8/7/2019 Gebo e a Sombra
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O GEBO E A SOMBRA
PEA EM 4 ACTOS
PERSONAGENS:
O GEBO, cobrador da Companhia Auxiliar.DOROTEIA, mulher do Gebo.
JOO, filho do Gebo e de Doroteia.SOFIA, mulher de Joo.CHAMIO, msico de feira.CANDIDINHA.Um polcia e vizinhos.
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O GEBO E A SOMBRA
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PRIMEIRO ACTO
Casa pobre com janelas e duas portas ao fundo, umapara a rua e outra para a cozinha. Mesa com livros
de escriturao comercial. Inverno. Cinco horas.Anoitece.
SOFIA e DOROTEIASOFIA, espreitando janela.
No tarda por a J se comeam a acender oslampies da estrada. Pobre velho, h de vir cheio de
frio. Todo o dia chuva, toda a vida ao tempo(Espreita outra vez.) No se v nada para a rua. O
caf est quente. (Olha em roda.) Deixa-me dar maisluz ao candeeiro Ah! a manta velha e os sapatos,seno pe-se a a ralhar por causa dos sapatos Hquantos anos fao todos os dias as mesmas coisas!
(Baixinho.) H quantos anos! (Para Doroteia queentra.) O pai hoje demora-se, estar doente?
DOROTEIAAgora est! Ps-se para a a falar com os
vizinhos Tens tudo arranjado?
SOFIATudo.
DOROTEIALogo que ele chegue chama-me, ouviste? Hoje
traz notcias.
SOFIANotcias de quem?
DOROTEIADo Joo, do teu homem, do meu filho. Ficas na
mesma! (Vai a sair.) A manta velha e os sapatos, note esqueas
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SOFIAJ ali esto.
DOROTEIA
Bem.
SOFIATudo est nos seus lugares. Os livros Nos livros
no quere ele que lhe mexo. (Aproxima-se dajanela.) To escuro j!
DOROTEIA, saindo para a cozinha.Ficas na mesma! No sei que corao o teu!
SOFIAIludida! sempre iludida! Dissessem-te a verdade a
ver se choravas tantas lgrimas como eu tenhochorado baixinho, com o cobertor pela cabea, para
que no me ouam chorar. Nem chorar podemos eu eo velho para que vivas iludida. Ainda ele anda,
trabalha, esquece, mas eu fico aqui horas e horas acismar (Apura o ouvido.) a sua voz, so os seus
passos. Tosse. Fala com algum. (Olha em roda para se certificar deque tudo est nos seus lugares, depois
sorri e chama.) Me, ele a vem.
DOROTEIA, dentro.A vou, a vou.
SOFIAO que ele fala! Com quem vir a falar? (Para
Doroteia.) A vem o pai. (Batem).
DOROTEIA, ouvindo bater.A vou homem, a vou. (Abrindo a porta.)
Escusavas de bater.
SOFIA, DOROTEIA, GEBO e CHAMIO
Gebo traz uma mala de mo e um rolode papeis debaixo do brao. Chamio, que fica porta, cumprimenta
cerimoniosamente com o chapu de palha.
GEBO
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Eu no adivinho mulher. Ento no entra, seu Chamio?
CHAMIO, da porta.Hoje no, vizinho. Minhas senhoras
GEBOEnto boa noite e at amanh. Aparea cedo para
o cavaco.
CHAMIOTenho agora a orquestra que me d um trabalho.S o bombo! O amigo no sabe o que o bombo me
rala j no h arte! Boa noite. (Sai.)
GEBO, para fora.Est de rachar pedras hein?
CHAMIO, fora.De morrer.
GEBO, fecha a porta e beija as mulheres.Venho com um frio!...
DOROTEIAJ sei, j sei, entendo-te lgua
SOFIAEst ao lume para se conservar quentinho.
GEBONo que este ano sempre tem feito um frio! S me
lembro dum ano assim h de haver Ora espera hde haver
SOFIATire as botas, aqui tem os chinelos.
DOROTEIAE ento, viste-o?
GEBO, sem se recordar.Anh! Vi-o?... Vi-o quem?
DOROTEIASim, viste o correspondente do nosso filho?
Falaste-lhe? Tu no disseste que trazias hoje notciasdo nosso filho?
GEBO, recordando-se e mentindo atrapalhadamente.
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Vi sim, vi! Tu tambm vens sempre com essascoisas de repente! Nem ds tempo gente de pensar.
Pois est claro que vi. Manda-te muitas saudades.
SOFIA
Aqui tem os chinelos.
DOROTEIAE est bom?
GEBOEst ptimo.
DOROTEIATu de antes ainda conversavas, falavas at demais.
Agora custa a arrancar-te as palavras da boca. Vou verse o caf est pronto e quero que me contes tudo por
mido. (Sai.)
SOFIAPai, no se aflija.
GEBOEu que tenho a culpa, mas sou um esquecido
E devia lembrar-me, coitada Se ela soubesse! se elapudesse imaginar sequer!...
SOFIATeve notcias?
GEBOPior que notcias. (Mais baixo.) Pareceu-me v-lo Isto no o sabe
ela.
SOFIAO Joo!
GEBOVi uma sombra na noite.
SOFIASe o vem a saber!
GEBOBasta pobre da velha o que tem sofrido. Mente,
Gebo, engana-a, mente hoje, amanh, sempre, passa avida a mentir, mas que o no suspeite nunca. Nunca!Deix-la viver os seus ltimos dias feliz. Enganada,
mas feliz (Acaricia-a.) Tudo deixamos, quando
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fugimos para longe, mudando de terra para que nosoubesse (Ouvindo passos.) Schiu! schiu!... (Tosse,
arranja os livros.)
SOFIA
E sempre a dizer-lhe sempre
GEBODiz, diz Sempre a mentir-lhe E se tu
soubesses o que me custa!... Isto filha, pior do queinventar um folhetim todas as noites. J no sei o quehei de dizer. Ora aguenta velho, aguenta Que o no
saiba nunca.
SOFIAE o outro, viu-o?... Se ele vem por a
GEBOAqui?... No vem. Se Nem seria ele. Alguma
sombra que desapareceu e mais nada
SOFIAH oito anos
GEBOUm desgraado Filha, esquece-o. Uma vida
monstruosa. Outra vidaSOFIA
Outra vida?...
GEBOSim, uma vida de desgraa
SOFIA
DigaGEBO, abana a cabea.
No vem, sossega. J o vi outra vez
SOFIAE falou-lhe?
GEBOUm dia, h muitos anos, numa rua longe era noite senti que me puxavam para o escuro
SOFIAEra ele?
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GEBO, olha para dentro e fala mais baixo.No me falou. S lhe vi os olhos. Mas no sei
porque, conheci-o logo. Talvez pelo contacto dasmos. Tinha as mos geladas Conheci-o logo e dei-lhe o dinheiro
que levava. No dissemos nada um aooutro. Mas eu compreendi-o melhor do que sefalasse Muitos anos desapareceu. Ultimamente
que me sinto seguido e rodeado por uma sombra quenunca se aproxima de mim.
SOFIAUma sombra?...
GEBONem ser ele Se fosse ele! Se ela sabe que o
filho que criou!...
SOFIAConte-me tudo
GEBO, apontando para dentro.Temos tempo de conversar. (Suspira, pe os
culos e comea a escrever nos livros). No, vouantes copiar estes apontamentos para o Dirio. Grande
casa esta de exportao, Ramires & Ramires! Oravejam os senhores este balano de agosto do corrente,
dez contos setecentos e cinquenta mil reis. J bonitohein? Ou isto, ou ser cobrador com vinte mil reismensais e fazer escritas noite para no morrer
fome. Acabou-se ora agora agora Ah(Pausa.) Tu que dizes?
SOFIANada, cismo. Cismo na desgraa. Cismo no que
ser a outra vida que ele leva
GEBO
No penses nisso
SOFIATalvez seja mal, mas queria compreender o que
essa vida horrvel e porque que ele, sabendo que fazmalGEBOFilha!
SOFIAPorque que o mal o atrai e porque que a sua
misria me atrai tambm? Para que vive uma vida dedesgraa, de dr e de fome?... H muitas coisas que eu
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queria saber e discutir e no me atrevo.
GEBO melhor assim.
SOFIAE ela h de vir a sab-lo
GEBOCoitada da velha, se anda para a iludida para um
dia saber tudo e sufocar de lgrimas! Quantasdesiluses tem tido pela vida fora! Primeiro a nossa
casa hipotecada e vendida naquele ano em que estivedesempregado, 1893 data negra. Depois a desgraa
do filho E sempre poupada, tirando-o boca paraque o tivssemos. Tu dizes?...
SOFIAEu cismo.
GEBO a desgraa, a desgraa que no nos larga.
(Fica absorto olhando a luz do candeeiro. Os passosda velha l dentro despertam-no. Sofia de repenteapura o ouvido e pe-se a p num sobressalto. O
Gebo escreve.) Adiante, adiante zero, zero,cinco Oito e sete quinze e seis so vinte e um, e vo
dois A luz hoje no est boa, tu arranjaste ocandeeiro?GEBO e DOROTEIA e depois SOFIA
DOROTEIAArranjei-o eu. Aqui est o caf. dos teus olhos.
(Para Sofia.) Conserva o lume esperto.
Sofia ao sair espreitapreocupada janela e suspira fundo.
DOROTEIAO caf est ao lume. Agora vou-me sentar ao p
de ti para te ouvir falar.GEBO
Esta noite tenho muito que fazer, mulher.
DOROTEIANo te zangues. Depois de velho, relho. Deixa-meembrulhar-te os ps. Enquanto tomas o caf podescontar-me tudo. No te ponhas j a escrever. Ento
entraste em casa do correspondente
GEBO
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Entrei
DOROTEIAE ele leu-te a carta do nosso filho?
GEBO, sempre com mau modo.
Leu.
DOROTEIAE o que diz?
GEBODiz diz Manda muitas saudades o
costume (Rpido, encontrando a mentira.) Epreguinha como est a me.
DOROTEIAAh, pergunta? E no o disseste logo! Gosto tanto
de te ouvir! preciso que saibas que eu no tenhooutra vida. Criei-o. E depois que o no vejo h oito
anos, contados dia a dia criei-o outra vez, de dia, denoite, como pude Gosto tanto de te ouvir! Fala. E
depois?Sofia vem sentar-se ao p da
mesa a trabalhar.
