UNIVERSIDADE BANDEIRANTE DE SÃO PAULO
UNIBAN
CAMPUS MORUMBI II
Geografia e Literatura:
Um Olhar Geográfico em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto
Francisco Ednilson De Oliveira SáGuilherme Menzl
Orientador(a): Ms. Prof.ª Marlene Xavier dos Santos
São Paulo, 2009
Sumário
1.Introdução 1.Geografia e literatura: um breve histórico 1.O lugar da literatura como recurso pedagógico no pensamento geográfico 2.A exclusão de dimensões do imaginário e simbólico na ciência geográfica: uma questão política antes de metodológica 3.O porque dessa exclusão metodológica na geografia 4.A questão da fenomenologia e suas contribuições ao tema 5.Crise da Geografia Tradicional e solicitação à mudanças 6.A crítica à Geografia Cultural. De qual Geografia Cultural falamos 7.Geografia Cultural e novas propostas de abordagens metodológicas: o resgate à literatura 8.Justificando a importância da arte como recurso pedagógico: os “espaços” imprescindíveis à uma análise geográfica que a literatura atinge e a Geografia não. 1.a emoção, intuição, sensibilidade a favor da ação científica 1.Morte e Vida Severina: contextualizando a escolha da obra 2.A obra, o autor 3.A obra constrói uma Geografia da fome: um retrato do Brasil 4.Algumas das possibilidades enquanto conteúdo entre Morte e Vida Severina e a Geografia 5.As migrações/a retirância 6.A população como recurso/a mobilidade como política de Estado 7.O conceito de lugar 1.O lugar hoje: aproximações com o tema 2.O LUGAR: algumas questões sobre o conceito 3.Lugar do cidadão ou do capital? Dilema para a Geografia 8.Questões de Identidade 1.A construção de um mito: a unidade nacional fraca como um retirante, um Severino 2.A relação entre migrações, identidade e não construção de uma unidade nacional 9.Cidadania 1.Afinal de quê cidadania falamos? 2.Cidadania e Geografia 1.Um mapeamento das emoções: espacializando a trama
Por uma abordagem não fragmentada: unindo esses conteúdosO problema das migrações como uma síntese do entrelaçamento entre
cidadania e lugar: uma leitura espacial possível- de volta ao começo: através da história (real) e atualíssima de Severino concluímos que? É possível de falarmos de cidadania à maioria da população que ainda não conquistou nem mesmo o seu lugar de origem? Então, para se falar em cidadania, em geografia, precisamos falar também e primeiro da conquista do lugar.
3. Conclusão.
4. Bibliografia.
1 - Introdução
O presente trabalho procura utilizar a literatura enquanto recurso metodológico tanto
no ensino médio como no fundamental. Para demonstrarmos a importância desse recurso
utilizaremos como estudo de caso o poema Morte e Vida Severina do autor pernambucano
João Cabral de Melo Neto extraindo dele conteúdos geográficos que nos possibilitem uma
visão interdisciplinar da obra estudada. O uso da literatura enquanto recurso pedagógico
aliado à geografia é importante, pois ela (a literatura) tem enorme potencial de abrangência
concernente a temas que são de caráter universal como: amor, ódio, perda, solidariedade,
pobreza e paz, possibilitando sua utilização na produção do conhecimento. Outra
característica importante da literatura é que a mesma é um produto social que carrega em sua
construção vários signos, símbolos e situações vivenciadas pela humanidade em seu
cotidiano. Embora essas questões sejam de caráter subjetivo/abstrato, elas se realizam através
da relação espaço-tempo do educando/indivíduo. Dessa forma, visamos “resgatar” a
sensibilidade do educando criando alternativas para uma aprendizagem mais significativa e,
ao mesmo tempo, mais condizente com sua realidade. Assim, buscamos utilizar a objetividade
da ciência junto à subjetividade literária, resultando assim numa compreensão mais holística
sobre o espaço geográfico e os fenômenos que se originam sobre ele, tendo como base a
literatura.
1 - Geografia e Literatura: um breve histórico.
No mundo ocidental, desde a antiguidade, o espaço geográfico é codificado, para que
nele se dê a localização das atividades humanas, a descrição dos lugares, dos fenômenos
naturais e "sobrenaturais".
A própria palavra geografia, ou grafia da terra, implica na descrição dos fenômenos
observados e, portanto, sujeita à percepção, à leitura de mundo daquele que a grafa. Os relatos
míticos, do sagrado e do profano, impregnados de imagens geográficas, são a interpretação e
representação em linguagem literária, do mundo conhecido e do desconhecido.
Relatos dos feitos humanos, mesmo quando se davam por imagens grafadas nas
paredes das cavernas, repletas de simbolismos, já continham descrições do espaço e seus
fenômenos, neste caso, aqueles que tinham relação direta com a subsistência e reprodução da
vida; animais, caçadas, vida e morte.
O espaço geográfico tem nos relatos de viagens, nos relatos de batalhas, conquistas e
derrotas, deste a "antiguidade", sua expressão mais literária e geográfica, visto que os lugares,
fenômenos naturais e artificiais, e principalmente, os povos contatados, subjugados ou não,
vão permear o imaginário documental destes registros, alguns dos quais sobreviveram até
nossos dias.
Homero, com sua Ilíada, ou Heródoto ou Estrabão, que realizaram estudos
descrevendo os aspectos naturais e sociais das terras, por onde andaram, são geografia e
literatura ao mesmo tempo.
A cartografia, enquanto linguagem, continha, como contém em nossos dias, não só a
descrição gráfica da localização dos lugares e dos fenômenos, mas também a visão subjetiva
da imaginação do mundo vivido. Monteiro1(2002, p.136), define assim essa característica
humana:
"Seja na escala daquela pequena comunidade marítima, no seu limitado espaço
de atuação, seja na escala global hoje conquistada pelas altas tecnologias, o
que existe como traço comum é aquele anseio de entender o espaço em que
se vive"
A carta de Caminha narrando o "achamento" das Terras à sudeste de Portugal, é
literária e geográfica. Hans Staden, em suas peripécias pelo território tupinambá também o é.
Marco Polo, com seu relato, exitou a imaginação com suas descrições do mundo oriental, sua
vastidão, povos e marcos geográficos. Júlio César, com sua narrativa da campanha da Gália,
mostra a importância da geografia enquanto arma estratégica, e não deixa de ser literatura e
filosofia política. A Bíblia, tirado seu aspecto religioso, também contém uma geografia do
Oriente Médio e é literária na medida em que expressa a ação humana, seus dramas e fatos
por sobre o espaço profano e o espaço do sagrado.
1 Monteiro, Carlos A. F. O mapa e a Trama, UFSC, Florianópolis, 2002
Podemos dizer então, que a imaginação literária contém um suporte espacial que, pode
ser utilizado na compreensão dos fenômenos geográficos, físicos (naturais) e humanos e, por
se utilizarem de imagens, que nos remetem à nossa leitura de mundo, os tornam mais
acessíveis e menos "áridos".
Se pensamos que a literatura é, por si mesma, uma leitura de mundo e que
tem sua "ação" nas relações humanas imbricadas no espaço e que essa "ação", a trama (as
histórias), pela qual a "condição humana" é comunicada, então ela tem, necessariamente, que
conter um lugar, uma paisagem, real ou imaginária, aonde se desenrola. Portanto, esse
conteúdo, em nosso estudo, geográfico, implícito ou explícito, pode ser extraído.
Essa questão, a do uso da literatura como recurso na ciência geográfica, discutida
timidamente desde o início do século passado, toma vulto a partir de 1970, com a crise
paradigmática por que passava o pensamento geográfico e que vai dar origem a uma
Geografia Cultural, de cunho humanista e a Geografia Crítica, de cunho marxista, em
oposição a corrente da “nova” geografia quantitativa dominante até então.
Essa corrente da Geografia Cultural, procura colocar o sujeito, como ator e não como
recurso, no centro de seus trabalhos e atenção. Direta ou indiretamente fazendo uso da
fenomenologia, utilizam-se da literatura como fonte para avaliar a originalidade e a
personalidade dos lugares. O lugar, então, é o foco central de seu discurso a medida que neste
é que se realiza a materialidade das relações sociais, do afeto e da identidade. A literatura, por
sua vez, tem sua trama realizada nos lugares, sejam ficcionais ou não, são a representação de
uma determinada localidade baseada no conhecimento/vivência do autor e de sua leitura de
mundo.
O professor geógrafo, pode então, em sala de aula, aliar essa característica da
Geografia, "sondar os possíveis conteúdos geográficos"(Monteiro, 2002, p. 136) em obras
literárias, em nosso caso, "Morte e Vida Severina" de João Cabral de Melo Neto.
Como exemplo, tentaremos mostrar uma possibilidade: a percepção no poema, do
conceito de Meio Natural e Meio Técnico. A trama da obra, se localiza no nordeste brasileiro,
num recorte geográfico que vai do sertão ao litoral pernambucano, no período em que, o país,
passava, e ainda passa, por uma "modernização" das relações sócio-espaciais de produção: a
substituição dos engenhos pelas usinas, dada a necessidade exportadora em função da 2ª
Grande Guerra. A intensificação da urbanização/industrialização do sudeste e de partes
urbano-litorâneas do país, gerando um imaginário "libertador" mas, na realidade, transferindo
a miséria de lugar, dos "sertões nacionais" ao urbano/litoral, às periferias paulistanas, aos
morros cariocas, aos mangues recifenses.
Severino, o personagem da trama, percebe e expressa liricamente a aceleração do
tempo, pela incorporação de novas tecnologias à produção canavieira; a substituição dos
engenhos pelas usinas e a consequente "modernização" dos saberes e do trabalho relacionados
a ela.
"(...)
- Em qualquer das cinco tachas
de um benguê sei cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
- Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu fazer por lá?
- Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
(...)
Severino retirante, se aproximando do Recife, após a travessia do Agreste e da Zona da
Mata, têm a compreensão do tempo acelerado e o diz liricamente:
"(...)
Agora é que compreendo
porque em paragens tão ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vive a fugir dos remansos
a que a paisagem o convida,
com medo de se deter,
grande que seja a fadiga.
(...)
Essa aceleração do tempo, o rio não para de correr, não se detém, como uma metáfora
das novas relações de produção, pode ser conceituada, nos dizeres de Milton Santos como a
passagem do Meio Natural ao Meio Técnico, e utilizada como recurso pedagógico, na
explicação da (re)formação da economia nordestina, sua inserção histórico-espacial na
economia (sistema) mundo, e nacional, bem como das configurações sociais a ela atrelada.
Das relações de poder político, econômico e territorial à reprodução da miséria enquanto
forma de domínio sócio-espacial.
De acordo com Monteiro (2002, p 137), a Geografia, "malgrado as limitações e
insucessos por que tem passado através dos tempos, vem permanecendo como veículo da
Educação" e esta associação com outros saberes, outros imaginários, pode permitir a
compreensão do espaço geográfico, brasileiro, mundial, local, pela percepção do vivido, do
experienciado, do outro em relação a nós mesmos, na construção de uma nova cidadania.
1.1- O lugar da literatura como recurso pedagógico no pensamento geográfico
Segundo o Parâmetro Curricular Nacional de Geografia (1998, p.26):
“A Geografia tem por objetivo estudar as relações entre o processo histórico na formação das sociedades humanas e o funcionamento da natureza por meio da leitura do lugar, do território, a partir de sua paisagem”.
A literatura é, em última análise, uma construção simbólica, de significados
relacionados à percepção do espaço interno e externo, físico e mental, tanto do narrador
quanto do leitor, portanto, ela pode fornecer uma leitura do mundo cujo entendimento está
também relacionado aos tempos históricos de vivência de ambos. A geografia tem no espaço e
nas relações humanas imbricadas a ele seu objeto de estudo e ação; já a literatura tem sua ação
nas relações humanas imbricadas no espaço, de modo a podermos afirmar que ambas atuam
dentro do mesmo campo: o espaço físico e vivido. Segundo Monteiro2 (2002,p. 14) "À noção
de realidade geográfica, juntar-se-ia aquela outra, antropológica do imaginário".
Ao apresentar sua localização, nominal e geográfica, num ermo, afastado inclusive do
registro religioso, comum à época, em terras cuja propriedade ancestral nos remete à
colonização do sertão, no caso o nordestino, às sesmarias, e modernamente, nas mãos de
coronéis, senhores da morte e vida, fazedores de gentes, no entremeio da "serra da Costela"
2 ibidem
nos limites da Paraíba, nos dá a ideia da quantidade de conteúdos geográficos, históricos,
sociais, contidos no poema.
A serra da Costela, recurso literário, já que enquanto um lugar concreto a serra não
existe, trás consigo a imagem de ossos descarnados, a mostra, traduzindo liricamente, o relevo
do semi-árido sertão nordestino, suas chapadas caatingas, por onde respiram gentes, presas em
suas mortes em vida.
Nesses poucos versos, citados acima, pode-se abstrair conceitos que podem ser
utilizados na compreensão do espaço e suas relações com o homem e deste com outros
homens. Conceitos como relevo, lugar, do processo de ocupação do sertão nordestino,
historicamente associado a produção canavieira, exportadora, excludente. As formas de
domínio do território, do poder dos coronéis, senhores de terras e homens, povoadores de
mestiçagem e desigualdades, cujas "patentes militares", foram obtidas nas décadas iniciais do
século passado, como forma aliciamento destes, ao combate às lutas "sociais" do cangaço e,
principalmente, à Coluna Prestes, cuja marcha ameaçava desestabilizar o "status quo” vigente.
Come se vê, a Geografia, pode então, se apropriar do discurso literário acrescido da
racionalidade científica, explicar a apropriação do espaço geográfico, de seus fenômenos
sócio-espaciais.
A geografia tem no lugar, na paisagem e no espaço seus conceitos centrais e na ação
humana sobre eles sua explicação e percepção. Monteiro3 (2002, p 14), expondo suas ideias
sobre a relação entre espaço geográfico e literatura, considera que: "A construção do lugar ou
do conjunto de lugares que um romance contém levaria a consideração de que o espaço é ao
mesmo tempo, meio do sentido e também seu objeto”.
Se pensarmos que nossa percepção primeira do mundo que nos cerca se dá através dos
sentidos, ou como diz, analogamente, Paulo Freire4, que a leitura do mundo antecede a leitura
das palavras, o mundo então, deixa de ser o mero suporte, meio da vida biológica para ser
mundo a partir do momento em que o ser humano intervem nesse suporte de maneira criativa,
de outra maneira, nos apropriando novamente da explanação de Monteiro5, (1999, p 14):
"A esse espaço exterior, contrapõe-se aquele outro, de dentro do individuo, para a passagem dos quais se realiza aquela 'viagem' (ler já é viajar) ao mesmo tempo trajetória física e moral, externa e interior, real e simbólica, que pode conduzir tanto à noção do cheio quanto do vazio".
3 ibidem4 Freire, Paulo; A Importância do Ato de Ler, in Questões da Nossa Época em Três Artigos que se Completam,
Editora Cortez, 2001.5 ibidem
Desta forma, compreendemos que, as imagens geradas pela percepção do espaço
interno e externo do sujeito e armazenadas no inconsciente, dão suporte à imaginação quando
resgatadas pela linguagem prosaica, poética ou artística. Estas imagens têm a função de
explicar o desconhecido pelo conhecido.
Percebemos a paisagem, o lugar, como uma imagem de um recorte do espaço atribuído
de sentido, cujo conteúdo vai além do visível, na medida em que impregnada pelo imaginário
do observador, tanto a nível do individual quanto coletivo que, quando comunicada, é ao
mesmo tempo, a descrição do momento vivido e a descrição do passado.
A comunicação humana, ou seja, a linguagem, pode ser compreendida como a
significação descritiva das coisas e ações, dando sentido e ordem a essas mesmas coisas e
ações, e que, portanto, contém todo um arcabouço de percepções do espaço, historicamente
dinâmicas e cumulativas, desta apreciação do mundo.
Isso reflete também a diversidade das concepções de mundo, de modos de vida,
associados aos mais diversos lugares e regiões na medida em que o homem, ao se apropriar
coletivamente de seu ambiente constrói sobre ele um conjunto de significados que vão
propiciar a formação das identidades, coletivas e individuais relacionadas a esse mesmo
espaço. Como explica Cosgrove6, numa análise que faz da questão:
"Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em mundo humano. Produção e reprodução da vida material, é, necessariamente, uma arte coletiva, consciente e codificada simbolicamente. Essa apropriação simbólica do mundo produz, linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente específicas”.
Essas manifestações simbólicas, essas representações, aquilo que se convencionou
chamar arte, podem ser compreendidas como a comunicação codificada esteticamente dessa
apreciação do mundo vivido, seja qual for o suporte sobre o qual se apoiam.
O teórico literário Chklovsky7, em seu artigo "A Arte como Procedimento", diz:
"A poesia assim como a prosa é antes de tudo, e sobretudo, uma certa maneira de pensar e conhecer" e a poesia é uma maneira particular de pensamento, um pensar por imagens e essa maneira trás uma certa economia de energias mentais, 'uma sensação de leveza relativa'"
6 COSGROVE, Dennis E. em direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria in Introdução à Geografia Cultural. Orgs. por CORRÊA, R. L., ROSENDHAL, Zeny. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
7 CHKLOVSKI, A Arte como Procedimento.
Visto que a imagem "tem por objetivo ajudar-nos a compreender sua significação e
visto que sem essa qualidade a imagem priva-se de sentido, então ele deve ser para nós mais
familiar do que aquilo que ela explica".
Assim sendo, é importante observar que para a Geografia, a imagem está implícita no
conceito de paisagem, e que esta, trás em si a percepção do espaço pela imagem do
objeto/lugar observado. Portanto, a imagem é percebida como um conjunto de informações, a
qual são atribuídos sentidos e compreendidos pela consciência, associada à leitura de mundo
do observador e que são espaços vividos.
O lugar é provavelmente uma das noções de pertencimento mais antigas;
antropologicamente falando, desde que o ser humano, ao procurar abrigo e sepultar e
reverenciar seus mortos elegeu determinados locais de referência, atribuindo um sentido e
significado afetivo a ele, a noção de lugar passa a ter uma relevância geográfica na produção
material e simbólica do espaço vivido.
A constituição da noção de cidadania, também tem, nesta percepção de pertencimento
a um lugar, sua origem; a partir do desenvolvimento das aldeias e cidades, tanto como lugar
de abrigo e aconchego, de defesa, dos mitos do sagrado e do profano. A crescente organização
e fragmentação do espaço pela divisão social do trabalho e a consequente elaboração de
códigos de direitos e deveres, a instituição da Lei, enraízam esta ideia. Mesmo que essa noção
seja percebida/apropriada de forma diferente, pelos grupos que compõe o todo sócio-espacial,
ela é em si mesma, algo a ser alcançado e ou vivido, apesar de que, na maior parte das vezes,
negada.
Somam-se a isso, as correntes migratórias que fazem parte da
apropriação/desapropriação do espaço geográfico seja por questões naturais como o
esgotamento das condições materiais de sobrevivência - aumento demográfico, desastres
naturais, como por questões político/econômicas de expansão de determinado grupo e/ou de
um novo modo de produção da vida material, incorporação de novas tecnologias
redistribuição das áreas produtivas e, utilizada/incentivada pelo Estado na incorporação e
efetivação de domínio territorial, tal como ocorreu no Brasil, por exemplo, com os Soldados
da Borracha e posteriormente nas políticas de colonização do Centro-Oeste e da Amazônia
Brasileira.
Esta percepção do espaço, está também associada às imagens pretéritas da leitura de
mundo, uma vez que as recebemos de herança, impregnadas de emoções e significados,
singular e plural em sua localização. Essa percepção, também esta presente, nos ciclos
literários brasileiros, principalmente no Romantismo, no Realismo e no Modernismo. Essa
literatura vai produzir, regionalmente, percepções distintas, da produção do espaço brasileiro.
O romanceiro regional nordestino é exemplo disto, e este trabalho a que nos
propomos, busca mostrar as possibilidades geográficas aí contidas, para pedagogicamente,
sensibilizar as percepções, do educando, nos níveis fundamental e médio, pela vivência do
outro, na percepção da construção do espaço cidadão ao qual estamos inseridos.
A segregação espacial da sociedade é percebida nos versos. Os bairros ricos, a classe
média (funcionários e autônomos) e a população obreira, cada qual sendo enterrado em
cemitérios distintos, como se mesmo na morte, a diferenciação classista têm que ser
reforçada. Morremos todos, mas só nossas posses determinam qual nossa posição perante os
vivos. O espaço mortuário reproduz a desigualdade. A especulação "imobiliária" não permite
a igualdade dos corpos ao mesmo tempo em que naturaliza essa diferença.
1.1.1- exclusão de dimensões do imaginário e simbólico na ciência
geográfica: uma questão política antes de metodológica
Platão expulsa os poetas de sua República. Sua percepção do poder do simbólico, do
imaginário, como formas de conhecimento do mundo vivido, para além do racionalmente
ordenado e, portanto, passível de ser controlado, o leva a conclusão de que os poetas,
portadores do sensível, desestabilizadores da ordem devem ser excluídos da sociedade.
Da mesma forma, no período no qual o mundo ocidental imergiu no modelo feudal
teocrático e teológico, o universo do simbólico, do imaginário, percebido enquanto subversão
da ordem dominante, também era proibida. Umberto Eco, no romance O Nome da Rosa,
mostra isso. A questão do riso, como expressão do prazer dos sentidos, entrava em desacordo
com a introspecção contida do pensamento teológico, ordenador e dominante da sociedade de
então.
