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    CONSUMO

    Seduo,publicidade eps-modernidadeRESUMOSeduo, publicidade e ps-modernidade, ao contrrio doque indicam os seus crticos, no representam os pilares daexpoliao neoliberal de consumidores ingnuos. Neste tex-to, o autor mostra que pode existir um contedo de emanci-pao nessa trade to condenada.

    ABSTRACTContrary to what their critics hold, seduction, advertisingand postmodernity are not indicative signs of a neoliberalconspiracy aiming at the expoliation of naive consumers. Inthis text the author shows that the above triad, even thoughdespised by many, can have an emancipatory role.

    Gilles LipovetskyFilsofo, autor de O Imprio do efmero e de A Era do vazio.Professor em Grenoble, Frana

    EXISTEM TERMOS QUE, mesmo enraizados eaceitos numa determinada poca, incomo-dam os intelectuais. Seduo, publicidade eps-modernidade formam um trio capaz deatingir a sensibilidade da maioria dos pen-sadores politicamente corretos. sempretil e tranqilizador atacar essa trade sus-peita de ser responsvel por boa parte dosmales do capitalismo contemporneo. Maso que h de srio e de verdadeiro nissotudo?

    Para muitos, abordar os aspectos posi-tivos da moda, o que fiz em O Imprio doefmero, significa estar de acordo com o con-sumismo enquanto mal supremo deste finalde milnio. Tenho dito que no me incomo-da nenhum pouco legitimar a sociedade deconsumo. Sou favorvel a ela. Critico, emcontrapartida, o fato de a sociedade de con-sumo no conseguir incluir todos os indiv-duos na sua esteira. O problema a exclu-so, no o consumo. Dito de outra forma,criticvel no a extenso da sociedade deconsumo, mas o seu dficit. De resto, porsociedade de consumo no se deve enten-der simplesmente um individualismo ego-sta e o reino dos shopping centers. H tam-bm, na atualidade, um retorno da religio,uma preocupao com a identidade, com oreconhecimento e a valorizao de si, com aaceitao do outro. De maneira geral, asafirmaes negativas sobre a sociedade deconsumo revelam os esteretipos, transfor-mados em discursos politicamente corretos,dos anos 60.

    Sejamos claros: a sociedade de consu-mo mais libera do que oprime. A obsessopelo ter, obviamente, domina mais os po-bres do que os ricos, pois vem da necessida-de. Existe, entre tericos apocalpticos, umdiscurso segundo o qual o desejo de consu-mir derivaria da manipulao publicitria.

    falso. A publicidade no conseguefazer com que se deseje o indesejvel. Nos

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    pases europeus ricos, a obsesso pelo terpassou. Hoje, as grandes preocupaes socom o desemprego, com a insegurana, como futuro, com a educao das crianas, comuma nova qualidade de vida e com novasformas de espiritualidade.

    A crtica apocalptica estabeleceu umaequao com vrios problemas:

    moda = seduo + publicidade

    Tudo isso com o fim de reproduzir adesigualdade em sociedades neoliberaisps-modernas. O pilar dessa conspiraoseria a mdia. Separao mecnica, inspira-da num sentimento cristo de austeridadejamais praticado, deixa de lado todos os ele-mentos de abertura e democratizao gera-dos pela moda e pela publicidade. Nemsempre a razo est do lado dos que reivin-dicam o monoplio da indignao e docompromisso social. O pensamento nicoreside tambm na conformidade com umpadro crtico incapaz de reformular-se.

    Hoje, a moda realmente emancipa-dora. Ela era tirnica, por exemplo, na po-ca de Lus XIV, quando a corte estabelecia opadro e aquele que no pudesse segui-loera ridicularizado, excludo, banido. Nohavia margem para a escolha individual.Agora, cada um se veste como bem enten-de. H uma enorme diversificao de mo-delos e, em conseqncia, a relativizao detoda e qualquer forma com pretenso he-gemonia. A democratizao da moda impli-ca a indiferena pela moda. Mesmo em fes-tas em certos palcios, a liberdade predomi-na. O individualismo contemporneo noaceita a imposio de um cnone.