GEBO
Depois?... Mau!... Depois, pusemo-nos aconversar, eu de c isto, ele de l aquilo, etc.
DOROTEIAEtc.? Com que secura me falas! E eu todo o dia espera de te ouvir. Todos os dias H anos que
espero E chegas a casa e calas-te para me fazeressofrer.
GEBO mulher, mas que queres tu que te diga?
(Atrapalhado.) No sei arranjar estas coisas Nosei no posso No, no isto Nas cartas
comerciais no se usa falar de particularidades defamlia.
DOROTEIADizes-me sempre a mesma coisa, meia dzia depalavras e sabe Deus com que custo!... E nem teimporta o que eu nestes oito anos tenho usado desonho, e que na minha vida no haja uma nica
alegria. Vivemos neste frio da pobreza que mais seentranha medida que os anos passam
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GEBOMas eu no tenho que dizer
DOROTEIAO que sei eu! o que sei eu!... (Fita
demoradamente Sofia.) Nem tu prprio talvez osaibas E no reparas que a teu lado me fuitransformando noutro ser de dor e de desespero Dedesespero tambm. Outra figura se criou sem tu darespor ela e quase sem eu dar por ela, no abandono e nosilncio. Outro ser Outro ser que j no pode mais.
Fala! Fala! porque estou h anos espera de que digaso que eu quero saber!...
GEBO, aterrado.Oh mulher saber o que? Que queres tu saber?
DOROTEIASempre a desgraa, sempre a desgraa!... E eu
espera
GEBODeixa-me Logo Vai buscar mais caf
SOFIAEu vou. (Sai).
DOROTEIAPreciso de te ouvir seno morro!
GEBOA tornas outra vez! Tenho de dar a escrita pronta,
j to disse.
DOROTEIA homem, se eu no soubesse que s meu amigo,
duvidava de ti. Pois tu sabes que s tenho esta alegria
e tiras-ma!
GEBONo me apoquentes. Logo, logo, est dito
DOROTEIAEm te pilhando com os livros acabou-se! Agora
no falas, logo vais para a cama e dormes. E quantomais aflies, mais sono tens. S eu no posso dormir.cismo. A ti e a ela pouco se vos d, mas eu, o que eu
tenho chorado!
GEBO, apontando para dentro.
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Coitada! Tambm preciso poup-la, tem sidoinfeliz.
DOROTEIAComo eu.
GEBO sua mulher e nunca mais o tornou a ver.
Lembra-te do que ter sofrido calada, sem se queixar.J a ouviste queixar-se?
DOROTEIAE eu? o que eu tenho sofrido! H oito anos! J l
vo oito anos! No te importas, mas eu tenho recozidoas minhas lgrimas. E quando quero falar dele,
emudeces. Chegas e pegas-te logo escrita(apontando para dentro) para que nada lhe falte a ela.
Parece que ela que tua filha.
GEBOQue no daramos ns por os vermos felizes?
DOROTEIATemos-lhes dado tudo.
GEBO
Por esta vida fora, to dura, to m, quantas vezesme tenho lembrado de morrer.
DOROTEIADe?
GEBODe morrer, sim. A gente chega a pensar em
morrer. E eras tu e ela que me prendiam vida. Noh tanta gente que vai no vero, por a fora, para aaldeia? Quem me dera ir tambm ver as rvores,
sentar-me sua sombra!... Pois as minhas rvores soisvs.
DOROTEIAOlha como tu falas!
GEBOFalo, gosto de falar da nossa filha. Ainda me
lembro quando ela veio assim pequenina, c para19casa na morte de meu irmo. Cresceu, casamo-los e
(mudando de tom) mulher sabes tu que mais? Deixa-me trabalhar.
DOROTEIA
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Mas do nosso filho no falas, do nosso filho nodizes palavra. Foste sempre mais amigo dela do que
dle. E tudo porque foi para longe, porque no se quissujeitar a esta vida que levamos, porque ambicioso.
Sai a mim que o criei.
GEBOIsso tem seus qus
DOROTEIAEnto achas melhor ser como tu que nunca fizeste nada para subir?
Riem-se de ti, s um pobre, todos te escarnecem.
GEBO o mesmo, mulher, o mesmo.
DOROTEIAOs teus amigos enriqueceram, e tu no passas de cobrador duma
companhia, sempre com o mesmo ordenado e as mesmas aflies.
GEBODeixa-me c com a minha vida. Sabe Deus o que
eu sofro para que vos no falte o po.
DOROTEIAFelizmente o meu filho no sai a ti.
GEBOA ambio no m, mas tudo se quere nos seus
termos. Olha que j tenho visto muita coisa por essemundo. Grande nau, grande tormenta. E l fora nacompanhia, no comrcio toda a gente diz: - O Gebo,
que como eles me chamam
DOROTEIAE tu consentes!
GEBOQue lhes hei de fazer?... O Gebo honrado.
DOROTEIASempre foste assim! At me fazes aflio!
GEBOPacincia, mulher, pacincia. Deixa-os l. Mas
quando dizem que sou honrado, isso consola. Cumprisempre o meu dever.
DOROTEIAServiu-te de muito.
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GEBOServiu
DOROTEIA
O que tu tens sido egosta. Cumpriste o teudever sem cuidares de que tambm tinhas deverespara connosco. No aproveitaste as duas ou trs
ocasies que te apareceram na vida para enriquecer e levaste-nos para a desgraa e para a pobreza.
GEBOOh mulher!...
DOROTEIATu que tens a culpa. No tens mesmo finura
nenhuma. Toda a gente te engana e ainda por cima seriem de ti. Ns temos culpa das tuas tolices, das tuas
desgraas?
GEBONo mulher, no, bem sei.
DOROTEIA o que conseguiste cumprindo o teu dever.
GEBOMas tenho feito tudo por vs, tenho arrastado estacruz! Sou um homem honrado.
DOROTEIAOlha os outros! Olha os outros! Enriqueceram,
so felizes
GEBODeus sabe, Deus sabe!
DOROTEIAE ns pobres e desgraados. (Para Sofia que
entra). Deixaste o lume esperto? preciso fazer maiscaf.
GEBOQue eu hoje trabalho at essa noite velha e o frio
est de rachar.Esto sentados a trabalhar. Silncio.
DOROTEIA, suspira.O meu filho
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GEBO, num sobressalto.Anh?!
DOROTEIANo me sai da ideia. H dias em que tenho
vontade de fugir. Vem-me no sei de onde umimpulso de deixar tudo e de ir por esse mundo, semdestino.
GEBO e sete so quatorze Por a fora ventura?... E
sete so vinte e um.
SOFIATambm a mim a vida me parece sempre a mesma
coisa. como a chuva que cai l fora, pingue quepingue, nos beirais. Sempre este rudo montono da
chuva
GEBOA vida sempre a mesma coisa.
DOROTEIAA nossa vida. Usar os trapos, remendar os trapos,
tornar a us-los.
SOFIAE se nos acontecesse alguma coisa?
DOROTEIAQue coisa?
GEBOA felicidade na vida no acontecer nada.
SOFIA o hbito?
GEBOTalvez seja o hbito. a gente fazer sempre o
mesmo trabalho e dizer sempre as mesmas palavras.
SOFIAComo a chuva. E no cismar.
DOROTEIANo cismar! Eu cismo sempre. Nem na cova
deixarei de cismar.
SOFIA
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Ser a vida s uma? S uma?
GEBOTodas as vidas so assim.
DOROTEIAMas to montona, to fria que me pesa! s vezesno sei se estou viva se estou morta. s vezes nem o
sonho que sonho me possvel. Est no fio.
GEBOEssa agora! Eu c por mim, quando acabo o
trabalho e me sento aqui, com os livros ao lado, aouvir chover e como ela cai! no me sinto infeliz.
Pelo contrrio: estou quente, tenho-vos ao p demim
DOROTEIATu sim! Tu sim! Nem reparas que h quarentaanos fazemos todos os dias a mesma coisa na
humildade e na pobreza, e que o sonho se vai usando,gastando, acabando com a vida
SOFIAE no haver outra vida?
GEBOTemos cumprido a vida, temos cumprido o nossodever. Resta saber se a gente vem a este mundo para
ser feliz
DOROTEIAMas se a vida fosse s isto, sempre as mesmas
aces, sempre as mesmas palavras, eu morria, eu nopodia viver. (Sofia pe-se de p num sobressalto e vai janela espreitar.) O que me vale o que me resta desonho. Fechada, sozinha, quanto mais sozinha melhor,
sonho sempre no nosso filho. No dizes nada?
GEBOFao contas.
DOROTEIAPara ti, o teu filho menos que um indiferente.
GEBOValha-te Deus!
DOROTEIA
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assim mesmo. J depois de casado era outro para mim. (Gebo quereinterromp-la.) Hei de falar,
hei de desabafar!... E no contente ainda, foi ela que fez com que nogostasses dele.
GEBOComo s ingrata, mulher, se soubesses
DOROTEIAO qu?
GEBONada.
DOROTEIAEu sei! eu sei!... Metemo-la em casa, agasalhamo-la, se no fssemos
ns teria morrido fome porque ningum queria saber dela. E empaga tirou-nos a afeio do nosso filho.
SOFIAMe! me!...
GEBO, olhando Sofia.
Pelo amor de Deus cala-te!DOROTEIA
o mesmo. Eu tenho-lhe amor por vs ambos. Equanto menos tu e ela o amarem mais eu gosto dele.(Para Sofia.) Ah, ouviste? Melhor foi. Vou-me deitar,
mas no durmo. Penso nele, passo as minhas noites acismar. No falas?
GEBOFalo, falo (Para Sofia acariciando-a.) No chores
filha, no chores.
DOROTEIADeixa-a chorar que eu tambm tenho chorado
muitas lgrimas. O meu filho s me tem a mim! s amim! (Encarando com Sofia.) Ah tu choras? Bom
que chores. (Sai).
GEBO e SOFIA
GEBO, acariciando-a.Ela de antes, enquanto lhe no levaram o filho no
era assim. Tirou-o muitas vezes boca para que ns o
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tivssemos. Foi a vida, foi a desgraa que a30azedaram Gastou-se a sonhar, gastou-se a sofrer.
