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78 REVISTA EQUITAÇÃO � N.º 89 � MARÇO/ABRIL 2011

GÉNESE EQUINA

O ancestral do cavalo moderno(Equus caballus) chamado Hyra-cotherium ou Eohippus (Figura 1)viveu na América do sul, e depoisem toda América e Euroásia, acercade 50 a 60 milhões de anos atrás.A sua dieta consistia de uma va-

riedade de plantas e folhagens ricase suculentas que causavam muitopouco atrito dentário. De facto, asua dentição era muito parecidacom a actual dentição humana (bra-quidontes). Contudo, com subse-quentes mudanças climáticas e dehabitat durante os períodos Oligocenoe Mioceno (Figura 2) este pequenoanimal do tamanho de um cão, migroue adaptou-se a novas dietas agoramuito abundantes na Terra – pastagensde estepes, pradarias e tundras. Istosignificou que o ancestral do cavalopassou a alimentar-se fundamental-mente de fibras de celulose, um com-posto de difícil mastigação e digestão.Para além de outras adaptações

do aparelho digestivo, os variadosestádios evolutivos do cavalo mo-derno tiveram de “criar” uma den-tição que suportasse a preensão e amastigação destas fibras muito abra-sivas e assim disponibilizá-las para atão importante digestão microbianaintestinal. Assim, constata-se que adentição equina evoluiu brilhante-mente para incluir inovações que a

adaptaram à dieta de fibra grosseira.(ver tabela 1 na página 79)Por volta do ano de 2.000 AC, o

cavalo foi domesticado pelo Homem.Com tal acontecimento o efectivodomesticado sofreu transformaçõesmuito significativas a dois níveis.Em primeiro lugar, o Homem iniciou

um processo de selecção com vista acriar raças tão variadas desde os pe-quenos póneis Miniatura até aos ma-jestosos Shire sempre em função deparâmetros funcionais como a rapidez,a beleza, a força, e etc, e nunca emfunção das suas qualidades dentárias.Apesar de se poder supor que existiráuma influência indirecta da qualidadeda dentição no desempenho de cadaindivíduo, e subsequentemente umainterferência nos processos de selec-ção, esta não poderá ter sido nuncadecisiva. Efectivamente verifica-se queraças com uma selecção humana maisactiva têm uma maior taxa de anomaliasdentárias e não só. Verifica-se também,que raças muito grandes ou muitopequenas têm uma incidência maiorde patologias dentárias.Em segundo lugar, o Homem mudou

a dieta do cavalo. Foram introduzidosnovos alimentos e alteradas as apre-sentações dos alimentos até aí conhe-cidas pelo cavalo (exemplos: métodosde preservação de pastagens comoos fenos, palhas, fenosilagens, etc).

Evolução do cavalo – perspectiva dentária

Dr. Manuel Lamas

Figura 1 - Ilustração doHyracotherium/Eohippos

(Cortesia de: http://imh.org)

Figura 2 – Ilustração dos vários es

tádios evolutivos do cavalo actual

(Cortesia de: http://sciencerevolu

tion.net)

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GÉNESE EQUINA

Nas últimas décadas verificou--seum avanço muito significativo no nossoconhecimento da nutrição equina. Fa-bricam-se hoje em dia concentradoscom valores energéticos e de digesti-bilidade altíssimos o que para o “cavaloda pradaria” que evoluiu durante mi-lhões de anos para comer pastagensnaturais de fraca qualidade constituiuma mudança muito marcada. Inde-pendentemente dos óbvios benefíciosprodutivos que advêm de uma dietamuito rica, ao nível dentário vão existirconsequências. Quando se introduzum concentrado na dieta, automati-camente o cavalo vai ter necessidadede comer menos fibra o que vai causaruma diminuição drástica do tempopassado a mastigar e uma alteraçãodo padrão mastigatório (de latero-la-teral para uma mastigação vertical).O período de mastigação do cavalo

domesticado diminuiu ainda mais de-vido ao acesso condicionado à pasta-gem e com os fenos de qualidade dehoje em dia, pois a sua necessidadede ingerir fibra é inversamente pro-porcional à qualidade da fibra que lheé oferecida. Assim, o cavalo para sa-tisfazer as suas necessidades energéticaspassa em média oito a dez horas acomer por dia com picos de actividadecoincidentes com as horas da “refei-ção”, o que comparado com o cavaloda pradaria que passa dezasseis horasdiárias a pastar e a deambular é umadiferença significativa.Todas estas mudanças originam uma

menor erosão dentária e um uso maldistribuído da superfície dentária demastigação. Alheios a estes factos, osdentes continuam o seu processonormal de erupção e portanto vão-se criando desigualdades ou mesmosobre-crescimentos pontuais no seuperfil, que podem chegar a causarimpossibilidade de mastigação, comotambém vão acentuando as suas nor-mais arestas cortantes até ao pontode formarem úlceras dos tecidosmoles da boca. Estão também descritosna literatura científica, outras patologiasde origem nutricional, entre eles des-taca-se as cáries dentárias e a doençaperiodontal.Deste modo, podemos concluir

que a saúde dentária do nosso cavaloestá intimamente ligada à sua dieta ecomo tal devemos manter semprepresente que o cavalo não pode viversem ter uma considerável proporçãode fibra diária, pois foi para isso queele se especializou durante milhõesde anos, facto que não se pode ultra-

passar em apenas umas décadas. Éde realçar, que ao termos domesticadoo cavalo e introduzido tantas novaspremissas na sua vida, temos tambéma obrigação de proporcionar cuidadosdentários que permitam adaptar anatureza do cavalo a essas mudanças.

Devemos também ter em conta nosnossos critérios de selecção, taxas deincidência de malformações e pato-logias dentárias detectadas, para queresponsavelmente seleccionemos osindivíduos mais aptos e que assim nostrarão maior prazer, melhores resul-

1 - Algumas destas inovações

anatómicas do cavalo são comuns

a outras espécies

tados e avanços de bem-estar animal.Terminando, relembro que o estudo

da interessante história do cavalopode-nos ajudar muito a compreendermelhor o presente e a ajustarmos onosso conhecimento à realidade destemaravilhoso animal. n

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l http://sciencerevolution.net

Manuel Lamas - Cert EP MRCVS Médico Veterinário

Figura 3 – Dente de equídeo. Repare nas linhas brancas (esmalte) que se inserem naestrutura interna do dente. Repare também na superfície ondulada que aumenta em umterço o total de superfície de contacto