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“Grande Sertão Veredas” e a Banda de Möbius
Ana Lúcia Magela
A Lemniscata, imagem que figura na primeira e última página do romance
“Grande Sertão Veredas”, de João Guimarães Rosa, mostra-se como um desafio
para a interpretação. O que significaria aquele oito deitado?
Lemniscus, do Latim, ou lemnískos, do Grego, é fita, pequena faixa, atadura pela qual
se representa o infinito, a marca do eterno retorno. Todavia, outras simbologias podem
estar escondidas nesta misteriosa figura.
Aquele romance trata de uma travessia de vida que o personagem Riobaldo
relata, então seria a leminiscata a marcadora de uma plenitude da travessia? Uma
travessia voltada para o infinito? Riobaldo teria conseguido, ao final, realizar esta
travessia? E o resto, aquilo que sobrou da experiência dolorosa narrada num
monólogo, ao outro personagem, interlocutor invisível, silencioso e anônimo?
Aquele ouvinte veio de fora para conhecê-lo:
“O senhor é de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas talvez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que é
*Todas as citações de Guimarães Rosa são de 6ª edição de Grande sertão; veredas da Editora José Olympio, 1968.
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ruim, dentro da gente, a gente perverte [recalca?] sempre por arredar mais de si. Para isso é que o muito se fala? (ROSA, 1968, grifos nossos). (*)
Façamos um parênteses para relembrar um pouco estes personagens: O
interlocutor era sem nome, um homem da cidade, doutor instruído e que anotava em
uma caderneta o que Riobaldo contava (um alter ego?) Por ser de fora o doutor não
conhecia muito o sertão, isto fazia com que Riobaldo tivesse sempre a preocupação
de clarear o que contava, propondo até desenhar os lugares:
“Tamaduá-Tão é um varjaz - que dum topo de ladeira se avistava; e para lá descemos por encanado de cava, quase grota, que a vertente entalha. [...] A bem, como é que vou dar letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo. O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a ponta de cada braço: cada uma é uma... Pois, na de cima, era donde a gente vinha, e a cava. A da banda da mão-direita nossa, isto é, do poente, era a Mata-Grande do Tamaduá-Tão. Rumo a rumo, a da banda da mão-esquerda, a Mata-Pequena do Tamanduá-Tão. A de baixo, o fim do varjaz- que era, em bruto, de repente, a parede da Serra do Tamanduá-Tão, feia, com barrancos escalavrados” (grifos nossos)
Também se desculpava, com frequência, pela rudeza dos hábitos do sertão “O senhor tolere, isto é o sertão”.
Riobaldo já era, então, um homem velho, proprietário de fazenda de criação,
agora, em “range rede”, na varanda de sua casa de fazenda. Bem casado com
Otacília, com prole e agregados, relembrava e relatava sua trajetória de vida de
jagunço pelos sertões de Minas Gerais e Goiás.
Esta relação entre o doutor e Riobaldo já foi descrita como semelhante a uma
experiência psicanalítica. Um analisante que muito fala, com um fluxo de narrativa em
“livre associação”, em geral, repetindo algumas falas: “Viver é muito perigoso”
“Diadorim é a minha neblina” “Meu compadre Quelemém”. Dispunha da escuta
atenta de um ouvinte que raramente interferia na narrativa e a quem ele, Riobaldo,
atribuía um status de pessoa instruída e possuidora de um saber que ele não tinha,
portanto, conferia ao doutor a função de “sujeito suposto saber” (SSS).
Num processo psicanalítico o psicanalista é considerado, pelo cliente, como
“sujeito suposto saber”. A ele é endereçada uma demanda para decifrar o enigma, que
é o sintoma ou a fantasia, o desejo de algo que falta àquele que procura a ajuda.
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O que Riobaldo contava nem sempre demonstrava sentido, mas eram
reminiscências, ás vezes desconexas e paradoxais. Dado que o relato, a enunciação
se fazia em “livre associação” ele pulava de uma descrição para um caso: “Nonada
tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja” para “O
caso de um bezerro” com cara de cão e que foi morto por parecer com o demo. “Sei
que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar,
não pense”. “Desculpa me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. [...] Também, o que é que vale e o que é que não vale?”
Por que Riobaldo se propunha ao relato?
