia
acadêmica, já que trata do estudo das contradições e das identidades formadas socialmente, sendo
algo dotado de historicidade e que tem como referência o próprio ser humano e a vida em
sociedade. Por isso, a principal preocupação do ensino de Sociologia na escola é demonstrar aos
estudantes a Sociologia enquanto uma ciência que lida com as interpretações desses fenômenos
manifestos socialmente, é um tipo de conhecimento científico da vida social que não está baseado
apenas em referências imediatas, mas na interpretação dos fatos e na relação entre a interpretação e
o fato, seu objeto é histórico.
O ensino de Sociologia no Ensino Médio não pode deslocar-se desse objetivo que é sua
pedra fundamental, e agir como se tivesse completa autonomia para criar e recriar suas formas de
interpretação. Ao contrário da tese defendida por André Chervel, que em sua história das disciplinas
advoga a favor delas como criações espontâneas e originais do sistema escolar, entendo que a
Sociologia sob a forma de saber escolar, reporta-se e depende da sua ciência de referência,
principalmente, no que tange ao rigor científico. Falar em rigor científico no Ensino Médio não
representa renunciar a todos os esquemas de explicação com finalidade pedagógica, somente impõe
a condição da utilização consciente e metódica da ciência.
7
Isso não significa desconsiderar as especificidades e objetivos próprios do ensino de
Sociologia, muito menos significa considerá-lo como um saber menor e com menos propriedades,
diz respeito apenas, ao fato, de que a vazão de seu instinto criativo é concedida pelo potencial
explicativo das suas teorias e pela potencialidade disruptiva dos seus métodos, e não pela sua
conformação em um saber escolar dotado de um poder criativo incomensurável.
Não é plausível depositar aspirações extracientíficas ao seu ensino, fato que não exclui a
possibilidade da crítica. O intuito de seu ensino na escola é fazer com que os estudantes se
familiarizem com as particularidades dos conhecimentos sociológicos, como por exemplo as
propriedades de desnaturalização e de estranhamento do mundo que a ciência sociológica pode
causar. Nesse primeiro momento a exposição da problemática do método tem de ser um pouco mais
criteriosa, sendo fundamental nesse estágio demonstrar nitidamente as fronteiras entre os objetos do
senso comum e da ideologia com a ciência.
É importante que os estudantes tenham contato com as noções mais básicas da ciência, o que
não significa supor que os iniciantes devam começar por uma versão simplificada ou generalizada
da Sociologia, o que pode resultar em um aprendizado distorcido e, numa compreensão igualmente
distorcida da vida social. Pois, há de fato uma tendência perigosa em nossas práticas pedagógicas
para a simplificação. Devemos analisar com bastante cuidado todas as tentações desse tipo de
conhecimento, pois só com esse cuidado talvez poderemos chegar a uma relação mais próxima da
ciência.
Mas se tratando do ensino de Sociologia no Ensino Médio, esse movimento introdutório
nem sempre é fácil, pois, estamos diante de estudantes que em sua maioria não tiveram nenhum
contato anterior com os saberes provenientes dessa ciência. Fato que quase sempre é negligenciado
pelo senso comum pedagógico, que desde o início dos trabalhos aposta na transmissão mecânica
dos conceitos e teorias, e assim, logo de cara, já deposita sob o estudante uma enchorrada de
informações, que na maioria das vezes não faz sentido algum para quem aprende. “E essa é uma
característica bem específica: a busca da variedade leva o espirito de um objeto para outro, sem
método; o espírito procura apenas ampliar conceitos”. (BACHELARD, 1999, p. 38)
Esse tipo de atividade de ensino só reforça o paulatino esquecimento do uso dos conceitos e
teorias para a compreensão dos fenômenos sociais e as possibilidades de transformação da
sociedade. É contundente que a atividade de ensino respeite a seqüência lógica dos atos científicos
na produção de conhecimento, senão corre o risco de criar os obstáculos epistemológicos. Isso
significa ter em mente a tríade constatação – construção – ruptura, o que representa para o ensino
escolar a devida mobilização entre as dimensões do primeiro contato com o senso comum, e de
ambos com a ciência. Dentro desse processo de composição cabe a aquele que ensina ter
consciência da articulação dessas dimensões cognitivas, e principalmente, estabelecer os espaços
8
distintos que cada uma delas ocupam. Existem diferenças elementares, e que não podem ser
descartadas, entre o primeiro contato, o senso comum e o pensamento científico.
Desde a filosofia da Grécia antiga, principalmente com Sócrates, a problemática do
conhecimento tem sido colocada nos termos da distinção entre opinião e ciência. O conhecimento
científico se distingue da evidência básica e do senso comum mediante o seu encadeamento racional
das coisas do mundo, o que o coloca num outro nível em relação a essas outras dimensões do
conhecimento. Por isso, oferecer um ensino cientifico que despreze essa diferença não nos traz
nenhum benefício, somente gera obstáculos para o conhecimento da cultura científica por parte dos
estudantes. Portanto, podemos entender que na formação do espírito científico, e em nosso caso, na
introdução à Sociologia, outro obstáculo epistemológico a ser considerado é superação da
experiência primeira.
