Gênero discursivo X tipologia textual em livro didático:
a discussão continua necessária
Quézia C M Ramos (UNIOESTE)
Nathalia Roman Gomes (UEM)
Alcione Tereza Corbari (UNIOESTE)
Resumo: O presente estudo visa a refletir sobre as noções de gênero discursivo e tipo textual
em um livro didático voltado ao ensino médio. Embora os estudos das últimas décadas e os
documentos oficiais (PCNs e DCEs, por exemplo) defendam a necessidade de uma abordagem
da leitura e produção textual pautada na noção de gênero, é bastante recorrente o
encaminhamento de atividades com o texto pautado na noção de tipologia, como se observa,
por exemplo, na proposta de redação do Enem. Neste trabalho, recorre-se às teorias que
discutem a distinção entre tipologia e gênero e atentamo-nos, especialmente, em relacionar as
reflexões teóricas com os encaminhamentos adotados no livro didático que constitui o corpus.
Dada a relevância do trabalho com os gêneros no ensino de Língua Portuguesa, espera-se, com
esta pesquisa, avivar a necessidade de discussões sobre o tema, considerando as perspectivas
atuais sobre o trabalho com o texto na escola.
Palavras-chave: Gênero discursivo; tipo textual; livro didático; Língua Portuguesa.
Abstract: This paper aims to reflect about the notions of discursive genre and text type in a
textbook used in the high school. Although the studies of the last decades and the official
documents (PCNs and DCEs, for example) defend the need for an approach of reading and
textual production based on the notion of gender, it is quite recurrent the routing of activities
with the text based on the notion of text types, as it may be seen, for example, in the drafting
proposal of Enem. In this work, we resort to theories that discuss the distinction between
typology and gender, and we try, especially, to relate the theoretical reflections to the guidelines
adopted in the textbook that constitutes the corpus. Given the relevance of work with genders
in Portuguese Language teaching, we hope, with this research, to revive the need for
discussions on the subject, considering the current perspectives on working with text in school.
Keywords: Discursive genre; text type; textbook; Portuguese Language teaching.
Considerações iniciais
A escola é, por vezes, o primeiro ambiente em que o aluno põe em prática a produção
linguística, atuando como sujeito ativo na confecção de enunciados orais e escritos. Tal
trabalho só é possível em decorrência do uso da língua e dos recursos por ela dispostos, os
quais o falante explora consciente e inconscientemente. É atribuída à escola a responsabilidade
de expor o aluno ao contato com os diferentes textos que circulam socialmente, de modo ele
os possa interpretar e, na posição de cidadão, produzir textos eficazes nas mais variadas
situações (BRASIL, 2000).
Considerando esse contexto, este artigo apresenta uma pesquisa qualitativa que se
propõe a discutir a relação entre gênero discursivo e tipologia textual e observar como tais
noções são tratadas no livro didático Português: Língua e Cultura, elaborado por Carlos
Alberto Faraco, aprovado pelo PNLD 2018, voltado para o Ensino Médio; mais precisamente,
é considerado o capítulo que trata do texto de opinião. Busca-se perceber como a transposição
dos textos para a sala de aula permite uma integração entre as atividades propostas e as práticas
sociais.
Descreveremos, inicialmente, o percurso investigativo seguido, recorrendo, entre outras
pesquisas, aos documentos que norteiam o ensino de língua portuguesa, para, na sequência,
proceder à análise das propostas de produção de texto dos livros didáticos selecionados.
A produção de texto escolar: a noção de gênero em foco
Os documentos norteadores do ensino de Língua Portuguesa, especialmente os
Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (2000), destacam que o estudo dos gêneros
discursivos e dos modos como se articulam proporciona uma visão ampla das possibilidades
de usos da linguagem. Nessa perspectiva, o texto é utilizado como objeto do processo de
ensino-aprendizagem da língua portuguesa, visando a que o aluno esteja empenhado em uma
atividade sociocomunicativa, corroborando o pressuposto de língua como lugar de interação
(KOCH, 2011). Durante a prática escrita, o aluno porta-se como sujeito ativo, envolvido na
interação entre sujeitos sociais, atuando no espaço situado entre as práticas e as atividades de
linguagem. Em tal espaço, “produzem-se as transformações sucessivas da atividade do
aprendiz, que conduzem à construção das práticas de linguagem” (DOLZ; SCHNEUWLY,
2004, p. 75-76).