“Empenhar-se na narração de sua vida significa para o protagonista atribuir-lhe um sentido mediante a organização em palavras de sua experiência confusa e aparentemente aleatória, auxiliado por um parceiro compassivo, que lhe devota sua escuta e de quem espera solidariedade” (GALVÃO, W.N. 2008).
Há, inegavelmente, empenho de Riobaldo em sua narração, onde algumas angústias
são facilmente detectadas, mas ficam os não ditos, escondidos em enigmas, como
peças faltantes de um quebra-cabeças e que são da ordem do inconsciente:
“Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para que? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Então careço que o senhor escute bem essas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunço”.[...] O senhor não repare. Demore, que eu conto. A vida da gente nunca tem termo real” [...] “Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma... Meu medo é este”
Procura-se um analista por apresentar algum mal estar, que se manifesta nos
sintomas, nas fantasias, nos sonhos, nos atos falhos. As angústias de Riobaldo, o seu
mal-estar estão submersos em suas aventuras de jagunço:
“Minha vida não deixa benfeitorias. Mas confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não esfria” “Só curtindo desprezo e desgosto é por minha mesma antiga pessoa” “A verdade referida serve para aumentar meu pejo de atribulação” “O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais”. “pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido”
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Não é Riobaldo quem procura o doutor, mas sim este é quem vai em busca das
histórias. Todavia, ao se propor ao relato Riobaldo, declaradamente, atribui ao seu
interlocutor uma sapiência e uma superioridade que coincide com a função de “sujeito
suposto saber” de um analista, assim visto pelo analisando. Mesmo não sendo
conhecedor da vida sertaneja, nem das experiências de Riobaldo, assim ele era visto:
“Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor” [ ] “O senhor é um homem soberano, circunspecto” “Mas, me diga o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?” “Sua alta opinião compõe minha valia” “O senhor é homem de pensar o dos outros como sendo o seu, não é criatura de por denúncia” “O senhor nonada conhece de mim; sabe o muito ou o pouco? [...] O senhor enche uma caderneta”
Há uma dor guardada no grande amor por Diadorim, nunca declarado, nunca
assumido por Riobaldo, nem por Diadorim, mas suspeitado em inúmeras passagens
da história e que só é escancarado diante do corpo, sem vida, da mulher, que ele
acreditava homem. Já era muito tarde e ela estava morta:
“Como todo tempo antes eu não contei ao senhor – e mercê peço: - para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo [...] Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa [...] Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus buritis levados de verdes...”
É permanente a ambiguidade, a dúvida sobre sua sexualidade e quanto aos seus
sentimentos: “Meu corpo gostava de Diadorim. Estendi a mão, para suas formas;
mas, quando ia, bobamente, ele me olhou – os olhos dele não me deixaram. Diadorim, sério, testalto. Tive um gelo. Só os olhos negavam.”
Também uma angústia sufocada, causada pela falta, naquele seu pretendido
pacto com o demônio, na busca da força que o faria vencer o Hermógenes, assassino
do pai de Diadorim, pacto do qual fica sempre a incerteza.
“Lúcifer! Satanaz!... Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? È a gente mesmo, demais [...] Ele não existe, e não apareceu nem respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido [...] Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto. Ao que recebi de volta um adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades” (grifos nossos).
Ele ainda perguntava, já ao final, ao compadre Quelemém: “O senhor acha que a minha alma eu vendi, pactário?”
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Os sintomas misturados com muitas fantasias ele não conseguia simbolizar em
falas, porque não eram dizíveis. “Não escrevo, não falo! – para mim não ser: Não
foi, não é, não fica sendo! Diadorim” [..] “Noite essa, astúcia que tive uma
sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-iris” e procurava saber se
ela não teria uma irmã que pudesse legitimar aquele amor considerado por ele
espúrio: “Gostava dele quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do
ar de meu nariz e do sonho de minhas noites”. Um ato falho fica bem caracterizado
na seguinte passagem:
“Três-tantos impossível, que eu descuidei, e falei: - ...Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... -; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado”
Na práxis psicanalista cabe ao analista facilitar ao analisando ter acesso ao seu
desejo, expressa-lo, e dizer o que não pode ser dito por completo porque, embora
estando “lá” é insuspeitado pelo analisando, esperando pelo deciframento. Ao dizer o
“impossível de ser dito” o cliente passa à consciência de um saber do qual ele não
sabia, um saber aparentemente por ele ignorado, mas que se manifestava nos
sintomas. Por ser uma mensagem codificada está submetida às leis da linguagem.