Todo conhecimento advindo do simbólico, do imaginário, impregnado de sentidos e
significados, discordantes à ideologia teocrática, mesmo que provindos de autores
consagrados, deveriam ser expurgados, na medida do possível, queimados junto com seus
criadores, como por exemplo, Giordano Bruno, imolado por achar que havia outros mundos,
outros imaginários, outras maneiras de se enxergar o mundo e não apenas aquela imposta pela
Teoria cristã na qual, os europeus ocidentais, eram os únicos povos dotados de Razão, por
direito Divino e, portanto, destinados a se impôr sobre o planeta.
Conclui-se então que a exclusão do imaginário, do simbólico, no pensamento
geográfico é mais uma questão política. Na medida em que o mundo ocidental
principalmente, na constituição dos Estados Territoriais Modernos necessitava de quantificar e
mensurar seu espaço, ou melhor, racionalizar seu domínio, a instituição de um novo
simbólico, a Nação, na figura do Rei, se impunha por sobre os lugares e suas manifestações
imateriais. O simbólico passa a ser a Nação, o território de domínio da razão, da matemática,
da estatística e, portanto, tudo o mais, têm que se adequar a essa visão de mundo.
Galileu Galilei, ícone deste paradigma afirma que "Aquilo que não pode ser medido e
quantificado não é científico", se torna a máxima da chamada Era Moderna. Segundo
Gonçalves8, o mundo surgido daí, é um "mundo morto, desvinculado da visão, da audição, do
paladar, do tato e do olfato" e, com isso, "relegou a sensibilidade ética e a estética, os valores,
a qualidade, a alma, a consciência e o espírito”. A experiência foi lançada para fora do âmbito
do discurso científico.
1.1.2 - O porque dessa exclusão metodológica na geografia
A questão que se impõe aqui é que na medida em que a produção simbólica é
apropriada por parte do corpo social, em função da divisão social, espacial e sexual do
trabalho humano, como justificativa e forma de naturalização da dominação de um segmento
social sobre outro separando e fragmentando o conhecimento e codificando-o a "cultura"
torna-se então, assim como os meios de produção, uma categoria, um conjunto de saberes,
propriedade de uma classe. O conhecimento, fragmentado, pôde assim ser disseminado
através das instituições apropriadas, criadas com finalidade de reproduzir uma visão de
mundo, de organização espaço-temporal dos lugares, dos territórios que paira acima das
massas despossuídas e despreparadas, material e simbolicamente, para gerirem sua própria
existência.
Todas as sociedades humanas transmitem seus saberes e valores de uma geração a
outra, a isto chamamos de Educação, mas a instituição escolar, responsável socialmente por
esta transmissão, surge, no mundo ocidental, no processo de transição entre o que chamou de
modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, não só se caracteriza pela
transmissão dos saberes necessários a reprodução do capital como fragmenta o conhecimento,
e, sobretudo, reproduz especialmente os valores da classe dominante, naturalizando as
diferenças sócio-espaciais.
Esse processo educacional, desde o início excludente, uma vez que, apenas o filho
8 Gonçalves, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001
desta nova classe de comerciantes, além é claro, de parte da nobreza, tinham acesso, vai
reforçar o surgimento de uma classe letrada, aos poucos enriquecida, tanto financeiramente
quanto pelo conhecimento adquirido no contato com outros povos e culturas. Essa mesma
retomada comercial, vai impor novas maneiras de se produzir mercadorias em escala e ao
mesmo tempo ensejar um novo papel às cidades e ao território e, consequentemente,
estruturar uma visão de mundo adequada às suas necessidades.
Aliada a Realeza, essa classe vai estruturar o Estado Moderno, onde a racionalidade
contábil, matemática na organização do território, com a unificação da moeda, de pesos e
medidas e, principalmente, com a unificação linguística, permitiu a espacialização da Nação,
enquanto uma entidade acima dos indivíduos e personalizada na figura do Rei.
O processo de institucionalização da escola pública, surge como uma necessidade,
primeiramente nos principados germânicos, em função de uma futura unificação territorial, de
unificação cultural e submissão de uma população a um projeto nacional e, ao mesmo tempo,
uma necessidade de uma instruir de uma mão-de-obra às novas técnicas industriais que se
aprimoravam noutros países onde a Nação já havia se constituído e liberado as forças
produtivas do capital no território.
O conhecimento advindo das novas técnicas e das descobertas de novas terras, seus
recursos e riquezas, além de novas culturas e povos, vão impor um novo ritmo ao modo de
produção em curso desagregando ainda mais as formas tradicionais do modo de vida agrário
em que se baseavam as relações sociais e de poder e criando novas territorialidades. Este
processo desencadeia uma crise social sem precedentes, ao mesmo tempo em que gera uma
riqueza, até então inimaginável gera também uma miséria a grande maioria da população.
A sistematização das ciências, “concluída” em fins do século XIX, especializando cada
ramo do conhecimento e dentro de cada um fragmentando seus conteúdos de forma que esses
ramos não dialogassem entre si, vão refletir na instituição escolar, onde esses saberes são
transmitidos, mecanicamente, de forma que o educando não tome conhecimento do todo, ao
mesmo tempo em que transmite valores como a organização do tempo, da disciplina e a
tentativa de naturalização das desigualdades sociais.
1.1.3 - A questão da fenomenologia e suas contribuições ao tema
A fenomenologia é o estudo dos fenômenos que se dão na consciência,
daquilo que se percebe através dos sentidos e, que pode ser entendida como a percepção
essencial do mundo que engloba toda maneira de olhá-lo: consciente e inconsciente, objetiva
e subjetiva, inadvertida e deliberada, literal e esquemática. "A percepção nunca é pura: pensar,
sentir e acreditar são processos simultâneos e interdependentes” 9.
Surgida como uma corrente filosófica no início do séc. XX, com o filósofo Edmund
Husserl, em reação ao pragmatismo científico que embasava as ciências desde o séc. XVIII, a
fenomenologia se apoia na intuição essencial do mundo vivido e a busca dos sentidos e das
intencionalidades humanas.
Nesse paradigma, o entendimento do espaço se desenvolve através da percepção que o
sujeito tem do espaço em que vive, ou seja, o espaço vivido através das subjetividades que o
mesmo obtém. Devemos ainda levar em consideração as questões concernente ao seu modo
de vida, a religião, a cultura de modo que o espaço deve ser compreendido em diferentes
escalas, desde o quintal de sua casa até um Estado-nação se tornam formas distintas de
percepção do espaço vivido.
A construção do sentimento concernente ao espaço vivido além de variar de escala
para escala varia também a construção do significado em relação ao seu espaço, pois o
homem está envolto de espaços vividos que possuem e compreendem o espaço de maneira
diferente. Dessa forma, o geógrafo humanista deve, ao elaborar suas análises ir “se colocando
como estrangeiro para que consiga compreender o espaço vivido do outro”.
Na análise fenomenológica, é necessário procurar avançar na busca de unidades de
significado para o enriquecimento das análises sobre o espaço geográfico, ou seja, buscar
entender as subjetividades que o homem utiliza para representar o espaço vivido sejam elas
imagens, sensações, sentimentos, vivências que colaboram para a transformação da paisagem
e consequentemente, o espaço geográfico.
Outra característica importante da fenomenologia é a questão do sentido de lugar, pois
cada pessoa tem um lugar “natural” que é considerado como ponto zero do seu sistema
pessoal de referência10. Este lugar geralmente é colocado dentro de uma série de lugares que
se juntam para formar regiões significativas para os indivíduos delas participantes, porém
existem alguns lugares mais privilegiados dentro de uma “hierarquia espacial” do sujeito onde
ele elege alguns lugares preferenciais em função de experiências e acontecimentos por ele
vivenciados.
Para a fenomenologia, a ciência se faz a partir de uma visão, de uma interpretação que
o homem dá ao objeto de estudo. Merleau-Ponty, filósofo para o qual a percepção é o ponto
de partida para a compreensão dos fenômenos, inclusive da ciência, diz:
9 Lowenthal, David, Geografia, experiência e imaginação: em direção a uma epistemologia geográfica, 1960. in Christofoletti, A, Perspectivas da Geografia, São paulo, Difel, 1982
10 Bachelard, Gaston. A poética do espaço. Martins Fontes, São Paulo, 2008
"Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido e seu alcance, precisamos primeiramente despertar esta experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda".
O espaço, na fenomenologia, é compreendido como o espaço presente, diferentemente
do espaço geométrico e científico. Para a Ciência o espaço é dimensional, mensurável,
quantificável, para a fenomenologia ele é um contexto, uma experiência sensível, uma
percepção do "aqui" relacionado a outros lugares e ao tempo, o "agora" que trás em si a
lembrança do passado e a projeção do futuro.
A noção de espaço, envolve uma complexidade de ideias, relacionada à percepção: o
visual, o tato, a audição, o movimento que combinadas nos dão a capacidade de reconhecer e
estruturar a posição dos objetos. Esse reconhecimento implica, por sua vez, no
reconhecimento de intervalos e da distância entre eles e, consequentemente, da noção de
tempo.
Portanto, o espaço e, sobretudo, o lugar, na medida em que envolvem o
emocionalmente percebido são para a geografia humanista, as categorias centrais de seu
enfoque epistemológico. A valorização da percepção e das ações humanas decorre da
preocupação em verificar os gostos, as preferências, as características e as peculiaridades dos
lugares; valorizam-se o contexto ambiental e os aspectos que envolvem o encanto e a magia
dos lugares, sua personalidade e distinção. Há um entrelaçamento entre os homens e os outros
lugares. Há também uma percepção temporal, uma vez que espaço e tempo são aspectos de
uma mesma realidade.
O filósofo Henri Lefebvre11, propõe uma concepção da produção do espaço a partir da
fenomenologia da percepção. Defendendo uma teoria única do espaço, uma ligação entre o
espaço físico - natureza, espaço mental - abstração formal sobre espaço e espaço social -
espaço ocupado por fenômenos sensoriais, inclusive os da imaginação, no qual os reinos da
percepção, do simbolismo e da imaginação não são separáveis dos espaços físicos e sociais.
Para ele, o espaço deve ser compreendido de forma espacialmente trialética, pois são
três as dimensões pela qual ele se manifesta. O espaço percebido, o espaço concebido e o
espaço vivido.
11 Lefebvre, Henri. A Produção do Espaço, in Maia, Adriano. Discutindo Conceitos e Metodologias: Paisagens, Textos e Produção do Espaço Migrante, 1º Simpósio de Pós-Graduação em Geografia do Estado de São Paulo, Rio Claro, 2008
O espaço percebido, nos é revelado pela decifração do espaço, é empírico e passível de
medição, portanto, materialista. É continuamente apropriado e reafirmado no mundo
estruturado com arranjos sócio-espaciais existentes, materializados no espaço construído e
sedimentado nas paisagens. Apresentam-se mesmo em suas contradições espaciais, num
campo de mudanças, onde o poder e seus limites são exercidos pelo Estado e pela sociedade.
O segundo, o espaço concebido, é o espaço dos acadêmicos, urbanistas, tecnocratas.
São, “espaços mentais dominantes de discurso de regulação”, onde estão inseridas a ideologia,
as representações do poder, controle e vigilância, pela qual a ordem social é legitimada. É por
ele, que se interpreta a realidade: pelas representações imaginadas da espacialidade. É
também o lugar para as interpretações decodificadas, pensamentos e visões utópicas para a
imaginação pura e criativa de alguns artistas.
Por fim, o espaço vivido, que além de conter os dois primeiros, é ao mesmo tempo,
distinto e diferenciado de ambos. Pode ser interpretado como o espaço subversivo e
clandestino da vida social na medida em que desafia criativamente as práticas espaciais e o
poder dominante. É um espaço vivido, de usuários e habitantes. É o espaço do sujeito, das
imagens e símbolos que o acompanham. Um espaço da percepção que vai além da
objetividade pragmática do espaço concebido.
“Combinando o real com o imaginário, objetos e pensamentos em termos iguais, ou pelo menos sem privilegiar um sobre o outro a priori, esses espaços vividos de representações são o terreno para o desapontar de contra-espaços, espaços de resistência à ordem que decorrem precisamente da sua posição subordinada periférica e marginal, seria o espaço do outro”.12
Para o geógrafo Carlos Augusto F Monteiro, a indissolubilidade da ligação espaço-
tempo é acrescida em complexidade, tanto pela variação escalar dos espaços quanto pelos
sentidos do tempo. Dessa forma, a ligação entre geografia e literatura deve ser compreendida
como um continuum entre a configuração da paisagem e a condição humana e explicar que
tanto a paisagem (tomada como expressão genérica de lugar), para o geógrafo, quanto à
escrita, para o romancista, estão centradas na condição humana.
Assim, podemos concluir que a Fenomenologia é importante não somente como
12 LEFEBVRE, Henri. A Produção do Espaço, in Maia, Adriano. Discutindo Conceitos e Metodologias: Paisagens, Textos e Produção do Espaço Migrante, 1º Simpósio de Pós-Graduação em Geografia do Estado de São Paulo, Rio Claro, 2008
procedimento científico, mas também como caminho para a conscientização existencial
demonstrando a necessidade de compreendermos os valores envolvendo a vida cotidiana que
através de vários tipos de educação e socialização diferentes influenciam no desenvolvimento
de vários meios gêneros de vida.
A fenomenologia nos mostra que não há separação entre as dimensões de caráter tanto
subjetivo como objetivo concernente ao conhecimento científico e procura desmascarar falsos
questionamentos e pressupostos ideológicos de modelos científicos tradicionais. Todavia, sua
ênfase está na questão da experiência do sujeito mediante o mundo que o circunda e no qual
ele é ao mesmo tempo, protagonista como coadjuvante.
1.1.4 - Crise da Geografia Tradicional e Solicitação à Mudanças
A geografia sempre foi uma ciência muito criticada pela sua falta de objetividade
teórica e metodológica. Suas abordagens sempre foram extremamente cientificistas e
tradicionais o que consequentemente influenciou diretamente na sua utilização no estudo do
homem.
Suas explicações eram pautadas mediante dados frios, gráficos e generalizações,
levando o papel do sujeito para segundo plano. Entretanto, a geografia é uma ciência humana
e como tal deve trazer a tona os problemas de caráter social, econômico e cultural que se dão
sobre o espaço geográfico no qual a sociedade esta inserida, ou seja, a geografia tem o papel
de servir como “óculos” visualizando os problemas e dificuldades situadas nos discursos e
ações de nossos governantes e demais agentes, construindo assim, um mundo mais justo e
equitativo para que o cidadão possa viver e desenvolver-se em sua totalidade.
Para isso a geografia necessitou de várias mudanças para melhor compreensão do
sujeito em suas múltiplas dimensões, mas principalmente buscando entender questões de
caráter subjetivo que, outrora foram esquecidas, porém voltaram à tona auxiliando no
entendimento da vida humana.
A arte literária enquanto recurso pedagógico pode contribuir com a geografia na leitura
da sociedade, pois a arte consegue penetrar nas dimensões mais profundas do homem,
resgatando seu imaginário popular, suas emoções e seus sentimentos mas íntimos. Enfim, a
arte nos possibilita entender o homem e suas alegrias, tristezas, medos, sofrimentos e
angustias que acontecem em qualquer lugar do planeta, ou seja, são problemas que de caráter
universal.
Para compreendermos melhor as mudanças efetivadas na ciência geográfica faremos
então, um pequeno panorama da história do pensamento geográfico buscando entender suas
rupturas teóricas e metodológicas.
A geografia nasce como ciência a partir do século XIX com o positivismo, nele a
geografia era pautada na redução da realidade, ou seja, a geografia era realizada com base na
aparência dos fenômenos. Dessa forma todos os trabalhos eram baseados em fatos reais,
palpáveis e quantificáveis, limitando a geografia a realização de trabalhos voltados ao
empirismo.
Outra característica do positivismo era ideia de um único método de interpretação que
fosse padrão as demais ciências. Como consequência disso, observamos a tentativa de
naturalização dos fenômenos humanos que deveriam ser pautados pelas ciências naturais
onde, segundos eles, eram as ciências mais evoluídas. O homem era visto apenas de maneira
secundária, sendo considerado apenas em conjunto com a natureza, apesar de citado nas
várias introduções de trabalhos, acaba sendo reduzido a um fator coadjuvante. Outra
característica dessa corrente é a ideia da Geografia como ciência de síntese onde a geografia
relacionaria as várias áreas do conhecimento visando melhor entendimento do mundo “real”.
Isso resultou tanto no empobrecimento dos conhecimentos geográficos e na superficialidade
de suas análises.
São criados vários princípios para servir de sustentáculo dessa disciplina. Alguns deles
elaborados com base na pesquisa de campo e que jamais poderiam faltar nas análises de um
geógrafo entre eles: o princípio de atividade, princípio de extensão, princípio da localização,
entre outros. Esses princípios funcionaram como “guia” nas pesquisas geográficas e
resultaram na formação de várias generalizações e, consequentemente, numa série de
propostas antagônicas tais como: Geografia-Física, Geografia-Humana, Geografia Geral e
Geografia Regional, entre outras. A falta de objetividade e clareza concernente ao problema
do objeto em seu nível teórico, continuará assombrando a geografia por muito tempo.
A geografia sistematizada aparece no início do século XIX na Alemanha onde o país
estava atrasado economicamente com relação aos demais países e fragmentado, pois não
obtinha um governo centralizador que potencializasse as ações do estado sobre o território. O
país era dominado pelos grandes latifundiários, mantendo dessa forma, a estrutura feudal
intacta. Porém, é nesse quadro que aparecerá o capitalismo , porém sem alterar as com a
ordem vigente, ou seja, há um relativo desenvolvimento do capitalismo, mas com a mesma
aristocracia agrária no poder.
A partir daí, temos um desenvolvimento econômico que integra elementos capitalistas
como à produção para o mercado externo junto à produção e o trabalho servil, porém as altas
taxas alfandegárias entre os principados13 e ducados alemães, não promovem grandes
transformações e crescimento das cidades bem como o próprio crescimento da burguesia fica
prejudicado. Visto que não há uma revolução democrático-burguesa na Alemanha, esta só se
desenvolverá junto ao Estado, Estado este dominado pela aristocracia agrária. Esta era a
situação da Alemanha na virada do século XVIII.
Em função do expansionismo napoleônico e da sedimentação das relações capitalistas
vão desenvolver nas classes dominantes a ideia de unificação nacional. Isso é observado como
algo prioritário para a continuação do desenvolvimento econômico da Alemanha. Em 1815,
temos a primeira tentativa de unificação concreta entre os principados alemães e reinos da
Prússia e Áustria que apesar de não constituir uma unificação nacional, já estabelecem
maiores laços econômicos entre seus membros. Nesse contexto, temos a propagação da
Geografia. A geografia surge na Alemanha, pois a questão espacial era de fundamental
importância.
As principais contribuições de uma geografia sistematizada serão de dois autores
prussianos ligados à aristocracia: Alexandre Von Humboldt, conselheiro do rei da Prússia, e
Karl Ritter, proveniente de uma família de banqueiros. Ambos pertencem à geração que
vivencia a Revolução Francesa, pertencentes à elite acadêmica alemã. Humboldt obtinha
formação de naturalista, fazia várias viagens e não tinha a intenção de formular princípios
normativos para formação de uma nova ciência. Para ele a Geografia era uma espécie de
síntese de todos os conhecimentos relativos à terra14. Isso fica bem explicito mediante sua
visão sobre o objeto de investigação da Geografia: “A contemplação da universalidade das
coisas, de tudo que existe no espaço concernente a substancias e forças, da simultaneidade dos
seres materiais que coexistem na Terra15”. De acordo com sua visão a Geografia seria mais um
ciência sintética preocupada com a associação entre os vários elementos para a compreensão
das causalidades provenientes da natureza.
Já a obra de Ritter é extremamente metodológica, visa a proposição de uma Geografia
de caráter normativo, sua formação é bem distinta, é formado em Filosofia e História, já
Humboldt era geólogo e botânico. Para Ritter, o conceito de sistema natural é uma área
delimitada dotada de uma individualidade, ou seja, a geografia deve estudar as
particularidades da terra e cada arranjo comportaria um conjunto de elementos que
representam uma totalidade , onde o principal agente seria o homem. Dessa forma, a
Geografia seria um estudo dos lugares visando a individualidade destes.
13 A Alemanha era um aglomerado de feudos, os principais eram os principados, ducados e reinos.14 MORAES, A. C. R. Geografia: Pequena História Crítica. São Paulo: Editora Hucitec, 1983. 15 Ibidem
A proposição de Ritter é antropológica, pois para ele o homem é o sujeito da natureza, ou seja,
busca o entendimento das individualidades dos lugares valorizando a relação homem-
natureza. Ritter vai enfatizar as suas analises sob as perspectivas empiristas, onde as analises
variam de observação em observação. Esses autores são os sustentáculos da Geografia
Tradicional, todos os trabalhos posteriores serão baseados em seus pressupostos sejam para
confirmá-los ou para contradizê-los.
A Geografia de Ritter é antropocêntrica, voltada para valorização homem como agente
principal da relação entre homem-natureza. Já Humboldt, busca abarcar todo o Globo sem
privilegiar o homem16. Vale ressaltar a importância que eles tiveram na institucionalização da
Geografia como ciência embora não tenham deixado discípulos, influenciaram todas as
escolas da Geografia Tradicional posteriores. A geração precedente avançará na
sistematização de estudos especializados (Geografia e Climatologia) do que com a Geografia
Geral.
Há um intenso revigoramento no processo de sistematização da Geografia vai ocorrer
através dos estudos de Friedrich Ratzel. Este autor de origem prussiana e alemã é participante
da constituição real do Estado nacional alemão de modo suas formulações estão pertinentes e
correspondem com a época e sociedade da qual participou. A geografia de Ratzel foi um
instrumento de legitimação das políticas expansionistas do Estado alemão recém-formado.