(Reparando em Sofia.) Tu que tens? tu que tens?
SOFIA
Tenho medo! Tenho medo!
GEBOTambm eu! Tambm eu!
SOFIATemos aqui vivido h oito anos dominados por
uma sombra. Eu j no posso, e tenho medo.
GEBO o meu filho, um desgraado. Quem sabe!...
Talvez a polcia o procure, no tem decerto ondedormir. Anteontem pareceu-me v-lo ali esquina. E
tenho-me lembrado se ter que comer
SOFIASe ter fome!
GEBOE se ela sabe isto, morre.
SOFIAFalou-lhe? Ento sempre lhe falou?...
GEBODesapareceu na noite como uma sombra
SOFIAE ns?
GEBONs? Em quem eu penso nela, com aquela
doena de corao. Ela, a quem eu tenho dado tantosdesgostos, e que tem vivido de mentira. s vezesdizia-me: - Manda-lhe beijos, manda-lhe beijos. edava-mos coitada. E hei de agora dizer-lhe: - Teu
filho um ladro. Antes mat-la, seria melhor mat-la.
SOFIAs vezes tenho vontade de lhe contar tudo.
GEBOSchiu (Apurando o ouvido.) Escuta, escuta
SOFIA, escutando.
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Est no quarto fala sozinha l anda a pregar.
GEBOBem, bem. Vai-te deitar. Eu fico com a escrita at
l por essa noite fora. Minha pobrezinha, to calada e
to triste, e sempre num subterrneo a tecer. Eu bemte conheo Exaltada! to exaltada!... Mas calastudo, escondes tudo. (Vai-a levando at porta.) Rezapor mim ouviste? Por ns todos e por ele por ele,
no te esqueas. (Beija-a.) Boa noite.
SOFIABoa noite.
GEBO s e depois JOO
GEBO, medita abanando a cabea e resmungando. Depoisvolta para a mesa de trabalho.
Ora v, Gebo V, v. (Respira profundamente.)Agora tenho sossego sossego no, que me lembro.S quando durmo que esqueo. A desgraa h de irusando a gente at um dia at um dia O Dirio,
sim o Dirio E h gente to feliz por esse mundo!...Oito e sete quinze e seis so vinte e um e vo 2
715 90, noves fora nada. (O relgio d horas.)Uma duas trs Hein j nove! O tempo passa, otempo passa E 6 so 32. Coitadas! coitadas daspobres! E vo 5 vo 5 vo 5 (Silncio. Fica
absorto um instante. Desperta-o um rudo nafechadura da porta.) E vo 5 Quem ? (Escuta.)
Mexem na fechadura!A porta abre-se. Joo aparece.
O Gebo ergue-se espantado e Jooentra com a gola levantada e a
barba por fazer.
JOO, sereno, fechando a porta.No tenha medo. Sou eu As fechaduras
conhecem-me.
GEBOTu! (Fica imvel, de p, aterrado. Joo vem
frente e puxa uma cadeira para ao p da mesa. OGebo apontando a porta que d para o interior da
casa.) Schi schi schiu!
JOO
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Viva pai!Olha em roda, respira
largamente e desata a rir-se-lhe nacara.
SEGUNDO ACTOMesmo cenrio
GEBO e DOROTEIA
GEBOOuo passos no ptio, deve ser o Chamio.
DOROTEIAH de ser ele, nunca falta ao caf. s vezes v-se lhe nos olhos que
est a morrer pelo caf.
GEBOCoitado! Coitado!
DOROTEIASe no lho desse aguava.
GEBOPassa mal o velhote. S ele e Deus sabem as
linhas com que se cose. s vezes at me faz aflio.
DOROTEIATu ainda tomas o caf forte, mas depois pra ele
deito gua no saco. (Batem).
GEBOA est o homem. (Doroteia abre).
Os mesmos, CHAMIO e depoisCANDIDINHA
CHAMIO, porta.Licena para um artista.
DOROTEIAFaa favor de entrar.
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GEBOVoc j se ia demorando. Ande, sente-se.
CHAMIO, cumprimentando.Minha senhora
GEBOPois verdade seu Chamio Ento que me diz a
este frio?
CHAMIODe rachar e no lhe digo mais nada.
DOROTEIASente-se, sente-se. Eu vou-lhes arranjar o caf. A
Sofia tr-lo j. (Sai).
O Gebo trabalha. O Chamiosenta-se do outro lado da mesa.
GEBOE os negcios correm, seu Chamio?
CHAMIOVo indo, vo indo. Podia ser melhor. Mas agora
a empresa resolveu pr em cena outra pea, uma
mgicaGEBO
E a empresa forte?
CHAMIOImagine entra o Torres.
GEBOAh, ento!... 7 e 8 15 e 6 so 21 O Torres E
tem tido muita gente?
CHAMIOEsta coisa de barraca de feiras est um bocado porbaixo. E depois o tempo no ajuda. Chuva e muita
falta de dinheiro.
GEBOAmigo, todos se queixam do mesmo mal. Mas
porque no do vocs espectculo noite?
CHAMIOEra um despeso. S a iluminao O amigo
calcula por quanto fica a iluminao? Olhe que a
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iluminao carssima.
GEBOCaro, hein?
CHAMIOS de petrleo 820. Imagine!... O Torres, bem v,no pode.
GEBOAh!... 8 e 8 16 e vai um. Faz favor de me passar
esse livro esse, o Razo, esse que est por baixo.Isso!
CANDIDINHA, porta.Do licena?
A Candidita com um velhopenante, um chal e uma bolsa farrapos dados por este e aquele.
Mas no uma figura ridcula.
GEBOIsto uma raridade!
CANDIDINHA
que as Soisas esto para fora por causa dadoena do tio e hoje era o dia das Soisas. (ParaDoroteia que aparece outra porta). Adeus filha.
DOROTEIA, para dentro.Sofia traz o caf.
CANDIDINHAA tens caf?
CHAMIO, esfregando as mos.
A vem o cafezinho.
DOROTEIA, para Candidinha.Queres tu uma gota?
CANDIDINHATomo sim, filha. A mim o caf faz-me muito mal
palpitao, esta doena que me h de levar cova.(Doroteia faz um gesto). Ai, eu no me iludo. Aindaontem disse em casa das Teles: - A minha sepultura
est aberta - Olhem que tenho a roupa apartada prano incomodar ningum. (Mudando de tom). do
forte? Que eu caf s do forte. E o teu filho sempre
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chegou?
CHAMIOComo eu.
GEBOO cafezinho sempre aquece.
DOROTEIA, para dentro.Sofia, ento? (Sai).
CHAMIO, galanteador para Candidinha que tiradum bordado e se senta ao p da mesa.
Perdoe-me se sou ousado, mas antes de mededicar arte, fui da tropa
CANDIDINHADiga, senhor Chamio.
CHAMIOQuem o felizo para quem borda esta
lembrana?
CANDIDINHAAinda no tem dono.
GEBO E 7 so 49 Chamio, voc sempre temcoisas!
CHAMIONo acredito, palavra. Creia que se fosse no meu
tempo essa lembrana era pra mim. No meescapava No se ria, conquistava-as todas.
CANDIDINHATinha condo?
CHAMIOCom a flauta. Era mais a mim! mais a mim!
GEBOCom a flauta!
CHAMIOSim homem, foi como eu conquistei a minha
defunta. (Imitando a flauta). Piu piu piu. S coma flauta. No entendem? Eu chegava, sentava-me beira dela, puxava do instrumento e desatava piupiu piu. H l nada que exprima o amor como a
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msica! Era logo piu piu piu. Ela ouvia-mefascinada
CANDIDINHAMas como trocavam expresses de amor?
CHAMIOPiu piu piu E no fim, acabada a ria,
levantava-me e dizia-lhe: - Boas noites Serafina.
CANDIDINHANunca lhe disse mais nada?
CHAMIONem foi preciso. Estava pela beia. Piu piu
piu (Gebo e Candidinha riem).
CANDIDINHAOuvem? Como ela canta na vidraa? A torna
outra vez
CHAMIOEstava tudo negro para a barra quando entrei.
GEBOComo rufa!
CANDIDINHAEsteja eu quente e ria-se a gente. A mim lembra-me sempre
CHAMIOO qu, minha senhora?
CANDIDINHAO dilvio universal.
Os mesmos, DOROTEIA, SOFIA E JOO
SOFIA, entrando com Doroteia e Joo.C est o caf e a ferver por causa do frio.
CANDIDINHA, para Doroteia.Ests toda contente com o teu filho?
DOROTEIAPudera!
JOO, para Sofia.Deita caf.
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GEBOQue Inverno! A xcara bem cheia.
CANDIDINHA, para Doroteia.E trouxe muita soma de dinheiro j se v?
DOROTEIAAcho que sim.
CANDIDINHAAh!
SOFIA, para Candidinha.Mais uma pinguinha?
CHAMIO, provando o caf e queimando-se.Bff! est a ferver. (Deita o caf no pires). D
licena que tome por baixo?
GEBOSofia, deita mais caf. Tome tome
JOO isto que vocs fazem s noites? Todas as noites?
sempre?...
DOROTEIA
Conversamos, trabalhamosCHAMIO, para o Gebo.
Gosta? uma marcha lindssima, piu piu.
GEBOGosto E 7 so 14.
CHAMIOOh! a arte, no h nada que chegue arte! O que
eu queria era ter tempo para imaginar c as minhascoisas vontade, mas tenho os ensaios, o dia todoocupado a tocar: Ora ponha aqui o seu pezinho revoltante. Mas o pblico s gosta destas coisas. O
gosto perverteu-se, caminhamos para um abismo. Ah,meu amigo, a arte! Quando me ponho a pensar na
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arte
JOO, para Sofia.Sufoco. Sinto um peso enorme desde que aqui
entrei.
CHAMIO ponho-me a pensar na arte e vem-me uma
tristeza.
GEBOQuem a no tem?
CHAMIOE ento desato a tocar sozinho nem sei o quEm frente da minha janela fica o muro do outro
prdio, enorme, sem um rasgo. E a olhar o murocompacto e a tocar piu piu piu, l vai o
negrume A arte consola.
JOO, para Sofia.As figuras parecem-me deformadas Outras
figuras
SOFIAOutras?!...