Assim, o inconsciente está entre o sujeito que diz, ou enuncia, e aquilo que ele diz.
Os atos falhos, chistes, lapsos, sonhos e sintomas, são modos inconscientes
de dizer algo bem particular a cada ser humano. Mas, é na simbolização, na palavra,
que o próprio analisando descobre esse saber por ele inconsciente. Riobaldo ao
relatar sua história de vida busca no doutor a escuta necessária para a abertura da
fresta inconsciente, por onde pode emergir o que está recalcado. Este é seu desejo,
gerado por uma lacuna. “O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria
recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não
posso. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum” “sempre me lembro
dele [do Hermógenes] me lembro mal, atrás de muitas fumaças”. Personagem e
história são ficcionais, não se dispõe de outros dados além do relato, daí não nos ser
possível, na tentativa de nomear o desconhecido, propor um enquadramento
diagnóstico e catalogar a personagem, mas podemos detectar certos traços de
estrutura neurótica em Riobaldo:
“Freud afirma que a perda da realidade diz respeito àquele fragmento de realidade relacionado ao objeto do desejo, sendo a neurose, exatamente, esse segundo tempo, do retorno do recalcado e da constituição da
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fantasia, revelador do fracasso na aceitação da realidade faltosa” (OLIVEIRA, 2008)
Mas... estamos riobaldamente tergiversando. Voltemos à Leminiscata ou Fita
de Möbius. Esta figura do oito deitado foi descoberta de dois matemáticos alemães:
August Ferdinand Möbius e Johann Benedict Listing que, simultaneamente,
estudaram e propuseram a Banda ou Fita de Möbius, ou de Moebius. O primeiro deles
nascido em Schulpforta, na Saxônia, físico, matemático e astrônomo, foi professor na
Universidade de Leipzig e astrônomo da cidade de Grufsuwald. Ambos os
descobridores foram colegas na Universidade de Göttingen, o que explica esta
descoberta simultânea, uma vez que beberam da mesma fonte em suas formações.
Möbius começou seus estudos sobre a Fita, com vistas ao prêmio da Academia de
Paris sobre a teoria geométrica dos Poliedros.
Naquela imagem da Banda ou Fita de Möbius, particularmente
naquele livro, o mais importante da obra rosiana, e que foi dedicado à sua esposa: “A
Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro” poder-se-ia ver uma homenagem
cifrada à mulher amada, isto porque o sobrenome de solteira de Aracy era MOBIUS DE CARVALHO. Esta é uma hipótese plausível...
Mas o que é a Banda ou Fita de Möbius para despertar o interesse de
variadas áreas nas artes e nas ciências, tais como na arquitetura, engenharia,
desenho, música, matemática e literatura, logística, entre outras? Ela subverte as
anteriores noções de espaço e orientabilidade, que naquela época dos anos 1858, não
eram bem compreendidas.
Lacan, através da metáfora da Banda de Möbius, analisa que o inconsciente
não é um subterrâneo, um avesso, mas apenas uma mensagem codificada. A
psicanálise trabalha com o inconsciente concebido por Freud como algo que sabemos
empiricamente que existe porque podemos detectar os efeitos, dá mostras de sua
existência, mas de que, concretamente, não temos provas.
Uma tira de papel ou de tecido, que antes de ligar-se suas duas pontas, dá-se
uma única torção de 180 graus e, só então, liga-se as duas pontas. Se não se fizer
esta torção teremos, ao ligar as duas pontas uma fita euclidiana, com dois lados, mas
com a ligadura em torção teremos a Banda de Möbius.
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tafita
Assim, forma-se esta imagem do oito deitado. A fita apresenta uma só superfície. Se
nós a percorrermos com o dedo ou com uma caneta, que deixe um traço sobre a
superfície, vamos perceber que ela revela um “dentro” e um “fora” no mesmo lado, o
que nos permite senti-la como unilátera - uma figura com só um lado, daí ser chamada
de não orientável, porque não nos oferece nenhum ponto para que saibamos para
onde estamos nos dirigindo. A imagem criada pelo artista gráfico M.C. Escher, onde
formigas caminham pela Fita, nos fornece a ideia da impossibilidade
da dicotomia dentro/fora. A Banda não tem um direito e um avesso, mas sim uma continuidade cujos “lados” só estão separados pelo tempo que se leva a percorrê–la.