Mesmo com a antiga Confederação Germânica, o poder ainda continuava muito
espalhado em várias unidades confederadas de maneira que as autoridades locais exigiam a
constituição de um governo central. A Prússia e a Áustria disputavam a hegemonia dentro da
Confederação a tal ponto que começaram uma guerra entre os reinos. A Prússia sai vencedora
determinando que a organização e a unidade administrativa fossem lideradas pela Prússia, ou
seja, a Prússia teria o papel de imprimir suas características na nova nação.
Uma das principais características da Prússia seria a organização militarizada da
sociedade e do Estado. Sua direção estava sob o controle da aristocracia Junker os donos das
terras e representantes da velha ordem feudal17. Essa administração estendeu a ação do Estado
a todos os outros setores da sociedade. Uma intensa repressão interna junto a uma agressiva
política exterior completou as mudanças implementadas pela nova nação, formando assim, o
imperialismo alemão. Outra estratégia utilizada para essa unificação alemã foi uma política
cultural nacionalista estimulada pelo Estado somado a sua participação em várias guerras com
o objetivo de conquistar mais territórios.
16 Ibidem 17 Ibidem
Ratzel é um autentico representante do Estado, sua obra é uma proposta para o
expansionismo Bismarckiano onde exalta o imperialismo ao dizer que a luta pela obtenção de
territórios é um dos principais motivos das guerras e disputas entre os povos sobre o globo
terrestre. A principal obra de Ratzel foi escrita em 1882, cujo título é Antropogeografia –
Fundamentos da aplicação da Geografia à História, obra que pode ser considerada como
fundadora da Geografia Humana onde Ratzel considera como objeto geográfico o estudo das
influências que as condições naturais exercem sobre a humanidade.
Estas influências atuariam tanto na questão fisiológica como na questão psicológica
(caráter) dos indivíduos através da sociedade. Outro ponto importante é que a natureza
influenciaria na própria constituição social, em função das riquezas provenientes dos recursos
obtidos em determinadas localidades onde está inserida a sociedade. A natureza também
influenciaria ou não a expansão de um determinado povo que poderia ocasionar na
mestiçagem ou no isolamento do mesmo.
Para ele a sociedade é um organismo que mantém íntimas relações com o solo em
função da necessidade de moradia, alimentação, entre outros. À medida que esta sociedade se
desenvolve, torna-se necessária maior utilização do solo e consequentemente, a obtenção de
mais territórios. De acordo com ele, quando há organização da sociedade para defender um
determinado território, o mesmo constitui-se território. A perca de território seria símbolo de
decadência de uma sociedade, porém o progresso induziria a conquista de novos territórios.
Ratzel elabora o conceito de “espaço vital” que representaria certo equilíbrio entre
determinada população e os recursos de seu território sendo que à medida que os recursos não
fossem suficientes para sua manutenção, haveria a necessidade de anexar outros territórios
para sua sobrevivência, possibilitando assim, o imperialismo do Estado Prussiano.
Ratzel propôs uma Geografia que possibilitou a abertura de várias áreas de estudo,
áreas que valorizam a História e o espaço, formação de territórios, difusão dos homens sobre a
terra (migrações e colonizações). Enfim, buscando compreender a atuação da natureza sobre a
evolução da sociedade.
Os discípulos ratzelianos constituíram a chamada “escola determinista” de Geografia
onde afirmavam que o homem é um produto do meio, descaracterizando suas formulações. As
teses deterministas foram bastante utilizadas, apesar de sua fragilidade teórica, só para
citarmos um exemplo, basta observarmos os exemplos obtidos pela interpretação histórica
brasileira concernente essa teoria: o subdesenvolvimento como fruto da tropicalidade.
Outro ponto forte na obra de Ratzel foi a Constituição da Geopolítica, área de estudo
voltada à dominação dos territórios através das ações do Estado sobre o território. Os autores
desenvolveram técnicas que funcionavam visando à legitimação do imperialismo, entre os
principais autores estão: Mackinder, Haushofer e Kjéllen.
A escola ambientalista foi à última derivada das formulações de Ratzel. Nessa escola,
o meio ambiente é visto como suporte a vida humana, ou seja, existe uma relação de troca
entre o homem e os recursos naturais.
Posteriormente, teremos a Escola de Geografia Francesa instituída por Paul Vidal de
La Blache, embora essa corrente teórica venha se opor intensamente observarmos o contexto
social e político sob a qual foi instituída.
A França em função da Monarquia Absolutista foi uma das nações que mais
rapidamente realizaram sua unificação, o que possibilitou a formação de uma burguesia com
fortes aspirações a nível nacional, transformando e implantando rápido domínio das relações
capitalistas.
Com a Revolução Francesa, temos a ampliação dos debates referente a política, pois as
camadas populares tratavam vários embates com a consolidação do domínio burguês. Assim,
percebemos que a “França foi o local do nascimento do socialismo onde o caráter das classes
da democracia burguesa de consolidou primeiro”.
As jornadas de 1848 e a Comuna de Paris junto com suas repressões evidenciaram o
declínio da fase heroica da burguesia e a sua luta para se manter no poder.
1.1.5 - A crítica à Geografia Cultural. De qual Geografia Cultural falamos
Denis Cosgrove, no artigo "Em direção a uma geografia cultural radical" diz que o
papel da geografia cultural é compreender a interação da dimensão humana com a natureza e
seu papel na ordenação do espaço.
Antes de mais nada, devemos explicitar o que entendemos por cultura. A cultura para
nós, é tudo que o homem produz, seja material ou imaterial. Não se pode separar a produção
da materialidade da vida biológica da produção simbólica, de sentido e de significados sobre a
qual essa materialidade se processa e se transforma.
A medida que o ser humano interage com a natureza de forma consciente com fins a
sua reprodução biológica ele constrói os "instrumentos" simbólicos, os significados e os
objetos materiais com os quais vai transformar essa mesma natureza. A natureza é
humanizada através do uso humano, não tem forma nem coerência fora da atividade humana,
que reproduz sociedade e natureza num modo de vida, que dá origem a regiões e lugares
distintos.
Marx e Engels, em seus postulados afirmam que nos tornamos verdadeiramente
humanos ao produzir nossos meios de subsistência e de vida material de modo definido, e que
esse modo de produção não deve ser considerado apenas como simples reprodução da
existência física dos indivíduos, mas como forma definida da expressão de suas vidas, do
modo de vida definido por parte destes. Desta forma, concebem a produção material e a
produção simbólica como unidade dialética, onde uma não pode existir sem a outra, embora
se neguem mutuamente, são ambas produto da ação humana.
É essa relação dialética, o determinante é ao mesmo tempo determinado, que produz
"linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente específicas". A
essa produção de significados, simbólicos e materiais, chamamos culturas, no plural, pois
são, social, temporal e espacialmente distintas e diversas.
A geografia cultural, que têm afinidades com a antropologia, na medida que a cultura e
suas manifestações espacialmente localizadas são consideradas categorias centrais de seu
objeto: "compreender o mundo vivido de grupos humanos", ao eleger estes fenômenos não-
materiais, espacialmente localizados, tende a uma análise geograficamente determinista e
regional. Daí a centralidade do lugar em seus postulados.
Os primeiros geógrafos culturais, segundo Cosgrove, influenciados pelo determinismo
geográfico, no qual os fenômenos culturais não materiais eram considerados resultados de
fatores geográficos ao mesmo tempo enfatizam a unidade da sociedade e a importância da
compreensão histórica.
Para ele, Vital de la Blache reconheceu uma relação entre vida humana e natureza
muito similar a de Marx e Engels:
"...noção de que um país é um ventre no qual as sementes adormecidas da vida foram
semeadas pela natureza, mas no qual seu crescimento e uso dependem do homem....ao
submeter a terra a seus usos, revela sua individualidade... para a incoerência de
circunstancias locais ele introduz um conjunto sistemático de forças...definido e
diferenciado que se torna, com o tempo, uma medalha gravada na imagem de um
povo"18.
Modo de vida é a unidade de cultura e natureza.
O reconhecimento de Vidal emerge de sua prática de geografia e história, mas é
18 Vital de la Blache, in Cosgrove, Denis; Em Direção a uma Geografia Cultural Radical: Problemas da Teoria" in "Introdução à Geografia Cultural"; Lobato, R.; Rosenthal, Zeni, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro -
substancialmente o mesmo reconhecimento que Marx derivou a partir do encontro filosófico
com o idealismo hegeliano.
Nos EUA, Sauer, defendeu uma unidade entre cultura e natureza, ao afirmar que "os
objetos que existem juntos na paisagem formam um todo indivisível, no qual terra e vida têm
que ser vistas juntas”. Ao dividir, conceitualmente, a paisagem em natural e cultural, sendo
uma um estágio sobre o qual a outra opera, ele remete a um processo de transformação.
A maneira pela qual as características culturais se combinam, no espaço, produzem um
modo de vida e a personalidade da paisagem, também remetem às questões teóricas
levantadas por Marx. Tanto Vidal quanto Sauer, em face a forte determinismo em geografia,
enfatizaram a cultura humana como sendo uma força determinista na transformação da
natureza.
Vital e Sauer forneceram à geografia conceitos estáticos: região e paisagem cultural; e
dinâmicos: modo de vida e ação humana, que dependem, inicialmente, de compreender a
relação entre cultura e natureza dialeticamente, não privilegiando nenhuma, apesar de que, na
prática, a corrente determinista, derivada do positivismo, linear venha à tona. Posteriormente,
Ley mostrou que, essa escola vidaliana, produziu uma degeneração na abordagem dialética na
coleta/classificação dos fatos da paisagem que foram destituídos do contexto histórico e
tratados funcionalmente.
A dialética não foi considerada através da especificidade da produção humana e
dissolvida tanto na reificação idealista da cultura como agente de mudança, como num semi-
determinismo "possibilista", empobrecendo a geografia cultural, preservando um sentido de
significado cultural na compreensão da paisagem, mas falho em aprofundar uma análise
teórica.
Para alguns autores, de acordo com Cosgrove:
"o geógrafo cultural não está preocupado em explicar o funcionamento interno da
cultura ou com a descrição dos padrões de comportamento que 'afetam' a terra" e seu
ecletismo: "a geografia cultural revela um padrão de preferências pessoais...uma
ênfase sobre o papel do homem como agente da modificação ambiental, um viés em
favor de áreas rurais, uma preocupação com a cultura material, a busca de suporte
na antropologia, uma preferência por trabalhos de campo em vez de uma geografia de
gabinete".
Considerações importantes a respeito do tema da ação humana sobre o ambiente
levaram a contribuições geográficas às teorias ecológicas e de difusão.
A evolução tecnológica é considerada como tendo seu próprio momento interno ou
baseada em condições ambientais apelando-se para princípios ecológicos de adaptação e
difusão. Apesar do foco em ideias, crenças, atitudes e valores, nascidos historicamente a partir
da relação entre grupos humanos e seus ambientes e tendendo a tratar a "Weltanschaung"
como autônoma, internamente lógica e autotransformadora, esses estudos levantam
inevitavelmente questões sobre origem e transformação do sistema de crenças. Tuan,
"submete-se à tentação de basear estes em atributos humanos biológicos ou fisiologicamente
universais, dando assim pouca oportunidade para explicar as mudanças".
Geógrafos culturais, cujo interesse pela tecnologia, trabalho humano e recursos (as
forças de produção) tem sido abrandados pelo interesse mais recente pelas relações de
produção - a forma de interação social que estrutura essas forças e lhes dá significado.
A interação simbólica, na qual "torna-se difícil separar o processo de comunicação da
substância da cultura se se adotar a visão de que todo comportamento, num contexto social-
sensorial, é comunicação". O comportamento humano é inconcebível fora de um contexto
social-sensorial e a essência desse contexto é a produção humana.
A 'Cultura', então, pode ser reduzida à interação entre pessoas. A interação de um
indivíduo com outro modela a natureza de seu eu e é uma advertência importante contra a
reificação da "cultura", mas despreza contextos materiais. Falta aqui, de acordo com
Cosgrove, o conceito de modo de produção, isto é, "pela forma de apropriação dos
excedentes e a forma correspondente de distribuição social dos meios de produção".
O tema "homem-meio ambiente" na geografia cultural é de interesse comum para a
geografia cultural e o marxismo.
O interesse do geógrafo cultural pela paisagem, mesmo que afastado do discurso
teórico, pode trazer ao marxismo uma dimensão ignorada.
"Reconhecer a individualidade dos lugares produzidos e mantidos pela ação humana
é o fundamento mais duradouro da geografia e, na prática, sua contribuição
acadêmica mais significativa."
O reconhecimento de paisagens e lugares como produtos da atividade humana
intencional, repleta de significados, vem ampliar a compreensão da cultura na geografia
humana e relaciona-la mais intimamente aos insights das ciências sociais, entretanto, a
geografia humanista focaliza sua atenção sobre indivíduos, negligenciando exames históricos
das relações de produção, voltando-se para o idealismo fenomenológico.
Geógrafos radicais, sugeriram que o conceito de Formações Econômico Sociais (FES),
pode em sua especificidade geográfica introduzir a síntese de elementos em específicas áreas
que determinam sua personalidade. O conceito de FES é flexível tanto em seu
reconhecimento da importância dos modos subdominantes de produção, quanto de sua
vinculação com áreas específicas.
O capitalismo globalizado, ao final do séc. XX, atravessa até mesmo os limites dos
estados-nacionais, obscurecendo o caráter distinto das áreas tradicionalmente estudadas pelos
geógrafos culturais. Isso fez, com que estes, se voltassem frequentemente, às formas do
passado e suas características residuais, que deram personalidade a áreas locais, em
detrimento do estudo das relações entre modo de produção e lugar.
"A incorporação de uma sensibilidade e a compreensão do significado dos lugares na
teoria marxista seriam uma contribuição inestimável da geografia cultural."
Não é difícil inferir as razões para essa falta de contato entre a teoria marxista e a
geografia cultural apesar de suas premissas compartilhadas e perspectiva histórica.
No contexto acadêmico, nos países capitalistas, inibiu-se até recentemente, considerar
seriamente o marxismo como método legítimo de investigação, representando a luta, pela
hegemonia intelectual, de um sistema fortemente anticomunista, sintetizado na tendência da
geografia americana, de universalizar o presente e desprezar o contexto histórico.
Por outro lado, o materialismo histórico foi submetido aos interesses do estado
soviético, ao adotar uma teoria economicista e reducionista da cultura, pouco diferente do
determinismo burguês que desaprovava. Ambas ideologias, capitalistas e socialistas, tendem a
interpretações estruturais e estáticas da atividade sócio-cultural, que servem para legitimar as
grandes organizações, o planejamento e o controle.
Os problemas da teoria da cultura histórico-materialista derivam, na visão de
Cosgrove, em grande parte, de Marx e Engels. A unidade dialética entre cultura e natureza é
claramente explicitada em Feuerbach e nos Manuscritos, nos trabalhos posteriores, segundo
alguns estudiosos do marxismo, ao "considerar a produção social como, universalmente, a
produção de bens materiais", de propor sua filosofia como uma filosofia da práxis, e desta
forma oferecer uma lei de evolução social e histórica inflexível, permitiu, à alguns -
principalmente Stálin e Pot Pol -, a apropriação simplória, linear e utópica, deste conceito e, a
imposição sobre a realidade social de um novo modo de produção, e consequentemente, 'a
reinvenção da cultura pela idealização, teórica, de um novo homem com um passado histórico
renovado'.19
As diferentes formações sociais que emergiram nos estados que adotaram o marxismo
19 O realismo socialista
- em sua acepção simplória -, como ideologia dominante, atestam o contínuo significado da
variedade cultural e histórica do espaço.
A questão tem implicações para a prática do materialismo histórico e, foi levantada,
academicamente, para mostrar que existe, para alguns pensadores marxistas, uma "visão mais
ampla da práxis e que reconhece seu próprio papel em moldar nosso mundo, enquanto evita
brados utópicos para as barricadas.".
Gramsci e outros oferecem uma linha da "teoria da cultura enquanto simbolização,
baseada no mundo material simbolicamente apropriado e produzido." Nas sociedades de
classe, a apropriação do excedente, tanto materiais quanto a produção simbólica, é feita pelos
grupos dominantes, e essa cultura, ideologizada, imposta à todas as classes.
Mas, a variedade geográfica do mundo natural, junto com a variabilidade histórica e
especificidade de modos dominantes e subdominantes de produção, produz uma ampla série
de formações sociais e econômicas, cujo caráter específico da produção simbólica dá origem a
paisagens distintas.
A maior dificuldade da teoria marxista da cultura está em manter o "momento
dialético" pelo qual um modo de produção é reconhecido como um modo de vida - "expressão
de seres humanos conscientes, auto-reflexivos e engajados na produção e reprodução de suas
vidas e de seu mundo material.", na medida em que, para o marxismo, "o papel ativo da
cultura tem sido 'subsumido por uma lógica linear mais poderosa de satisfação de
necessidades'.", e essa redução da cultura, "é também a essência da teoria ecológica e sócio-
biológica", está contaminado pelo pensamento burguês.
"A redução geralmente resulta da aplicação de um modelo-base-superestrutura
derivado da formulação de Marx nas linhas muito citadas de sua Contribuição à crítica da
economia política: 'a totalidade dessas relações (de produção) constitui a estrutura econômica
da sociedade, a base real, à qual correspondem formas definidas de consciência social. O
modo de produção da vida material condiciona os processos gerais da vida intelectual
política', ele prossegue dizendo que é 'inevitável, mais cedo ou mais tarde, que toda imensa
superestrutura, seja afetada pelas mudanças na base econômica”.
Mudanças essas, na base econômica, são precisamente determinadas, enquanto nas
superestruturas ideológicas, legais, políticas, religiosas, artísticas e filosóficas, que nos
tornamos conscientes da luta pela mudança.
Num modo de pensamento dominado pelas categorias burguesas de um sistema
capitalista, é fácil ver como podem levar a uma interpretação da cultura na qual a produção
material é compreendida como a produção de bens negociáveis, determinando, numa maneira
razoavelmente linear, as esferas entrelaçadas de crenças, valores e imaginação.
Essa á a origem da deformação stalinista do materialismo histórico, não dialético, que
levou a uma "nova arte e cultura", imposta como expressão necessária e legitima de uma
sociedade socialista, controlada pelo estado, como reflexo previsível e não mediado de novas
relações de produção. A negação do papel ativo da expressão cultural e artística, vulgarizou o
marxismo como um "determinismo econômico que reduz a vida cultural a um mero
epifenômeno da vida material".
O marxista russo Plekhanov, inclusive porque tem ligações com a geografia, seu
interesse pela cultura e seu apoio reafirmado à dialética, justifica essa interpretação linear da
cultura. "as propriedades do ambiente geográfico 'determinam' o desenvolvimento das forças
produtivas que, por sua vez, 'determinam' o desenvolvimento das forças econômicas ,
portanto, de todas as relações sociais", caindo na mesma armadilha (determinismo geográfico)
que o geógrafo cultural (determinismo tecnológico).
Marx, valeu-se da 'totalidade das relações de produção' incluindo 'todas' relações entre
seres humanos engajados na produção material, a "estrutura é mediada pela superestrutura"
dialeticamente, o que Plekhanov deixa passar. Posteriormente, ao permitir que a
"superestrutura 'interaja', um tanto, com a base econômica, da mesma maneira que a
organização econômica interage com o ambiente geográfico...fornece a chave para a
compreensão de todos esses fenômenos que, 'à primeira vista', parecem contradizer a tese
fundamental do materialismo histórico...Sob essa construção, a consciência humana é
produzida por forças inanimadas da natureza por meio da influência do ambiente geográfico
sobre a produção material e, subsequentemente, tendo uma vida ativa."
Mais tarde, pensadores marxistas e estruturalistas, como Althusser, tentarão uma
resolução similar, "que faz um divórcio conceitual inicial da vida humana e natureza, ou base
e superestrutura, e então busca uma 'relação' estrutural onde reuni-las".
Com base na noção de 'autonomia relativa' dos níveis estruturais e da 'interação' de
Plekhanov, Ley, questiona se há no marxismo uma necessidade teórica para o determinismo.
O modelo base-superestrutura não apenas nega a integridade da cultura, separando-a da
produção como esferas de 'meras' crenças, ideias, etc., torna extremamente difícil dar a essas,
seu papel ideológico importante como arma de manutenção estrutural nas formações sociais e
econômicas. A falsa consciência oculta as relações sociais que mantem a exploração e o
controle de classes, mas ainda é consciência - "o mundo vivido de um grupo humano,
dirigindo seu desenvolvimento posterior como forças de produção".
Para compreender a cultura é necessário voltar à noção de modo de produção como
um 'modo de vida', incorporando a cultura 'dentro' da produção humana, ligada em igualdade
dialética com a produção material de bens. "A consciência humana, ideias e crenças são parte
do processo produtivo material."
Lukacs e Gramsci, destacam-se. Ambos desconfiam da rigidez científica das leis
históricas no marxismo. Para eles, mudança histórica significa mudança humana e, assim,
mudança na consciência, reconhecendo que a esfera cultural era crucial na formação e
sustentação da consciência de classes. Lukacs volta-se para a análise da cultura literária e
artística e Gramsci, as voltas com um contexto geográfico particular, envolve-se com a
questão da cultura e da consciência de classe. Este, "considerava as necessidades materiais
objetivas como aquelas às quais uma vontade humana racional responde, e a prova dessa
racionalidade só pode ser 'a posteriori' quando se torna cultura, isto é, quando se estabelece
um senso comum aceito por todos...A objetividade era, dialeticamente, o universalmente
subjetivo." Na sociedade de classes, a cultura é resultado da experiência de classes, o senso
comum a cada uma sobre sua materialidade é parte da luta com sua classe antagônica, onde a
validade universal, na visão particularizada da cultura, é imposta pela classe dominante e um
dos pré-requisitos de sua posição dominante na FES. Segundo Gramsci20, o
materialismo histórico é uma antropologia e os produtos da cultura são todos básicos para a
luta de classes. O modo de produção estabelece limites a ideias e crenças porque é a
experiência principal dos seres humanos. Mas a relação orgânica entre consciência humana e
a produção material é tal que é na primeira, como ideologia de classe, que a mudança
histórica se revela. A produção material é, em si, tanto um instrumento de atividade ideológica
quanto vice-versa.