Na medida em que tem como função reconciliar, a qualquer preço, a consciência
comum consigo mesma ao propor explicações, até mesmo contraditórias, a respeito
do mesmo fato, as opiniões primeiras sobre os fatos sociais apresentam-se como
uma coletânea falsamente sistematizada de julgamentos com uso alternativo.
(BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1999, p. 23-24)
Dentro da experiência primeira temos notadamente dois momentos que se retroalimentam: o
primeiro contato e o senso comum. Em relação ao primeiro contato (empirismo) podemos dizer que
é aquele indutivo, que concebe o conhecimento como derivação da simples observação, onde a
verdade é aquilo que está diante dos nossos olhos. Esse tipo de conhecimento busca oferecer uma
satisfação imediata a nossa curiosidade, substituindo o conhecimento pelas imagens, pelas
representações, pela aparência. Não nos oferece com exatidão os fenômenos, pois, a sua descrição
ainda não está ordenada.
Essa forma de conhecimento produzido por uma adesão imediata as observações particulares
e subjetivas, gera um conhecimento distorcido. “A primeira representação pela qual o desconhecido
declara-se conhecido faz tanto bem que a consideramos como verdadeira” (BOURDIEU;
CHAMBOREDON; PASSERON, 1999, p. 38). O ensejo é de tornar conhecido alguma coisa que é
desconhecida ao estudante, a qualquer custo, mesmo que de maneira desordenada. Uma das
características mais gerais desse pensamento é ver no mundo as atitudes, os valores e as posições
sempre em termos dicotomizados, ou seja, uni-dimensionais. O problema não é recorrer ao uso de
determinadas “imagens” como objeto de estudo ou como recurso metodológico, mas é tomá-las
como explicação do real significado das coisas, sem fazer as devidas mediações.
Tais esquemas de interpretação, sob a aparência da metáfora e da homonímia, cria
uma filosofia inadequada da vida social e, sobretudo, desencoraja a busca da
explicação científica, fornecendo sem grandes esforços uma aparência de
explicação. (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1999, p. 34)
9
O ensino de Sociologia tem que fugir desse tipo de conhecimento, pois, “no conhecimento
vulgar, os fatos são muito precocemente implicados em razões. Do fato à idéia, o percurso é muito
curto. A impressão é que basta considerar o fato” (BACHELARD, 1999, p. 55). Não basta somente
fazer com que o estudante saiba da existência dos fenômenos sociais contraditórios, a partir da
observação e da descrição do que ele vê, é preciso provê-lo de instrumentos para que ele vá além,
caso contrário, do ponto de vista do conhecimento, ele ficará preso a esfera da constatação, o que
inviabiliza a possibilidade de construção e ruptura. É por isso que ele deve saber que esse conjunto
de fatos se reportam á alguma coisa e que toda observação necessita de conceitos e teorias.
O outro momento da experiência primeira são os conhecimentos de senso comum. Esse tipo
de conhecimento baseia-se em opiniões comprometidas com determinados valores e crenças, e
também reporta à um conjunto de informações não sistematizadas. São aqueles conhecimentos que
aprendemos por processos conscientes e inconscientes, e que constituem nossa bagagem cultural.
Esse conhecimento fragmentado inclui doutrinas religiosas, ideologias, informações massificadas,
experiência pessoal, preconceitos, etc..
O senso comum é um “conhecimento” evidente que pensa o que existe tal como
existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo
mesma. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A ciência,
para se constituir, tem de romper com essas evidências e com o “código de leitura”
do real que elas constituem. (SANTOS, 1989, p. 32)
É importante considerar que tanto o senso comum como o primeiro contato qualificam suas
opiniões no que há de mais básico nos fenômenos sociais, as evidências. Mas vale ressaltar, só para
não haver confusão, que o conhecimento de senso comum se distingue do primeiro contato
justamente por imprimir em sua análise uma carga valorativa. Ele não é um conhecimento
meramente empírico, na medida em que vem revestido de uma opinião que sempre aparece como
mais apropriada para justificar e argumentar em favor do que julgamos ser aceitável moralmente. É
o senso comum a forma mais corrente de conhecimento, uma vez que é ele o substrato das nossa
ações e comportamentos cotidianos, e por isso que abandonar os conhecimentos do senso comum é
um sacrifício difícil. Assim, nas escolas e nas salas de aula, é ele que reina.
Então, trazendo essa noção para a questão do ensino escolar, em específico o de Sociologia
no Ensino Médio, é preciso compreender os limites da participação do senso comum na base sobre
a qual se constrói o conhecimento. É indiscutível, que de forma elementar o senso comum é
importante dentro do processo escolar de socialização, mas mesmo assim, as práticas de ensino
comprometidas com a ciência precisam nortear a superação desse conhecimento. Veja bem, o senso
comum é sempre parte, mas nunca o produto do conhecimento, ou como diria Marx, o espontâneo é
o embrião da consciência, mas nunca a própria consciência. As inconsistências e os conflitos
inerentes ao senso comum obscurecem a percepção que se tem sobre as nossas condições reais de
10
existência, e produz um tipo de conhecimento igualmente falso.