O aluno participa ativamente da interação quando produz enunciados (orais ou escritos),
como previsto pelos estudos bakhtinianos. Tal produção está guiada por um projeto de dizer, e
o gênero escolhido para levá-lo a cabo orienta a escolha do conteúdo e a forma de apresentá-
lo (KOCH, 2011; CORBARI, 2013). Os gêneros são, na perspectiva bakhtiniana, tipos
relativamente estáveis de enunciados, elaborados pelas diversas esferas de utilização da
linguagem e constituído por conteúdo temático, estilo verbal e construção composicional.
Os PCNs (2000) assinalam que o processo de ensino-aprendizagem de Língua
Portuguesa, no Ensino Médio, deve pressupor uma visão sobre o que é linguagem verbal. Esta,
por sua vez, é composta por uma unidade básica, o texto; logo, o aluno deve ser considerado
como produtor de textos, isto é, como sujeito que pode ser entendido pelos textos que produz
e que o constituem como ser humano. Conforme a perspectiva adotada pelo documento, os
gêneros discursivos caracterizam-se por serem cada vez mais flexíveis e nos dizer sobre a
natureza social da língua. Os documentos que direcionam o trabalho dos professores de língua
portuguesa são enfáticos ao apontarem que o texto é um elo de interação social, representando
uma forma de atuar no mundo (PARANÁ, 2008). Todavia, ressalvam que o modo como a
atividade escrita será proposta interfere significativamente nos resultados alcançados, uma vez
que, ao estar frente a uma folha repleta de linhas a serem preenchidas acerca de um tema, os
alunos podem recorrer apenas às estratégias de preenchimento (PARANÁ, 2008).
Ainda no tocante à produção textual, as Diretrizes Curriculares da Educação Básica –
DCE (2008) destacam, com base em Antunes (2003), que as atividades escritas devem
corresponder àquilo que, na verdade, se escreve fora da escola. Em outros termos, pretende-se
que sejam produzidos textos de gêneros que têm uma função social determinada, conforme as
práticas vigentes na sociedade. As propostas apresentadas pelas DCE (2008), com respeito à
prática escrita, estão pautadas em três etapas interdependentes e intercomplementares, que, em
suma, são: a) o aluno, conforme as orientações dadas pelo professor, ampliará as leituras sobre
a temática proposta para a produção do texto; lerá textos que correspondam ao gênero
solicitado (considerando a esfera de circulação); delimitará o tema; seguirá uma intenção
comunicativa; levantará hipóteses acerca dos possíveis interlocutores; refletirá acerca da
situação em que o texto irá circular; b) colocará em prática o planejamento previsto na primeira
etapa e escreverá a primeira versão sobre a proposta apresentada (tomando em consideração a
temática, o gênero e o interlocutor); c) refletirá sobre seus argumentos; verificará se os
objetivos foram alcançados, se o texto atende à finalidade, ao gênero e ao contexto de
circulação; avaliará a linguagem empregada; e reescreverá o texto.
Com base na terceira etapa compreendida no processo de produção de texto apontada
pelas DCEs (2008), nota-se que o contexto de circulação do texto deve ser inegavelmente
contemplado, isto é, deve ser dada ao aluno a oportunidade de socializar a experiência da
produção textual. Tal exercício pode ser realizado por meio diferentes estratégias, como:
[...] afixar os textos dos alunos no mural da escola, promovendo um rodízio
dos mesmos; reunir os diversos textos em uma coletânea ou publicá-los no
jornal da escola; enviar cartas do leitor (no caso dos alunos) para determinado
jornal; encaminhar carta de solicitação dos alunos para a câmara de
vereadores da cidade; produção de panfletos a serem distribuídos na
comunidade; entre outros (PARANÁ, 2008, p. 70).
À luz do que é apontado nos documentos oficiais da educação básica, verifica-se que o
foco está, sobretudo, na concepção de linguagem bakhtiniana, que repudia a noção de língua
como um conjunto de códigos. O objetivo está em promover o amadurecimento dos alunos
com relação à prática escrita e ao conhecimento da função social dos gêneros discursivos, a tal
ponto que ele próprio possa se tornar um competente leitor e produtor dos gêneros estudados.
Gêneros discursivos x tipos textuais
Conforme o exposto anteriormente, o texto é o lugar da interação (seja na depreensão
de conteúdos semânticos, seja na atuação de práticas sociais e culturais) em que interlocutores,
como sujeitos ativos, são construídos e se constroem de forma dialógica (BAKHTIN, 2004;
KOCH, 2011).