    O problema do cnone no se limita,claro, moda, em se tratando de maneirasde vestir ou de comportar-se. Est tambmno centro das discusses sobre esttica, tan-to em literatura quanto em artes plsticas.Com a morte do discurso de autoridade, aafirmao de um parmetro tornou-se umjogo em que seduo, publicidade e marke-ting desempenham papis fundamentais,mas em constante movimento. Ou seja,

    nada inatacvel ou perene. A posteridade como o horizonte, uma linha que se afasta medida que o indivduo se aproxima. Seexiste, permanece um mistrio. No sepode estipular os critrios de acesso a ela.Como a moda, tudo passageiro.

    Claro que a moda tambm pode pro-vocar excluso. Mas no o essencial. Osjovens, por exemplo, adotam modas exclu-dentes. H, entre eles, uma verdadeira tira-nia de modelos. Quem no se encaixa, re-jeitado. Antes, a juventude seguia o modelodos pais. Isso acabou. Tambm o critrio declasse social cedeu lugar predominnciados grupos de filiao. Os adolescentes tmobsesso por marcas e agem por mimetis-mo, em funo do grupo que integram, ge-rando, sob pretensa forma de diferenciao,um intenso conformismo. Mas isso se diluicom a idade. A intolerncia comportamen-tal dos adolescentes, em relao msica,s roupas, aos gostos, dissolve-se com a en-trada no mundo adulto.

    O novo, enquanto fenmeno da mo-dernidade, segue a mesma lgica da moda:produz maior autonomia em relao aosmodelos. A moda, claro, cria modelos, maseles no so imperativos. Pode-se negociarcom eles, ressignific-los ou simplesmenteignor-los. Vivemos uma busca de estilosque devem exprimir, no a posio social,mas o gosto pessoal e a idade de cada um.Esta tornou-se mais importante do que aexpresso de uma identidade scioecon-mica. Em tudo isso, reaparece sempre omesmo elemento: a suposio de uma influ-ncia nefasta da mdia sobre os indivduos.Ora, os grupos de filiao so mais impor-tantes e filtram todas as mensagens.

    Escrevi, em O Imprio do efmero, queestamos vivendo a apoteose da seduo. Apublicidade libertou-se da racionalidade ar-gumentativa, pela qual se obrigava a decli-nar a composio dos produtos, segundouma lgica utilitria, e mergulhou numimaginrio puro, livre da verossimilhana,aberto criatividade sem entraves, longedo culto da objetividade das coisas. Ora,isso implicou uma revoluo perceptiva de

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    mo dupla: o mundo transformou-se paraque se pudesse atingir essa situao. E issoinflui sobre o imaginrio das pessoas, agu-ando-lhes o apetite pelo ldico, pelo tea-tral, pelo espetculo.

    Entramos numa poca em que o fen-meno grupal se caracteriza pela abertura,pela flexibilidade, pelo transitrio. Os gru-pos indicam uma autonomia que, sem serabsoluta, permite a adoo do convenientea cada um, sem obrigao mimtica e commaleabilidade. Assim, onde muitos enxer-gam manipulao e conformismo, pode-seencontrar satisfao, jogo e gosto pela este-tizao. O consumidor seduzido pela publi-cidade no um enganado, mas um encan-tado. Em sntese, algum que acolhe umaproposio estetizada. Repito minha frmu-la da poca: a publicidade funciona comocosmtico da comunicao.

    As tcnicas publicitrias permitem aeficcia, mas no so totalitrias. No fundo, bobagem afirmar que a publicidade im-pe algo. O totalitarismo tem por lgica areconstruo da condio humana. J a pu-blicidade amplia a aspirao ao bem-estar.Amplia, insisto, no cria. A publicidade fazvender, sem impor mecanicamente compor-tamentos ou produtos. Crucial para as em-presas, funciona como a seduo: s sepode seduzir algum que j esteja predis-posto a ser seduzido. Logo, pressupe umlimite para a persuaso. Alm disso, atuasobre aspectos secundrios da existncia,no sobre o fundamental como o amor, aeducao dos filhos, a poltica, a morte. Osapocalpticos do um poder exorbitante publicidade e mdia, poder que estes nopossuem, mesmo que sejam eficazes. Amaioria da populao, enfim, perfeita-mente indiferente ao jogo da publicidade.