Para melhor caracterizar esse senso comum no ensino de Sociologia, podemos apontar que
ele esta marcadamente presente em atividades próprias a epistemologia do professor, tais como:
resumos e receituários, questionamentos empobrecidos pela falta de mediação com a teoria,
respostas dogmáticas, uso indiscriminado e acrítico dos conceitos, exemplos desarticulados e pouco
contextualizados onde o único objetivo é a verificação absoluta da teoria, valorização excessiva de
determinadas categorias, reflexões empobrecidas baseadas em informações jornalísticas, e por ai
vai. O senso comum busca oferecer uma base segura para o conhecimento a partir da convergência
de um entendimento assistemático dos fatos, o que, a meu ver, representa o oposto da justificativa
de se estudar Sociologia na escola, que é aproximar o estudante da aplicação do ponto de vista
científico para a observação e a explicação dos fenômenos sociais.
A partir da análise dessas duas dimensões da experiência primeira abre-se uma possibilidade
para percebermos como que elas se constituem como obstáculos epistemológicos ao conhecimento
científico/sociológico, a medida em que ambas são geradoras de noções muito vagas e, por vezes
distantes da realidade, o que não pode ser aceito num processo de produção de conhecimento que se
revindica científico, como é o caso do ensino de Sociologia no Ensino Médio. A produção desse
tipo de conhecimento comumente está aparelhada com pensamentos ideológicos, dando assim
soluções também ideológicas às dificuldades reais.
Portanto, uma prática de ensino que as tenha como bastião acaba matando a ciência, pois,
condena os estudantes ao eterno campo da constatação e da reprodução, sem conseguir que seu
desempenho seja adequado, já que não contribui com o crescimento e progresso do conhecimento
alheio. A intenção de resgatar a experiência primeira como obstáculo epistemológico serviu para
demonstrar aquilo que não é ciência, que não é Sociologia. Serve também para estabelecer uma
crítica às práticas de ensino que se vinculam a ela, práticas comprometidas com o senso comum
pedagógico e que concebem o ato de ensinar ciência como uma tarefa simples. Romper com esse
quadro exige, basicamente, abandonar o conforto dessas práticas, e enfrentar a realidade
conflituosa, assumindo uma responsabilidade mais contextualizada com a sua própria existência.
A seguir, dando continuidade à nossa seção sobre os obstáculos epistemológicos que se
apresentam para o ensino de Sociologia, e que nos remetem à reflexões também epistemológicas
acerca das nossas práticas pedagógicas nas salas de aula, indicaremos um novo obstáculo, que se
estabelece como consequência direta desse ensino baseado na experiência primeira.
Como já vimos anteriormente, a doutrina sociológica, seja em sua dimensão científica
acadêmica ou de saber escolar, refere-se a fenômenos extremamente complexos, e que não podem
em grau algum se apresentar como respostas previsíveis, que valorizam a simplificação e a
vulgaridade. Mas acontece, que muitas vezes os professores, influenciados por suas escolhas
11
políticas ou não, mas angustiados e ansiosos em transformar os conhecimentos sociológicos em
algo palatável para o público escolar, tendem a reduzi-lo em algo atrativo ou até mesmo ilustrativo,
para que os interesses ou a mobilização dos estudantes sejam contemplados. É nesse movimento
imperativo que surge o obstáculo epistemológico que podemos chamar de Sociologia dos
observadores iludidos.
A Sociologia dos observadores iludidos, como o próprio nome já faz referência, diz respeito
a compreensão de uma prática de ensino que descarta algumas características marcantes do
processo de conhecimento e de aprendizagem, pois, não prioriza a problematização dos
conhecimentos sociológicos, além de operar como uma simples transposição didática dos
conteúdos, e que na maioria dos casos, limita-se a explicar os fatos como fatos descolados das leis
gerais. É um tipo de prática baseada num entendimento positivista da relação entre sujeito e objeto
do conhecimento. Parafraseando Gaston Bachelard, viemos constatar a implantação de uma era da
facilidade que retira do pensamento científico o sentido de problema, logo, a mola do progresso.
Muitas vezes, a busca apressada e sem rigor por definir ou classificar os fenômenos
analisados, tem como consequência um tipo de conhecimento sem ligação com o que há de
essencial no objeto de estudo. Essas características produzem um ensino que não coloca o sujeito da
aprendizagem a questionar o papel da Sociologia enquanto compreensão das relações sociais
históricas e da sua própria existência. Mas, ora, esse não é um dos objetivos centrais da Sociologia
no Ensino Médio?