A fim de entender a maneira como o sujeito se comunica e interage com o outro e com
o mundo ao seu redor, torna-se necessário, então, refletir acerca de como se dá o processo de
produção, compreensão e circulação de textos na vida social.
Assim sendo, devem-se estabelecer algumas importantes distinções no que concerne
aos aspectos das formulações teóricas referentes aos conceitos de tipo textuais e gêneros
discursivos, objetivando esclarecer em que consistem essas duas categorias teóricas, algo
bastante importante para o trabalho do professor em sala de aula com a descrição e análise dos
textos.
No que tange aos gêneros discursivos, Bakhtin (2003) afirma que são enunciados
relativamente estáveis, e é justamente por meio dos enunciados concretos que há o acesso a
relações dialógicas dos discursos materializados nas enunciações. Além disso, nota-se que as
mais diversas esferas da atividade humana concatenam-se com o uso da língua que se revela
na forma desses enunciados (sejam eles orais, sejam eles escritos) e seus conteúdos, estilos e
estrutura composicional.
Esses gêneros do discurso nos são dados quase como nos é dada a língua
materna, que dominamos com facilidade antes mesmo que lhe estudemos a
gramática [...] Aprender a falar é aprender a estruturar enunciados [...] Os
gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma maneira que a organizam
as formas gramaticais. [...] Se não existissem os gêneros do discurso e se não
os dominássemos, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados,
a comunicação verbal seria quase impossível (BAKHTIN, 2003, p. 301-302).
Não obstante, Marcuschi (2002) lembra que esses tipos relativamente estáveis de
enunciados são transmitidos de forma social e histórica e podem, em determinados momentos,
ser preservados ou transformados pelos falantes (MARCUSCHI, 2002). E, de acordo com Dolz
e Schneuwly (2004), os gêneros são facilmente identificáveis, principalmente os que fazem
parte do cotidiano, devido ao caráter multiforme, maleável e natural (DOLZ; SCHNEUWLY,
2004).
Os tipos textuais, por sua vez, apreendem um pressuposto teórico que remete ao
funcionamento da composição estrutural de determinado texto. O texto, à medida que é
compreendido como pertencente a certo gênero discursivo (artigo de opinião, conto fantástico,
resumo, entre outros), pode incorporar, em sua constituição, inúmeros tipos textuais.
Nesse sentido, Marcuschi (2000) afirma que tipo textual abrange, em seu âmbito,
narração, argumentação, exposição, descrição, injunção e diálogo. O autor corrobora, também,
a ideia de que os tipos textuais são mecanismos usados para estruturar e organizar os gêneros,
sendo, possível mais de um tipo textual figurar em um mesmo gênero. Uma carta pessoal, por
exemplo, pode englobar as seguintes tipologias: descrição, exposição, injunção e, ainda,
narração e argumentação (MARCUSCHI, 2000).
Ademais, a identificação e classificação dos tipos textuais que se realizam em dado
gênero discursivo é possível por meio da observação dos elementos linguísticos característicos
de cada tipo.
Quadro 1 – Os tipos textuais segundo Werlich (1973)
Fonte: Marcuschi (2002, p. 28)
Nessa perspectiva, Marcuschi (2002) considera o texto como uma entidade
comunicativa dotada de grande heterogeneidade, “construída com unidades composicionais
constituídas pelas sequências tipológicas” (MARCUSCHI, 2002, p. 27).
Portanto, em aspectos gerais, os gêneros se diferenciam por seu uso e função social,
enquanto os tipos textuais são elementos formais e linguísticos cuja existência real não é
possível fora dos gêneros – ou seja, é uma categoria que se restringe às operações das unidades
linguísticas constitutivas do texto.
Dissertação: tipologia ou gênero escolar?
Na situação escolar, os gêneros configuram-se como objeto de ensino-aprendizagem,
deixando de ser, como explica Koch (2011), somente uma ferramenta de comunicação. A
introdução do gênero na escola está guiada (ou, pelo menos, deveria estar) por objetivos
precisos de aprendizagem, dentro dos quais dois se destacam: a) propor que o aluno tenha
domínio do gênero, a fim de melhor compreendê-lo, produzindo-o na escola ou fora dela,
desenvolvendo capacidades que ultrapassem o gênero e que são transferíveis para outros
próximos ou distantes; b) colocar os alunos em situações de comunicação o mais próximo
possível das verdadeiras, visando a que tenham para eles um sentido e que possam dominá-las
como realmente são (KOCH, 2011).