JOOE a vida mesquinha e intil
DOROTEIAMais cafezinho?
GEBOTome. E vo 7.
CHAMIO
Pois sim, um golo. (Entusiasmado). Nasci para aarte, para viver com a minha arte. Sinto que se medeixassem planear, ainda talvez viesse a escrever
DOROTEIAO qu, senhor Chamio?
CHAMIOO qu, minha senhora? Uma marcha! S lhe digo
isto: talvez escrevesse uma marcha.
CANDIDINHAUpa! (Para Doroteia). Tu no tens uns biscoitos,
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filha? Estou a sentir uma fraqueza. At me pode vir apalpitao.
DOROTEIAVou busc-los.
CANDIDINHAQue noite escura! Com estes crimes que vem nos
jornais ho de ter lido tenho sempre medo quandovolto para casa, e mais so dois passos.
JOOCrimes, anh?
CANDIDINHACrimes de arrepiar.
JOOCrimes toda a gente os pratica.
GEBOEssa agora!
JOOAo menos em pensamento Tudo o que vocs
aqui dizem intil. Vocs nem sabem o que a vida.
A vida!...SOFIA
Cala-te!
GEBONem toda a gente pode viver a mesma vida.
CHAMIOPara praticar um crime preciso no ter alma.
JOONem toda a gente se deixa calcar
DOROTEIAAh!
JOOUns so trapos, outros revoltam-se Vem o
mundo duma maneira diferente.
CANDIDINHAApoiado!
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JOOUns nascem como o pai para beijar a mo que
lhes atira uma cdea.
DOROTEIA
Eu bem te tenho dito sempre!
JOOOutros
SOFIA, com espanto.Outros?...
CHAMIOFoi para esses que se fez a cadeia.
JOOMas antes a cadeia! Na cadeia tambm se come
po. Antes morrer do que viver sepultado. (as pessoas que vivem como opai so aqueles que vivem como os mortos)
DOROTEIAFilho!
JOODo que isto? Antes morrer. Deixem-me falar
Um crime qualquer o pratica, crimes maiores se fazemtodos os dias de mentira e de abjeco. Crimesmaiores, e s vezes um nada que nos impede de
matar
GEBO, fazendo-lhe sinais.Schiu, schiu!
JOOTive um amigo que fez uma morte e que esteve na
cadeia
SOFIAJoo!...
JOOMau! Uma noite Uma noite como esta, estava
molhado at aos ossos e tinha fome. Era meia noite54passada Um homem que esteve na cadeia no pede
esmola. Sabe tudo da vida e da morte. Vejo a ruadeserta e vejo-me decidido a no me deixar morrer de
fome. De fome!... Um momento de angstia edesespero roda tudo negro No era s o
negrume da noite e da parede enorme a que me tinha
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encostado Maior, mais espesso o negrume da minhaalma. Parecia-me que no mundo no havia nenhum
ser mais desgraado do que eu
SOFIA
Ah!...
JOOMaior!... Muito maior!... Mais negro e mais
fundo. Cosi-me com a parede. Estava s, ou supunhaque era s eu nessa noite eu e o desespero, s eu e o
negrume. O primeiro que passasse deitava-lhe asmos s goelas Ouvi passos ao fundo da rua desertae entranhei-me mais no escuro, pronto a dar o saltoO vulto avanou, aproximou-se, e ento eu vi, a meulado, duas mos enormes que saam do escuro duas
mos sem corpo, iluminadas pelo candeeiro, e quenum instante se contraram no ar, apertaram,
sufocaram Um baque e deitei a fugir na noitecomo um insensato No fui eu! No fui eu!...
SOFIAQue horror! Que horror!
JOOQue horror? E ento aquela alma que todos
tinham espezinhado, aquele homem que j tinha sidotalvez um homem e que os outros por egosmo, porindiferena atiraram talvez para o crime?... Um
homem como os outros homens e que tinha fome eque queria viver Uma alma foste tu que falaste aduma alma? (Aponta para Chamio). Uma coisa queno tem limites de dor e de sonho Nem sabes o que!... A minha alma! Eu no sei o que a minha alma.Est muito funda! Se me debruo l para dentro jpensaram nisto? Vocs que vivem aqui a dizer todosos dias as mesmas coisas? Se me debruo, vejo no
fundo sombras que me metem medo A alma dumacriatura que no pode com a vida, com esta vida quevocs suportam!... (Para Candidinha). Que ests tu a
olhar para mim, velha cheia de sonhos irrealizados?... (sonho comoforma de superar a dor, tudo isto uma atitude de revolta em relao a esse
trabalho que ele diz que mal pago, ou seja um trabalho de escravido)
CANDIDINHAAi!...
JOOUma alma que grita e sonha e no pode com o seu
mundo de espanto, e que conhece o que a desgraa e
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a dor!... Vocs no sabem que h criminosos que tmuma alma e homens honrados que a no tm? Vocsesto todos sepultados At vos digo mais Se cadaum, dos que aqui estamos, fizesse as mortes em quecisma, por dio, por ambio, por interesse, o mundo
seria uma hecatombe. ( uma critica sociedade, na maior partes aospolticos; mas nesta poca a situao vai para a crise econmica, d-se aqui umeco daqueles que no tinham po, dando-se uma revolta)
CANDIDINHA, fascinada.Sim!
JOOUm crime talvez qualquer de ns o pratique amanh.
Marcar o terror duns e o espanto dos outros.
O Gebo queprimeiro fica sucumbido, Doroteia que se ergue pouco e pouco
durantea narrativa, at que o Gebo desata num riso doloroso e baixinho.
GEBOPois senhores, tem graa, tem muitssima graa!
Ora aqui est uma coisa que tem graa!
SOFIA, baixo.Joo, cala-te!
JOOO que vocs quiserem!
GEBO, com voz sumida para Joo.Se a queres matar! Se nos queres matar!
DOROTEIACredo! (Para o Gebo). Sempre fazes um
espalhafato! At me ficou a doer o corao. Que modos!
CHAMIO, para a Candidinha.Ele estaria na?...
CANDIDINHATem cara disso.
DOROTEIAMas que ? que foi que no entendi?
GEBONada, uma graa. Acabou-se. Uff (Limpando o
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Sente a gente uma coisa esquisita pelas costasacima. Eu no sabia
Joo ergue-se e fica a olharpara a mala.
DOROTEIA, para Sofia.Leva as xcaras.
SOFIA, saindo.Vens, Joo?
JOO, absorto.Anh?
CANDIDINHAO que aqui est dentro! (Acaricia a maleta).
Vestidos de seda, lambarices, coisas boas. Ai, deveser um regalo ter dinheiro, muito dinheiro! At pareceque d calor! Ter dinheiro para mandar os outros, paradizer: - faa! rua! v! Quem me dera ter uma pessoaem quem eu pudesse mandar vontade! No tinha
contemplaes. E dizer que est aqui dentro eu seil!... Regalos, consideraes, o mundo todo! Ai deve
ser muito bom ter dinheiro!
CHAMIOTer assim setecentos ao p da gente!
GEBOEu por mim j estou habituado. Nem me lembro
que dinheiro. Zero, zero 6.
DOROTEIAOuvem? Nove e meia.
GEBO
J?
CANDIDINHAEsto a dar na torre.
CHAMIOEnto vizinho so horas, adeus.
CANDIDINHATambm vou, demais a mais no chove, h uma
aberta Tanto dinheiro!
GEBO
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Boa noite. Cuidado com os degraus.Vo saindo, Sofia entra e
alumia-os.
CANDIDINHA
Adeusinho, so dois passos. Obrigada.
CHAMIO, porta.Boa noite.
DOROTEIA, GEBO, SOFIA e JOO
DOROTEIAL foram.
GEBOE agora ns. (Fecha numa gaveta os livros e a
mala). Hoje sinto-me derreado.
JOOVai-se deitar?
GEBOPudera! Vou j para vale de lenis. Tu no vensmulher? (Para Sofia que o acompanha). Olha se
trazes o candeeiro. (Fica uma vela sobre a mesa.Sofia acompanha o Gebo e alumia-o).
DOROTEIA e JOO
DOROTEIAFilho.
JOOAnh?
DOROTEIAFilho, h uma coisa que te queria perguntar. A
mim deves dizer-me tudo. Sou tua me.
JOO, alheado.Anh?
DOROTEIAEspera. Deixa-me olhar para ti. Se soubesses o
que eu tenho passado! (Gesto de enfado de Joo). Note zangues. Queria-te pedir h uma coisa que me
no deixa falar, uma coisa que desconheo em ti Hbocado quase me meteste medo. Custa-me a encontrar
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a outra fisionomia
JOOA outra?
DOROTEIADe quando eras pequeno, H uma coisa que tepedia que me dissesses
JOODeixe-me. Deixe-me sozinho Agora deixe-mes. Preciso de estar s, habituei-me a estar s.
Habituei-me a estar s e h ocasies em que todos osseres me parecem monstruosos e diferentes. Tu no entendes isto.
DOROTEIAFazes-me aflio!
JOOAh!... Tambm a mim, tambm a mim me custa a
encontrar a outra fisionomia, a outra que vi sempre ecom quem lidei sempre.
DOROTEIA, aterrada
Filho!JOO
Espera a. Tu gostas de mim Fala! tu s a minhamezinha.
DOROTEIAFilho, eu sinto-o No sei, mas sinto-o: tu s
desgraado. Ontem tive um sonho em que te vi magroe roto numa rua sem fim. Tinhas fome. (Aproxima-sedele). Tinhas fome e olhavas-me. Estendi os braos
num grito. Mas no te pude deter, e seguiste na ruaque no tinha fim para um destino de dor.
JOODe dor? De desespero
DOROTEIAHs de contar-me a tua vida
JOO, ri-se.A minha vida!...
DOROTEIA
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Muitas vezes te supus morto, muitas vezes tivefrio quando pensava que terias frio. Diz-me tudo,
JOONos dias de desgraa apareceste-me sempre como
quando eu era pequeno e depois
DOROTEIADepois
JOOVinha outra vez a noite.
DOROTEIAFala, que no me canso de te ouvir. Ficamos aqui
toda a noite a falar Nunca te esqueci.
JOOEu, tambm, nunca te esqueci, Mesmo nos diasmais aziagos te via e ouvia. s vezes falavas-me
como do fundo dum sepulcro Quem estava mortoera eu.