Essa Sociologia dos observadores iludidos gera uma compreensão dos estudantes acerca dos
conceitos sociológicos partilhada de uma visão mistificada da explicação em detrimento da busca
pela causalidade efetiva e real dos acontecimentos. Os conceitos, inclusive aqueles mais complexos,
aparecem como resultados da simples observação empírica da realidade, e não passam de simples
conjuntos de palavras ou de nomes dados as coisas, e por isso podem ser aplicados
indiscriminadamente a qualquer situação ou caso particular. Não é preciso compreende-lo, basta vê-
lo. Neste caso, a apreensão sociológica da realidade fica sujeita ao acaso e a aleatoriedade, e não a
ciência, pois, as ligações teóricas são desprezadas.
Em resumo, no ensino elementar, as experiências muito marcantes, cheia de
imagens, são falsos centros de interesse. É indispensável que o professor passe
continuamente da mesa de experiencias para a lousa, a fim de extrair o mais
depressa possível o abstrato do concreto. Quando voltar à experiência, estará mais
preparado para distinguir os aspectos orgânicos do fenômeno. A experiencia é feita
para ilustrar um teorema. (BACHELARD, 1999, p. 50)
Normalmente, esse tipo de prática apresenta uma tendência a generalização e aos resumos, o
que costuma diminuir a dificuldade dos problemas da Sociologia, quando não o eliminam por
completo em certos casos. É comum nos depararmos com um ensino de Sociologia sem problemas,
12
feito só de constatações e de respostas prontas. Como é possível sustentar uma construção racional
coerente, sem que o professor equacione a experiência empírica com a formulação de um problema
sociológico. Esse fato só reforça a crise de sentido que o ensino de Sociologia atravessa na escola, e
como consequência, ainda fornece os elementos estruturantes para o surgimento de obstáculos
epistemológicos para o desenvolvimento do espírito científico.
O espírito científico proíbe que tenhamos uma opinião sobre questões que não
compreendemos, sobre questões que não sabemos formular com clareza. Em
primeiro lugar, é preciso saber formular problemas. E, digam o que disserem, na
vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. É justamente
esse sentido do problema que caracteriza o verdadeiro espírito científico. Para o
espírito cientifico, todo conhecimento é resposta a uma pergunta. Se não há
pergunta, não pode haver conhecimento científico. Nada é evidente. Nada é
gratuito. Tudo é construído. (BACHELARD, 1999, p.18)
Portanto, essa situação nos revela um conhecimento de Sociologia na escola totalmente
esvaziado de seu princípio fundamental, e que não prioriza o real sentido do espírito científico.
Desta maneira, supor que a Sociologia assim ensinada possa se tornar explicação da realidade, ou
de maneira mais ousada, autoconsciência da realidade parece farsesco. Aliás estamos muito longe
disso, pois, com essa situação, o que estamos valorizando é a ilusão que se cria nos estudantes com
a falsa sensação de estarmos ensinando-os a “pensar sociologicamente”, através de algumas noções
limitadas inculcadas por nos professores, e que reforçam o tipo de legitimidade que o poder oficial
quer. O conteúdo das nossas ações não deveria estar mais influenciado pelas facilidades
pedagógicas da relação entre ensino e aprendizagem do que pela coerência científica da ciência de
referência.
[...] como é possível que cada um não se sinta um pouco sociólogo quando as
análises do “sociólogo” concordam completamente com as afirmações da
tagarelagem cotidiana e quando o discurso do analista e as afirmações analisadas
estão separados apenas pela barreira frágil das aspas. (BOURDIEU;
CHAMBOREDON; PASSERON, 1999, p. 36-37)
Em hipótese alguma, estamos fazendo apologia à um ensino que esteja mais estritamente
ligado à reprodução dos modelos consagrados nos cursos acadêmicos, somente alertamos para a
necessidade de se ter certos cuidados para não desfiguramos totalmente a Sociologia enquanto saber
escolar, pois assim ela não se justifica no currículo geral do Ensino Médio. Quando propomos um
ensino que despreza a busca pela compreensão das condições sociais e culturais historicamente
determinadas, estamos sendo pragmáticos e desonestos com a nossa ciência, e principalmente, com
nossos estudantes.
Produzir conhecimento sociológico representa confrontar o dado empírico, não se
restringindo somente a ele, trata-se de um movimento de negação para produzir a síntese. Para
Bourdieu (1999), o sociólogo nunca conseguirá acabar com a Sociologia espontânea, mas nem por
13
isso deve deixar de impor uma polêmica incessante contra essa evidência. “Nada está
processualmente completo, nem poderia ser, o conhecimento crítico flagra as brechas incompletas e
planta nelas estratégias de intervenção alternativa” (DEMO, 2002, p. 127).
Seguindo a prática dos nossos professores parece até que a “cultura” sociológica é formada
somente por grandes generalidades, por explicações fenomenológicas simples e de fácil apreensão.