Quando determinado gênero é tomado como objeto de ensino-aprendizagem, ocorre
certo desdobramento, dado que, como antes exposto, ele não mais se constituirá apenas como
ferramenta de comunicação. Destarte, “o gênero trabalhado na escola é sempre uma variação
do gênero de referência, construído na dinâmica do ensino/aprendizagem, para funcionar numa
instituição que o tem por objetivo primeiro” (KOCH, 2011, p. 58). Entende-se, pois, que, nesse
processo de variação, a certos gêneros poderá ser-lhes atribuído um perfil mais didático.
Cumpre destacar que Rojo (1999) aponta a existência dos gêneros escolares
propriamente ditos e os escolarizados. Embasada em Schneuwly, a autora explica que os
primeiros dizem respeito aos gêneros que funcionam como instrumento de comunicação na
instituição escolar, fornecendo subsídios para que esta funcione; os segundos são aqueles que,
transpostos para a sala de aula, constituem-se em objetos de ensino-aprendizagem (narração
escolar, descrição escolar, dissertação). Com respeito a tal classificação, Koch (2011) reitera:
Os gêneros do primeiro tipo são assimilados espontânea e inconscientemente
pelo aprendiz, pela exposição a essas práticas de linguagem na situação de
comunicação escolar. Só os segundos é que serão os objetos de ensino-
aprendizagem [...] (KOCH, 2011, p. 59).
Entre os gêneros que Rojo (1999) define como escolarizados está a dissertação, a qual
Koch (2011) diz ser “o protótipo por excelência desse tipo de gêneros, visto que é feito para a
escrita, para o ensino da escrita, para toda a escolaridade e não existe, evidentemente, fora da
escola” (KOCH, 2011, p. 59). Esta autora, pautada em Rojo (1999), ressalta ainda que há certa
artificialidade no que respeita aos gêneros do segundo grupo, particularmente na dissertação,
que tem-se a presença de determinadas sequências ou tipos textuais, como é o caso da
argumentação e da explicação (KOCH, 2011).
A dissertação se define de diferentes modos, a depender da perspectiva seguida pelo
pesquisador; porém, em termos gerais, trata-se de um tipo de composição em que são expostas
ideias sustentadas por argumentos (GRANATIC, 1995). Há, todavia, autores que fazem
distinção entre a dissertação definida como um texto expositivo e como argumentativo.
Andrade e Henriques (1994) explicam que a dissertação expositiva configura-se pela
apresentação e discussão de determinado assunto e não visa, necessariamente, à persuasão; a
argumentação, por seu turno, ademais de envolver a discussão, pretende persuadir o leitor, por
meio de argumentos. Isto é, “trata-se, pois, de uma exposição acompanhada de argumentos,
provas e técnicas de convencimento” (ANDRADE; HENRIQUES, 1994, p. 125).
A dissertação, de acordo com Novaes (2009), ganha destaque no mundo acadêmico,
visto que ocupa lugar garantido em parte dos exames vestibulares do país, em diferentes
sistemas de avaliação de cursos. Serve, por vezes, de parâmetro nos concursos públicos, em
processos seletivos de empresas privadas e em outras situações em que se avalia a competência
linguístico-discursiva.
A forte relação entre produção de texto no ambiente escolar e os tipos de texto pode ser
depreendida na proposta de redação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. Esse
exame orienta para a produção de um texto dissertativo-argumentativo, conforme pode-se
verificar na Cartilha do participante de 2017:
Figura 1 – Explicações sobre a prova de redação
Fonte: Brasil (2017)
Nota-se que é explicitado ao participante (na maioria dos casos, aluno do último ano do
Ensino Médio ou aluno egresso desse nível de ensino) que o texto escrito deve compor-se de
uma tese, sustentada por argumentos que sustentam o ponto de vista defendido. Há, ainda, uma
questão interessante a se levantar. Ao longo da cartilha, não se menciona o termo “gênero”,
diz-se apenas que se solicita a produção de “um texto, em prosa, do tipo dissertativo-
argumentativo”. Ou seja, as discussões que estão nos PCNs, também propostos pelo Governo
Federal, e que permeiam os estudos linguísticos voltados para o ensino de língua não são
consideradas nessa prova de destaque no contexto educacional brasileiro.