DOROTEIA
Tu s desgraado! Tu s desgraado! Talvez eusaiba mais do que supes. Talvez eu adivinhe
JOOSou um ser diferente, dominado por outra coisa
maior Nem talvez eu mande em mim mesmoSou (Detm-se). Vai dormir agora.
(O Joo mudou muito desde que era pequenino, esta determinao de fomemudou muito desde aqueles tempos at hoje, no havia tanta conectao entreas cidades e os campos, estamos na poca da sociedade ocidental, onde uma
grande escravatura, a fome um dos pontos mais assinalados nesta poca)
DOROTEIAEspera
JOOQue te posso eu dizer da minha vida e de mim
mesmo que tu entendas?
DOROTEIADa desgraa?
JOODe outra coisa pior. No procures em mim outra
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figura seno a que conheces A outra a que me impele,a que me leva no para o que eu quero fazer, mas para
o que tenho de fazer, a do desespero, no querias v-la
DOROTEIA
Magoa-me ouvir-te. Tenho medo de te ouvir e aomesmo tempo quero que fales. Tu s desgraado. Essafigura j talvez eu a visse.
JOOEssa figura de sonho?
DOROTEIAE que a mais viva. Porque sofre. Porque me
apareceu desesperada Vi outro ser esfarrapado edoloroso.
JOOQue se ri. Que me faz sofrer e que se ri.
DOROTEIAOuve. Talvez eu saiba mais do que supes. Fala
comigo.
JOOAgora no, Agora vai-te deitar.
DOROTEIAPassei anos espera.
JOOAgora deixa-me. Deixa-me sozinho (Vai-a
levando para a porta e abraa-a com uma grandeternura).
DOROTEIAEles no ouvem. Compreendo que no lhes digas
nada, mas eu sou tua me Ters tu frio? Pus-te omeu chal na cama. (o termo de pobre, surge muito nas obras de Raul
Brando)
SOFIA e JOO
Pouca luz. a vela que arde. Sofia vai e vem nos ltimos arranjos.Entra no quarto direita depois sai.
JOO, sozinho.Isto tira-me a fora. No sei porqu tambm a
noite me aflige Conheci um velho que, quando
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chegava a noite, punha a boca s grades para respirarcom fora (Indeciso. D dois passos. A mesa atraio). Inda os que
matam, so os que tm melhorcorao (novamente a questo do bem e do mal)
SOFIA, porta do quarto.So perto das dezNo te deitas? (Reparandonele). Tu que tens?
JOOAbre aquela janela, deixa-me respirar.
SOFIATu que tens?!
JOOCom a, noite desce sobre mim outra vida. Uma
fora a que no h resistir. Tu j disseste a ou foialgum que o disse que procuravas em mim outra
fisionomia H noites em que a sinto transformada emais profunda. Se tu me visses!... Um ser to
diferente do que conheces! Outro ser de quem no seio nome e que me domina e leva... Por fora! Por
fora!
SOFIA
Cala-te!JOO
Que me espanta a mim mesmo. Um ser vivo, noum homem morto Se os outros choram eu rio-me.
(Ri-se). (grande diferena entre o Gebo e o Joo, Joo noite um ser vivo queri, e de dia, um vivo morto)
SOFIA, olha-o com terror.Ah!...
JOO, fintando-a demoradamente.Agora nos encontramos!...
SOFIADesgraado! Desgraado!
JOODesgraado j ela mo chamou tambm.
Desgraados sois vs. Tu pensas que a vida isto? isto hein? passar aqui os dias a repetir sempre as
mesmas coisas neste subterrneo?
SOFIA
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E morrer?... E morrer?...
JO OE depois morrer. Vocs vivem como cegos e h
outra coisa h outros vivos. Trabalhar, anh, e ser o
Gebo! Ser o Gebo! Antes viver num espanto e depoismorrer. Olha como eu tenho as mos frias(Estende as mos e a claridade da vela ilumina-as).
(toda a gente lhe chama de gebo, porque ele um homem honrado quetrabalha todos os dias, mas que no tem dinheiro para comprar roupas em
melhores condies, e como tal anda mal vestido)
SOFIA, num grito abafado e recuando.As mos! As mos!
JOO
Abre a janela toda. Deixa entrar a noite E agoravai-te embora. Deixa-me sozinho. Cala-te e vai-te.
SOFIAQue vais fazer (Joo ri-se). Eu grito. No posso
mais e grito!
JOOMelhor! (De costas voltadas para a mesa e com a
navalha atrs das costas vai forando a fechadura).
SOFIAQue ests a fazer?
JOO, baixinho.Sou um ladro, sabes? Sou um ladro. Queres tu
fugir comigo? s tu a mulher que me acompanhe navida e na desgraa?
SOFIA
Sou tua mulher.JOO
Sou s no mundo mas sei o que tu no sabes. Seio que fome, o que matar e morrer. Tenho noites
em que fujo como uma fera perseguida, e tenho horasem que sinto em mim outra coisa imensa Posso ver
chorar, posso ouvir gritar Ladro! ser ladro!
SOFIAs a desgraa de ns todos. Queres mat-los a
ambos, ao velho e me?
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JOOEu no tenho ningum, sou s no mundo.
SOFIAQue ests a fazer?! que ests a fazer?!
JOOEstou a roubar.
SOFIAJoo! Joo!
JOOMais baixo, fala mais baixo.
SOFIAPerd-lo e perdes-nos! O que o velho vai chorar!
No! No! (Chama). Pai.
JOOCala-te!
SOFIAVenham! acudam! Mata-me! No passas!
Joo investe com a porta, atirando com Sofia para o lado.
Brilho da faca. Rolam algumas moedas.
SOFIA, GEBO e depois DOROTEIA
GEBOFilha! A roubar! a roubar o que no nosso! E seela ouve! (Corre porta que d para o interior e
fecha-a) A velha v Filha fecha a gaveta. (Arranja pressa os papeis em cima da mesa. Doroteia fora
bate). Se ela sabe morre! (Doroteia bate com mais
fora e ele abre-lhe a porta).
DOROTEIAQue barulho este? Que isto aqui?
GEBONada. Uma questo que eles tiveram e mais nada.Ento tu choras?! Tu choras?! Isto no vale dez reisdou-te a minha palavra de honra. Dou-te a minhapalavra de honra! Zangaram-se e mais nada. (Vai
falando sempre cada vez mais baixo). Destas coisasque acontecem e mais nada (Com voz sumida,
quase a chorar.) E mais nada.
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Doroteia sempre porta, calada e hirta, olha a cena. Depoislentamente tapa os olhos com as mos.
TERCEIRO ACTO
O mesmo cenrio
GEBO e SOFIA
SOFIA, abrindo a porta.Ento?
GEBONingum o viu, ningum mais o viu. (Com o
guarda-chuva aberto.) Um guarda-chuva to bom!Como as coisas se gastam depressa! Dantes no era
assim Perguntei por ele a toda a gente(Mostrando lhe o guarda-chuva.) Vs que grande
rasgo?
SOFIAE agora para ir Companhia com este inverno?
GEBOPara ir?... Ah, sim!... Os reportrios do bom
tempo J veio mais algum recado do senhordirector?
SOFIA
No.GEBO
No tardam a entrar por a dentro e ou ele ou eu
SOFIAQuem?
GEBONingum. Falo do tempo Tu vers como isto
muda. Temos um inverno muito seco, vers. Ora
agora agora (Hesitante.) Ir para a CompanhiaJ l vo trs dias!
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SOFIAQue havemos de fazer?
GEBO
Eu sei sei l.
SOFIAE o dinheiro? O dinheiro?
GEBOSchiu (Apontando para dentro.) Ela chora?
SOFIAChora.
GEBOAh, chora preciso que no chore. Tenho um
medo que o saiba O seu filho! No se fartava dedizer: Quando o meu filho vier, vero! Acaba-se a
desgraa. (Noutro tom.) Acaba-se a desgraa! Toda asua vida tem vivido nesta iluso. Eu por mim no meimporto, a gente a faz-se a tudo, mas ela Chora?
SOFIAChora. Mas no s ela que sofre. Que vai ser de
ns todos agora?GEBO
O principal que ele o no saiba nunca. Nunca!Era a sua ltima esperana. Quem havia de desiludida? Desiludi-la
seria pior do que ir s rvores e arrancar-lhes todas as flores. Vai, vaique no nos veja juntos, pode desconfiar. (Sofia dirige-se para a
porta.) Parece que estou molhado e na cara, na caratambm. H de ser da chuva. (Sorri.) Olha agora se
me punha tambm a chorar!... Um guarda chuva tobom! Est tudo carssimo, no sei onde h de ir isto
parar Ela no desconfia, e basta v-lo para seadivinhar Um filho!
SOFIATalvez ela saiba tudo
GEBOAh! Se soubesse tudo j tinha morrido.
Sofia, que se detm ao sairE basta v-lo (Volta lentamente para ao p do
Gebo que se senta ao p do Gebo que se senta mesae escreve.)
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GEBOLevo ao conhecimento de V.S. que o dinheiro
da cobrana 750$750 rs., pertencente CompanhiaAuxiliar, responsabilidade limitada, foi roubado na noite de
anteontem nesta minha casa, sendo desconhecido o ladro. (Repeteespaando as palavras.) Sendo desconhecido o ladro. Ah, meuDeus, que letra que eu tinha de antes!... (Para Sofia) Agora com estesdesgostos vs?... (Continua a escrever.) III. Moe Ex.mo Senhor L
me esquecia a data!
SOFIA, como quem quere falar doutra coisa maiorque a subjuga.
Mas se essas pessoas ricas lhe perdoassem?
GEBOPerdoar o qu? o dinheiro, filha? O dinheiro
nunca se perdoa.