Gramsci, afirma ainda que, os intelectuais, aparentemente separados dos interesses
classistas, são, quem articula a relação entre a produção material e imaterial. Ideologicamente,
estes, articulam na filosofia o mundo vivido da classe dominante, filosofia homóloga à
posição desta na produção material, e conservar uma unidade ideológica através da totalidade
social.
A cultura hegemônica é um instrumento estruturado estruturante de conhecimento e
comunicação, senso comum e a base da ordem moral, cumprindo o papel político de impor e
legitimar a dominação de classes.
No capitalismo é a ideologia da burguesia que alcança o status hegemônico, e assim,
sua cultura é que define o senso comum. As condições objetivas da produção capitalista: a
20 Gramsci, Antônio. Os Intelectuais e a Organização da Cultura, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978
concepção de pessoas e natureza como trabalho e recursos, a separação do sujeito humano dos
meios de produção e vida, que são concebidos como capital, a alocação do trabalho excedente
pelo mercado e assim o fetichismo da mercadoria - "a produção no capitalismo é,
inevitavelmente, reduzida apenas na consciência ao senso apenas da produção de bens
materiais.".
Williams (in Cosgrove) afirma:
"Marx viveu, e nós vivemos, numa sociedade na qual realmente 'as forças produtivas
parecem...constituir um mundo auto-subsistente'. Assim, ao analisar a operação das
formas produtivas que não são apenas percebidas como, mas de fato realmente são,
desse tipo, é fácil dentro da única linguagem disponível, descreve-la como se fossem
universais e gerais. e como se certas 'leis' de suas relações com outras atividades
fossem verdades fundamentais. Assim o marxismo tomou a coloração de um tipo
especificamente burguês e capitalista de materialismo."
No capitalismo, produção significa produção de mercadorias para um mercado, e
outras atividades sociais humanas são excluídas da esfera produtiva para serem reificadas nas
vária partes da superestrutura. Do poder desse senso comum burguês nem o marxismo escapa:
a separação conceitual de produção de cultura da produção material.
Dentro da antropologia, com a qual a geografia cultural tem mais afinidades, Sahlins
elaborou uma interpretação simbólica da cultura, que aliada a teoria antropológica
substantivista, fornece um lugar para a cultura dentro dos modos de produção simbólicos, que
permitem uma síntese dos objetivos tradicionais da geografia cultural com o materialismo
histórico, mantendo um respeito verdadeiro ao papel ativo da cultura nas formações sociais.
Reconhecendo que a consciência humana está apoiada no mundo material, objetivo,
demonstra que, mesmo nos ambientes geográficos mais aparentemente desfavoráveis existe
uma riqueza material de subsistência. "A noção de escassez...é uma suposição burguesa
construída sobre as condições objetivas de trabalho na sociedade de mercado e projetada
sobre as formações pré-capitalistas”. É uma parte da luta ideológica na própria academia
universalizar as condições historicamente específicas da sociedade e comportamento
capitalistas.
De fato, a escolha dos meios de sobrevivência é sempre culturalmente determinada.
Sahlins afirma ainda que:
"qualquer teoria baseada na utilidade como base (de interpretação) da cultura, seja
econômica, ambiental ou ecológica, deve levar a uma negação determinista da cultura como
produto humano 'real': 'todos estes tipos de razão prática...tem em comum uma concepção
empobrecida da simbolização humana' ".
Marx, em seus escritos iniciais, reconhece que "se a economia é o 'determinante
último', é também um 'determinante determinado' (que) não existe fora do complexo, sempre
concreto, historicamente variável de mediações concretas, incluindo até as mais espirituais".
Para Marx, a produção apoiada no trabalho, domina a teoria do valor do trabalho, e este é
materialmente definido como produção de mercadorias, assim, segundo Sahlins, a "ordem
simbólica é eliminada da produção para reaparecer como 'fantasmas' nos cérebros dos
homens, sublimados do processo material de vida", perdendo "o reconhecimento crucial de
que a produção da ordem simbólica é, em si mesma, 'uma dimensão do trabalho humano'".
Valores de uso, os sistemas de necessidades de uma determinada sociedade são
culturalmente determinados."...o preço atual do mercado mundial é apenas uma expressão da
demanda cultural de um grupo comprador dominante, não uma expressão real da utilidade..."
A discussão geográfica deve rejeitar todas as formas de determinismo utilitarista da
atividade social, aceitando que o ambiente físico pode estabelecer limites à ação humana,
mas que, esses são inúteis para prognósticos, além de que, "a ação da natureza se revela como
cultura...numa forma não mais sua, mas incorporada como significado", portanto, qualquer
discussão geográfica "deve originar-se do reconhecimento do ambiente como um fenômeno
culturalmente abrangido".
Satisfazendo as premissas de Marx e Engels: as condições naturais nas quais os seres
humanos estão situados e a natureza física humana, culturalmente explicitadas, de forma que,
"a seleção de qualquer determinada oposição material por uma cultura para ênfase e
codificação deve ser uma oposição verdadeira, natural ou formalmente perceptiva...a natureza
não pode ser culturalmente apropriada ou explorada de modo a negar suas próprias relações
objetivas, ou toda comunicação se torna impossível" e isso deve ser explicado empírica e
contextualmente através da prática da geografia.
No lugar de fazer, segundo Cosgrove, uma “separação epistemológica de níveis
estruturais e então procurar suas 'relações' à maneira da ciência positiva, devemos iniciar com
a unidade de um modo de produção como um modo de vida, isto é, simbolicamente
constituído”. Se toda produção humana é simbolicamente constituída, podemos afirmar os
modos de produção como modos de produção simbólica.
Cada um é um modo de vida diferenciado por relações características de produção que
estruturam forças produtivas. Mas essas relações de produção são culturalmente diferenciadas
através do foco da produção simbólica, do qual o significado é mapeado através de todos os
níveis estruturais.
Na sociedade capitalista, a produção simbólica ocorre na economia como produtora de
mercadorias, em que a simbolização econômica é estruturalmente determinante. A tentativa de
universalizar isso está na base do modelo base-superestrutura.
Nas formações não capitalistas ou pré-capitalistas o foco da produção simbólica está
em outra esfera que a da economia. Tomando a direção dada por Pilanyi e Sahlins, podemos
pensar em três modos de vida cuja produção simbólica dominante situa-se diferentemente:
1ª) sociedades 'primitivas', que tem a reciprocidade como modo dominante de integração
econômica, a produção simbólica está situada na constituição social do parentesco. "Então
isto é considerado em todas as outras instituições, incluindo a economia enquanto produtora
de mercadorias e paisagens,...isto determina as possibilidades e limites das forças de produção
tornadas disponíveis para alcançar fins culturalmente determinados"
2ª) As formações sociais arcaicas nas quais a produção simbólica é dominada pelo setor
político-religioso, estruturando paisagens centradas no sagrado, que Polaniy chama de
sociedades redistributivas.
3ª) A sociedade capitalista que "eleva a economia a uma posição de domínio tal que 'lança
uma rede classificatória através de toda superestrutura cultural, estabelecendo a distinção de
outros setores a através de distinções próprias'."
Esses três modos de produção simbólica fornecem apenas um esboço imperfeito e uma
tipologia: reciprocidade, redistribuição e economia de mercado. Essas três categorias
"mantem completamente a importância da cultura, variando apenas a posição da produção
simbólica derivada de Marx", não sendo consideradas estágios evolutivos unilinearmente.
"A existência de modos de produção subsidiários...é reconhecida como uma
característica delimitadora fundamental de uma FES. Tais modos de produção
simbólica são conceitos analíticos de valor para aperfeiçoar a contribuição sistemática
da geografia cultural ao examinar a ação ambiental do homem".
Estudos regionais que os empregam, são melhor compreendidos conjuntamente ao
conceito de FES, que, "expressa a unidade...das diversas esferas da vida econômica, social,
política e cultural de uma sociedade" e colocam essa totalidade num contexto histórico e
geográfico específico. Desta maneira, "a FES representa a manutenção dos tradicionais
estudos da geografia cultural sobre os lugares e paisagens, ao mesmo tempo em que permite
aperfeiçoar e desenvolver a teoria dentro do materialismo histórico".
Aceitando que a "produção é, 'ad initio', uma intensão cultural, que todos os processos
materiais de existência são organizados como processos significativos do ser social, ainda
assim, enfrentaremos formidáveis problemas teóricos.
Marx reconhece que:
"o próprio ato de reprodução muda não apenas as condições objetivas - por exemplo,
transformando aldeia em cidade, terras selvagens em clareiras agrícolas etc. - mas os
produtores mudam com ele, pelo aparecimento de novas qualidades, transformando e
se desenvolvendo em produção, formando novos poderes e novas concepções, novos
modos de relações, novas necessidades, nova linguagem".
Mas, Sahlins mostra que, as maneiras de incorporar tal mudança variam entre
diferentes modos de produção simbólica. No capitalismo a reformulação do código simbólico
se verifica nas mais variadas formas de bens negociáveis identificados como
desenvolvimento, enquanto nas sociedades 'primitivas' não ocidentais, esta reformulação
parece variar na forma, em direção a um novo modo de produção simbólica:
"Ali a história ocorre na junção das sociedades, de modo que toda área cultural pode
apresentar um conjunto maravilhoso de variações, na base e na superestrutura, de
sociedades, 'todas similares mas nenhuma igual a outra, cujo coro aponta o caminho
para uma lei oculta'. Para nós, em virtude de um modo institucional diferente, do
processo simbólico, a história se processa basicamente da mesma maneira, mas nas
circunstâncias complicadas de cada sociedade".
Fazendo eco à Marx, para quem, nas sociedades primitivas, a história se verifica no
contato com outras sociedades ao invés de internamente, e que o desenvolvimento interno é
uma característica das sociedades de classe pelo conflito entre elas, Sereni diz, "o modo de
vida de uma FES é específica a si mesma e não pode ser reduzida a uma cronologia geral de
periodização".
Nas sociedades de classe, segundo Gramsci e Bourdieu, a produção simbólica é
apropriada pela classe dominante e elaborada pelas suas frações especializadas como poder
simbólico que homogeniza, naturaliza e oculta as relações específicas de dominação.
A luta pelo poder, classista, se dá a nível ideológico. "Os objetivos da classe subalterna
é assumir os meios da produção simbólica para reconstruí-los e, através deles, a produção
material, em seu próprio interesse". Polaniy afirma que, "a história da revolução burguesa na
Europa demonstra que, apenas quando os valores daquela classe tinham penetrado
suficientemente nos valores culturais e políticos, assim como nas relações de produção
material de uma FES, poderia ser completada com sucesso a transição para uma formação
capitalista."
O papel ideológico dos intelectuais está em desafiar o senso comum burguês e
experimentar formas culturais alternativas e o "reconhecimento de que não podemos
prognosticar qual destas formas terá relação orgânica com a produção material enquanto
cultura verdadeiramente revolucionária. 'Nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma
sociedade dominante e, por isso, nenhuma cultura dominante esgota, na realidade, a prática, a
energia humana, a intensão humana' " De seu desafio à cultura dominante, como cultura
alternativa, depende a transformação de todo modo de produção. "A luta de classes é uma luta
sobre a constituição cultural da existência material humana e esse resultado não seguirá um
curso previsível".
A geografia cultural, frequentemente falhou, na prática, em manter a dialética "na
qual o mundo material é considerado culturalmente, embora permaneça ela mesma como
condição da cultura" em oposição ao senso comum da ciência burguesa; que é precisamente o
que a geografia humana deve fazer, e a facilidade com a qual até a geografia 'marxista' adota
materialismo 'vulgar' que sugere a geografia cultural, concebida separadamente, ainda pode
ter um papel crítico. Contudo, não podemos pensar a geografia cultural como uma
subdisciplina. A segmentação do conhecimento, institucionalizado, é em si mesmo um
produto ideológico da cultura hegemônica capitalista. Já o materialismo histórico é um
método matizado e flexível de compreensão, estendendo sua prática e aperfeiçoando sua
teoria por todos os campos da academia.
O reconhecimento de que cada FES está ligada a um espaço específico - uma
paisagem - produzida e reproduzida nele é um dos temas que a geografia e, particularmente, a
geografia cultural se apropriou.
As FES, segundo Milton Santos, escrevem a história no espaço e sua história é a
história da super-imposição de formas produzidas em sua paisagem através da sucessão de
modos de produção; uma vez que estes são simbolicamente constituídos, lugar e paisagem são
dotados de significado humano.
Aspectos do significado da paisagem foram estudados por geógrafos culturais, mas
seus estudos aguardam a incorporação ao contexto histórico específico das FES particulares.
A complexidade do significado ligado às paisagens que observamos para incorporar as
expressões dos modos de vida do passado, assim como do presente, exige estudo empírico
detalhado. As paisagens contêm significados culturais residuais e emergentes, assim como
atuais. A perspectiva histórica da geografia cultural... é essencial para compreender as formas
e características da paisagem.(Cosgrove, 1977)
A incorporação do espaço aos códigos simbólicos da produção cultural é também
tarefa para a geografia cultural. Na sociedade de classes, a ideologia se apropria e reproduz o
espaço legitimando a dominação. A arquitetura, paisagens monumentais e elementos
decorativos 'articulam e ampliam os significados das atividades no local...e formam um todo
coerente. Evocando mitos épicos e interpretações do passado que informam e legitimam esses
valores em relações aos quais o espaço é construído para celebrar; exigem "uma forma ritual
de comportamento, um modo particular de vestir, maneira de falar, padrão de movimento".
O espaço, a paisagem, estrutura e é estruturado pelo poder simbólico, articulando e
reforçando a aceitação e participação no código cultural da classe dominante.
A geografia cultural pode não apenas revelar a contribuição simbólica da ação humana
na produção e manutenção de paisagens e o grau pelo qual essas paisagens estruturam e
mantem a produção simbólica, mas pode examinar criticamente formas emergentes de
organização espacial e da paisagem, não da perspectiva de uma estética flutuante, mas de
uma estética baseada no reconhecimento de como novas paisagens mantém e elaboram o
código simbólico da sociedade burguesa.
Seu dever é dar boas vindas e promover essas formas de produção de lugares que
parecem desafiar suposições e atribuições do senso comum de nosso mundo capitalista
culturalmente construído.
"Assim, a geografia cultural pode seguir o exemplo de Gramsci, de lutar para criar
uma nova cultura - uma cultura que envolverá a produção de novas paisagens e de
novos significados nas paisagens que já habitamos."
1.3 - Justificando a importância da arte como recurso pedagógico: os “espaços”
imprescindíveis à uma análise geográfica que a literatura atinge e a Geografia não.
A arte sempre foi um meio de comunicação universal, não importando qual seja seu
suporte físico, seja nas paredes das cavernas, o pergaminho, o papiro, os papéis de arroz
chinês, as tábuas cerâmicas da mesopotâmia, sempre foram à representação gráfica,
codificada do sagrado e do profano, do sentimento e da visão de mundo.
A arte tem como objetivo principal à busca de sentido, criação, inovação, buscando
responder os desafios que se processam diariamente em nossa realidade circundante. Juntos
aos demais conhecimentos formam as representações simbólicas de cada povo e cultura.
As manifestações artísticas buscam constituir uma síntese das nossas significações
através de imagens poéticas, visuais, sonoras e corporais. Porém, as representações artísticas
estão interligadas à objetividade daquilo que é material junto à lógica e construção do
imaginário social. Desta maneira, podemos observar que a arte possibilita ao educando e/ou
sujeito múltiplas leituras e interpretações que variam tanto na dimensão subjetiva como na
objetiva.
A arte nos possibilita a constituição de uma “mente criadora” que permite ao ser
humano a articulação e a possibilidade de criar situações, experiências, fatos e ideias que
interligados junto à linguagem, permite-nos expressar nossas sensibilidades e visões
concernentes ao mundo em que vivemos.
Assim, a arte é um instrumento de comunicação com vários indivíduos e culturas, pois
expressam diferenças e semelhanças entre as culturas, ou seja, ela é uma estrada de mão dupla
visto que nos permite um dialogo entre o observador e a obra em diferentes escalas espaço-
temporais. Concordamos dessa forma com o que diz o PCN de Artes (1998):
“Cada obra de arte é, ao mesmo tempo, produto cultural de uma determinada época e criação singular da imaginação humana, cujo sentido é construído pelos indivíduos a partir de sua experiência”.
À medida que o processo civilizatório se desenrola, esta codificação, vai sendo
incorporada e, ao mesmo tempo, sendo apropriada por segmentos sociais, dentro da divisão
social e sexual do trabalho, que vão impor uma naturalização das diferenças sociais e
espaciais das comunidades. Aqui podemos retomar os dizeres de Cosgrove21:
"Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em mundo humano. Produção e reprodução da vida material são, necessariamente, uma arte coletiva, consciente e codificada simbolicamente. Essa apropriação simbólica do mundo produz linguagens, estilos de vida e paisagens distintas, histórica e geograficamente
21 Ibidem.
específicas".
Na medida em que as manifestações artísticas são representações codificadas
esteticamente de determinada realidade, sua leitura evoca sentimentos, lembranças,
percepções, que estão além do racional. A própria linguagem é uma representação simbólica,
codificada, das coisas e das relações entre o sujeito e o outro e, entre o sujeito e o mundo para
que se dê essa comunicação.
Mesmo que diversas regiões tenham desenvolvido línguas diferentes ao longo do
processo de apropriação do espaço mundial, gerando culturas singulares e diferenciadas,
visões de mundo e modos de vida diferentes, essas linguagens contêm elementos que são, por
assim dizer, universais, tais como, o sentimento de pertencimento, o afeto, o ódio, o
sofrimento, etc. O que nos identifica, em qualquer lugar, com a única coisa que temos em
comum, nossa humanidade.
A arte, em especial a literatura, segundo alguns autores, é “pensar por imagens”. Na
literatura, principalmente em sua forma poética, as imagens têm função de “explicar o
desconhecido pelo conhecido” dado que as imagens nos ajudam a compreender sua
significação, na medida em que nos remetem a coisas familiares, fazendo com que o
desconhecido seja percebido e compreendido, pelo conhecido. As imagens, observadas e
lidas são processadas no inconsciente, através da leitura de mundo do leitor, sendo assim,
compreendidas.
Chklovsky22, afirma que as “imagens são transmitidas de século em século, de poeta
em poeta sem serem mudadas”, quanto mais às compreendemos, mais percebemos que as
imagens “são tomadas emprestadas de outros”. Esta maneira de pensar nos remete ao conceito
de arquétipos coletivos de Jung, para o qual, algumas imagens, são permanentes e inatas ao
ser humano, na medida em que são transmitidas, inconscientemente de geração em geração,
formando um imaginário presente em toda humanidade.
Chklovsky23, nos diz ainda que o caráter estético de um objeto é o resultado de nossa
maneira de perceber e que, portanto, as imagens podem ser percebidas de duas formas: “a
imagem como meio prático de pensar, de agrupar objetos e a imagem poética que reforça essa
impressão. A imagem poética é um dos meios de criar uma impressão máxima” e recorre a um
pensamento de Tolstoi, em seu diário, que diz: ”para devolver a sensação de vida, para sentir
os objetos, para provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte”.
22 CHKLOVSKI, A. Arte como Procedimento in Teoria de Literatura. Jornalistas Russos. Porto Alegre. Globo, 1976.
23 Ibidem
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão, não como reconhecimento.
É singularizar os objetos, obscurecer suas formas, aumentando a dificuldade e a duração de
sua percepção. Segundo Chklovsky, “O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e
deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que já é passado
não importa para a arte”.
Desta forma, a vida da obra de arte se estende da visão ao reconhecimento, da poesia a
prosa, do concreto ao abstrato. “O objeto se acha diante de nós, sabemo-lo, mas não o
vemos”. A liberação do objeto do automatismo da percepção se estabelece por diferentes
meios. O procedimento de singularização do objeto é dado não pela sua nomeação, mas pela
descrição deste, objeto ou fato, como se fosse visto ou acontecido pela primeira vez.
A Literatura é considerada pelo senso comum, uma criação artística, enquanto que a
Geografia é uma construção científica. Qual a relação que se pode estabelecer, ou melhor, que
isomorfismo encontramos entre estas duas díspares construções humanas?
Podemos concluir então que, a geografia tem no espaço seu objeto de estudo e ação e a
literatura têm sua ação configurada no espaço. Ambas dialogam dentro do mesmo campo: o
espaço físico e imaginário.
A construção do lugar, ou conjunto de lugares que a obra literária contêm, leva à
compreensão de que o espaço é ao mesmo tempo, “meio do sentido e também seu objeto”.
Sua concretude, qualificada como um espaço exterior, geográfico, seria uma necessidade
corpórea realizada num continuum local, mais ou menos definido, cuja percepção pelo leitor,
identifica uma realidade concreta. A este espaço, exterior, contrapõe-se outro, o do sujeito, o
espaço do imaginário.
Nesse sentido, é que se realiza a viagem (ler é viajar), ao mesmo tempo uma trajetória
física e moral, externa e interna, real e simbólica que pode conduzir à noção do cheio quanto à
do vazio. É desta relação entre a imagem dada, pela literatura, e a imagem percebida pelos
sentidos do sujeito, que construímos a compreensão de nossa realidade.
Dessa maneira podemos observar a importância da Literatura enquanto recurso
pedagógico, pois a mesma colabora para nossa melhor compreensão dos fenômenos
subjetivos a abstratos que ocorrem cotidianamente sobre o espaço vivido e por nós percebido.