É importante destacar que, embora o trabalho com gêneros discursivos tenha bastante
destaque no âmbito acadêmico, o que se observa é que os livros didáticos de língua portuguesa
comumente não apresentam abordagens satisfatórias e que valorizem a pluralidade linguística
e mesmo a perspectiva interacionista tão defendidas nos documentos oficiais.
Análise: voltando o olhar para o livro didático
O livro didático escolhido para a análise é Português: Língua e Cultura, elaborado por
Carlos Alberto Faraco e aprovado pelo PNLD 2018.
Conforme visto nas seções anteriores deste artigo, tipologia textual, de acordo com
Marcuschi (2002), caracteriza dada sequência designada pela sua natureza linguística. Dessa
maneira, quando um texto é qualificado como dissertativo, não se está definindo o gênero
discursivo, mas sim a tipologia textual que predomina na composição (MARCUSCHI, 2002).
Verifica-se, no trabalho proposto pelo livro didático, uma focalização nas problemáticas
referentes à tipologia textual – mais especificamente, questões do texto dissertativo –, sem
maiores indicações concernentes ao gênero a ser explorado. Ressalta-se, ainda, que, devido à
desconsideração do gênero discursivo, exclui-se também elementos relacionados à interação e
socialização dos textos, aos objetivos da proposta, dentre outros aspectos.
Em suma, percebe-se que, nas orientações metodológicas do material didático aqui
analisado, não se diferenciam tipologia textual e gênero discurso, tendo, então, uma ausência
na definição e denominação do gênero a ser produzido. Isso realça a necessidade de uma nova
abordagem para essa questão nos livros didáticos, visto que tais materiais, não raras vezes,
fazem confusão na abordagem de tipologias e gêneros ou realizam uma abordagem superficial
da teoria interacionista dos gêneros enquanto práticas sociais.
Tal confusão é observada logo nas notas introdutórias dos capítulos de redação do livro
didático aqui analisado, visto que confunde as questões relativas à dissertação e à
argumentação, ainda que considere esta como tipologia e defina suas características e recursos
linguísticos discursivos.
A partir do sumário do capítulo analisado (Figura 1) é possível depreender a perspectiva
tomada pelo autor:
Figura 2 – Sumário do capítulo analisado
Fonte: Faraco (2013, p. 7)
Nota-se que o autor intitula a unidade como ‘gênero argumentativo’, ignorando, nesse
primeiro momento, a possibilidade de um trabalho mais específico em sala de aula com gêneros
discursivos em que se destaca a tipologia argumentativa.
Outro aspecto relevante concernente ao trabalho do material didático e sua relação com
as tipologias e gêneros é a confusão entre a definição teórica com a aplicação dessas mesmas
definições no tratamento dos textos que servem de exemplos ao longo do capítulo. Três textos
são utilizados com esse propósito na unidade: O sofisma da especialização, de Claudio Moura
Castro e publicado na revista Veja, em 2001; A crítica destrutiva e a Conchinchina, escrito por
Gustavo Ioschpe e publicado em dezembro de 1999 na Folha de São Paulo; e, por fim, O
preconceito nosso de cada dia, de autoria de Jaime Pinsky, veiculado no jornal O Estado de
São Paulo.
Todos esses textos foram produzidos por articulistas bastante conhecidos e pertencem
ao gênero artigo de opinião, cuja organização composicional e função social são bem definidas.
O artigo de opinião, ainda que seja estruturado predominantemente pela tipologia
argumentativa, não é definido apenas por essa característica; todo o contexto de interação de
onde emerge precisa participa de sua configuração. No caso dos textos em questão, nota-se,
inclusive, que se situam em publicações midiáticas, normalmente em seções destinadas a
interações cuja intenção centra-se na emissão de opiniões e intenção de convencimento do
leitor.
Em momentos posteriores do capítulo, o autor do livro didático corrobora a ideia da
“dissertação sem palavras”, afirmando que seria possível
[...] dissertar (isto é, defender uma ideia) sem usar palavras. É o que acontece
em algumas charges publicadas na imprensa. A charge trabalha
fundamentalmente com a linguagem visual, combinando, de forma
condensada, humor e crítica (daí seu caráter de ‘dissertação sem palavras’)
(FARACO, 2013, p. 74, grifos do autor).
Para exemplificar, o livro didático faz uso de uma charge do Glauco, publicada em 2003
na Folha de São Paulo. Todavia, de acordo com Romualdo (2000), a charge pode ser
compreendida como gênero discursivo, já que emerge de dada interação social e, seguindo os
pressupostos bakhtinianos, apresenta sua própria construção composicional, seu conteúdo
temático e seu estilo, o qual designaria as particularidades de cada chargista e de cada dizer de
dada charge (ROMUALDO, 2000).