SOFIAMas pai Espere Pai! Mas ento o nosso dever
ser pobres, ser desgraado toda a vida? sacrificarmo-nos sempre? Eu no posso! Eu sufoco! O
melhor confessar-lhe. Batemos-lhe ali porta egritamos: - O teu filho
GEBOIsso nunca! Fala baixinho. Eu tambm no posso!C por dentro s tenho gritos e falo baixo para que elano oua, para ningum me ouvir. Sempre a mesmadiscusso e tudo escondido Porque eu disse-lhe: -
No te aflijas. E ela disse-me: - Se mo tirassemagora que o vi morria. Ah, morrias? Morria.
por minha causa foi a sua casa hipotecada e vendida.Gastou-se a sonhar e o seu sonho amargo e intil por minha causa. E agoraagora hei de dizer-lhe
Eu tambm no posso, eu tambm sufoco! (O Gebo remete para um
aaltura em que esteve desempregado, a sua casa foi hipotecada e assim vivida,a sua mulher sofreu com isso e como tal ele quer poupa-la)
SOFIASe a gente faz tudo isto e intil Se a gente
vive iludida e no torna mais a viver!
GEBONo torna mais?... Mas tu que tens?
SOFIAEu desespero. Pois o pai no v, no reflecte, no
compara? No pergunta a si prprio como eu
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pergunto: - De que nos tem servido o sacrifcio? Pobres e humilhados sempre pobres. Olhe bemveja bem Mais tarde no tempo. O que eu sofro
quando comparo a nossa vida com outra queentrevejo!
GEBO, mais baixo.Mas escutaTu no sabes nada da vida Que
queres tu que eu faa, filha? Eu no posso ser senoisto, e sabe Deus custa de que sofrimento! Quem me
quere na praa depois do que aconteceu?... E e(senta-se) isto j era uma esmola. H muito tempo que
na Companhia s me tinham por piedade
SOFIA, sufocada.Uma esmola?!... Uma esmola?!
GEBO, geme.Anh (Abana com a cabea que sim)
SOFIA, mais baixo.Uma esmola!
GEBOPior. Eu quase no vejo para fazer as escritas. J
fazem escrnio de mim
SOFIAEscrnio?!
GEBO, geme.Escrnio anh
SOFIARiem-se de si! Riem-se de si!...
GEBO
Espera Escrnio no bem escrnio, no teaflijas. Riem-se s vezes de mim, mas eu no me
importo. um costume. Fui sempre um pobre homeme j no estranho
SOFIAE vivemos assim calados h oito anos!... Antes
berrar-lhe ali a verdade. Talvez a verdade nos salve.
GEBOEra mat-la por minhas prprias mos. H trinta
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anos que vivemos das mesmas alegrias e choramosjuntos. H trinta anos que pensamos as mesmas
coisas. Antes quero morrer do que dizer-lhe averdade. O meu dever outro.
(H oito anos que eles vivem com esta mentira, para esconder a desgraa de
Joo)
SOFIASempre o dever para a desgraa. Bem peso a
nossa vida para encontrar a razo da nossa desgraa eno a encontro Veja, olhe um momento para mim e
para si, para toda a nossa vida amarga Foi tudointil? (Suspensos um instante).
(A Sofia tambm esta a entrar em revolta querendo impor a verdade)
GEBO
Foi tudo intil?... Tudo o que eu fiz? Espera svezes Eu tambm no entendo e doe-me! Intil?...Mas sinto que todos precisamos de nos sacrificar.
Ento tu imaginas que eu no tenho tambm horas dedvida? Duma tristeza inexplicvel, quando ouo uma
voz dizer-me baixinho coisas que no quero ouvir.Mas calo-as, mas finjo que as no ouo. o meudever. E teimo: tenho sido sempre um homem
honrado, arrastei sempre esta cruz Tu ouve-la?(ele interroga-se, ele defende o dever em que todos devemos de nos sacrificar,mas diz que por vezes sente que devia de fazer outras coisas, no entanto ele
quer ser um homem honrado, ou seja ser um homem honrado ter uma vidade sacrifcio)
SOFIAChora.
GEBOS chora, anh?... Como tudo isto me doe!... Maisbaixinho, aqui ao p de mim Olha Como tutremes! E ento ouves isto? nesses minutos
horrveis, digo a mim mesmo aquelas palavras que ela
me repete tantas vezes: - A honra tem-te servido demuito! Fizeste a tua desgraa e arrastaste-as contigo
desgraa. Ser assim, filha? Terei eu sido egosta?Os outros esto ricos e eu estou pobre, por causa dos
meus escrpulos? Se soubesses o que isto me custa! Oque isto me tem custado de gritos sem ningum ouvir!Aqui entre ns nunca o contei a ningum, nem talveza mim mesmo. No chores s vezes sinto-me topobre e to triste! Vem-me um negrume, mais que
tristeza, talvez a morte Um homem deve ser
honrado acima de tudo, o seu dever ser justo ehonrado ou enriquecer?
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(o Gebo diz que um homem deve ser honrado e que no deve enriquecer deforma desonesta, e que isso magoa (o facto de ser honrado)
SOFIAAh! (Olha-o calada). Tambm duvida?...
GEBONo! no! no duvido! Mas isto pode mais do que
eu.
SOFIA, num grito abafado
Nenhum de ns se conhece. Nenhum de ns seconhece! Temos aqui vivido h muitos anos
dominados por uma sombra. Eu j no posso mais!...
GEBOFilha!
SOFIATenho-lhe medo! Tenho-me medo! Antes o no
tornasse a ver! O seu corao ps-se de pedra. Denoite acorda aos gritos e o seu riso gela- me.
GEBOOh!
SOFIASe o pai o visse como eu o vejo!... Se o ouvisse!...
GEBO o teu homem.
SOFIAMas h pior! h pior ainda!... Tenho medo doutracoisa, doutro mundo de pesadelo. minha roda
tacteia no sei o qu que me aterra e deslumbra. Auma palavra sua interveio outra vida. Um rasgo
Uma vida com os vivos e os mortos. Para que destino?para que inferno?
GEBOTu deliras filha. preciso serenidade. Todos
temos deveres a cumprir Eu mesmo no sei, noentendo e quero ver
SOFIA uma coisa que me mete medo e que me atrai.
Talvez ele tenha razo, e talvez de quem eu tenhamais medo de mim prpria. H duas noites que no
durmo. Que reflicto e comparo A nossa vida
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humilde, fazendo todos os dias as mesmas coisastalvez inteis, a vida? A resignao a vida? a
pobreza e a desgraa ou h outra vida? Quando elefala quando ele ri quando os outros nos desprezam
quando o pai escarnecido
GEBOSchiu!...
SOFIAQuando quero gritar e tenho de tapar a boca
GEBOEnto tu achas que ele tem razo e que fez bem
em roubar?
SOFIANo, no isso. Isso impossvel. O que eu acho
que h talvez outra coisa maior que no conheomas que pressinto.
GEBOOutra coisa?... outra coisa maior?
SOFIAOutra vida, que no a dele nem a nossa, outra
vida maior, Talvez a verdade.GEBO
No cu? ( uma outra vida/alternativa ou seja uma verdade)
SOFIANa terra. Temos vivido aqui tantos anos e nenhumde ns se conhece. Durante o tempo que passou,
houve um ser interior que se criou e de que nenhumde ns suspeitava. Um ser que me mete medo e atrai.
Espere eu no posso, eu no sei exprimir o que
sinto, mas compreendo que a vida no pode ser assim no se pode ser pobre e desgraado, pobre e
humilhado. Neste mundo atroz, neste mundo onde noh a esperar piedade nem justia, s os desgraados
que tm de cumprir o seu dever?
GEBONo, filha, isso no! Isso no pode ser verdade!
SOFIANeste mundo onde se grita, ningum ouve os
gritos dos que sofrem? O pai chega at velho derastos, com frio, quantas vezes com oh meu Deus!
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Fale! Fale-me!
GEBOEspera, filha, eu quero ver, mas no posso!... Eu
tambm no sei, filha Tu no percebes que tambm
eu posso no ver? O que dizes por, o que nodizes a condenao de toda a minha vida. Essenegrume imenso sinto-o, pesa-me, esse negrumeTodos temos horas como estas. s vezes tambmpenso Tambm cismo e como isto me di! Mas
no quero pensar! No se deve pensar seno no devera cumprir. Ento eu hei-de de me arrepender de no
ter feito o mal? hei de me arrepender de ter sidopobre e honrado?... Sim, na velhice talvez tenha umsentimento amargo e duvidas que no tm razo deser. Porque ento o mal que preciso fazer! O mal!o mal!... (Absorto.) Se fosse isso... se... Queres ento
dizer que se eu no fosse honesto seria menosdesgraado? No, no isto, bem sei, filha O queme di dizer coisas que no entendo, o que me di
remexer no fundo de mim mesmo! Espera... O mal?...o mal no pode ser! Espera que eu veja (Absorto.)
O mal!...
SOFIAVer! se ns pudssemos ver!
GEBOEspera, ento espera... (Numa concentrao
dolorosa). Isso seria a condenao de toda a minhavida...(Meditando. Quero dize... quero dizer ento
que, seja como for, a vida no um sacrifcio, mas umgozo Para isso cada um deve, primeiro que tudo
enriquecer, ainda que calque os outros!... Seja comofr! seja como for! E quem o no fizer iludido. Deveser escarnecido... Espera... justo que os que chegam
velhice pobres... pobres e velhos!... pobres evelhos!... sejam espezinhados at pelos que maisnos amam, neste mundo horrvel!... Pior: serias tu,
para quem eu vivi, que me havias de calcar. Espera...
SOFIANo, meu pai, no!
GEBOEspera, deixa-me ver... Agora quero ver. Um
mundo sem justia. Ento todos se levantariam parame acusar; ento todos tm razo quando me
chamam o Gebo? A vida!... Filha, eu no posso ver!...
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s tu? Tu?... Oh isso no! Eu preciso de algum quecreia em mim, preciso de sentir a tua mo na minha
mo. O pior horror seria esse! Seria a morte. Comoisto me di! Tu duvidares de mim e do sacrifcio daminha vida... quando eu... Ento eu prprio duvidaria
de mim eu prprio, anh?.. Pelos outros sim! Mas porvs! por ti!... Mostrar-me o qu? Mostrar-me que foiiludido? Mostrar-me a mim mesmo, escarnecer-me amim mesmo, anh? O escrnio! O escrnio! (Pe-se a
rir baixinho). Quero ver! Quero ver! Espera que querover e hei de ver!...
(este ver um sonho, as personagens libertam-se desta crueldade atravs dosonho)
SOFIAMeu pai! No!
GEBOVer! (fita o vcuo com medo; depois num grito)Ver!... (Um momento a fisionomia endurece-lhe,transformada. outro. Mete medo) Quero ver!