    Essa indiferena no significa neutrali-dade ou recusa permanente. Em cada situa-o, o indivduo negocia com a seduo.No possvel afirmar que milhes se ma-tam por no poderem comprar os smbolosda distino veiculados na mdia. Compraruma BMW ou uma Ferrari produz distin-o. Mas no consumo de massa, pautado

    pela aquisio de produtos ao alcance dequase todos, a distino tem pouca impor-tncia. No caso, funciona, mais uma vez, ocrescimento da autonomia individual e, emfuno disso, a satisfao de demandas pes-soais. Trocando em midos: quase todomundo gostaria de ter uma Ferrari, masnem por isso a maioria cai em depressoprofunda por ter de contentar-se com umveculo funcional e de massa.

    H muito de mitologia na designaoda mdia como vilo da histria contempo-rnea. Na verdade, trata-se de um esquemaexplicativo simplrio, de uma denncia f-cil, embora nunca demonstrada. A mdiano atomiza nem isola. A tcnica dependedo uso. A comunicao e o consumo acen-tuam o individualismo. Mas o relacionalno est ausente de nossas sociedades. Otelefone no matou o contato pessoal. Aocontrrio, quem tem menos acesso tecno-logia permanece mais isolado. O face a faceno morreu nem perdeu importncia. Desa-pareceram, em contrapartida, formas tradi-cionais de socializao, tpicas da vida ruralou das sociedades arcaicas. Nas grandes ci-dades, um em cada trs habitantes vive s.Mas isso no quer dizer, necessariamente,na solido, no significa ausncia de conta-to. A sensao de solido, em todo caso,no resulta da mdia nem da tecnologia.Tem mais, certamente, a ver com a prpriadimenso das cidades.

    A moda e a publicidade influram po-sitivamente no processo de liberao dasmulheres. Nesse sentido, a prpria seduoteve a sua dinmica alterada. Explico emmeu ltimo livro, A Terceira mulher, que aseduo no morreu com o avano do femi-nismo, assim como as diferenas sexuaispermanecero. Contudo, mudou o mecanis-mo da seduo. No se trata mais de umaforma codificada ou padronizada, comonum ritual, mas de algo la carte: a cada uma sua seduo. A ps-modernidade acentuaa diferena em detrimento do mesmo.

    A modernidade, apesar do seu discur-so de ruptura e do seu anseio de liberao,acabou por fortalecer uma idia extrema de

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    moralidade ou, em outros termos, umanova moral. Nela, a seduo e a publicida-de s poderiam ser focalizadas contraditori-amente. Ao mesmo tempo que pregava aemancipao, a modernidade temia o hedo-nismo e a dimenso total da liberdade. Ha-via, no fundamento moderno, uma obses-so por um mundo perfeito e ordenado.Com a ps-modernidade, chegamos ao ps-moralismo. Com o hedonismo, as socieda-des contemporneas entram numa civiliza-o em que a moral herica ou sacrificialno tem mais legitimidade. No se quermais expor a vida por uma causa, ideolgi-ca, poltica ou religiosa. A vida tem maisvalor do que as causas.

    Assim, os valores mudam, passam dosacrifcio ao respeito, tolerncia, ao bem-estar. O sonho do paraso futuro cede lugar busca da satisfao imediata. No se tratade cinismo, mas de um certo pragmatismo.A indignao moral continua a existir, as-sim como a ajuda ao prximo e o humanita-rismo, porm sem rgida disciplina moralou valorizao do risco fsico. Quer-se vivero presente, com a maior intensidade que sepuder alcanar, e no se guardar para umfuturo de gratificaes remotas e compen-sadoras.