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Ela difere de uma banda euclidiana por ser unilátera. A euclidiana é um
pedaço tirado de um tubo, de um cilindro e que, portanto, apresenta duas bandas, uma
dentro e outra fora. Neste pedaço, tirado de um tubo, não conseguiríamos atravessar
de dentro para fora e se o percorrêssemos, estaríamos girando em círculo, ou na
superfície de dentro, ou na de fora. Uma das características da Banda de Möbius, é
que o dentro e o fora estão reunidos numa só superfície. Já fizemos o percurso
através dela e constatamos, empiricamente, que chegamos sempre ao mesmo ponto,
daí ela ser chamada de não orientável, porque não nos direciona para a direita ou
esquerda, para um dentro ou um fora.
Se fizermos a experiência de cortar, medianamente, a Banda de Möbius ao
longo de todo o seu percurso, vamos constatar que ela duplica de tamanho.
Agora, com ela cortada vamos pintar, ou fazer um risco com caneta ao longo
dela, já cortada. O que vai acontecer é que, surpreendentemente, observamos que só
um dos lados ficou pintado! Então o que ocorreu é que, com o corte longitudinal, a
Banda de Möbius tornou-se uma banda bilátera, euclidiana.
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O oito interior, ou contrabanda, como Lacan denominou a Banda de Möbius
coloca as duas cadeias em continuidade. Ele considerou que o “caminhar” pela Banda
rompe com o conceito de dentro/fora, dissolvendo a noção de interior e exterior, o que
cria uma estranheza, uma ruptura, em nosso modo habitual de classificar, subvertendo
a representação espacial comum. Daí a figura da Banda criar um paradoxo, que apoia
uma das noções da experiência psicanalítica. A intuição lacaniana na utilização da
Banda de Möbius na psicanálise nos conduz a pensar que o sujeito, seus objetos e o
mundo existem numa inter-relação complexa em continuidade e não na bipolaridade
do dentro/fora. Assim, o discurso do analisante tem uma estrutura “moebiana”, ou seja:
“Se ele está insatisfeito com seu trabalho e não consegue abandoná-lo é porque esse trabalho colocado no exterior, como algo de que ele poderia fugir, não é tão exterior assim. Ao contrário é muito mais interno à sua condição subjetiva do que ele supõe” (FERNANDES, F.L. 1996,).
A repetição de sua queixa, que revela um mal-estar, é como se o analisando
“andasse” através da Fita de Möbius e o consciente e inconsciente estão em
continuidade, apenas distanciados pelo tempo que se leva a percorrer a Banda. É pela
repetição que o desejo inconsciente não cessa de se fazer presente, se debate,
embora sem palavras, mesmo quando elas são ditas não revelam, não simbolizam,
não alcançam o desejo e a falta continua falta.
"A repetição envolve algo de que, por mais que se tente, não se consegue lembrar. O pensamento não consegue encontrá-lo: O que é isso? [...] O analisando dá voltas e mais voltas numa tentativa de articular o que parece estar em questão, mas não consegue localizá-lo, a menos que o analista aponte o caminho." (ALMEIDA & ATHALLAL, 2008)
Por que o doutor permanece tão silencioso, embora atento? Em sua função de
“sujeito suposto saber” cabe a ele:
“apenas colhê-lha, acolhê-la [a demanda] e relançá-la ao sujeito. Trata-se precisamente de dar a palavra àquilo que até então só encontrava expressão através do sintoma. Antes de serem não-verbais, estes são na verdade hiper-verbais, mas, no entanto, apenas trazendo-os ao regime da palavra pode o sujeito realizar-se plenamente” (MUSSO, 2008).