Junto a Geografia, ajuda-nos na narração e observação dos fenômenos geográficos realizando
assim a confluência entre a objetividade científica e a subjetividade literária para melhor
entendimento do mundo e dos atores que colaboram na sua constante construção.
2 - Morte e Vida Severina: contextualizando a escolha da obra
Para demonstrar a importância da literatura enquanto recurso pedagógico, vale
ressaltar a importância da obra Morte e Vida Severina do autor pernambucano, João Cabral de
Melo Neto.
A escolha do poema Morte e Vida Severina dá-se em função de sua importância tanto
no contexto social brasileiro, onde ela funciona como instrumento de denúncia as atrocidades
sofridas pelos trabalhadores rurais da região do Nordeste em função da grande exploração dos
grandes latifundiários sobre os camponeses como pela sua importância no âmbito
educacional, pois a obra é utilizada como sugestão no Caderno de Orientações e Expectativas
no Ensino Fundamental de Geografia24, reafirmando a utilidade da relação
geografia/literatura no ensino escolar.
A obra selecionada nos dá um leque de alternativas para serem trabalhadas em sala de
aula ou no campo com os alunos, pois o poema da margem para que os educandos façam uma
espécie de dialogo e reflexão com os temas trabalhados na obra. Entre os principais temas que
poderiam ser abordados concernentes a disciplina geográfica, temos: os aspectos físicos,
sociais, econômicos, políticos, culturais, religiosos, industriais e migrações.
Essas possibilidades se ampliam ainda mais quando os alunos têm no histórico
24
familiar, pessoas que são provenientes da região nordestina, pois lhes permitem
desenvolverem melhor o aprendizado com base nas experiências, histórias e vivencias de
parentes e amigos que geralmente partilham, trocam e somam ideias e conhecimentos a
respeito da temática em voga.
Além disso, essa metodologia busca estimular o desenvolvimento de habilidades e
características que são de caráter abstrato/subjetivo, onde o aluno busca entender melhor as
questões que são provenientes dos seus sentimentos como: o amor, o ódio, a perda, a amizade,
a contemplação do que é belo, entre outras características que podem ser potencializadas
através do poema junto a uma Geografia.
Enfim, o poema Morte e Vida Severino nos dá um mosaico de abordagens para serem
desenvolvidas e trabalhadas didaticamente, o que contribui para formação do educando e a
utilização do conhecimento em várias áreas do saber, constituindo-se assim, numa obra com
envergadura interdisciplinar e, ao mesmo tempo, estimulando a formação cidadã através de
uma analise que consegue ser simultaneamente uma bela poesia e uma enérgica reivindicação
política concernente a diminuição das desigualdades sociais que predominam no território
brasileiro.
2.1 - A obra, o autor
João Cabral de Melo Neto, nasce no Recife, PE, em janeiro de 1920, filho de família
de senhores de engenho. Sua infância se passa, em parte, por entre os canaviais e sua
população fixa e errante, por entre os aglomerados humanos resultantes dessa dinâmica e suas
manifestações culturais, o romance de barbante, a literatura de cordel e os cantadores de feira,
que vão compor o imaginário do futuro autor. Ele mesmo o reconhece. Letrado, por sua
condição de filho de engenho, menino na idade, na semelhança e curiosidade do mundo e se
escondendo da casa-grande, absorvia o imaginário popular, esta leitura do mundo que a leitura
da palavra amplia. Diz ele:
No dia-a-dia do engenho,
toda a semana, durante
cochichavam-me em segredo:
saiu um novo romance.
E da feira do domingo
me traziam conspirantes
para que os lesse e explicasse
um romance de barbante.
(...)
Embora as coisas contadas
e de todo o mirabolante,
em nada ou pouco variassem
nos crimes, no amor, nos lances,
e soassem como sabidas
de outros folhetos migrantes,
(...)
(E acabaria, não fossem
contar tudo à Casa-grande:
na moita mota do engenho,
um filho-engenho, perante
cassacos do eito e de tudo,
estava se dando ao desplante
de ler letra analfabeta
de corumba, no caçanje
próprio dos cegos de feira,
muitas vezes meliantes.)25
A nosso ver, é somente na qualidade de escritor "migrante", já que em grande parte de
sua vida, vive fora do Recife e do país em razão de suas atividades enquanto diplomata e, da
leitura de outros mundos vividos e vivenciados, aqui e lá fora, que a percepção do(s)
Severino(s) atinge toda sua plenitude e complexidade. Ele mesmo o confessa:
"Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Não
precisava estar lá para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram
as favelas nem as populações ribeirinhas do Capiberibe, que conheci na minha adolescência
andando pelos mangues perto da casa, na Jaqueira".
Esses poucos anos, 10, vividos entrelaçados com essa cultura dos "corumbas"26, das
25 Melo Neto, João C. Descoberta da Literatura, in A Escola de Facas, 198026 Corumba: indivíduos que descem do sertão à procura de trabalho temporário ou permanente nas usinas,
engenhos e nas estradas, tangidos, não só pela seca, mas também por sazonalidades da agricultura de
feiras, festas e cantadores, formarão o caldo no qual vai perceber a dimensão do espaço
sertanejo, sofrido, e a riqueza do imaginário popular na construção da identidade nordestina.
No Recife, sua educação primária fica por conta dos padres do Colégio Marista, cuja
falta de higiene, associada a educação religiosa, grafará, mais tarde e ateu, no livro "Antíode"
(1947), no poema "As Latrinas do Colégio Marista do Recife":
(...)
Lavar, na teologia marista,
é coisa da alma, o corpo é do diabo;
a castidade dispensa a higiene
do corpo, e de onde ir defecá-lo.
Ingressa, aos dezessete anos, no serviço público onde faz carreira, burocrática,
primeiro no Recife e depois na então Capital Federal, o Rio de Janeiro. Nesse entediante
mundo da burocracia, vai conhecer, outros, como ele, funcionários, diplomatas e burocratas e
que são a fina flor da poesia, da boemia literária brasileira. Estas influências irão marcá-lo e
distingui-lo; entre outros, conhece Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Jorge de Lima e
Carlos Drummond de Andrade. Para esse último, escreve um poema carta em papel timbrado
da repartição:
(...)
Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
(...)
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
(...)
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
subsistência, perda de terras, etc.
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os Arquivos, Carlos,
As caixa de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
(...)
Carlos, dessa náusea
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.
É nesse período, que cresce como poeta, e começa a publicar seus primeiros livros.
Sua poesia já contém um rigor construtivo e uma clareza que vai marcá-lo. Sob influência de
Joaquim Cardoso, pernambucano, engenheiro e poeta, publica "O Engenheiro", passando
João, a ser conhecido, como o poeta-engenheiro. Sua poesia, busca, a partir daí, o rigor
matemático, o equilíbrio, sem deixar de lado a emoção e o sonho.
É sempre bom lembrar, que a literatura brasileira, pelo menos em parte, se voltava
para as questões regionais, com Graciliano Ramos, Eça de Queiróz e José Américo de
Almeida, sendo alguns de seus principais expoentes, e que se voltavam criticamente à dura
realidade nordestina, cujas influências se farão sentir na obra de Cabral. O país também passa
por reformulações político-econômicas, "inauguradas" com a revolução de 30, principalmente
com a ampliação da industrialização no sudeste e a consequente urbanização daí advinda. Esta
fase, pode ser conceituada como o início do período da incorporação da técnica, ou meio
técnico, na dinâmica econômica brasileira, como o define o geógrafo Milton Santos. Esse
processo pode ser percebido, no imaginário "redentor" da modernidade industrial, produtora
de uma nova "realidade", a cidadania a ser alcançada, na última parte de Morte e Vida
Severina (2008, p.111), quando do nascimento do filho de mestre carpina e das predições das
ciganas:
(...)
Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é de graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
(...)27
É também, dessa época, o início de sua carreira diplomática, onde, principalmente na
Espanha, vai encontrar a luminosidade sanguínea de Garcia Lorca e, a percepção das raízes
ibéricas mediévicas, na construção do imaginário da cultura popular nordestina, sobretudo em
suas manifestações de base religiosa. A peça, Morte e Vida Severina, é composta como um
Auto de Natal, cujas raízes, estão em Portugal e Espanha. Na Espanha, onde o clima
continental, a baixa fertilidade do solo a a aridez de algumas regiões espanholas, a
propriedade das terras e, principalmente, as questões sociais amordaçadas pela consolidação
da ditadura franquista, da direita-cristã, são uma espécie de gatilho inconsciente às suas
lembranças e à compreensão do homem nordestino. Seu olhar, então, a partir daí, volta-se
cada vez mais, para o Recife, o Capibaribe e o Nordeste, em especial, seu Estado:
Pernambuco. Ele, confessa seu débito à Espanha, e principalmente à Sevilha, onde morou, no
poema "Autocrítica"28:
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
O Pernambuco de onde veio
e o aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
e deu-lhe a outra, fêmea e viva,
desafio demente: em verso
dar a ver Sertão e Sevilha.
2.2 - A obra constrói uma Geografia da fome: um retrato do Brasil
O poema de João Cabral de Melo Neto é uma obra extremamente geográfica, política
27 Melo Neto, João Cabral, Morte e Vida Severina, Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros, MEDIAfashion, Rio de Janeiro, 2008
28 Melo Neto, João Cabral, Autocrítica, in A Escola das Facas, 1980
e social simultaneamente, mostrando os problemas e desafios localizados no território
nacional. A temática principal do poema faz uma alusão ainda que de maneira indireta ao livro
do médico Josué de Castro chamado A Geografia da Fome.
Embora o primeiro seja de caráter artístico e o segundo de caráter científico, trazem a
tona a questão da miséria sofrida pela população pernambucana e suas imensas dificuldades
resultantes das próprias características fisiográficas da região juntamente ao intenso conflito
entre os grandes proprietários de terra e as populações de camponeses que são cotidianamente
exauridos da posse da terra, do alimento e principalmente da vida.
Essa situação se torna o ambiente perfeito para a inspiração de João Cabral de Melo
Neto que utiliza de toda sua genialidade em prol de criar mecanismos de combate às injustiças
por ele presenciadas em sua terra natal. O próprio nome do personagem Severino representa
não apenas sua identidade, mas sobretudo, sua condição, ou melhor, a condição de vários
cidadãos que tiveram seus direitos roubados e que estão à margem no que diz respeito ao
crescimento econômico e igualdade social.
2.3 - Algumas das possibilidades enquanto conteúdo entre Morte e Vida Severina
e a Geografia
Pelo que observamos até aqui, a Literatura em geral nos permite uma infinidade de
opções para trabalharmos no âmbito educacional. Tanto de maneira interdisciplinar como de
maneira transdisciplinar envolvendo varias áreas do conhecimento tendo como recurso
pedagógico , a literatura.
No caso do poema Morte e Vida Severina sendo trabalhado junto à disciplina de
Geografia possibilita múltiplas abordagens do conteúdo geográfico. Sendo o poema
ambientado na região do nordeste, poderia ser trabalhado com os alunos, as características
físicas de Pernambuco: seu clima, relevo, solo e sistemas hidrológicos buscando entender
melhor o ambiente físico onde se dava a trama e a peregrinação do personagem Severino.
Analisar o percurso do rio Capiberibe que é sua referência no caminho rumo a Sergipe.
Na cartografia, podemos trabalhar o trajeto feito por Severino até chegar na capital de
Pernambuco, ou seja, Sergipe destacando as especificidades de cada localidade presente no
poema ou até mesmo elaborando um mapa conceitual dos sentimentos de Severino conforme
realiza sua emigração sobre o estado pernambucano e as pessoas que encontra durante o
percurso.
Outro fator importante tem haver com a questão populacional, ou seja, como se
constituem os processos migratórios, de que maneira o Estado os incentiva ou limita através
de políticas de restrição, quais são os diversos tipos de migração pelo qual o sujeito sente-se
motivado a deixar sua terra natal em busca de outros locais para se estabelecer com sua
família de maneira permanente ou provisória.
Devemos enfatizar também quais as consequências o individuo sofre ao realizar o
processo migratório. Neste ponto, é necessário ressaltar a importâncias das questões afetivas,
psicológicas e emocionais que também colaboram para sua permanência ou não em
determinada localidade. Outra importante temática a ser considerada e que no caso do poema,
se torna primordial é a questão dos conflitos agrários ,ou seja, a luta pela posse da terra, pois a
mesma é a fonte de subsistência para a população camponesa.
A questão do Agronegócio também é muito importante para entendermos o poema,
pois em sua leitura fica claro o processo de mecanização do campo e a concentração de terras
nas mãos de grandes multinacionais, evidencia o grande problema que assola a população
brasileira que se torna órfã da terra que, outrora, possuía e que através dela se mantinha.
Na Geografia política, como os atores envolvidos (Estado, empresas, organizações
não governamentais e a população) nos processos de exclusão e/ou inclusão trabalham para
alcançar seus trunfos e como esse processo se especializa sobre e território nacional. Nas
questões urbanas, como essas questões configuram e (re)configuram determinadas paisagens
sobre o espaço, ou seja, como as políticas públicas e/ou privadas agem para produzir o espaço
urbano visando alta lucratividade ao mesmo tempo que legitima as ações e atores utilização
determinadas parcelas do espaço.
A questão dos processos logísticos e dos transportes também precisa ser enfatizada,
visto que o Estado sempre tem prioridade em criar corredores de circulação para o
escoamento da produção e de que maneira eles privilegiam alguns locais em detrimento de
outros e como esses sistema de transportes multimodal29 colabora para maior eficiência na
circulação de pessoas e mercadorias sobre o território nacional.
Vale ressaltar o papel dos vários agentes que se mobilizam em busca se soluções para
os problemas provenientes das regiões em voga. O papel das organizações não
governamentais e das organizações religiosas na luta pela moradia e saúde das populações
ribeirinhas, as várias discussões e debates concernentes aos problemas ambientais que já são
um desafio no momento atual e tendem a se intensificar no futuro.
Enfim, aqui estão alguns dos conteúdos que não só podem, mas devem ser
29 Sistema formado por vários tipos de transporte. Ex.: rodovias, hidrovias e ferrovias.
trabalhados com os alunos através do poema Morte e Vida Severina e da Geografia onde
muito contribuirão para nossas analises e discussões, pois os alunos, através de suas próprias
experiências, demonstram que sempre estão ligados há algum meio de comunicação, ou no
diálogo com algum amigo ou parente para coleta de dados que servem de maneira primorosa
para o enriquecimento cultural de ambas as partes envolvidas no processo de aprendizagem.
As possibilidades entre Geografia e Literatura colaboram também na formação interna
dos educandos, ou seja, potencializa suas características subjetivas: amor, justiça, paz,
solidariedade, entre outros que colaboram para sua formação afetiva e emocional, pois o aluno
desenvolve maior respeito pelo seu próximo e pode melhorar suas relações interpessoais.
Dessa maneira, temos a oportunidade de realizar a construção de um conhecimento
que não seja estanque, ou seja, fragmentado, mas ao contrário, nos possibilita a construção de
um conhecimento mais holístico, que vai de acordo com as necessidades de uma convivência
mais harmônica com o meu próximo e com o meio ambiente da qual somos todos
participantes.
A construção desse conhecimento resulta na formação de sujeitos cidadãos, que
procuram exercer seus direitos e deveres de forma consciente, buscando a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária e que procuram compreender as ações dos diversos atores
que se organizam e constroem continuamente o território brasileiro. Enfim, que sejam atores
de uma nova Geografia, uma geografia mais democrática.
2.3.1 - As migrações/a retirância
O Estado enquanto órgão gerenciador das atividades e empreendimentos que são
construídos sobre o território nacional, sempre se utilizou do recurso das massas em prol de
seus objetivos e trunfos, ou seja, a população sempre obteve um papel importante nas
políticas realizadas pelo Estado.
De acordo com Raffestin30, o território é um espaço onde se projeta uma ação, seja ela
trabalho, energia ou informação. O território se apóia no espaço, porém não é o espaço. O
território é uma produção através do espaço, a própria utilização da representação se torna
importante para apropriação visando controle de determinada área e/ou recurso. Dessa
maneira, o conhecimento e prática são importantes para realização de ações ou
comportamentos que pressupõem a posse de códigos que possibilitaram as objetivações
espaciais, ou seja, os processos sociais que são utilizados para concessão dos objetivos
propostos.
30 RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.
Assim, a representação compõe o “palco” ideal para a organização de ações buscando
a tomada do poder. Uma dessas representações que foram muito utilizadas para esse fim,
foram as representações cartográficas, pois as imagens são instrumentos de poder, desde as
origens do homem. Uma imagem pode ser utilizada de diversas maneiras visto que temos o
habito de agir mais sobre as representações do que pelos próprios objetos.
A cartografia moderna na Renascença paralelamente ao nascimento do estado
moderno. Essa cartografia desde cedo já visava à modelagem dos comportamentos
concernente ao poder obtido pela combinação de elementos que seriam fundamentais para sua
execução: o ponto, a linha e a reta.
Para compreendermos melhor esse “jogo espacial”, é importante analisarmos as
políticas espaciais dos Estados em relação às suas realizações de caráter territorial, pois a
eficiência dos sistemas sêmicos é realizada de forma descentralizada e sutil, ou seja, o ponto,
a linha e a reta colaboram para manutenção do controle ideológico que se estabelecem sobre
determinadas áreas.
O funcionamento das representações cartográficas é obtido através de pontos que
representam à localização de outros atores ou áreas que interessam ao ator, retas que juntas a
outros pontos delimitam uma superfície. O importante na compreensão desses esquemas, é
buscar entendê-los como representação de um espaço onde o ator busca realizar suas ações.
Porém, devemos observar que nunca há apenas um ator disputando determinada áreas,
recursos ou territórios, indicando sempre o estabelecimento de uma relação de poder onde os
atores buscam sempre a hegemonia absoluta sobre os territórios disputados. Os sistemas
territoriais geralmente são compostos por texturas, nós e redes.
Os indivíduos ou grupos sociais se distribuem em modelos aleatórios, concentrados ou
regulares visando sempre à questão da acessibilidade como a distância tanto em termos
espaciais como em termos psicológicos, temporais e econômicos, conduzindo a formação de
malhas, de nós e redes que são imprimidos no espaço colaborando para a constituição
territorial, o que por sua vez, resultam em divisões hierárquicas visando melhor ordenação do
território de acordo com os objetivos dos atores e/ou grupo sociais.
A estrutura (texturas-nós-redes) é realizada por um grupo que pode se manifestar de
várias formas, ainda que possamos explicar suas origens ou suas raízes no grupo ou nos
indivíduos. Com isso, torna-se possível a construção de uma matriz que justifique esse
conjunto estrutural que estando exteriorizado, produz uma infinidade de imagens. Para
entendermos melhor, valem à pena citarmos os diferentes modelos urbanos, os modelos de
distribuição de densidade são exemplos claros de uma mesma estrutura comandada por vários
objetos e por ações distintas que constroem imagens diferenciadas das cidades.
As imagens por sua vez, revelam as relações produtivas e as relações de poder, que
sendo decifradas chegam-se as estruturas reais. Do Estado ao indivíduo, passando para os
tipos de orientações, encontraremos atores que produzem o espaço. O Estado está sempre se
reorganizando através de novos recortes, novas ligações, novos empreendimentos. O mesmo
acontece com as empresas que são apoiadas pelo Estado e realizam a produção de seus
próprios territórios.
A noção de textura implica limites, pois limite é uma questão básica visto que permite
ações referentes à: definição, classificação, decisão, entre outros, pois quando falamos em
território, fazemos uma menção de uma área delimitada do espaço, onde vivem indivíduos e
grupos sociais que interagem simultaneamente sobre o mesmo local. Delimitar também é
manifestar um poder numa área específica, pois todo sistema de objetos e de ações é sempre
norteado por uma série de princípios que revelam ordem e hierarquia.
A textura tem como objetivo assegurar o controle sobre a população, visto que a
textura é sempre um enquadramento de poder, porém as texturas de origem política têm uma
duração maior das aquelas resultantes de atores empregados na realização de programas, ou,
seja, as texturas econômicas geralmente se adaptam melhor as mudanças estruturais e
conjunturais.
O ponto é importante para a analise, repartição e principalmente na hierarquização,
pois os pontos simbolizam para o ator a expressão do ego individual e coletivo, pois
representa locais de poder absoluto e/ou relativo. A localização do outro é de enorme
interesse, pois indicam aqueles atores que podem nos prejudicar ou possuírem recursos da
qual iremos precisar.
Esses autores buscam criar redes entre eles. A rede é um sistema de linhas que
desenham tramas, cujo principal objetivo é desenhar os limites e as fronteiras de uma
determinada localidade. Porém, essas redes podem assegurar o que foi concebido e ainda
bloquear outras comunicações de acordo com a escala do local. Essas redes são infra-
estruturas que ligam pontos específicos em determinado território, possibilitando a hierarquia
dos pontos.
Dessa forma, as redes nos possibilitam múltiplas alternativas para seus atores, pois são
imagens de poder ou de atores dominantes que interligam pontos que possibilitam certo
domínio do espaço. Um domínio de escala espaço-temporal na realidade. Assim, os Estados
ou organizações que possuem domínio sobre as redes podem conduzir sérias mudanças no
corpo social, pois o sistema é ambíguo: produz uma organização no território e ainda implanta
uma ideologia na organização atingindo as finalidades estratégicas planejadas.
A população é uma coleção de seres humanos. Dessa forma, ela é um recurso que pode
ser mensurado, o que nos possibilita uma imagem de sua posição. O recenseamento obtém
uma representação da sociedade que nos auxilia no processo de intervenção visando aumentar
o arsenal de informações sobre determinado grupo e/ou organizações.