    Nada disso cria um universo sem con-flitos ou de igualdade. Homens e mulherescontinuam a recorrer a estratgias de sedu-o diferentes. O feminino permanece anco-rado, principalmente, na valorizao estti-ca do corpo. O masculino apoia-se na posi-o social, no prestgio, no dinheiro, na no-toriedade, etc. At mesmo o humor podeser um sofisticado instrumento de seduo.Cada um, num tabuleiro de jogadas com-plexas, perde e ganha conforme a sua habi-lidade para mover as peas. Todos, porm,buscam o mesmo objetivo: gozar.

    H quem veja no ps-modernismo avitria do niilismo. Insisto em que no con-vm demonizar o niilismo, que diferen-te do individualismo. Para mim, o indivi-dualismo equivale ao desenvolvimento daemancipao. Implica tolerncia, liberdadede escolha e comprometimento sem imposi-

    o. No verdade que estejamos desinte-ressados de tudo. A luta pelos direitos hu-manos est a para demonstrar o contrrio.Em contraposio, experimentamos umapoca de menor regulamentao moral.No cabe a mim ditar o padro sexual demeu vizinho. No tenho razo para crernum valor sexual universalizvel.

    H uma nova regulao dos valoresmorais, com o aprofundamento dos ideaisdo Iluminismo, como o respeito ao outro, atolerncia, a liberdade, a recusa da escravi-do. Nessa nova regulao, a tradio e aIgreja perderam o lugar privilegiado quepossuam. Passamos da iluso de transcen-dncia verdadeira imanncia. Temos umaaxiomtica de base: o humanismo. Sei queisso pode escandalizar os tenores do criti-cismo. No me constranjo. As leituras sobreo avano da barbrie limitam-se a repetirum bordo por comodismo ou falta de ima-ginao.

    H trinta anos, apostar numa utopiapoltica era uma obrigao. Pois bem, noexistem mais utopias coletivas. O neo-indi-vidualismo, porm, no exclui utopias pes-soais e projetos grupais. Trata-se de uma vi-tria da democracia liberal. Na crtica de-mocracia, abriga-se o ressentimento dos in-telectuais marxistas. Em outras palavras,essa crtica identifica o fracasso dos intelec-tuais, obrigados a exagerar, a explorar o es-petacular, para tentarem legitimar-se en-quanto intrpretes do social. O intelectualcrtico s faz sentido se tudo estiver mal.Este fim de sculo assinala uma extraordi-nria crise de identidade dos intelectuais.

    A publicidade, a seduo e a ps-mo-dernidade tm servido de sparring para in-telectuais em busca de legitimao. Enquan-to isso, nas ruas, as pessoas seduzem, pro-movem-se, conquistam-se, sonham, conso-mem e ignoram solenemente a retrica doapocalipse. O cadver insepulto da moder-nidade pranteado aqui e ali, embora, noessencial, j no passe de um emblema dopassado, como uma dessas esttuas recolhi-das das praas centrais dos pases do socia-lismo real.

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    Queira-se ou no, desembarcamos naps-modernidade. No cultuo as etiquetasnem as essncias. Nem me agarro s pala-vras. Tampouco tenho medo delas. Ps-mo-dernidade para mim significa ressaltar umnovo sopro das sociedades democrticas.Representa um corte em relao a dois s-culos de modernismo. Ps-modernidadesignifica tambm a conciliao da economiade mercado com direitos humanos. Logo, aps-modernidade a reconciliao da mo-dernidade consigo mesma. A modernidadesempre esteve dividida, estraalhada, ge-rando fenmenos como o fascismo e o co-munismo. A ps-modernidade evacua osinimigos absolutos da modernidade, emnome da democracia. Este ciclo, comeadoh 40 ou 50 anos, apresenta continuidade edescontinuidade em relao ao passado. Al-guns falam em tardo-modernidade, em so-bremodernidade, em hipermodernidade.Seja qual for o termo, pressupe um fen-meno novo a ser designado.

    Neste ponto, preciso no temer assituaes concretas. A ps-modernidadeequivale sociedade de consumo. Mas no sinnimo de neoliberalismo. Como inter-pret-la: inferno climatizado? Homem uni-dimensional, retomando Marcuse? Socieda-de do espetculo, recuperando Dbord? Ouconsolidao da democracia e aumento donvel de emancipao?