SOFIA, num grito de quem vai a tapar-lhe osolhos, grita.
No! no! no!
GEBO, sucumbindo logo, mais baixo.
Como isto me di! Como me di que dizes, aquino corao! No isso, no isso No que eu
afinal no consiga entender. Tu no tens razo. Estclaro como gua: ns viemos a este mundo para cumprir o nosso
dever. No isso que me di. Sobre issono pode haver dvidas, filha! Escuta: Se no tivssemos de cumprir
o nosso dever, este mundo no erapossvel... A outra coisa... a outra coisa que eu noentendo, uma coisa que me magoa como uma pedra
aqui dentro... Que me di to fundo!... Tenhocumprido sempre o meu dever e no sei se me temservido para alguma coisa cumpri-lo... Nisso tens
razo: riem-se de mim. E h uma voz que me pregaque se eu no tivesse cumprido o meu dever, talvez
tivesse sido mais feliz. Mas isto no pode ser e di-me. Isto notem razo nenhuma de ser e aflige-me.
Sim, h talvez outra coisa como tu dizes, mas imaginria. Evidentemente a gente tem de se
sacrificar e de cumprir o seu dever. Existe uma forasuperior... Se no fosse o senhor director que havia de
ser da Companhia? Sim, sim, sim... No pode haverdvidas a este respeito. A outro respeito talvez...
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(o dever aqui smbolo da felicidade ou seja o dever o contrario de ser feliz.A fora superior, interrogado por ele podem ser os patres)
SOFIAFugir E se ns pudssemos ao menos fugir?
Para muito longe!...GEBO
Fugir para onde? Ningum foge desgraa. Companhia tambm no torno. Com que cara
havia de aparecer ao senhor director? Gebo,vamos a contas. Gebo, quanto trazes? No tragonada senhor director. Contar o qu? Que havia delhe contar? Gebo, apresenta o dinheiro diria
com toda a razo. Onde hei de ir buscar setecentos etantos mil reis, quase um conto?
SOFIAMais nos valia morrer!
GEBOTambm no se morre assim. E ela? Tenho-lhe
mentido sempre, passei a vida nisto: eu a mentir eela a sonhar. No chores, vai para ao p dela e fala-lhe.
SOFIANo saio de ao p de si.
GEBOO que preciso nas grandes ocasies cada um
saber qual o seu dever. Aqui que est a verdade. Edepois cumpri-lo sem uma hesitao, ouviste? a istoque se chama a linha do dever. Eu estou inutilizado.
Sou menos que nada. Morrer? Morrer fcil, o que eutenho obrigao de me sacrificar. Eu cumpri sempre
o meu dever na Companhia e na praa. s vezes odever amargo, o dever duro, mas o homem s se
diferena dos bichos em cumprir o seu dever. Tuouves?
SOFIAEu ouo-o mas no o entendo. Se quere fugir e
abandonar-nos ficamos nas mos dele.
GEBOAgora sou um tropeo, e mais nada. Talvez ele se
arrependa e cumpra o seu dever. Vai para ao p da tuame. Eu sei o que hei de fazer. No cismes mais. O
dever no uma coisa que se pese para saber quantod. a razo da nossa vida. Se no fosse o dever, no
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te tinha criado. Eras mais uma boca a sustentar. Todosno mundo carregam com este fardo. Suponho que
seria uma alegria deit-lo fora, mas nesse caso que eraa vida? Pergunto-te... Ningum mais ia repartio,ningum fazia seno a sua vontade, ningum queria
saber dos outros. J vs... (Pondo o ouvido escuta.)Tu ouve-la?
SOFIAChora sempre.
GEBOS chora! Por minha causa tem chorado tantas
lgrimas!... (Vai escutar porta.) Chora O restono importa, o que preciso entregar-lhe o filho. Aculpa foi minha, enganei-a sempre. Dizer-lho, seriamat-la por minhas prprias mos. No posso, no
posso! Chora?
SOFIAChora.
Percebe-se que o Gebo toma uma resoluo. Pega na carta de cimada mesa e rasga-a em pedaos.
GEBO
O meu dever outro. (Indo para a porta.) Nochores mulher, est tudo arranjado.
SOFIAPai!
GEBOEst tudo arranjado. (Escutando.) J no chora,
ouves?
SOFIA
Mas ento como?...
GEBOAgora deixa-me, vai sosseg-la. (Leva-a para a
porta.) Vai.
GEBO, s
GEBO, absorto.Como isto me di! como isto me di!... Mas ento
o que o dever? s uma palavra? s uma palavra emais nada? No! No! (Pausa.) Vem a polcia e eu...
Roubar no! Toda a gente no comrcio diz: O Gebo
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honrado. Mas o que eu posso ... (Escuta). J nochora! J no chora!... O que eu posso dizer: Fui
eu. Como isto me di! (Pausa.) Digo: Sim,senhor comissrio, fui eu. Saibam-no todos, fui eu.
Confesso tudo. Tenho lido nos jornais que os ladres
no confessam, mas eu confesso tudo. Trouxe a malapara casa, todas as noites a trazia. Bem sabe que todaa gente confiava em mim. J duma vez trouxe dois
contos oitocentos e cinquenta mil reis. Eu erahonrado, agora j o no sou. Roubei-o, gastei-o.
Prenda-me senhor comissrio. Fui eu que.... (Pausa).Mas ento a mim que me prendem, levam-me para a
cadeia. No as torno a ver!... Tenho o corao negrocomo a noite... urna coisa to funda que no sei
donde vem. uma voz que comea a falar baixinho eque a gente tem por fora de sofrer e de ouvir. Umacoisa que no me pertence e de que me no consigodesfazer. Esta voz no a minha voz e revolve-me,di-me... Oh como isto me di! Como isto me di!...No, no posso ver! No quero ver! No te quero
ouvir!... A gente no pode pensar nestas coisas... quedoem to fundo!... Coitada da pobre!... Esqueceu-me
de lhe dizer que h o bem e o mal, e a nossainteligncia no se fez seno para discernir o bem domal... Uma casa de comrcio bem ordenada... Se os
livros no esto em ordem e a escriturao mal feita, no
fim do ano ningum se entende. H uma linha deconduta que ningum deve transgredir. Se me douma ordem, eu que fao? Cumpro-a. Tenho-a
cumprido sempre. Isto di, mas se no doesse quemrito havia no sacrifcio?... O que eu tenho medo:J hoje de manh quando sa, um polcia se ps a
olhar para mim: L vai o ladro (Respiramais fundo). E certo, a gente d tudo aos filhos. E notem obrigao de lhes dar a vida? Mata-la, antes Mata-
la!... Seria melhor mat-la... Oh! (Escuta). Passosoutra vez! Vozes na escada! So eles! So eles!
(Batem porta).(ele cumpre tudo por medo, o medo de um certo medo social)
GEBO, DOROTEIA, SOFIA, UMPOLCIA, CHAMIO, GENTE DO POVO
GEBONo abram! no abram! Mulher! filha! Esperem!
Esto ali! ali!
SOFIA, correndo para ele.
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No!
Gebo esfora-se por serenar. Ouve-se a gente fora falar mais alto.Abrem a porta e entram.
GENTE DO POVO ele! foi ele!...
GEBO, com simplicidade.O ladro sou eu, fui eu que roubei.
QUARTO ACTO
Trs anos depois. Uma sala mais pobre. As mulheres mal vestidas.
SOFIA e CANDIDINHA
Candidinha espera. Aspecto trgico. Chapu mais velho, chal mais
gasto.SOFIA, entrando.
Esperava-me?
CANDIDINHAEsperava-te ingrata. Trago-te aqui uma pinga.
(Tira a caneca debaixo do chal). Vens da fbrica?(Sempre que sacrifcio em Raul Brando, as mulheres so as mais
sacrificadas)
SOFIASa agora. Estou cansada. A desgraa pode maisdo que a gente.
CANDIDINHAGoza a vida filha enquanto tempo e nada deaflies. Quantos te ho de por a dizer que s
bonita...
SOFIAAntes morrer!
CANDIDINHA
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Morrer! morrer!... (Mudando de tom). E o Joo?
SOFIAH dias em que nem o vejo. Quando vem a casa
para levar algum trapo para o prego. Eu trabalho
porque preciso que a velha coma. Se no fosse ela...
CANDIDINHAA tornas tu... O que sofres j eu sofri ou pior.
Neste mundo s h dor e vaidade... Os homens! oshomens!... E ainda tu tens isto (apontando-lhe a cara)
que nada paga.
SOFIAIsto?
CANDIDINHAEsta frescura da mocidade. Mas deixa-te ir para
velha e vers! pior do que trazer uma pedra nocorao sem a poder arrancar. E se a gente se queixa,riem-se. (Sofia chora). Mas no chores, filhinha, que
as lgrimas pem a gente feia. para o que servem. Amim j no h desgraa que me arranque uma lgrima. E o velho no
escreve?
SOFIANos primeiros meses ainda escreveu.
CANDIDINHAE vs eis v-lo?
SOFIAs vezes, mas ele teimava sempre em no
querer. Depois mudaram-no de cadeia e as cartasrarearam. H muito j que no escreve.
CANDIDINHAE quando sai filhinha?
SOFIAEst a acabar a pena. o que nos vale. Olhe
que s vezes penso em me deitar ao rio. J l vo trsanos e nunca mais tive seno lgrimas. Choro noites a
fio quando me deixam chorar.
CANDIDINHATambm eu na tua idade pensei assim e olha que
tenho pena de no ter tido coragem. Acabava-se tudo.Tinha sido melhor. Sabes l o que passei!... Pior doque tu. Fui como tu espanca da, batida, servida. Natua idade, flor, o meu homem ps-me na rua como
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quem escorraa um co e nem uma cdea para aboca... Depois habituei-me desgraa. Mas olha que
tenho pena de no ter morrido. A gua fez-me sempreum medo...
SOFIAPara o que a gente nasce!... S para sofrer.