O recenseamento aparece na formação dos Estados Modernos cujo objetivo é o
fortalecimento dos Estados ou a formação de novos Estados. Assim, o recenseamento é a
organização de energia pelo Estado visando alcançar suas estratégias. Entretanto, o
recenseamento da população é um fator ambíguo, pois sendo um instrumento de controle
pode ajudar em diversas ocasiões, porém sua utilização pode ser voltada para fins destrutivos
visto que o Estado não é o único a utilizá-la: as empresas, as igrejas e outras instituições
sociais dispõem de vários mecanismos normativos para seu benefício.
Os fluxos começaram a despertar interesse e começaram a ser analisados mais
detalhadamente. Os fluxos podem ser de origens naturais como aqueles obtidos pela
natalidade e pela mortalidade ou aqueles de caráter espacial, provenientes das migrações –
seja das migrações ou das emigrações.
Com base nisso, o Estado implementa suas políticas de localização, de transferência
sendo por meio de medidas coercivas ou não. Dessa maneira, o Estado utilizará a população
seja através de seu deslocamento ou crescimento visando o alcance de seus objetivos. Sendo
assim, a população deve ser analisada tanto de maneira quantitativa como qualitativa, ou seja,
devem ser levadas em consideração suas propriedades econômicas, políticas, sociais, culturais
que possibilitam a identificação de suas características de homogeneidade e heterogeneidade
da população.
Todavia, alguns fatores colaboram de maneira contraditória, ora como recursos, ora
como entraves, influenciando assim, nas manobras estatais para obtenção de seus trunfos. A
imagem da população é necessária na ação das organizações, pois procuram manter múltiplas
relações visando equilibrar o “estoque humano”, ou seja, o exercito de reserva na medida em
que a economia vai sendo aquecida.
Porém, o Estado procura manter estável o diálogo com as instituições sociais, porém
mantendo a idéia de população mínima, mas se o interesse é o poderio, busca-se atender a
população de maneira integral. A questão da melhoria do bem estar social é algo cujos
objetivos são múltiplos, pois para que o Estado venha a atingir um ótimo nível populacional, é
necessário pressiona-la para reivindicar o mínimo possível.
As ações estatais para o fortalecimento de uma população em nível máximo requerem
uma efetiva política distributiva dos recursos necessários à satisfação integral da mesma,
porém isso só é viável mediante uma troca de energias entre o Estado e a coletividade social.
Assim, o Estado poderá encorajar a natalidade, pois a mesma não modificará a
composição etnico-racial, diferentemente das imigrações que podem gerar vários problemas,
principalmente alterações dos contingentes populacionais concernente à miscigenação
cultural, ou seja, a anexação de outros saberes a cultura vigente.
O Estado ao se utilizar de políticas de incentivo a natalidade busca uma transformação
da população de maneira mais lenta, porém preservando a composição etnico-racial e cultural
da mesma. Isso supõe que o Estado invista em políticas públicas voltadas para educação,
saúde, moradia, emprego, entre outras. Porém, o Estado também pode utilizar-se de meios
contraceptivos visando controlar e impedir o crescimento populacional, chegando muitas ao
extremo: genocídio31.
Já os incentivos as políticas migratórias, colaboram para que o estado “ganhe tempo”
na efetivação de suas políticas de adensamento populacional e integração de determinada área
do território. Essas mudanças alteram a pirâmide demográfica, ou seja, criam um novos
sistemas de relações.
As relações verticais se transformam modificando as hierarquias e colocando-as em
discussão. As relações horizontais ou intersexuais também são influenciadas, ocasionando
vários problemas. Essas migrações podem ser de caráter familiar ou individual. Quando um
Estado visa o povoamento de uma região, pode utilizar-se da imigração para realizar seu
programa levando em considerações a questão do tempo, do espaço e dos meios que serão
utilizados.
Já as empresas e grandes organizações preferem as imigrações buscando alcançar uma
variedade de mão-de-obra (ou seja, remuneração mais barata) onde se objetiva uma
determinada faixa etária na pirâmide demográfica. Apesar disso, a população constantemente
reage e demonstra resistência às políticas estatais e/ou empresariais que são empreendidas
buscando a desapropriação de determinadas localidades ocasionando numa coalizão de forças,
discordância normativa e, sobretudo, uma contestação da relação.
O individuo é controlado pelo Estado até mesmo em suas relações sexuais que no
papel de procriação, interessam demasiadamente ao Estado. O imperador Augusto buscava
elevar os índices de nascimento através de compensação financeira as famílias numerosas,
pois nasciam pouca crianças das famílias ricas e o celibato se difundia de forma muito rápida,
31 O Genocídio é um meio de limitar a população, porém em muitos casos seus objetivos são diferentes, pois visam eliminar uma etnia ou uma raça que representa obstáculo para obtenção de determinado território ou sua integração.
ocasionando na diminuição dos exércitos, ele também instituiu leis que desabilitavam os
celibatários de receber heranças.
No século XVII houve intensos incentivos para o aumento da população, pois as
políticas mercantilistas precisavam de em enormes contingentes populacionais para sua mão-
de-obra, o que automaticamente colaborava para manutenção das baixas remunerações. Os
próprios sistemas totalitários tanto nazistas como fascistas também desenvolveram políticas
natalistas.
Assim observamos que as políticas natalistas têm várias implicações, pois o indivíduo
é classificado como “objeto” reprodutor sendo controlado pelo Estado até em suas relações
sexuais, onde devem ser úteis ao Estado. Dessa forma, essas relações funcionam de maneira
multilateral, onde o Estado age por meio de um conjunto de códigos (geralmente agindo de
forma coersiva) para tornar as relações produtivas, ou melhor, fecundas.
Podemos observar que é extremamente difícil controlar tanto a natalidade como a
mortandade, porém mais complicado ainda é controlar a s migrações visto que para esse fim
não depende apenas o Estado, pois varias outras organizações interessadas em mobilizar e
distribuir a população sobre o espaço.
O mais importante na analise das migrações são as relações de forças utilizadas para
provocarem o fenômeno, pois são vários os problemas e objetivos que podem provocá-la,
entre eles: trabalho e guerras.
Segundo Raffestin (1993, p. 88), a mobilidade pode ser autônoma quando resulta de
uma escolha própria ou heteronômica quando resulta de uma coersão. Porém há exceções
visto que podemos classificar como mobilidade autônoma aquela que onde a população tem
que escolher entre o “retirância” ou a morte como é o caso do personagem Severino que busca
na mobilidade a oportunidade de sobrevivência e melhores condições de vida e, sobretudo,
esperança de um futuro melhor. Basta observarmos suas próprias palavras a respeito de sua
descida rumo a Sergipe:
[...]
Nunca esperei muita coisa,
Digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
Não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
da tal velhice que chega
antes de se interar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
[...]
É importante ressaltar que mesmo no caso das mobilidades autônomas, várias
organizações adotam diversas estratégias visando aumentar o movimento ou para limitá-lo. As
migrações são instrumentos de extrema importância para manutenção e controle do espaço
geográfico.
Os Estados Unidos é um exemplo claro concernente às políticas migratórias, pois o
país em 1790 observou um rápido crescimento de sua população que fazia questão de se
“americanizar” em função dos princípios democráticos existentes no Estado. Entretanto,
alguns grupos constituíram núcleos isolados em função das perseguições européias ou de
outros continentes.
A partir de 1798, buscam diminuir os movimentos migratórios para os EUA. Um dos
principais alvos eram os povos advindos da Irlanda em função de sua religião e costume que
iam contra os costumes e tradições dos protestantes americanos. Por vezes, o preconceito
contra o catolicismo serviu como argumento da não aceitação de estrangeiros na população
americana.
Posteriormente, os EUA resolveram desenvolver várias medidas restritivas para
impedir as migrações de maneira que essas medidas eram não apenas quantitativas, mas
qualitativas também, pois uma dos principais fatores de restrição era a questão racial. Todavia,
no período do Pós-Guerra, em 1952 os EUA incentivaram as migrações a todos aqueles que
obtinham mão de obra qualificada, concedendo até mesmo acesso à naturalização, ao mesmo
tempo em que alguns fatores de exclusão de reforçavam.
Com este exemplo, podemos observar como é difícil manter o controle e o domínio
dos fluxos migratórios, principalmente quando o objetivo é a preservação de certas
proporções e índices considerados importantes em detrimento do crescimento de
determinados grupos étnicos que não e considerado necessário.
A política imigratória não é um recurso apenas do Estado, mas de múltiplos atores e
organizações que se desenrolam no interior do corpo social. As estratégias utilizadas mostram
as intensas e conflituosas relações entre o Estado, a população e os diversos grupos que
possuem objetivos e interesses distintos, pois o Estado pode ter como objetivo, o controle dos
fluxos populacionais, mas já as empresas podem estimular tal prática visando o estoque de
mão-de-obra em excesso, o que consequentemente, irá torná-la mais barata.
Na atualidade, observamos que as migrações internas nos países capitalistas ocidentais
são determinadas pelas grandes empresas multinacionais que selecionam determinadas
parcelas do território para servirem de suporte temporário para suas atividades. Isso se torna
ainda mais complicado visto que as multinacionais ao se retirarem de determinados locais,
provocam altos índices de desemprego, obrigando o Estado a pensar outras maneiras para
mantê-la no local onde outrora estava32.
As multinacionais acabam criando suas próprias territorializações de mão-de-obra de
modo que buscam unicamente seus próprios interesses, não se importando com os
contingentes populacionais que provavelmente ficarão sem nenhuma segurança em termos de
seguridade social.
A economia “nômade” é o resultado dessas políticas implementadas pelas grandes
empresas que acabam causando intensa instabilidade em determinadas regiões. Dessa forma,
as relações entre as empresas com as regiões e territórios provocam intensos conflitos e
manifestações o que por sua vez, geram as resistências. Os embates dessas relações podem
atingir seu ápice provocando diversas greves, manifestações e ocupações de determinados
locais como forma de reivindicação.
Os choques entre as territorialidades abstratas das grandes multinacionais e a
territorialidade concreta e estável da população se dão em função da busca de um salário onde
a população é pressionada a romper com seu meio simbólico e conseqüentemente, com sua
identidade, ou seja, todo o conjunto de ritos, costumes e tradições da qual o sujeito é portador
torna-se para ele um conceito abstrato visto que ele não consegue constituir vínculos e muito
menos o sentimento de pertencimento em determinados lugares onde qualquer cidadão
deveria possuir.
Enfim, para conseguir seus objetivos tanto as empresas como o Estado combinam
informação e energia, porém de formas diferentes, pois o Estado procura meios de incitar a
população a migrar para determinados locais, porém as multinacionais propagam a
informação de forma muita mais sedutora, geralmente oferecendo mais benefícios ainda que
isso seja apenas ilusório.
Dessa forma, a energia aplicada na informação geral do Estado deveria ser muito mais
32 Muitas vezes oferecendo incentivos fiscais ou isenção total do aluguel ou no caso de compra do mesmo, até financiando o dinheiro da compra como foi o caso da Empresa Vale do Rio Doce no governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
eficaz para tornar-se atrativa para população. Portanto, a estratégia estatal é bem mais forte
que as estratégias empresariais, pois agem de maneira abstrata e ideológica sendo assim
menos seguidas, pois não demonstram muitos benefícios como nas propostas corporativas.
O LUGAR: algumas questões sobre o conceito
Como categoria do pensamento geográfico, a evolução do conceito de lugar vinculou-
se à trajetória da geografia humana, principalmente através de dois de seus principais ramos: a
geografia humanista e a geografia radical. Partindo de uma perspectiva humanista, interessada
na subjetividade da relação homem-ambiente, a preocupação está em definir o lugar como
base fundamental para a existência humana, como experiência ou “centro de significados” que
está em relação dialética com a construção, abstrata, que denominamos espaço. Para Tuan,
espaço e lugar são termos familiares e complementares: o que começa como espaço
indiferenciado acaba assumindo a configuração de lugar, ao conhecermos e o dotarmos de
valor. Frémont diz que os lugares formam uma trama elementar do espaço.
“Como o homem percebe o mundo? É através de seu corpo de seus sentidos que ele
constrói e se apropria do espaço e do mundo. O lugar é a porção do espaço apropriável para a
vida — apropriada através do corpo — dos sentidos33”
De uma forma ou de outra, os geógrafos humanistas admitem que o lugar permite
focalizar o espaço em torno das intenções, ações e experiências humanas – desde as mais
banais até aquelas eventuais ou extraordinárias – e que sua essência é ser um centro onde são
experimentados os eventos mais significativos de nossa existência: o viver e o habitar, o uso e
o consumo, o trabalho e o lazer etc., sobretudo, na medida em que, nele se da à consciência,
tanto de si quanto à consciência do outro.
Um aspecto curioso dessa abordagem está no reconhecimento de que o sentido de
lugar não está limitado ao nível pragmático da ação e da percepção e que sua experiência
(direta ou simbólica) se constitui em diversas escalas: atualmente ela formaria um contínuo
que inclui o lar, como provedor primário de significados; a localidade ou bairro, como campo
de sociabilidade; a cidade; as regiões; o Estado-nação e até mesmo o próprio planeta.
De um ponto de vista radical, o lugar é qualificado como uma construção sócio-
histórica que cumpre determinadas funções. Através de suas formas materiais e não materiais,
o lugar é uma funcionalização do mundo. Milton Santos, afirma que existe uma dupla
questão no debate sobre o lugar. O lugar visto “de fora“ a partir de sua redefinição, resultado
33 Carlos, Ana F. A O lugar no/do mundo. São Paulo: Labur Edições, 2007
do acontecer histórico e o lugar visto de “dentro”, o que implicaria a necessidade de redefinir
seu sentido. Para ele o lugar poderia ser definido a partir da densidade técnica, a ideia da
densidade comunicacional e, também em função de uma densidade normativa. À esta
definição seria preciso acrescentar a dimensão do tempo em cada lugar que poderia ser visto
através do evento no presente e no passado.
Seja qual for o momento da história, o mundo se define como um conjunto de
possibilidades, e cada lugar se diferencia por realizar apenas um feixe daquelas possibilidades
existentes. Referindo-se à relação local-global, o mesmo autor observa que a ordem global
busca impor uma racionalidade única, mas os lugares respondem segundo os modos de sua
própria racionalidade. Enquanto a ordem global funda as escalas superiores e externas, a
ordem local funda a escala do cotidiano – em que prima a comunicação – e seus parâmetros
são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com
base na contiguidade. “Cada lugar é, ao mesmo tempo, objeto de uma razão global e de uma
razão local, convivendo dialeticamente”.
A partir dessas duas acepções aparentemente conflitantes e irreconciliáveis – que vão
de uma relação autêntica como espaço, por um lado, à materialização da relação local-global,
por outro –, estudos recentes têm buscado um ponto de contato, ao enquadrar o lugar como
um campo de articulação das questões cruciais para a compreensão da existência humana e
sua relação com um ambiente cada vez mais fragmentado e globalizado.
“O espaço tem uma monumentalidade que pode ser entendida como elemento
revelador da história de um determinado lugar. Mas o que se revela no lugar não é apenas a
história de um povo, mas o peso da história da humanidade. O lugar é também o espaço do
vazio que refere-se àquele da monumentalidade do poder”.
No cenário de mundialização, na qual o mundo está imerso, o lugar aparece não só nas
implicações de co-presença, mas envolve questões de distância, de conexões entre pontos
diferentes, ou como diz Milton Santos, diferenças entre o espaço banal, o espaço de todos,
todo o espaço, e as redes, o parte do espaço e espaço de alguns. Pare ele, entretanto, o espaço
é o mesmo, os mesmos lugares, os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente
funcionalizações diferentes.
As sociedades pré-modernas, possuíam uma dimensão localizada, coincidindo espaço,
o lugar, e o tempo. A modernidade rompe este paradigma.
Giddens34, destaca dois fatores relevantes a isto. A uniformização do tempo pelo
emprego do relógio mecânico é o primeiro deles. Novamente aqui, a racionalização, a
34 Giddens, Antony. As consequências da modernidade. Unesp, São Paulo, 1991
medição e quantificação aparece como reflexo do processo de desenvolvimento do sistema,
do modo de produção. O tempo é racionalizado. O tempo é enquadrado às perspectivas da
produção.
O segundo fator é a monetização da sociedade. “O dinheiro é um meio de
distanciamento tempo-espaço” diz Giddens. O dinheiro possibilita a realização transacional
entre agentes separados no tempo e no espaço. Para ele, nos dias atuais, em sua forma
contemporânea, transforma-se em pura informação, torna-se independente se seu suporte
físico e referência material.
Representando a mercantilização do conjunto das relações sociais, o próprio espaço é
transformado em mercadoria. O mercado “atravessa tudo, inclusive a consciência das
pessoas”.
O novo padrão tecnológico e produtivo, centrado nas modernas tecnologias de
informação e comunicação, “anulam o espaço através do tempo”, revolucionando as relações
espaço-tempo. Desta forma a informação passa a ser, segundo Santos, “o verdadeiro
instrumento de união entre as diversas partes do território”.
Essas mudanças fazem emergir, para alguns autores, novas formas espaciais, uma nova
lógica espacial. O espaço dos fluxos sobrepõe-se ao espaço dos lugares.. O local, o lugar,
redefine-se, ganha em densidade comunicacional, em informação e técnica em relação às
redes planetárias.
Para outros entretanto, o lugar se constitui no suporte e condição para as relações
globais. É nele que a globalização se expressa em materialidade e especificidade.
Desta maneira podemos pensar o lugar, o local ou região em três dimensões, de certa
forma imbricadas: a dimensão sócio-cultural, a dimensão politica e a dimensão econômica.
A dimensão sócio-cultural sofre o impacto sob dois pontos de vista. Para alguns
autores, a cultura local é entendida como uma cultura particular de um grupo, cujas vivências
cotidianas em espaços geograficamente pequenos e delimitados, estabelecem códigos comuns
e sistemas próprios de representação. Cultura é o conjunto de valores ou práticas de uma parte
que é menor que o todo, mesmo tendo referências, por assim dizer, universais. Assim cultura
local e cultura global são necessariamente relacionais.
De um lado, a globalização é percebida associada à tendência homogeneizante da
cosmovisão ocidental, euro-americana, assentada na racionalidade tecnológica e na
penetração dos valores de mercado em todos espaços da vida social. Isto estaria provocando o
declínio das identidades, sob a força da estandartização e desconstrução do local enquanto
singularidade, descolando o indivíduo de seu espaço imediato, vinculando-o a outros espaços
de referência, não mais o local enquanto continente da memória coletiva.
Por outro, outros acreditam que a globalização não significa o fim das territorialidades
estáveis e sim o contrário: um reforço no caráter local das identidades, preservando e
desenvolvendo seu próprio quadro de representações, A dimensão cultural atuaria como um
fio invisível que vincula o indivíduo ao espaço, marcando uma ideia de diferença ou distinção
entre comunidades.
Este ponto de vista, paradoxalmente, vê a globalização gestando mais singularidades
que homogenidades. O local é percebido como um espaço de resistência à padronização
civilizatória ocidental. Esta resistência, segundo Maffestoli35, “que engendra a solidariedade,
deve-se, sobretudo, à pregnência de uma memória espacial. (…) É nesse sentido que podemos
falar de 'encarnação' da socialidade que necessita de um solo para se enraizar”. Para Harvey 36,
“as identidades ligadas ao lugar tornaram-se mais importantes em um mundo dimensão o
onde diminuem as barreiras espaciais para a troca, o movimento e a comunicação”.
A consciência de nossa cultura, de nossa história, nossa espacialidade, é gerada em
relação a outras espacialmente distintas e temporalidades coexistentes.
A dimensão política é por sua própria natureza, uma relação dialética de alianças entre
indivíduos e grupos e a competição e cooperação entre grupos espacialmente diferenciados.
As escalas territoriais, do local ao mundial, espelham práticas políticas cuja especificidade
expressa níveis de interesse e solidariedade, mesmo que tais práticas e escalas sejam cada vez
mais imbricadas.
A história, nos mostra que as estruturas políticas, para se exercerem plena e
eficazmente, recorrem a partições de toda ordem, em espacial as territoriais. Raffestin37,
afirma que “o exercício do poder implica a manipulação constante da oposição continuidade
versus descontinuidade” reforçando o argumento de Harvey38 para quem “a produção e
reprodução de diferenciações do poder é central para as operações de qualquer economia
capitalista”.
No mundo antigo, o conceito de região, estabeleceu as relações de autonomia e
subordinação entre poderes locais e um poder central, Roma por exemplo. Estas unidades
regionais definiam recortes territoriais que se projetariam na espacialidade medieval e que
mais tarde, refletiriam as malhas político-administrativas dos estados territoriais modernos.
35 Maffestoli, M. A conquista do presente. Citado em Albagli, Sarita. Globalização e espacialidade: o novo papel do local. IBICT/MEC, Brasília, 1999
36 Harvey, David. From space to space and back again. Citado em Albagli, Sarita. Globalização e espacialidade: o novo papel do local. IBICT/MEC, Brasília, 1999
37 Raffestin, Claude. Por uma geografia do poder, Ed. Ática, São Paulo, 199338 ibid
Os Estados Territoriais Modernos, o Estado-nação – o termo nação refere-se a um
grupo, um povo com características unificadoras, expressa a identidade entre um povo e seu
espaço geográfico soberano, se formam às custas de um setor/grupo sobre os demais e da
incorporação dos sistemas locais de poder, em macro-unidades político-territoriais. Novos
arranjos político-jurídicos, novas formas de organização territorial, vinculando o poder central
às demais áreas são incorporadas a produção do espaço nacional.
Assim, sob condições de desigualdade econômica e política entre lugares, a
hegemonia só pode ser mantida através de políticas com consequências geográficas na medida
que favorecem os lugares e segmentos sociais que dão suporte a essa hegemonia.