Costumam colocar, no limiar da ciência sociológica, grandes constatações, verdades ou definições
intocáveis que possuem potencial explicativo a priori. No Ensino Médio, “seria obviamente
tendencioso optar por um certo tipo de academicismo que se contenta em transmitir como
conhecimento único e definitivo aquele que atende a certos requisitos lógicos de aparente rigor
formal e de generalização absoluta” (FORACCHI; MARTINS, 1984, p. 01).
Precisar, retificar, diversificar são tipos de pensamento dinâmico que fogem da
certeza e da unidade, e que encontram nos sistemas homogêneos mais obstáculos
do que estimulo. Em resumo, o homem movido pelo espirito cientifico deseja
saber, mas para, imediatamente, melhor questionar. (BACHELARD, 1999, p. 21)
Romper com a Sociologia dos observadores iludidos significa, por exemplo, resgatar aquilo
que Charles Wrigth Mills em seu famoso livro “A imaginação sociológica” (1965), descreve como a
capacidade que os indivíduos possuem de passar de uma perspectiva à outra por meio da
imaginação sociológica. Através dela os homens podem perceber o que está acontecendo no mundo,
e compreender o que está acontecendo com eles mesmos dentro da sociedade moderna.
A imaginação sociológica capacita seu possuidor a compreender o cenário histórico
mais amplo, em termos de seu significado para a vida íntima e para a carreira
exterior de numerosos indivíduos. Permite-lhe levar em conta como os indivíduos,
na agitação de sua experiência diária, adquirem freqüentemente uma consciência
falsa de suas posições sociais. Dentro dessa agitação, busca-se a estrutura da
sociedade moderna, e dentro dessa estrutura são formuladas as psicologias de
diferentes homens e mulheres. (MILLS, 1965, p. 11)
O que quero salientar é a importância de se aprofundar com os estudantes alguns conceitos
sociológicos para iniciar o desenvolvimento do espírito científico neles. Assim, nossa prática de
ensino de Sociologia deve se preocupar com os aspectos qualitativos da relação de ensino e
aprendizagem, e não somente com a quantidade de conteúdos ensinados visando o vestibular e
outras demandas. O professor que conseguir, ao final do Ensino Médio, ter suscitado nos
estudantes, mesmo que de maneira influenciada, a motivação para a reflexão sobre as contradições e
as relações sociais que envolvem a sua existência individual e a vida em sociedade, ou seja, elevar-
se em caminho de superação do singular para o universal, terá alcançado o objetivo máximo do
ensino de Sociologia na escola.
Em relação a esses vários obstáculos epistemológicos criados pelas fragilidades do ensino
que fomos apresentando ao longo do texto, podemos afirmar que as conseqüências para o ensino e o
14
conhecimento são basicamente as mesmas, pois, em todas as situações os estudantes são pegos pela
falta de esclarecimento em relação a formulação dos problemas sociológicos. Reflexo disso, é a
recorrência das indagações por parte dos estudantes sobre o que é e para que serve a Sociologia.
Não podemos condenar esse tipo de dúvida, uma vez que a experiência nos mostra que essas
questões estão sendo deixadas de lado dentro das salas de aula.
“Embora seja comum reduzir o saber pensar ao domínio do raciocínio lógico, hoje estamos
longe dessa simplificação, porque já não basta observar na inteligencia apenas domínios de
conteúdo ou o sentido reprodutivo de informações copiadas” (DEMO, 2002, p. 124), por isso, a
Sociologia no Ensino Médio deve pelo menos em alguns momentos cruciais deixar que as questões
se coloquem como problemas não circunsisados, para que o estudante perca por hora a sua posição
de espectador, assumindo a condição de quem reconstrói o amálgama; o estudante deve também
correr alguns riscos do ponto de vista reflexivo, não pode só ser repositório.
As idéias, as inquietações, os problemas, e até as paixões, precisam estar presentes na
dosagem certa, se não o nosso ensino estará consumido pela frigidez de uma cultura burguesa.
Nossos professores parecem estar consumidos pela cansativa rotinização da sua prática, e por isso
costumam ficar a margem de maiores inovações. Nessas condições, muitos parecem preocupar-se,
única e ostensivamente, com as questões mais imediatas e que precisam de respostas rápidas,
limitando sua inserção nos conhecimentos ao âmbito rotineiro de suas salas de aula.
Em um plano mais geral, existem elementos da vida social que precisam ser estimulados e
problematizados de maneira criativa e inovadora na escola, como os valores de justiça social, de
liberdade e de igualdade. A verdadeira educação também consiste em levar os estudantes a terem
condições e a capacidade de colocar perguntas e argumentá-las, esse acontecimento representa, num
certo sentido, a construção dos caminhos para a tomada de consciência da sociedade,
fundamentalmente para os estudantes da escola pública.
3. Sociologia no ensino médio: crítica ou comformidade?
O levantamento de algumas dessas questões pontuais que tangem para os problemas
concretos relativos as práticas de ensino de Sociologia nas escolas, se constitui como uma
preocupação importante, a medida que junto com o debate institucional acerca do seu retorno ao
Ensino Médio, emerge também a necessidade de se construir a sua legitimidade em relação aos
currículos escolares, a sociedade, e a própria academia. Isso significa para nós questionar a sua
validade e relevância, o que nos remete as questões relativas a qualidade do ensino, a relação de
ensino e aprendizagem, a integridade intelectual do trabalho do professor, os conteúdos, etc..