CANDIDINHAS! Quem pobre para o que nasce. Depois vem
a velhice e ainda pior. E se a gente pede po do-nos escrnio. Euainda tenho experincia da vida que
o que me vale... Olha vou-to dizer porque sou tuaamiga. (Mais baixo). Tenho-lhes dio, odeio todos
esses ricos que me fazem bem e que me do de comer.Eles do-me de jantar mas por vaidade, para
dizerem l consigo: por caridade, c temos hojea Candidinha por esmola. Eu abaixo a cabea e
humilho-me, mas se tu soubesses a inveja e o dio quelhes tenho! A Candidinha vai, a Candidinha vem, de
rastos como a cobra. Um vestido de seda, um chapu,as suas alegrias, as maiores e as mais pequenas, tudolhes invejo, tudo!... s vezes de tanto invejar fico com
uma dor aqui. At me vem a palpitao. E como eume alegro quando h desgraa numa casa!
SOFIANo diga isso!
CANDIDINHADigo, digo! Pois quanto !... Ento tu pensas que
posso ver algum feliz, eu que nunca tive seno misrias? Eu quenunca comi minha vontade e que ando
vestida de trapos quando nasci para trazer sedas comoas outras? Eu c ainda que possa no fao bem a
ningum... Com que cara triste entro numa casa ondeaconteceu desgraa. Se tu visses!... Mas c por dentro
vou a dizer num repique: bem feito! bem feito! E a minha vontade era diz-lo cara a cara. Mas no
posso a Candidinha vai, a Candidinha vem, derastro como a cobra. At fico doente quando as coisas
lhes correm bem. Ai minha filha, mas que se h defazer? A gente precisa da cdea seno rebenta para aa um canto. Ns que nascemos para a desgraa temos
de nos sujeitar, e aos ricos deve-se obedincia. Soeles que podem tudo e que dispem de tudo.
SOFIAMais nos valia afinal morrer!
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CANDIDINHANo dizes hoje outra coisa. Pois claro que
valia, filha, mais valia. Mas o pior a coragem. Edepois de velha a gente ainda se apega mais a isto...Neste mundo h trs coisas que s se podem avaliar
quando se chega minha idade: Os homens, odinheiro e a morte. Os homens!... Engana o teu,mente-lhe. Olha que ele faz-te o mesmo... O meu
homem! Tambm eu dizia o mesmo noutros tempos.Hs de ter o pago que eu tive.
SOFIAAcabou-se! Acabou-se!
CANDIDINHAFazes bem. E com esta adeus. Tenho de ir ainda
a casa das Cardosos, das Fonsecas, das Pereiras. Quesejam todas to desgraadas como eu fui e que em vezde risos chorem lgrimas de sangue. Adeus, filha, este
mundo um mundo de enganos. Adeus. E segue osmeus conselhos: Quando ele te ameaar bate-lhe o p,
no te deixes calcar que pior. (Reparando emDoroteia que entra). Ora viva!
As mesmas, DOROTEIA E JOO
DOROTEIALevantei-me agora.
CANDIDINHAE como vais?
DOROTEIAMe1hor, melhor.
CANDIDINHA o que eu digo sempre: No h como a desgraa para curar as
doenas do corao. Nem a gentetem tempo para pensar nessas coisas. (Reparando em
Joo que entra pelo fundo). Ento como vai essabizarria?.. Falai no mau...
JOO, para Sofia.Eu j te tenho dito que no quero esta mulher c
em casa.
CANDIDINHAMulher! Veja l como fala!
JOO, aponta-lhe a porta e assobia.
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CANDIDINHAVou, mas olhe que no vim aqui pedir nada.
JOO, assobia mais alto.
CANDIDINHAEu sou uma pessoa de considerao, recebida em
todas as casas, nas Pintos, nas Fonsecas, nas Meireles.No sou nenhum lagalh. (Sai traando o chal).
JOOA trouxa?
SOFIAEst no quarto.
DOROTEIAFilho!
JOODeixem-me! (Sai).
DOROTEIASenta-te ao p de mim. Queria-te dizer... queria-te
dizer, mas no posso... .SOFIA
Que tem? Sente-se pior?
DOROTEIANo, o que eu queria era... H muitas noites queno durmo a cismar. Quanto falta ao velho para
cumprir a pena?
SOFIA
Pouco tempo.
DOROTEIA, a sua mo procura a mo de Sofia.
Queria-te dizer que tu que s a minha filha.Tudo, agora vejo tudo. Mas o que me custou a matareste sonho, que me tinha levado tantos anos a criar!Vejo agora o que tu e o velho sacrificaram por mim.
O que ter sofrido! Hei de dizer-lhe... nem sei o qu...tudo!
SOFIAQualquer dia aparece-nos a.
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DOROTEIAEle tambm a nica esperana que te resta? E
outra coisa ainda te quero confessar, outra coisa emque cismo dia e noite... (Mais baixo). Eu suspeitava
tudo, eu tinha adivinhado tudo. Tudo... Tu compreendes isto que eupreciso de confessar antes que a vidase me acabe? Eu soube sempre tudo.
SOFIA, baixo.
Que ele era ladro?
DOROTEIASim.
SOFIAQue foi ele que roubou?
DOROTEIASim.
SOFIAE pde?! E deixou?!
DOROTEIA
Suspeitava tudo. E calei-me. A certeza no a queria ter, a verdadeno a podia ver. Precisei sempre amentira, no s da mentira que eu constru, mas damentira dos outros para poder viver. Tinha-o criado.
Era o meu filho. Enquanto todos os que me rodeavamno pudessem dizer-me: um ladro eu podia
defender uma sombra, manter de p uma sombra viva.Nem tudo morre, nem tudo est definitivamente
morto, enquanto algum sofre. Fiz-vos sofrer! fiz-vossofrer no sei porque impulso no sei porque
necessidade de que sofressem comigo...
SOFIASabia e calou-se!
DOROTEIAParecia-me que assim no era totalmente
desgraada, parecia-me que assim ele no eratotalmente desgraado. H mentiras que podem mais
do que verdades e a que gente se apega comdesespero. H mentiras que precisam de gritos e de
algum que as defenda at ao ltimo extremo. (era a nica forma de elasuperar a realidade, apesar de ela se agarrar mentira)
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SOFIASabia e calou-se! custa de tantas lgrimas!
Sabia e pde calar-se!...
DOROTEIA
Suspeitava tudo. Sabia tudo. Alguma coisa maiorme obrigou a calar... Era o meu filho, era tambm omeu sonho. Era o que eu teci anos atrs de anossempre calada. Vocs fingiam eu fingia. Vocs
desabafavam, eu sonhava... E assim mantivemos de puma vida, que, sem a mentira, no teria razo de
existir. (Choram.)
As mesmas, o GEBO e depois JOO
O Gebo aparece porta. Vem sinistro, mais gordo, enlameado, com abarba por fazer. Voz rouca, bengalo preso ao pulso por uma
correia, uma trouxa que pousa no cho ao p de si.
GEBOEnto temos msica no prdio? (Silncio de
espanto.)
SOFIAPai! Meu pai!
DOROTEIAMeu homem!
GEBOSou eu sou eu, verdade Que querem?
Sch sch (Gesto que as detm.) Sou eu. Queestavam vocs a fazer? (Silncio.) Que esto vocs aolhar para mim espantadas? Sou eu (Senta-se.) No
h por a nada que se beba?
SOFIA
Pai!
GEBOAh, sim, sim!... que na cadeia a gente aprende.
O que eu aprendi na cadeia! Foi como se me abrissemos olhos. Na choa sabe-se tudo. L que destapam
os lzios gente.Doroteia e Sofia olham-no com
terror.
DOROTEIAQueria pedir-te perdo.
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GEBODeixemo-nos de lrias! No me importo de estar
na cadeia
SOFIA, aproxima-se de Doroteia.
GEBOL aprende-se tudo, o que na vida e o que vale a
vida. A princpio custou-me minha volta e pior!pior! c dentro, numa escurido cerrada, s ouvia
gritos e apupos: - Gebo! Gebo tu roubaste! Todos se riam de mim. Se contava a minha vida, o
po pelos outros, o sacrifcio pelos outros,respondiam-me com risos de escrnio: Gebo! Gebo! Mas pior! foi pior! O que eu sofri para
compreender a mim e aos outros, o que eu sofri comdesespero e com gritos. Gebo! Gebo! - E
cada vez mais negro, cada vez maior a escurido minha volta. O que eu sofri para ver!... A luz no
esta luz que nos alumia mas outra luz, no a tornei aver, nem encontrei a que deitar as mos. Eram homens
como eu nunca vi homens, e vozes, como eu nuncaouvi vozes, c dentro! aqui dentro a pregar, a aular,cada vez mais alto e cada vez mais fundo. Ah, o que
eu sofri! Desespero e minha volta os que roubame os que matam Uns vivos, outros mortos. Ah, essas
noites no as dou por nada deste mundo, as noites emque a luz se foi fazendo cada vez mais clara. Eusacrificara-me, para que os outros se rissem de mim.Para que Esperem! Esperem!... Houve ento umahora em que eu mesmo me ri de mim, to alto! To
alto! que todos os ladres se calaram (Respirafundo.) Uma hora em que entendi tudo e todas as
vozes dentro em mim se sumiram com medo minhaprpria voz. (Mudando de tom.) A gente s se no
arrepende do mal que faz neste mundo.
Joo, que ao entrar estaca um momento porta eouve as ltimas palavras de Gebo.
S.
GEBOAh, s tu? s tu, anh? (Ri-se.)
JOO, ri-se.Sou eu, velho. (Encaram-se um momento.)
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GEBOVelho o diabo! Chama-se o Lesma se queres
como os ladres me chamavam. Eu sou um ladro.Sim, no princpio lembravam-me as mulheres e doa-me o corao de
saudade. Mas depois o que eu me ri!Toda a gente se ri de quem Gebo. Agora rio-me eu,rio-me do que sofri. E quando um dia cem ladres
clamaram virados para mim: - Gebo! Gebo! Eugritei-lhes: - Haja a quem me chame o Gebo que eu oestrafego. Eu tinha boca e nunca tinha gritado, forae nunca tinha feito sofrer! (Mudando de tom.) Ento
no h por a nada que se beba?
JOOVamos beber l fora.
O Gebo deita-lhe a mo ao ombro e fala-lhe ao ouvido. Voltam costase vo saindo muito juntos.
SOFIA, num grito.Foi tudo intil! foi tudo intil!
Joo e gebo saem enquanto asduas se abraam soluando.
Fim!!!
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