Ao mesmo tempo, as relações entre o espaço local e o espaço global, ou entre o espaço
banal e as redes, são permeadas de conflitos. O lugar, o local, está sendo percebido como o
espaço político privilegiado da resistência, estruturando novos movimentos de revalorização
local, como contrapartida de forças sociais que se veem marginalizadas pela dinâmica
globalizante. Movendo-se da esfera cultural para a política, exaltando a “democracia do
cotidiano”, promovendo um novo regionalismo, e incentivando à luta pela cidadania plena.
Mas ao mesmo tempo promovem, em determinados locais ou regiões, uma forte
intolerância e exclusão, gestando movimentos que, fundamentalistas, não incorporam à
dimensão humana, a alteridade.
2.3.3 - Questões de Identidade
Segundo Hall39, no mundo moderno, “as culturas nacionais em que nascemos se
constituem em uma das principais fontes de identidade cultural”. Não sendo impressas
geneticamente, pensamos nelas como parte integrante de nossa natureza, de nosso “ser”.
Mas esta construção, a “identidade nacional”, está ligada a um processo histórico de
domínio sócio-espacial, projeto de uma classe que se apropriando dos meios de produção, se
apropria , reproduz e impõe uma visão de mundo, em função de uma unificação linguística, ao
codificar os signos e significados, ao racionalizar o espaço, enfim, ao dar como natural e
socialmente totalizadora, sua interpretação do Estado Territorial Moderno e sua cultura. A
Nação passa a ser a referência enquanto sentimento de pertencimento, tendo na língua sua
maior expressão.
O filósofo Scruton, argumenta que:
39 Hall, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2006
“A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista e aja como um ser
autônomo, faça isso somente porque ele pode primeiramente identificar a si mesmo
como algo mais amplo – como membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou
nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome, mas que ele reconhece
instintivamente como seu lar40”
Para Hall, as culturas nacionais são uma formação moderna, na medida que as
lealdades e identificações, nas sociedades tradicionais (tribo, povo, região, religião) são
transferidas gradualmente, no mundo ocidental, à cultura do Estado-Nação. As diferenças
étnicas e regionais foram, e ainda estão sendo, gradualmente submetidas, ao “teto político”,
fonte e resultado poderoso, homogeneizante, desta visão de Nação.
As culturas nacionais, compostas não apenas de instituições culturais, são, sobretudo,
símbolos e representações. Ou um discurso, um modo de construir sentidos e ações que dão
significado a concepção de nós mesmos.
Darcy Ribeiro41, nos diz que marcados desde o nascedouro, enquanto “país” pela
contradição primordial das relações entre senhores e escravos, entre índios e brancos, entre
brancos e negros, já dentro de um sistema “mundializado” pelo capital comercial, antecipando
o próprio modo de produção capitalista, uma vez que o país já nasce como uma empresa. Para
ele, a ordenação social, o modo de produção aqui implantado, a própria conquista do espaço
geográfico, impulsionada pela relação colônia/metrópole, são as causas desta (des)identidade.
Podemos pensar que o país, o Estado Territorial, se fez primeiramente que a Nação.
“As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e
efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra
os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e
opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na
busca de sua própria prosperidade. O que houve e o que há é uma massa de
trabalhadores explorada humilhada e ofendida por uma minoria dominante,
espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de
prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social
40 Scruton, Roger. Authority and allegance. In Hall, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2006 p. 48
41 Ribeiro, Darcy, Sobre o obvio. Fala proferida no Simpósio sobre Ensino Público, 29ª Reunião da SBPC, São Paulo, julho de 1977, in Encontros da Civilização Brasileira, nº 1 Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1978
vigente42”
Por outro lado, essa miscigenação, provocada pela imigração forçada, na conquista
empresarial das novas terras, pela importação de mão-de-obra, incorporando à população os
saberes tradicionais de vários povos, provocando um sincretismo cultural, vai aos poucos
construir e ainda constrói, uma identidade e, cuja configuração mais consistente encontra-se
justo no povo nordestino, por ser a região que primeiro foi ocupada e adensada.
O conceito de identidade, considera que o homem se constitui no meio e através deste.
Portanto, pode ser localizado nos estudos de identidade social. E, identidade social é “aquela
parte do auto-conceito de um indivíduo derivada do conhecimento do seu pertencimento a um
grupo ou grupos sociais juntamente com o significado valorativo e emocional associado a este
pertencimento43”
Esta identidade nordestina, pode ser vista, nas expressões culturais impressas em todas
as periferias das grandes cidades, para onde foram deslocados os excedentes populacionais,
no processo de modernização da economia nacional, em sua primeira fase, em meados do
século passado, e que ainda ocorre, se bem que em menor grau.
A cultura e os saberes sobre o espaço geográfico, climatológico das populações
originais nativas, permitiram aos novos senhores, o conhecimento sobre como viver nos
trópicos. Não fosse isto, seria impossível aos povos de clima temperado, enfrentar os desafios,
tanto da floresta, quanto dos sertões nordestinos.
São esses mestiços, que vão se apropriar e povoar os sertões nordestinos,
incorporando, mais tarde, as miscigenações advindas do povo negro e suas culturas, em nome
de uma economia subalterna e subordinada à empresa colonial exportadora. E, que vão
reproduzir as relações de servidão, de propriedade, de ordenamento social dos senhores
coloniais.
“Nós brasileiros, (…) somos um povo em ser, impedidos de sê-lo. Um povo mestiço
na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela
fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da
mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ninguendade. Assim
42 Idem; O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. Editora Schwatz, São Paulo - 200743
Valera, S., & Pol, E. (1994). El concepto de identidad social urbana: uma aproximación entre la Psicología Social y la Psicología Ambiental. Revista Anuario de Psicología, 62, 5-24. citado por Mourão, Ada Raquel T. , e Cavalcante, Sylvia. O processo de construção do lugar e da identidade dos moradores de uma cidade reinventada. Revista Estudos de Psicologia 2006, 11(2), 143-151, Fortaleza, 2006
foi até se definir como uma nova identidade étnico nacional, a de brasileiros. Um povo
até hoje, em ser, na dura busca de seu destino. Olhando-os, ouvindo-os, é fácil
perceber que são, de fato, uma nova romanidade, uma romanidade tardia mas melhor,
porque lavada em sangue índio e sangue negro44”.
Para além da faixa nordestina de terras frescas e férteis do massapé, onde se
implantaram os engenhos de açúcar, desdobram-se as terras de uma outra área ecológica.
Começam pela orla descontínua ainda úmida do agreste e prosseguem com as enormes
extensões semi-áridas das caatingas. Mais além, já penetrando o Brasil Central, elevam-se em
planalto, os campos cerrados por milhares de km quadrados.
Esta área forma um vastíssimo mediterrâneo de vegetação rala, confinado por um lado,
pela floresta da costa atlântica, do outro pela floresta amazônica e , fechando o sul por zonas
de mata e campinas naturais. Matas de galeria cortam esse mediterrâneo, acompanhando o
curso dos rios principais, adensando-se em capões de mata ou palmeiras de babaçu, carnaúba
ou buriti, onde encontra terreno mais fresco.
A vegetação comum, porém, é pobre, formada de pastos naturais ralos e secos e de
arbustos enfezados que exprimem em seus troncos e ramos tortuosos, a pobreza das terras e a
irregularidade do regime de chuvas. Nos cerrados, e sobretudo nas caatingas a vegetação
alcança uma adaptação à secura do clima, predominando as cactáceas, os espinhos e as
xerófilas que, condensam a umidade das madrugadas frescas para conservar as folhas fibrosas
e nos tubérculos as águas da estação chuvosa.
No agreste, depois nas caatingas e por fim nos cerrados desenvolveu-se uma economia
pastoril associada à produção açucareira, como produtora de carne, couro e bois de serviço.
Uma economia pobre e subsidiária. Mesmo assim, com o crescente mercado interno,
relacionado a expansão da produção canavieira exportadora, da exportação do couro,
expandiu-se consideravelmente, o que acabou por incorporar uma considerável parcela da
população, cobrindo e ocupando áreas territoriais mais extensas que qualquer outra atividade
produtiva.
Isto gestou, um tipo particular de população, com uma subcultura própria, marcada
pela especialização no pastoreio, pela dispersão espacial e por um modo de vida, refletido na
organização familiar, na estruturação do poder, na vestimenta típica, nos folguedos
estacionais, na dieta, na culinária, na visão de mundo e numa propensa religiosidade
messiânica.
44 Ibidem p. 410
Trazidos pelos portugueses, o gado se aclimata à criação extensiva, onde os animais
procuram suas aguadas e alimento. Distantes o suficiente para não ameaçar a produção
canavieira, se dispersam, em currais, ao longo do curso dos rios, formando as ribeiras pastoris.
A dispersão e expansão deste pastoreio se fazia dependendo da posse do rebanho e do
domínio das terras de criação, cedidas em sesmarias pela Coroa, aos “merecedores” dos
favores reais. De início, os próprios senhores de engenho se faziam sesmeiros da orla
sertaneja, pera seu próprio consumo. Aos poucos essa atividade, especializada, vai conformar
os grandes latifúndios.
Antes que o gado atingisse qualquer terra, esta era legalmente apropriada em sesmaria
doada pala coroa ou pelo detentor de sesmaria maior, ou da própria capitania. Assim, dado
que o gado só podia se instalar nas raras aguadas, próximos aos barreiros, de onde consumiam
o sal, e pela pobreza dos pastos naturais, essas sesmarias se faziam imensas. Cada qual com
seus currais, separadas as vezes por dias de viagem, entregues a vaqueiros, que recebiam, uma
parcela (1 para 3) do gado cuidado. Juntando aos poucos seu próprio rebanho, distanciava-se
ainda mais, em zonas mais ermas, ainda não alcançadas pelas sesmarias.
As relações trabalhistas aí formadas, não se pautavam, como nos engenhos pela
escravidão, mas por um regime de “parceria”, pelo qual o vaqueiro recebia em espécie parcela
do gado cuidado. Nesses núcleos em torno dos currais, as famílias viviam, plantavam roçados
e produziam, para sua subsistência, o queijo, o leite. Embora rigidamente hierarquizada, essa
relação, com o proprietário das terras não era tão desigual como nos engenhos. Este quando se
fazia presente, era compadre e padrinho, respeitado por seus homens, embora não de sua
dignidade pessoal. Como dono e senhor, tinha autoridade indiscutida sobre os bens e, as
vezes, sobre as vidas e frequentemente sobre as mulheres que lhe apetecessem.
Podemos ilustrar isto, com a fala de João Cabral, através de Severino:
(…)
Mas isto ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
(…)
A própria atividade pastoril destacava o brio e as qualidades na luta diária da dura lida
do campo, fazendo-os peritos e de maior valor pessoal que os lavradores e empregados
serviçais. Nesta atividade, mais atrativa, se destacam como precursores,os brancos pobres e
os mestiços dos núcleos litorâneos. O regime de trabalho nos engenhos não era atrativo para
os trabalhadores livres e menos ainda àqueles afeitos a vida aventurosa e vadia dos vilarejos
litorâneos. Isto os fez se dirigirem aos sertões, ao pastoreio, com o intuito de um dia se
tornarem criadores. Deste modo, a oferta de mão-de-obra se fazia constante, dispensando a
mão-de-obra escrava.
A disputa das terras com os domínios tribais de territórios de caça indígena, lutando
com o índio que substituía a caça nativa, tornada rala, pela caça ao gado, o domínio do sertão
se fez a sangue e entranhas. Roubando do índio suas mulheres, ou acolhendo-os em seus
currais e criadouros, gestou as características do povo nordestino no geral.
As enormes distâncias entre os núcleos humanos dispersos pelo sertão deserto,
aproximava os moradores dos currais da mesma ribeira, desenvolvendo um tipo de sociedade.
A necessidade de ajuntar e apartar o gado, gerou formas de cooperação que terminaram por
desenvolver competições de habilidade, transformadas por vezes em festas regionais, as
vaquejadas. O culto aos santos padroeiros e festas religiosas, concentradas em torno de
capelas e cemitérios dispersas pelos sertões, proporcionavam ocasiões regulares de convívio
entre as famílias vaqueiras, que resultavam em festas, bailes e casamentos. Fora destas
ocasiões, o convívio era praticamente inexistente. O isolamento dos núcleos sertanejos,
autarquicamente estruturado, voltado a si mesmo, era a regra.
A atividade pastoril, em extensas regiões sujeitas a secas periódicas, cobertas por
pastos pobres, terminaram por conformar não só a vida, mas também o gado e o próprio
homem. “Um e outro diminuíram de estatura, tornaram-se ossudos e secos de carnes45”. Como
mercadoria que conduz a si mesma, associada ao homem, penetraram terra adentro até ocupar
quase todo sertão interior. A distância cada vez maior dos mercados foi desbastando a criação
pelos abates de subsistência. De pouso em pouso, em torno de aguadas e pastagens melhores,
onde se recuperavam, marchavam adiante.
Muitos destes pousos se transformariam em vilas, povoados permanentes, célebres por
suas feiras de gado. Onde a terra não permitia a criação bovina, a criação caprina se
desenvolve, tornando-se, com o passar do tempo, a única carne consumida pelo vaqueiro.
“Assim os currais se fizeram criadouros de gado, de bode e de gentes: bois para
45 idem
vender, bodes para consumir e gentes para emigrar46”.
Podemos pensar então que identidade de lugar é uma subestrutura da identidade
profunda da pessoa e é constituída por cognições sobre o mundo físico, relativas à variedade e
complexidade dos lugares nos quais ela vive e satisfaz suas necessidades biológicas,
psicológicas, sociais e culturais.
Mesmo que este entorno, seja por suas características, um espaço de dificuldades, de
vazios repletos de contradições, os vínculos emocionais com ele são igualmente importantes
na formação da identidade de lugar do sujeito. Esse aspecto é ressaltado por Tuan (1983),
quando destaca a diferença entre as noções de espaço e lugar. Para o autor, lugar está
relacionado a segurança e estabilidade, e espaço a liberdade e movimento. O espaço
indiferenciado, caracterizado como o local da aventura, da liberdade e do movimento,
transforma- se em lugar à medida que o sujeito o vivencia através do tempo e da intensidade,
passando, então, a ser dotado de valor afetivo para o sujeito.
Diz nosso personagem:
(...)
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
a mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
46 ibidem
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história e minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.”
Esta força de trabalho excedente, é apropriada primeiramente, pelas fazendas,
rompendo com o modo tradicional de pagamento em espécie, em reses, e assalariando os
vaqueiros, obrigados a consumir do barração, do armazém, pouco sobrava ao trabalhador. Por
outro lado, o cultivo do algodão nativo, de fibras longas, de ampla aceitação pelo mercado
mundial, e que sobrevivia, mesmo nas áreas mais secas do sertão, propiciou a vinda de de
novos “meeiros” aos latifúndios, recebendo quadras de terra para cultivar e entregando ao
proprietário metade de sua produção. Ao lado das casas avarandadas de criadores, as palhoças
de lavradores foram sendo edificadas.
Noutras áreas, a população sobrevivia de atividades extrativistas, como da exploração
dos carnaubáis, para produção de cera e artefatos de palha, sempre em regime de meação com
os proprietários ancestrais ou sesmeiros. Todas estas atividades aliciavam centenas de
milhares de trabalhadores em virtude da miserabilidade das populações nordestinas, mesmo
que combinadas à lavouras de subsistência, propiciavam apenas uma renda mínima que
permitia a sobrevivência.
Estas zonas de criação, com o aumento da população se transformaram em criatórios
de gentes, de mão-de-obra barata a requeridos pelas demais regiões do país. Utilizadas como
recurso, parte desta população se desloca, aliciada, em direção a amazônia nos períodos
áureos da borracha, e posteriormente em direção ao sudeste, para incrementar o chão das
fábricas, no processo de industrialização modernizante e acelerada, principalmente após a
segunda guerra.
As populações sertanejas, desenvolvendo-se longe da costa, isoladas, dispersas,
conservaram traços arcaicos, aos quais acrescentaram peculiaridades adaptativas ao meio e a
função produtiva que exerceram ou decorrentes dos tipos de sociedade que desenvolveram.
Contrastam, em sua mentalidade fatalista e conservadora com as populações litorâneas, mais
afeitas ao convívio e comunicação com o mundo.
Na verdade, a sociedade sertaneja distanciou-se não só espacialmente, mas sobretudo,
social e culturalmente das gentes litorâneas. O sertanejo arcaico caracteriza-se por sua
religiosidade singela, com tendencias messiânicas, por seu laconismo e rusticidade, por sua
carranca, e por sua predisposição ao sacrifício e à violência. Por outro lado, caracteriza-se
pelo culto a honra pessoal, o brio e fidelidade às suas chefaturas. Duas formas de
manifestação desta personalidade sertaneja foram o cangaço e o fanatismo religioso,
desencadeados pelas condições de penúria suportada mas conformadas por seu mundo
cultural.
É de bom tom assinalar, que o cangaço surgiu, no enquadramento social do sertão,
fruto do próprio sistema senhorial do latifúndio, que aliciava jagunços pelos coronéis como
capangas e como vingadores. Apesar do receio despertado por estes bandos, a população tinha
neles padrões ideais de honorabilidade e valor, sendo suas façanhas cantadas em versos, e seu
modelo de justiça realçados e louvados.
A outra expressão característica do mundo sócio-cultural sertanejo é o fanatismo
religioso, cujas raízes são comuns ao cangaço. São ambas expressões da penúria e do atraso.
Incapazes de se manifestar em formas mais altas de consciência e luta conduziram massas
desesperadas ao descaminho da violência e do misticismo militante. Baseado na crença,
vivida no sertão inteiro, da vinda de um salvador, que com sua corte real, vai subverter a
ordem do mundo, reintegrando aos humildes a dignidade ofendida e aos pobres seus direitos
espoliados.
“o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão” numa alusão as discrepâncias entre as
sociedades litorâneas espoliadoras e o sertão espoliado. Crença esta reflexa do messianismo
português vivido pelo sebastianismo. Canudos representou sua expressão máxima e sua
destruição a vitória dos proprietários e coronéis sertanejos frente a desestabilização das
relações de produção e de propriedade vividas no processo messiânico.
A modernização ensejada, a partir da década de trinta do século passado, vai quebrar o
poder e desarmar os proprietários e coronéis, cujas fazendas foram cortadas por estradas nas
quais caminhões carregados de gentes, mercadorias e novas idéias percorriam. Ao mesmo
tempo, a difusão radiofônica, o cinema itinerante e nas vilas vão proporcionar ao sertanejo o
contato com o mundo externo.
A autoridade central se sobrepõe, mesmo que amalgamada à local dos coronéis, já é
capaz de impor “leis e a justiça”. As tensões sociais, reprimidas, se deslocam e se estruturam
de novas formas. As desavenças coronélicas se deslocam para as lideranças política nacionais,
que aliciam os fazendeiros, afazendados e dependentes, em partidos políticos opostos a tudo,
menos em defesa da ordem fazendeira, donde saem seus representantes e quadros dirigentes.
Ao mesmo tempo, esta incorporação da técnica ao espaço nordestino, vai alterar as
relações tradicionais de produção, ampliando a área de cultivo, reformulando as profissões
relacionadas a produção canavieira pela transformação dos engenhos em usinas, segregando
ainda mais do mercado de trabalho, as profissões menos capacitadas e forcando uma
emigração em direção aos novos territórios industrializados do sudeste e mesmo as cidades
litorâneas, aumentando assim, a segregação espacial urbana.
Mas, este movimento também produziu, na literatura, o chamado ciclo regional, que,
embora em grande parte, realizado pelos filhos da elite, gritavam contra a desigualdade e as
condições em que viviam os homens do nordeste. A difusão radiofônica vai também, aliada
aos cantadores de feira sertanejos, às novas idéias que percorriam os sertões na boléia dos
caminhões, irradiar o sentimento de revolta pelas condições sociais decorrentes da
propriedade da terra e da exploração consequente do homem sertanejo. Este movimento vai
fazer surgir a Liga Camponesa, que luta pela reforma agrária, e que, vai ser destruída a
baioneta e bala, no golpe de 64.
Nosso autor, representante tardio desta corrente literária, nos mostra, com um lirismo
agressivo parte desta luta:
Esta cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
Não não é cova grande
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
(…)
Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
(...)
O nordestino, malgrado as condições de vida à que está submetido, deste o regime de
propriedade às condições climatológicas, sujeita a períodos de secas, que o obrigam a se
deslocar leva consigo, uma identidade arraigada de tal forma que, mesmo longe, reproduz em
parte, aspectos de sua cultura e, sobretudo trás consigo o desejo de retornar, em novas
condições para se apropriar de uma terra, que é sua e está impregnada em sua alma, na qual
possa exercitar sua cidadania.
2.3.5 – Cidadania
2.3.5.1- De que cidadania estamos falando?
A cidadania, implica, necessariamente, no sentimento de pertencimento e de
identidade em relação ao corpo sócio-espacial no qual estamos inseridos e implica também,
no reconhecimento do outro, enquanto sujeito de direito e de direitos iguais.
Construída no tempo histórico do devir humano, endeusada e vilipendiada é, ao
mesmo tempo, uma conquista gerada nas lutas sociais contra a segregação e o
desenvolvimento desigual e uma meta a vir ser atingida em sua plenitude, uma vez que, o
sistema sócio-econômico-espacial em curso e os anteriores, têm como premissa a produção de
riqueza para uns e, exclusão, pobreza e miséria para muitos e, portanto, gerador de cidadanias
diferenciadas no tempo e no espaço.
É o espaço, o espaço do ser, humano, uno e múltiplo, das relações sociais de produção,
sujeito de fato e de direito, coletivo e singular, livre em sua relação de igual com o Outro,
muito mais que o tempo, o objeto conceitual e concreto da cidadania.