Considerando que o gênero charge contemplaria, em sua estruturação, certas tipologias,
verifica-se, nesse material didático, novamente um desentendimento entre as formulações
teóricas de dissertação como gênero discursivo e tipologia textual.
Ademais, quase no fim do capítulo, por sua vez, há uma pequena seção denominada
“Prática de Escrita”, em que o autor lista três sugestões de elaboração de um texto:
Figura 3 – Proposta de redação no capítulo analisado
Fonte: Faraco (2013, p. 75)
Essas propostas de atividade de escrita do capítulo se mostram bastante restritas no que
diz respeito ao contexto de interação e interlocução. Em “Como sempre, mostre seu texto a
colegas”, percebe-se que grande parte das produções textuais sugeridas pelo livro didático se
resumem, majoritariamente, ao ambiente da sala de aula.
Além disso, destaca-se, ainda, a proposta (a): “um resumo do primeiro texto em não
mais do que 120 palavras”. O livro didático propõe ao estudante, então, que produza um texto
pertencente a um gênero não trabalhado anteriormente na unidade (nem em outros capítulos
anteriores), com conteúdo composicional e estilo bastante diferente do texto de opinião em
foco até então.
Considerações finais
A investigação proposta permitiu observar a partir de qual perspectiva o texto
dissertativo-argumentativo é apresentado em um livro didático aprovado pelo PNLD 2018. A
produção textual é, segundo as teorias que sustentaram esta pesquisa, uma atividade
sociointeracional, sustenta pelo texto, que, por seu turno, configura-se como um lugar de
interação. Os documentos que orientam o ensino de língua portuguesa conferem aos gêneros
discursos o lugar de destaque no trabalho com a prática escrita.
A dissertação reúne as características de um texto de base tipológica expositiva e
argumentativa. A produção de textos dessa natureza é bastante comum no ambiente escolar,
não apenas na disciplina de Língua Portuguesa, mas também em outras que requerem do aluno
a produção de textos predominantemente argumentativos. Por vezes, o objetivo dos professores
ao propor tal produção está em fomentar o desenvolvimento da criticidade dos alunos, uma vez
que a dissertação permite que o aluno manifeste um posicionamento acerca de um tema,
dialogando com outros textos que circulam socialmente sobre o mesmo assunto. Todavia, o
questionamento ainda está centrado nos encaminhamentos dados para a produção do texto
dissertativo-argumentativo, uma vez que se defende, nos documentos citados ao longo deste
trabalho, que a prática escrita precisa oportunizar o aluno a compreensão do funcionamento do
texto, sob a premissa de que os gêneros são construções fundamentais para as interações
sociais.
Notou-se, por meio da análise do livro Português: Língua e Cultura, que o autor não
encaminha a dissertação como um gênero e, ao trazer exemplos e atividades interpretativas
anteriores à proposta de produção, ele recorre a textos de outros gêneros, como artigos de
opinião. Tampouco se explora o contexto de circulação do tipo de texto estudado e,
posteriormente, solicitado para produção. A socialização das produções também é um aspecto
pouco explorado. No livro analisado, a dissertação é, portanto, tomada a partir da perspectiva
de tipologia e de estrutura, tendo sido desconsiderada a noção de gênero.
Vale apontar, ademais, que tratar a dissertação como um tipo textual é diferente de
entendê-la como um gênero escolar, uma vez que este tem uma função no âmbito escolar e um
contexto de produção e de circulação dentro da escola. Nessa perspectiva, observou-se que se
explora mais a noção de tipologia. Embora não tenha sido explicitado, ao longo do capítulo
analisado, o termo ‘tipo textual’, o autor menciona que “boa parte dos textos de opinião recebe
o nome técnico de texto dissertativo ou dissertação” (FARACO, 2013, p. 65, grifos do autor.).
O trabalho proposto acaba, então, indo de encontro com a perspectiva e as orientações dos
documentos oficias, que sugere o trabalho focado no entendimento dos gêneros discursivos.
Não há oposição, certamente, quanto à apresentação das sequências textuais, contudo, não se
deve minimizar o trabalho com o texto considerando apenas suas características tipológicas
predominantes, conforme defendem as perspectivas teóricas atuais acerca do ensino de língua
portuguesa.
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