Para Lacan não há fala sem resposta, mesmo que esta seja o silêncio. Se o
doutor só escutava, sua função era tão importante quanto o bem dizer. Assim, o ato do
analista se dá não através do aconselhamento ou réplica, mas sim na renúncia à
sugestão e da não resposta à demanda, sem que estas atitudes possam ser tomadas
como indiferença:
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“Falar com o estranho assim, que bem ouve e logo longe vai embora, é
um segundo proveito: faz do jeito que eu falasse mais mesmo comigo.” (grifos
nossos). Riobaldo, nesta fala, se mostra auto-reflexivo e, embora, atribua ao doutor
um “suposto saber” percebe que é a ele próprio que fala, ou seja, nada adianta sua
demanda ser endereçada ao “sujeito suposto saber”, pois cabe a ele descobrir-se com
a ajuda do doutor.
Mas, o analisando, no caso Riobaldo, esperava que o analista doutor,
explicitamente, se manifestasse: “O que dirá o senhor eu contando só assim?”
“Sabe o senhor quem ? Mas quem mesmo?” “O senhor me dirá devolvendo minha razão”. Todavia, ao silêncio do doutor. Gerbaser, informa:
“Colette Soler cita diferentes maneiras de interpretar no decorrer de uma análise. Remete a Lacan, que fala em interpretação despercebida e também em interpretação involuntária, uma vez que o analista pode interpretar até com o seu humor, com sua expressão, com a cara que tem, com a maneira como se veste etc” (GERBASE, 2000).
Esta demanda de uma participação explícita do doutor está manifesta em várias passagens da obra:
“O senhor acha que a vida é tristonha?” [ ] “O senhor de repente essa palavra, devolvida, de volta para os portos da minha boca” [ ] “Digo franco: feio o acontecido, feio o narrado. Sei. Por via disso mesmo resumo; não gloso. No fim, o senhor me completa” “Agora, que o senhor ouviu, pergunta faço. Por que foi que eu precisei de encontrar aquele Menino? Toleima , eu sei [...] O senhor não me responda”.
Quando a intervenção do analista (interpretação) se dá é numa oportunidade
onde se vislumbra o “Kairos”, o tempo existencial dos gregos antigos, de caráter
qualitativo, vale dizer, momento adequado para se efetuar o corte. Este é o ato
analítico operador que visa criar uma situação de descontinuidade. Inferimos que
alguma manifestação de interpretação o doutor fazia, pois Riobaldo nos diz:
“O senhor ri certas risadas” “O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar” [ ] “-o que o senhor quer indagar, eu sei. Porque o senhor está pensando alto, em quantidades” [ ] “Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. Também tive”
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Que analogia pode ser feita entre o corte da Banda de a intervenção
psicanalítica? Para GRANON-LAFONT
“é sobre este paradoxo que Lacan apoiará uma das noções centrais de cura analítica: a noção de interpretação.O axioma, ‘a interpretação é o corte’, permite delimitar como este tipo de intervenção do analista descobre o desejo do analisando, mascarado em seu próprio dizer” (1990).
Se sujeito e objeto, no percurso möbiano, ocupavam o mesmo lugar, a mesma
superfície na banda e isto era inapreensível e, portanto, impossível de ser dito, com o
corte o analisando percebe-se distinto do lugar da falta. Ao cortar a Banda de Möbius,
consegui-se abrir a brecha que estancava a recorrência da fala do analisando. Vale
dizer, que com o ato analítico da intervenção, a linearidade da fala é interrompida e
cria-se a descontinuidade. O analisando percebe e atribui significado ao cifrado de sua
fala. Através do corte ele é incitado à tomada de consciência daquele saber latente, e
isto se dá a partir da própria fala do analisando, cortada pela intervenção do analista.
Esta reviravolta ocorre em algum ponto do percurso möbiano, reviravolta que
aponta para um lugar vazio, onde se aloja o desejo, e o desejo é sempre de algo que é
lacunar, pois não se deseja o que já se tem. Há uma tomada de consciência que
resignifica o escondido que é apreendido e detectado como causa do mal-estar.
“Fica claro que o consciente e o inconsciente, ou retorno do recalcado e recalcado, não estão em níveis diferentes do discurso ou em lugares diferentes do psiquismo. Visto que são homogêneos, ambos mantêm uma relação sincrônica na linearidade da fala. Anteriormente, vimos daí derivar a concepção de que a interpretação é o corte que, ao dividir consciente e inconsciente em direito e avesso, estabelece uma descontinuidade, mas também correspondência entre os pontos de cada lado da banda de Möbius” (TRISKA, 2010).