Em seu processo de apropriação do mundo natural, o homem foi construindo
especializações sócio-espaciais ao mesmo tempo em que, dialeticamente, ia construindo um
arcabouço de valores simbólicos, morais que justificassem e explicassem essa construção. As
especializações geradas pela divisão social, espacial e sexual do trabalho, aos poucos,
produzem não só, estamentos ou classes sociais distintas, mas, principalmente, formas
distintas de apropriação do produto deste trabalho por parte de um segmento social, e mesmo
no seio deste, pela força ou pela naturalização de uma pretensa superioridade, organização e
defesa da coletividade, seus valores, seus espaços sagrados e profanos.
O surgimento das cidades, cidades estado e os primeiros impérios urbanos, vão
aprofundar os conflitos de interesses entre os grupos sociais, cada vez mais numerosos, no
interior desses aglomerados, ao mesmo tempo em que produzem uma coesão em relação a sua
territorialidade e sua exterritorialidade. Isso provocou o aparecimento de pensadores, que
produzirão filosofias, tanto em relação à própria essência da natureza humana, quanto da
natureza em si, da natureza do poder e do saber, da diferenciação social, etc. A criação de
conselhos, assembleias, fóruns, formas de governo e, consequentemente a criação leis que
explicitem direitos e deveres que vão reger a convivência do corpo social, foi a saída
encontrada e o reflexo desses conflitos entre proprietários e não proprietários, entre senhores,
serviçais e escravos, entre homens e mulheres, entre o mundo urbano e o rural.
As formas de organização sócio-espacial, que na antiguidade clássica - no mundo
ocidental representados por Grécia e Roma, produziram, ao longo de quase mil anos, um
conjunto de noções de direito, deveres, valores e regras; conquistas sangrentas, que vão
embasar, em parte até nos dias de hoje, o conceito de cidadão ainda em construção. O mundo
ocidental europeu, com o refluxo "civilizatório" autocentrado, auto-suficiente, gerido pelo
imaginário teocrático e teológico do período feudal, surgido após a derrocada romana, vai
estagnar, temporariamente, as lutas por direitos sociais. Estas serão retomadas na
imanência de um novo processo de produção desencadeado pela retomada do comércio inter-
regional e internacional, de novas tecnologias, na redescoberta das ciências e da filosofia na
explicação racional do mundo.
Este novo processo, ao mesmo tempo em que vai gerar uma riqueza inimaginável, vai
produzir também uma pobreza e uma miséria maior ainda, uma territorializarão e uma
desterritorialização sem precedentes, um conhecimento sobre o espaço geográfico e seus
recursos a serem apropriados, identidades e desidentidades, homogenização e singularidades.
Desta contradição é que vai (re)emergir a noção de cidadania, de direito social e
espacial que, em maior ou menor grau está presente em nosso imaginário, como realidade
conquistada em alguns casos, mas como uma conquista a ser alcançada para a maioria.
É desta cidadania, a do sujeito de direito, uno e múltiplo, social e espacialmente
concreto em suas relações de igualdade com o Outro, percebido como um ser no-do mundo,
iguais em suas diferenças e diferentes em sua igualdade, que falamos. O do sujeito
usufrutuário do direito à vida, a liberdade, à saúde, à educação, ao lazer e a cultura e, ao
produto de seu trabalho e meios de subsistência.
2.3.5.2- Cidadania e Geografia
A cidadania esta umbilicalmente ligada à noção de lugar, ao pertencimento à
determinada localidade, à questão da territorialidade, do espaço vivido. E, no decorrer da
história humana, é nas cidades da antiguidade que esta noção vai se desenvolver, e vai ser
"aprimorada" a cada configuração sócio-espacial que se impõe como dominante e expandida
ao entorno à medida em que essa dominação cria redes de fluxos, comerciais, de exploração
de recursos, humanos e materiais, além de culturais.
Monteiro, como já havíamos adiantado, afirma que dar localização às atividades
humanas, espacializando seu sentido e significado, posição e situação, foi uma das primeiras
manifestações da linguagem humana, não importando o meio pelo qual essa comunicação se
dava.
A geografia, foi um dos saberes práticos que (re)nasceu na constituição do mundo
moderno-colonial, antes mesmo de se tornar um saber sistematizado, com foros de Ciência,
no séc. XIX. O geógrafo, surge como um funcionário do Rei, especialista em (re)presentar o
espaço, delimitar fronteiras para o Estado nascente. Já surge com uma função política, mais
do que prática, de procedimentos de controle, de contabilidade, de mensuração. Segundo
Gonçalves47, “O espaço, como o poder absoluto, não estava em discussão”
Gonçalves48, diz ainda que a perspectiva, outra (re)criação da Renascença, se
desenvolve a partir de um olhar matemático, paradoxalmente, a perspectiva embute um olhar
a partir de um ponto, e que por trás deste olhar se esconde um sujeito que observa e que se
esconde por trás da objetividade matemática.
Assim, é a partir da perspectiva do Estado, do poder, que o espaço é organizado. O
espaço e o território se colocam, como conceitos chaves para compreensão dos processos que
vão desembocar no mundo, em crise, tal como o conhecemos hoje.
47 Gonçalves, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001
48 idem
É preciso considerar que cada sociedade é antes de tudo, um modo próprio de estar
junto, implicando assim, em que cada sociedade no seu processo de consolidação, se faz
construindo seu espaço, não separando o social do espacial, do geográfico. Esta imbricação se
dá numa relação de causalidade, seja da sociedade para com o espaço, seja do espaço para a
sociedade; “o ser social é indissociável do estar”.
O território não se configura como uma substância que contem recursos naturais e uma
população. O território pressupõe um espaço que é apropriado e que neste processo –
apropriação, territorialização, conforma identidades – territorialidades, que sendo dinâmicas,
materializam a cada momento, uma determinada ordem, uma configuração territorial, uma
topologia social.
A geograficidade da existência vai além das condições naturais, como aceito pelas
ciências sociais. A natureza faz parte da materialidade constituinte do espaço geográfico. Mas
o ser humano só se apropria daquilo que faz sentido, só se apropria daquilo a que atribuem
significação, assim toda apropriação material é ao mesmo tempo simbólica.
Cassirer49, nos diz que a “classificação é uma das características fundamentais da
linguagem humana”, dar nome a um objeto ou ação equivale a colocá-lo em um conceito de
classe. Sendo humanos, são variáveis no sentido e significado. Não se destinam a referir-se a
entidades independentes que existam por si só. Antes, são determinados por interesses e
propósitos humanos. Baseiam-se em certos elementos constantes, repetitivos, de nossa
experiência sensorial.
Milton Santos50, reapresenta esta indissociabilidade entre o material e o simbólico, na
medida que para ele, o espaço geográfico é um ”misto, um híbrido, formado pela união
indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os sistemas de objetos, o espaço-
materialidade, formam configurações territoriais, onde a ação dos sujeitos, a ação racional ou
não, vem instalar-se para criar um espaço”.“Neste sentido não há significação independentes
dos objetos”.
O mundo ocidental, cujo “pensamento” se impõe homogeneizante, pela perspectiva
abstrata da matemática que sobrevaloriza a quantidade em detrimento da qualidade, revela seu
desconforto, diante deste paradigma dicotomizante, na medida que, o espaço, na geometria,
consiste na variação quantitativa deste mesmo espaço, enquanto que o espaço geográfico
contem uma “materialidade como atributo onde co-existem os diferentes”. E, mais, essas
relações espaciais não são apreendidas pelas estruturas clássicas de ação e representação, mas
49 Cassirer, Ernst, Antropologia Filosófica, Ed. Mestre Jou, São Paulo, 197750 Santos, Milton. A Natureza do Espaço – técnica e tempo/razão e emoção, Edusp, São Paulo, 2008
são inteligíveis como princípios de coexistência da diversidade, da alteridade, e que
constituem uma garantia nas possibilidades de comunicação. Isto leva alguns autores, segundo
Gonçalves, a reconhecer que há uma dimensão territorial ou uma lógica geográfica da cultura.
A este espaço, o de convivência do diverso, contíguo, de vivência diária, Santos, ousa
chamá-lo de espaço banal, que é onde exercemos ou deveríamos exercer a cidadania. A
contiguidade que interessa ao geógrafo, vai além da definição das distâncias que a separa. Ela
tem a ver com a proximidade física das relações entre sujeitos que as vivem com intensidade,
gestando assim laços de solidariedade, laços culturais, e por fim, a identidade, tanto do
sujeito, singular em sua coletividade, quanto a identidade do lugar e com o lugar.
O espaço geográfico é o locus de convivência com o diverso, natureza e cultura ao
mesmo tempo. O lugar, o espaço compartilhado pelas mais diversas escalas de convivência, é
por sua própria natureza, o espaço do conflito e da cooperação, que são a base da vida em
comum. O lugar “é o quadro de referência pragmática do mundo”, o teatro das paixões
humanas, que se manifestam diversificadamente em espontaneidade e criatividade, ao mesmo
tempo em que impõe ao território compartilhado, a 'interdependência como práxis mediadora
dos papéis específicos de cada um”, e também, cada vez mais, um espaço de resistência à
ordem homogenizadora do mundo.
No mundo mundializado a partir do séc XV, sobre o qual se homogeneizou uma visão
“euro-americana”, as identidades culturais, segundo Hall51, estão relativizadas pelo impacto
da compressão espaço-tempo. Concomitantemente ao fluxo de decisões, de mercadorias, de
imagens, estilos de vida ocidentais e identidades consumistas, de dentro para fora das
metrópoles e das economias centrais, há um fluxo de pessoas das periferias em direção ao
centro, em suas diversas escalas, global, regional e local.
Impulsionadas pela pobreza, seca, fome, subdesenvolvimento, desenvolvimento
dependente, distúrbios políticos, etc, atraídas pelas mensagens disseminadas pelo consumismo
globalizado, essa massa se dirige aos locais aonde estão os “bens”, em tese, onde as chances
de sobrevivência são maiores. Esse movimento, gera, nos territórios de chagada, enclaves
étnicos, enclaves de culturas regionais diversas, gestando novas territorialidades.
Este processo é percebido por aqueles que mais sofrem os efeitos das decisões
tomadas a distância, cujas ações, na maior parte das vezes, são tomadas em função da
dimensão econômica. À essa unidimensionalidade dos mandantes, se contrapõe a
“multidimensionalidade da vida inscrita na geografia de cada dia”, local de conformação da
subjetividade.
51 Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. DP&A Editora, Rio de Janeiro, 2006
Essas tensões de territorialidades rompem, no pensar de Foucault52, a instituição da
sociedade disciplinar transmutando-a numa sociedade de controle. As instituições, os espaços
de conformação da subjetividade – a família, a escola, a prisão, a fábrica, o estado-nação, o
mundo, não são mais definidos da mesma maneira. “Os espaços cercados que costumavam
definir o espaço limitado das instituições foram derrubados. (...)A lógica que funcionava
dentro das paredes institucionais agora se espalha por todo terreno social”
A geografia está diretamente relacionada ao espaço, seus paradigmas e paradoxos,
“modernos”, dependendo da visão conceitual subjacente, podem permitir uma apreensão total
ou parcial das relações entre o sujeito e o espaço, entre o homem e o meio.
A cidadania se insere nesta lógica, reificada com um direito, trás consigo a ideia de
controle, para o coexistir é necessário se submeter às leis do convívio social. As diferenças e
desigualdades sócio-espaciais são naturalizadas, em nome da ordem. Para se obter a cidadania
é necessário adquiri-la. E só se pode adquiri-la mediante a sujeição do indivíduo ao controle e
às leis do mercado, digo da “sociedade”. A cidadania é mercantilizada.
A lógica cartesiana, na qual a sociedade mundializada se fez a si mesma, está impressa
na consciência comunicada mercadologicamente. Não mais o “Penso, logo existo”, e sim o
“Tenho, logo existo”. Ter cidadania e não Ser cidadão
A geografia, malgrado todos os percalços por que passou, é, segundo Monteiro, um
veículo da Educação. E esta é, dentro da concepção (neo)liberal, formadora do conceito de
cidadania. Por este olhar, a cidadania é a do sujeito servil, sujeito de direitos e deveres. Para
se tornar, “civilizado” ou adquirir cidadania, é necessário a observância das regras e normas
pré-estabelecidas, a liberdade só pode ser praticada dentro dos limites impostos pela
sociedade. Os desprovidos de “educação” não tem direito a participação.
A participação política, fundamento central da cidadania, não é questionada, muito
pelo contrário. A cidadania implica na observância do conflito e em sua superação, em todas
as dimensões espaciais. Seja no interior do lar, seja na apropriação do espaço público
enquanto sentimento de pertencimento a este mesmo espaço implica na aceitação do outro
como um igual em sua diferença.
A cidadania para Santos, “é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e
investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância”
e ao mesmo tempo uma conquista do indivíduo e que se aprende a exercê-la. Em que se pese a
luta pelos direitos sociais, conquistados a custa de muito sangue, a cidadania, da forma com
52 Foucault, Michel. A Microfísica do Poder, in Gonçalves, Carlos W. P. Da Geografia às Geografias: Um Mundo em Busca de Novas Territorialidades; II Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, Universidad de Guadalajara, México, novembro 2001
que foi, e é, percebida, esconde toda uma ordenação do mundo. Para o capital exercer toda
sua possibilidade, o cidadão tem que ser, controlado, numerado, identificado, e portanto
alienado. Sem ordem, não há crescimento nem geração de riqueza. A cidadania, tal qual os
benefícios da globalização, são como a cenoura presa a vara em frente ao burro e a cangalha e
a espora que nos restringe e espicaça.
A ação do cidadão se restringe à esfera do mercado. Tratado como objeto, como
cidadão de segunda classe, seus direitos são afirmados enquanto possibilidade a ser alcançada,
mas o são negados e burlados na prática cotidiana sem haver questionamentos.
O lugar, o local, articulado ao entorno mundial, representa a materialização do vivido,
constituindo-se assim em um contraponto, um diferencial, o foco e o locus da resistência. Sua
conquista, material e simbólica, é a afirmação do sujeito coletivo, uno e múltiplo, frente a
igualdade homogeneizadora. É também a (re)politização das relações internas e externas à
comunidade na qual está inscrito e a reafirmação de sua cultura imbricada no espaço e no
tempo. Sendo assim, materializa a consciência do eu, do nós e dos outros. A percepção do
outro em nós assim como de nós nos outros nos leva a construção de uma cidadania plena.
Ribeiro, em sua exposição na SBPC de 1977, ironicamente, afirma que aqui, no Brasil,
se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Livre de
quaisquer comprometimentos morais. Segundo ele, inventamos e fundamos um sistema social
perfeito para os que estão do lado de cima da vida. Os valores exportados pelo país no séc.
XVII foi superior as exportações inglesas no mesmo período. Depois foi o ouro, que reinou
para os ricos. O café, os surtos da borracha e do cacau, de invejável prosperidade,
enriqueceram e dignificaram as camadas proprietárias e dirigentes de diversas regiões.
É importante assinalar, diz ele, que, modéstia a parte, tínhamos inventado ou
ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que compelindo
o povo a produzir, o que ele não consumia – produzir para exportar – permitia a geração de
uma prosperidade não generosa, ainda que propensa, desde então, a uma redistribuição
preterida.
Da mesma forma, diz ele, continuando a usar sua afiada ironia, a façanha educacional
brasileira é realmente extraordinária. Um povo chucro, neste mundo que generaliza tonta e
alegremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal. Mantido ignorante, ele não estará
capacitado e eleger seus dirigentes. Perpetua-se, em consequência, a sábia tutela que a elite
educada, bonita, ilustrada exerce sobre as massas ignaras.
Tutela cada vez mais necessária diante do avanço do progresso das comunicações,
aumentando o risco do povo se ver atraído ao engodo, fascista, comunista, trabalhista, sindical
ou outro qualquer. Usando, mais uma vez, sua generosa ironia, ele diz que, enquanto a
Argentina, o Chile, o Uruguai, generalizavam a educação primária, no intuito de formar
cidadãos para edificar a nação, por aqui, nosso Pedro, o II, criava duas únicas instituições
educacionais: O Instituto de Surdos e Mudos e o Instituto Imperial dos Cegos.
Duas são as vias históricas de popularização do ensino fundamental. Primeiro a
luterana, pela conversão da leitura da Bíblia, como ato de fé, daí resultando uma educação do
tipo comunitária, na qual, as populações locais, municipais, fazem da Igreja sua escola.
Ensinar a rezar é ensinar a ler. Foi esta a educação generalizada na Alemanha e
posteriormente nos Estados Unidos. A segunda é a cívica napoleônica, disposta a alfabetizar
os franceses para torná-los cidadãos. Divididos entre bretões, flamengos, normandos,
occipitães, franceses, etc, falando dialetos abrutalhados, essa massa, não estava em
concordância com a grandeza francesa imaginada por Napoleão. Assim, criou-se a escola
pública primária. A professorinha, com seu giz e o quadro-negro desasnou os franceses e os
transformou em cidadãos, ao mesmo tempo em que generalizava a educação.
Segundo Ribeiro, O Brasil, com seus dois pedros imperiais, todos seus presidentes
civis e militares e sucessores, opta pela forma comunitária luterana. Ou seja, entregou a
Educação fundamental exatamente aos menos interessados em educar o povo: ao governo
municipal e estadual - apesar da regência curricular império-federal.
“Como não admirar, a classe dessa nossa velha classe que, no caso da terra, adota uma
solução oposta à granjeira norte-americana; e no caso da educação, adota exatamente a
educação comunitária yankee....Varia nos dois casos para não variar. Isto é, para
continuar atendendo aos seus dois interesses cruciais: a apropriação latifundiária da
terra e a santa ignorância popular”.
2.3.6 - Um mapeamento das emoções: espacializando a trama
Morte e Vida Severina, escrito por João Cabral de Melo Neto, retrata a viagem de um retirante do Sertão, para a zona da mata; tomando como base a analise de fatores hidrológicos podemos verificar a descrição de algumas regiões, e também suas relações emocionais com o lugar, como já foi dito anteriormente.
“É o Severino da Maria de Zacarias, lá da serra da Costela, limites com aParaíba”
Para o Eduardo Pazera, professor de geografia da Universidade Federal da Paraíba a serra da Costela é um local fictício, próximo ao território paraibano, como início teve a nascente do rio Capibaribe( já que o mesmo cita que vem seguindo o rio), na serra do Jacarará, município de Poção – também nos limites com a Paraíba. A palavra costela, já designa a percepção do descarnado, ressequido, mas ao mesmo tempo, reconhecido como lugar de afeto, na medida que remete à lembrança da mãe e sua ancestralidade.
“ onde a caatinga é mais seca, irmão das almas, onde uma terra que nãodá nem planta brava.”
A caatinga, é o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em nenhum outro lugar do planeta. A caatinga ocupa uma área de cerca de 750.000 km², cerca de 11% do território nacional englobando de forma contínua parte dos estados do Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia e parte do Norte de Minas Gerais (Sudeste do Brasil). E é, ao mesmo tempo, o semi árido mais povoado do planeta.
“ Seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão”
O Rio Capibaribe é um dos rios do estado de Pernambuco, no Brasil. Nasce na Serra de Jacarará, no município de Poção (PE) e deságua no Oceano Atlântico, no centro do Recife. Possui duzentos e quarenta quilômetros de extensão, e sua bacia, aproximadamente, 5.880 quilômetros quadrados. Possui cerca de 74 afluentes e banha 32 municípios pernambucanos, entre eles Toritama, Santa Cruz do Capibaribe, Salgadinho, Limoeiro, Paudalho, São Lourenço da Mata e o Recife. Seu curso é dividido em três partes: o alto e o médio curso, situados no Polígono das Secas, onde o rio apresenta regime temporário (cheio sazonalmente); e o baixo curso, quando se torna perene a partir do município de Limoeiro, no agreste do Estado. O rio encontra-se hoje bastante degradado pelo assoreamento e poluição devido a dejetos de matadouros, lixões, bem como esgotos urbanos e industriais.
“ O algodão, a mamona, a pita, o milho, o coroa”
Representam as culturas que eram plantadas no sertão na época em que o retirante faz sua viagem.
“ Não senti diferença entre o Agreste e a caatinga, e entre a caatinga eaqui a Mata a diferença é a mais mínima”
Agreste (do latim: relativo ao campo, campestre) designa uma área na Região Nordeste do Brasil de transição entre a Zona da Mata e o Sertão, que se estende por uma vasta área dos estados brasileiros da Bahia, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte; Possui solo essencialmente pedregoso,rios temporários,vegetação rala e tamanho pequeno (mirtáceas, combretáceas, leguminosas e cactáceas). Tecnicamente o agreste junto ao sertão compõem o ecossistema denominado caatinga.
“A terra se faz mais branda e macia quando mais do litoral(zona da mata)a viagem se aproxima”
A Zona da Mata é uma região litorânea do Nordeste, que se estende pelos estados de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Sergipe, formada por uma estreita faixa de terra (cerca de
200 quilômetros de largura) situada no litoral. A vegetação original na zona da mata era predominantemente mata atlântica. É uma área que possui alto nível de urbanização, nessa região se concentra os principais centros regionais do Nordeste. No setor agrícola destaca-se as grandes propriedades de tabaco, cana-de-açúcar e cacau, existe uma larga produção agrícola, devido a terra ser altamente produtiva - solo massapé. Nos últimos anos nessa região tem ocorrido crescimento industrial, impulsionado por incentivos fiscais. Diante do exposto acima, detém-se que muitos saem da zona da caatinga, onde a seca é uma das principais causas da retirada, para a zona da mata onde procura-se uma melhor condição de vida, porém com a falta de especialização das mãos-de-obra esse quadro não muda e as grandes cidades das pessoas, para buscar uma melhor condição de vida.
3 – Conclusão
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