A Sociologia no Ensino Médio como vem sendo talhada, parece ser consequência da
implantação de uma reforma do saber que diminui a dificuldade de seus problemas e que
15
desconhece o seu verdadeiro espírito científico. Ela tem se contentado em evocar as explicações
pelo simples, e pelas naturezas simples encontrar sua base explicativa em fenômenos mais
particulares, como a mídia, por exemplo. Essa relação conflituosa coloca em xeque a sua própria
justificativa de inserção curricular, já que essa pressupõe algo mítico e atribui um caráter renovador
a sua prática.
Aliás, suas práticas pedagógicas de ensino escolar, considerando todo o contexto da escola
instrucionista, se encontram inapelavelmente amorfas, pelo fato de que, não proporcionam aos
estudantes, entre tantos outros, os momentos da experimentação, da investigação, afastando-o dos
objetos do real. O seu ensino tem fracassado, por vários motivos, internos e externos, são
emblemáticos o reducionismo conceitual dos professores sobre a natureza da ciência sociológica, a
confusão acerca dos processos de aprendizagem, a artificialidade dos métodos pedagógicos, a
oposição entre orientação e transmissão.
Não tenho dúvidas de que a maioria dos professores sintam-se frustrados quanto a utilização
pedagógica daquilo que estão ensinando. Essa não é a questão, o que acontece é que nem sempre
eles conseguem desenvolver uma visão crítica a respeito de seu trabalho, o que dá vazão ao
surgimento dos obstáculos epistemológicos em suas práticas de ensino, e ainda, principalmente, nas
escolas públicas, acabam criando e disseminando culturas e normas próprias de comportamento que
comprometem a relevância do ensino de Sociologia. De fato, essa é uma característica que pertence
a todos os professores de outros campos, contudo, isso tem uma implicação essencial para a
Sociologia que não encontramos talvez nas outras disciplinas, que é o fato do professor ser também
um cientista social ou um sociólogo, o que nos faz esperar sempre por um posicionamento político,
seja por uma bandeira ou por outra. A falta desta posição parece criar uma certa antítese entre teoria
e prática, e que pode representar a demissão do caráter desmistificador e desencantador da
Sociologia, o que nos coloca a pensar sobre o teor de criticidade e aplicabilidade da própria
Sociologia no Ensino Médio.
Absolutamente, não estamos queremos reproduzir uma representação preconceituosa e
depreciativa dos professores. Não se trata de explicar o complexo problema do “fracasso” escolar a
partir de comportamentos isolados de um ou outro agente da vida escolar. Atribuir a culpa ao
professor, seria intransigentes, uma vez que no centro deste tipo análise, devem encontrar-se as
políticas educacionais e a sua relação com as condições concretas da escola e do ensino, a partir das
contradições presentes na sociedade. Neutralizar as relações de poder instaladas nessas práticas
(relação entre os participantes da vida escolar, os conteúdos ensinados, os métodos de ensino) seria
descartar a submissão da escola a lógica econômica e social capitalista.
Entretanto, nosso enfoque é outro, o queremos demonstrar é que está em curso um dada
crise de sentido da Sociologia no Ensino Médio que produz efeitos diretos no processo de ensino e
16
aprendizagem. Por opção metodológica, neste estudo nos concentramos nas questões relativas ao
ensino e a sua dimensão na crise. Essa escolha se deu por acharmos que parte da solução dessa crise
de sentido da Sociologia no Ensino Médio pode ser encontrada na responsabilidade e na habilidade
do professor, não na culpa. É evidente, que essa crise tem vários sintomas e os seus fracassos (e o
dos estudantes) não serão solucionados só com um bom desempenho dos professores. Entretanto, o
que estamos vendo é uma disciplina, que pode até não ser, mas que se revindica crítica no Ensino
Médio (ver Orientações Curriculares Nacionais, Diretrizes e Parâmetros Curriculares) se
transformar em razão instrumental.
Foi a partir disso, que surgiu a idéia de trazer a discussão sobre os obstáculos
epistemológicos, justamente, para demonstrar como que as nossas práticas de ensino estão
comprometendo a legitimidade da Sociologia na escola. Mas também, serve para nos chamar
atenção da viabilidade de uma prática de ensino de Sociologia mais relevante para o sujeito do
conhecimento, desde de que o nosso senso comum pedagógico seja superado, o que depende em
muitos casos, da nossa disposição em rever as práticas de intervenção, assumindo uma outra postura
frente ao ensino.