    Existem duas hipteses centrais para oexame das sociedades ocidentais contempo-rneas.

    Na primeira, sobressai o consumo, auniformizao dos modos de vida, a globa-lizao econmica, a hegemonia de certasmarcas e a massificao.

    Na segunda, observa-se a liberaoem relao tradio, s instituies, Igre-ja, ao sagrado, etc., com o conseqente au-mento da autonomia individual.

    Abordar somente a manipulao uma forma de manipular as pessoas. Esta-mos vivendo uma revoluo individualistasubterrnea. Atravs dela, a condio deexistncia est sendo mudada. Estamos lon-ge da barbrie, apesar da desigualdade, da

    excluso, da misria, da solido de muitos,da depresso e da incerteza.

    Estou consciente das repeties queopero em relao ao que disse em outrosmomentos, mas considero necessrio real-ar alguns pontos. Nos anos 60, via-se a so-ciedade de consumo como uma forma detotalitarismo. Na verdade, o mundo estariavivendo dois modos totalitrios concomi-tantes: no Leste europeu, o totalitarismovermelho, dos gulags e do stalinismo. NoOeste, a falsa democracia, liberal, burguesae representativa. Os cidados, convertidosem consumidores, no conseguiriam perce-ber tais armadilhas. Tudo isso se tornou in-sustentvel. Restam, obviamente, os nostl-gicos e os renitentes. Para estes, todo novoargumento uma velha armadilha. No semexem para no cair na cilada.

    A crtica na democracia, pluralista, muito forte. Pode-se atacar tudo, mas huma idia, hoje, incontestvel: o valor daprpria democracia. Tudo se discute, do di-reito dos homossexuais a adotarem crian-as, passando pelo sistema de proteo so-cial e pela defesa do meio ambiente, at aclonagem de seres humanos. No entanto, ademocracia e o mercado predominaro, cer-tamente, por muitos anos como incontorn-veis. Resta saber como organiz-los melhor,como tirar deles mais justia e igualdade,etc. A crtica social revolucionria morreu,no o poder crtico e de presso no interiorda democracia.

    No universo da reflexo, muitos ten-tam explicar as mudanas com base em ve-lhas perspectivas ou dando nova roupagema teorias assentadas. A o tema da mdiavolta ao centro do debate. Pierre Bourdieu,por exemplo, cuja autoridade faz-se sentirem vrios pases, representa o intelectualapocalptico que demoniza a mdia semver que ela tambm possui capacidadesemancipadoras. Sua anlise unidimensio-nal. Ele encarna o intelectual promotor,acusador, ressentido. H m-f em muitasdas anlises sobre a mdia, por exemplo,por parte de gente que no deixa de colheros benefcios da exposio na prpria m-

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    dia. Por outro lado, existe uma dramatiza-o excessiva de certos temas. A crtica,quando apocalptica, equivale estupidez.

    No livro A Dominao masculina, PierreBourdieu sugere que, apesar de todas astransformaes no imaginrio ocidental dosculo 20, a condio da mulher permane-ceu a mesma. Ele cego. No percebe oquanto o lugar da mulher na sociedade mu-dou. Houve a democratizao da vida sexu-al, a diminuio da distncia entre os pa-pis masculino e feminino, a entrada emmassa da mulher no universo do trabalho etantas outras coisas que revolucionaram asituao tradicional homem/mulher. Comoento sustentar que todas as mudanas nopassaram de meras aparncias? A sociolo-gia de certos intelectuais peca pela obsessoda crtica total. Trata-se, em realidade, insis-to, de autolegitimao pelo excesso.