O que Riobaldo fez com os restos?
“Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui quase barranqueiro. Para a velhice vou com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro [...] Amável o senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe [...] Existe é homem humano. Travessia”.
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Riobaldo percebe-se humano, faltoso e sem opção de recursos de delegação de culpa
a entidade extra humana. Todavia, marcas do passado estarão presentes e ele,
liberado daquilo que era intolerável no sintoma, já sem muito sofrimento vai se haver
com os restos. O que conhece de si é pouco, mas suficiente e ele CUMPRE.
De toda operação simbólica há sempre uma sobra que não pode ocupar o
lugar da falta, portanto, conspira contra o estado nirvânico de plenitude. Os restos são
como pegadas, rastros que marcam indelevelmente a passagem – travessia. Com tais
sobras é preciso conviver. “Com os restos se constrói”, tal como são construídos os
mosaicos (PEDÓ,2013).
Teria Riobaldo integrado suas sobras, como um oleiro que constrói o vaso em
torno do vazio? Teria ele tecido uma borda em torno deste vazio? Não para fazê-lo
pleno, porque tal, é da ordem da impossibilidade. Riobaldo, quase barranqueiro, “Só
que uma coisa, a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de
pedras” (grifo nosso). Este a, tão significativo, marcado por Rosa! (seria a falta?) E
Riobaldo se junta ao: “Sertão: estes seus vazios”.
O possível é resignificar os restos, não mais fazer deles o lugar do gozo, mas,
F. Scott Fitzgerald nos lembra em “Suave é a noite”: “as vezes é mais difícil a uma
pessoa privar-se de uma dor do que de uma alegria”.
“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu,
a minha verdade. Foi que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”.
Diadorim, para sempre, será a sua neblina.
Bibliograficas consultadas
ALMEIDA, L.P. & ATHALLAL, R.M.S. O conceito de repetição e sua importância para a teoria psicanalítica. Rev. Agora, Rio de Janeiro: v. 2, n.2, jul/dec., 2008.
CURY, Silvania Del Carrilo. Maktub momento de concluir: Belo Horizonte, 2012.
DOMINIQUE, F. O tempo na experiência da psicanálise. REVISTA USP, São Paulo, n.81, p. 58-71, março/maio 2009.
FERNANDES, F.L. de F. Lacan e a topologia. In: A ciência e a verdade, um comentário. Rio de Janeiro: Ed. Revinter, 1996.
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GALVÃO, W. N. Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
GERBASE, J. Comentários ao Seminário 25 O momento de concluir, em 30/03/00. http://www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/Falar_e_dizer-coment%C3%A1rio.pdf acessado em 02/08/2013.
GRANON-LAFONT, Jeanne. A topologia de Jaques Lacan. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1990.
MAGNO, M.D. Revirão: a topologia da Banda de Moebius; um pensamento para o século II da era freudiana. Nova mente, Novamente, partes I a VI, www.youtube.com/watch?v=ewa-WUK1z8s. acessado em 31/07/2013.
MUSSO, L.G. A transferência é a intromissão do tempo de saber no inconsciente. ANAIS DO V ENCONTRO INTERNACIONAL DA IF-EPFCL Internacional dos Fóruns-Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, São Paulo: 05 e 06 de julho de 2008.
OLIVEIRA, Mariana Sales Bacha Oliveira . O conceito das estruturas clínicas; neurose e psicose para a psicanálise. Revista Científica do HCE. Rio de Janeiro: n.02, ano III, 2008, p.115-122.
PEDÓ, M. O que fazer com os restos? Uma abordagem psicanalítica. WWW.unijui.edu.br/arquivos/clínicapsicologia/informativos/.../emsaio.pdf.
PIMENTEL, D. Transferência e ética; direção da cura. Círculo psicanalítico de Sergipe. WWW.cbp.br/artigos.htm. acessado em 05/08/2013
ROSA, João Guimarães. Grande sertão; veredas. 6ª. Ed., Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1968.
SOLER, C. Interpretação: as respostas do analista. Opção Lacaniana, São Paulo, (13), 1995.
TRISKA. V. Verdade e técnica em psicanálise. http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/23016/000741175.pdf Acessado em 31/07/2013.
Contatos: [email protected]
www.peloburacodafechadura.com.br
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