É possível darmos um impulso criador para fecundar as nossas aulas, a partir da seleção
criteriosa dos métodos e das nossas ações, no sentido de superar os obstáculos epistemológicos. As
aulas de Sociologia não podem pecar pela falta de vida, pela estaticidade. A grande dificuldade está
na pertinácia destes obstáculos epistemológicos que só uma constante vigilância epistemológica
consegue superar. Fazer a vigilância significa deixar claro aos professores que existe uma diferença
qualitativa entre as possibilidades existentes para ensinar Sociologia: ou ensinamos a partir de uma
racionalidade técnica para a rápida aprendizagem dos conceitos e o entendimento mecânico das
coisas do mundo, ou assumimos definitivamente que o ensino de Sociologia precisa e merece ser
ensinado de forma a favorecer a formação do espírito científico e visar a inserção crítica do sujeito
no mundo.
Observando as implicações que estes obstáculos epistemológicos apresentados têm para o
ensino de Sociologia e para a produção de conhecimento, e ainda, somando-se outras contradições
do processo escolar, não é enfadonho supor a existência de uma crise de sentido da Sociologia no
Ensino Médio. A palavra “crise”, no nosso sentido, fala da condição precária do ensino de
Sociologia, o que envolve seu currículo e a epistemologia de seus professores, trata ainda, de como
esse ensino enraizado numa realidade contraditória defronta-se com a necessidade de se justificar
enquanto ciência desmistificadora.
Opto por utilizar a terminologia “crise”, por entender que ela nos permite analisar o
momento crítico vivido pela Sociologia no Ensino Médio, a partir da complexidade das suas
relações sociais constitutivas, além de fornecer a possibilidade de construção de espaços mais
17
realistas para enfrentar essas dificuldades. A idéia de “crise” representa também a possibilidade de
libertação e de escolha entre alguns caminhos, o que nos leva a considerar as hipóteses de
interrupção ou de ruptura desse processo de ensino que está em jogo, já que as crises tem reflexo
tanto na decadência como no desenvolvimento dos novos acontecimentos.
A Sociologia no Ensino Médio atravessa um momento de crise de sentido, a medida em que
seus pressupostos originais, dos oficiais até os mais idealistas, não se concretizaram na prática, e em
hipótese, talvez jamais se concretizem. Contudo, esse quadro de crise de sentido se desenha quando
vislumbramos que o ensino de Sociologia não tem conseguido cumprir com a sua “função”
essencial, que é proporcionar aos estudantes instrumentos teóricos e metodológicos, para auxiliar de
maneira criativa a compreensão das contradições e irracionalidades da sociedade moderna. O que
não invalida, de forma alguma, todo o processo de luta política para a sua implementação e, todo o
simbolismo e relevância que a Sociologia representa como interpretação factível do mundo.
Desta forma, acredito que agora é cabível aos envolvidos fazer uma leitura mais realista das
possibilidades dessa inserção da Sociologia na escola. Não estamos querendo abrandar ou limitar
demais o conceito de Sociologia no Ensino Médio, muito menos minimizar a sua relevância. Tal
análise somente sugere que um pouco de ceticismo com relação as suas atividades, é algo
fundamental para pensarmos em um desenvolvimento curricular mais adequado com as suas
possibilidades futuras.
Isso se justifica, já que essa crise agrava-se ainda, pelo fato, de que o ensino de Sociologia
aparentemente tem servido apenas como discurso ideológico de um princípio educativo que visa
“humanizar-se”, para mascarar as suas formas excludentes de dominação e inculcação. Se não
estarmos atentos à esse risco, o que pode acontecer, e já esta acontecendo, é o paulatino
empobrecimento do seu objeto e a consequente perda de algumas das suas características essenciais
no campo da crítica, fato que contribui para sua conformação em técnica social. Julgamos que o
ensino de Sociologia se justifica em qualquer situação, porém, a sua eficácia está seriamente
comprometida num sistema educacional onde a educação é vista em termos técnicos e
profissionalizante, e que não privilegia o esclarecimento do espírito humano. A adoção de métodos
imediatistas, o descaso pela educação, a desvalorização dos professores, as precárias condições de
trabalho, todas essas carcterísticas, marcas de uma cultura tecnicista e de massas que a nossa escola
é partidaria, acaba propagando um ensino de Sociologia que garante muito pouco aos estudantes,
nem poder de reflexão e nem o ímpeto de participação política.
A mesma escola que nos ensina, contribui com o desmembramento do potencial criativo dos
seus estudantes e o direito deles em transformar suas realidades. Frente ao paradigma educacional
regente, cuja a carga valorativa tenciona para uma formação conformista e de capitulação para com
as demandas impostas pelo real estado das coisas, não se tem espaço no cotidiano escolar para as
18
utopias e revoltas, as situações que colocam em xeque a ordem são constantemente reprimidas.