    O sculo 21 no ver, como j indi-quei, a extino das diferenas sexuaiscomo pensam alguns. Depois de sculos dedominao cultural masculina, a mulher vaiassumir, cada vez mais, lugar de destaque.A terceira mulher tem hoje uns 40 anos. Aprimeira foi a da imagem mais tradicional,a dos mitos de Eva e de Pandora, demoni-zada e desprezada pelos homens, tida,constitutivamente, como inferior. A segun-da mulher, a partir da Idade Mdia, come-ou a ser idealizada. Deixou de ser o malpara ser a musa, a me, o objeto de adora-o. Valorizada, sai do inferno para o pe-destal. A terceira mulher, no sculo 21, serainda mais emancipada do que j , atuan-do na poltica, na arte, na direo de empre-sas, em tudo, mais do que nunca. Entrare-mos no sculo da mulher sujeito. E semprecapaz de seduzir. Inclusive, claro, atravsda mdia e da publicidade.

    Depois de sculos de submisso, amulher objeto finalmente passou a ter umfuturo aberto, a ser determinado por suasprticas, escolhas, acertos e erros, e nomais pelas decises dos homens ou pela tra-dio. H uma nova aliana, de resto, entretradio e individualismo, o que tambmconstitui a ps-modernidade. Na primeira

    fase do feminismo, postulava-se uma rup-tura total com o imaginrio anterior. Assimcomo se sonhava com uma sociedade semclasses, projetava-se um mundo sem distin-es sexuais, ao menos funcionais. Hoje, en-tretanto, as mulheres no rejeitam maisuma certa ascendncia sobre coisas como aeducao das crianas, uma postura exis-tencial mais amorosa, a nfase na relaoentre amor e sexualidade. Elas recusam oque impede a autonomia. Por exemplo, ca-sar virgem.

    Certo que inexiste inrcia, o que bemcaracteriza a moda. Deixou-se de lado oideal da ruptura total e adotou-se a prag-mtica da reciclagem. Neste nvel de trans-formao, tem-se uma mulher livre, inde-terminada, aberta para o devir. Pode-secontinuar a valorizar a beleza feminina,mas isso no constitui mais um smbolo dacondio de mulher objeto. Tudo isso fardo sculo 21 um tempo de nova sensibilida-de. A isso, outra vez, chamaremos ps-mo-dernidade.

    Haver uma efervescncia, uma inten-sa sociabilidade entre as mulheres, o queafetar tambm o comportamento masculi-no. Depois do culto da paixo, voltaremos asentimentos mais tranqilos, que eram im-portantes para os epicuristas e em Aristte-les, como a amizade. J estamos experimen-tando o retorno das festas. Na Europa, amsica techno tem servido para mostrar umcorpo social reunido. Haver, enfim, o di-reito superficialidade. Nietzsche dizia quedevemos ser superficiais, por profundida-de.

    Desde Plato h uma desvalorizaodo frvolo, do jogo, do ldico, de tudo o quefaz a leveza fundamental do cotidiano con-tra o drama existencial. Olho novelas de te-leviso e nem por isso deixo de ler livros.H quem deseje ver na superficialidade damdia a explicao para todas as nossas mi-srias, inclusive a da arte contempornea.Ora, esta pobre e no por culpa dos ou-tros. A ps-modernidade encarna, aparen-temente, apenas o superficial. Mas, ao mes-mo tempo, representa o contrrio: obriga-

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    o de rentabilidade, competio, perfor-mance, ser operacional, ter sucesso. Signifi-ca tambm inquietude com o futuro, com asade, angstia provocada pela inseguran-a e pelo desamparo. A existncia cotidiana mais complexa do que indicam os annci-os publicitrios. E sabe-se disso.

    Ningum quer voltar atrs no indivi-dualismo em se tratando de contracepo,divrcio, liberdade de escolha. Quem gosta-ria de retornar rigidez da disciplina parti-dria, aos casamentos arranjados, socieda-de industrial da explorao? Resta-nosavanar em relao sociedade ps-moder-na da excluso. O apocalipse, porm, noacontecer. Nenhum anncio publicitrio,por mais sedutor que seja, convencer osconsumidores ps-modernos a abdicaremda liberdade de escolha que arduamenteconquistaram. Aos demais, resta encontrarcriatividade para fazer valer seus argumen-tos no concorrido mercado das idias n