De que maneira essa atividade de ensino, neste ambiente, pode prestar-se a missão que lhe
foi atribuída? Não é fácil introduzir noções mais humanísticas num contexto totalmente objetivado,
mas também não podemos rejeitar sumariamente a possibilidade de que o ensino de Sociologia
pode, não obstante, ter certo êxito na escola, desde que a Sociologia não seja encarada como uma
tarefa humanitária de salvação. Algumas atitudes podem reforçar o ensino de Sociologia, e fazer
com que ele possa atingir um certo teor de relevância política. Por exemplo, a contínua
comunicação com outras disciplinas que se ocupam vitalmente da condição humana, como a
história e a filosofia; estabelecer como motivação as necessidades humanas e não os dogmatismos;
comprometer-se seletivamente com a investigação criteriosa; buscar a compreenção a partir de suas
teorias e métodos.
Tudo isso constitui possibilidades existênciais da atividade sociológica no Ensino Médio.
Agora, o que fazer a partir disso, uma vez que o sistema educacional não nos dá pistas de
transfomação, é o nosso grande desafio! Essa indagação que fica não é nova, já foi colocada por
vários outros autores, e reacende a questão de pensarmos sobre os desdobramentos futuros da
Sociologia no Ensino Médio.
19
Referências bibliográficas
APPLE, Michael. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe e de
gênero em educação. Tradução de Thomaz Tadeu da Silva, Tina Amado e Vera Maria Moreira.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise
do conhecimento. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BECKER, Fernando. A epistemologia do professor: o cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes,
1993.
BERGER, Peter L. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 28ª ed. Tradução de
Donaldson M. Garschagen. Petrópolis: Vozes, 1986.
BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. A profissão de
sociólogo: preliminares epistemológicas. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira.
Petrópolis: Vozes, 1999.
CHARLOT, Bernard (org.). Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Tradução: Fátima
Murad. Porto Alegre: Artes Médicas Editora, 2001.
CHERVEL, André; COMPÉRE, Marie-Madeleine. As humanidades no ensino. In: Educação e
Pesquisa. Vol.25, n. 2, São Paulo, Julho/Dezembro, 1999.
COLELLO, Silvia M. Gasparian. A escola que (não) ensina a escrever. São Paulo: Paz e Terra,
2007.
CORTELLA, Mario Sérgio. A escola e o conhecimento: fundamentos epistemológicos e
políticos. 12ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2008.
DEMO, Pedro. Complexidade e Aprendizagem: a dinâmica não linear do conhecimento. São
Paulo: Atlas, 2002. (123-143)
FARIA FILHO, Luciano Mendes de (org.). Pensadores sociais e História da Educação. 2ª ed.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
FARIA FILHO, L. M.; GONÇALVES, I. A.; VIDAL, D. G.; PAULILO, A. L.; A cultura escolar
como categoria de análise e como campo de investigação na história da educação brasileira.
Revista Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, nº 1, p. 139 – 159, jan/abr, 2004.
20
FORACCHI, Maria Mencarini; MARTINS, José de Souza. Sociologia e Sociedade: leituras de
introdução à Sociologia. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S/A, 1984.
FORQUIN, Jean-Claude. Escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento
escolar. Tradução de Guacira Lopes Louro. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.
FRIGOTTO, Gaudêncio. Juventude, trabalho e educação no Brasil: perplexidades, desafios e
perspectivas. In: NOVAES, Regina; VANNUCHI, Paulo (org.). Juventude e Sociedade: trabalho,
educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.
GENTILI, Pablo (org.). Pedagogia da exclusão: crítica ao neoliberalismo em educação. 7ª
edição. Petrópolis: Vozes, 2000.
IANNI, Otávio. A polêmica entre Ciências e Humanidades. Seminários Unicamp “Diversidade na
Ciência”. Campinas, 27 e 28 de março, 2003.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Política. Coleção Grandes Cientistas Sociais. Orgs. da coletânea
Manoel L. Belloto e Anna Maria Corrêa. São Paulo: Ática, 1982.
MEDIAÇÕES – Revista de Ciências Sociais / publicação do Departamento de Ciências Sociais,
Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Londrina. - Vol. 1, n. 1 (Jan./Jun. 1996) –
Vol. 12, n. 1 (Jan./Jun. 2007) – Londrina: Midiograf, 2007.
MILLS, C. Wrigth. A imaginação sociológica. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar,
1965. p. 11-18
MINAYO, Maria Cecília de Souza (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 27ª ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (orgs.). Escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes,
1998.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1989.
SPÓSITO, Marília Pontes. (Dês) encontros entre os jovens e a escola. In: FRIGOTTO, Gaudêncio;
CIAVATTA, Maria (orgs.). Ensino Médio: ciência, cultura e trabalho. Brasília: MEC, SEMTEC,
2004.
TAKAGI, Cassiana Tiemi Tedesco. Ensinar Sociologia: análise de recursos do ensino na escola
média. Dissertação (Mestrado – Programa de pós-graduação em Educação – Área de Sociologia da
Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo: s/n, 2007.
21
WALLERSTEIN, Immanuel. Os grandes debates no interior das Ciências Sociais, de 1945 até o
presente. In: Para abrir as Ciências Sociais. Comissão Gulbenkian para a reestruturação das
Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 1996.
Top Related