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PUC DEPARTAMENTO DE
DIREITO
Em busca da moralidade do direito: uma análise de Hart,
Fuller, e Dworkin
por
Bruno Cardoso Ramos
ORIENTADOR(A): NOEL STRUCHINER 2010.2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO DE
JANEIRO
RUA MARQUÊS DE SÃO VICENTE, 225 - CEP 22453-900
RIO DE JANEIRO - BRASIL
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Em busca da moralidade do
direito: uma análise de Hart,
Fuller e Dworkin
por
Bruno Cardoso Ramos
Monografia apresentada ao Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) para a obtenção do Título de Bacharel em
Direito.
Orientador(a): Noel
Struchiner
2010.2
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RESUMO
O presente trabalho é uma analise descritiva da teoria da moralidade do direito de Fuller, esclarecendo os desideratos necessários para procedimento da moralidade interna do direito. Além disso, analisará também a teoria do direito de Hart conforme seus conceitos de norma primária e secundária e a relação que contém entre elas, dando enfoque especial a regra de reconhecimento. Por último, fará uma exposição do conceito interpretativo de direito de Dworkin com maior enfoque a sua idéia de princípios e políticas dentro da interpretação jurídica. Após análise dos autores haverá um conclusão de conclusão dos pontos de convergência entre esses autores. Este trabalho não tem a pretensão de traçar qual é a melhor teoria nem a divergência dessas teorias, mas apenas as convergências que há entre elas.
Palavras-chaves: Hart; Dworkin; Fuller; Direito; moralidade; regra.
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SUMÁRIO
1 Introdução ............................................................................................. 4
2 Fuller e a Moralidade do Direito ........................................................... 7
2.1 Tipos de Moralidade ....................................................................... 7
2.2 A moralidade que torna a lei possível em sua eficácia ........................ 13
3 O Positivismo Jurídico ..................................................................... 26
3.1 O positivismo analítico de Hart ...................................................... 30
3.1.1. Obrigação moral e obrigação jurídica segundo Hart ....................... 34
3.1.2 A regra de Reconhecimento de Hart ............................................. 36
4 O direito segundo Dworkin .............................................................. 42
4.1 O modelo de Regras de Dworkin ................................................... 42
4.2 Direito como interpretação ............................................................ 45
4.3 A idéia de “substância” e “ajuste” .................................................. 50
5 Conclusão ..................................................................................... 52
6 Referência Bibliográfica ................................................................. 57
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1 - INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo fazer uma análise descritiva dos
conceitos sobre a Ciência do Direito segundo os autores Hart, Dworkin e
Fuller. Através da leitura destes autores pretende abordar as discussões
jurídico-filosóficas acerca do Positivismo e da virada metodológica que
vem ocorrendo. No decorrer da história diversos conceitos foram
formulados definindo o Direito e delimitando sua área de atuação. Até os
dias de hoje não se delimitou totalmente tais questões.
É cediço que após a Revolução Francesa propulsora do Iluminismo a
Ciência como um todo passou a fazer maior uso da razão na justificação de
suas teorias, desvinculando-se das teorias religiosa. A partir desse momento
é cada vez maior a busca por teorias objetivas sobre questões científicas,
afastando qualquer tipo de idéia não racional, e o direito não foge deste
movimento.
Observando a teoria cartesiana, que busca acima de tudo a evidencia,
pode-se compreender esse processo da incorporação da razão na explicação
das teorias científicas. A tradição cartesiana desdenha qualquer tipo de
conceito, concepção e equivalentes que não possua o caráter do óbvio, do
indiscutível. A ciência do Direito fora incorporada por esta tradição, dentre
outras, gerando diversas proposições sobre a Ciência do Direito.
De fato, a teoria cartesiana pelo seu caráter extremamente estreito,
não é a melhor para se aplicar em uma ciência humana que é a ciência do
direito, pois é baseada na lógica e no mundo dos fatos humanos existem
situações inexplicáveis pela lógica. E assim, surgiram diversas correntes
filosóficas sobre o Direito tais como: Naturalismo, Positivismo, direito
livre, realismo. Todas buscando determinar mais precisamente o conceito
de Direito, bem como sua importância e aplicação na sociedade.
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É importante ressaltar que na elaboração de um conceito de ciência
jurídica é inevitável discutir sobre a presença ou não de valores morais no
ordenamento jurídico, quais são as fontes do direito, a finalidade da
existência do Direito na sociedade, e aplicação destes no caso concreto, a
parte mais polêmica do estudo do Direito.
O estudo sobre noções abstratas da ciência jurídica se revela de
extrema importância nos dias atuais. Muitas vezes determinados casos
nunca estiveram presente nos órgãos do judiciário e, com isso, nunca foram
julgados, tal fato reconduz os operadores do direito às concepções de justiça
na tentativa de formular respostas sólidas dotadas de certeza e segurança.
Dessa forma, os juízes devem analisar o caso e buscar de dentro do
ordenamento alguma solução. E, assim,os princípios gerais do direito, a
analogia e a equidade tem sido as principais ferramentas para a supressão
destas lacunas. Tendo em vista a proteção dos valores do ordenamento
jurídico por ele mesmo busca-se paradigmas identificadores para sanar a
arbitrariedade dos juízes para estes casos de vacuidade das regras do Direito
para se ter um método de interpretação conciso.
Um ponto fulcral que este trabalho se propõe a perseguir é o conceito
de regra, e a qual fonte de regras o direito está vinculado. As relações
humanas são regidas por inúmeras regras tais como os costumes, a moral e
a ética. É essencial a delimitação de quais regras se aplicam ao mundo
jurídico para a efetivação da certeza e segurança jurídica, valores
fundamentais à pratica da justiça. O método utilizado será a análise das
teorias do direito de Hart, Dworkin e Fuller, para se propor uma moralidade
intrínseca ao direito. Os leigos ao pleitearem algo no judiciário clamam por
justiça, um princípio moral. A moral dentro do positivismo só pode ser vista
separada do direito. Assim, através da teoria de Fuller, exporemos onde se
pode encontrar conceitos morais dentro do direito.
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Hart, Dworkin e Fuller são expoentes de diferentes correntes
filosóficas. Cada um tem uma idéia diferente sobre a dogmática do direito.
Hart, considerado por muitos o mais modernos dos positivistas, defende a
separação entre o direito e a moral, já Fuller é um ferrenho defensor da
correlação entre o direito e a moral.
Em seguida, após delinear as bases do positivismo, apresentar-se-á as
principais formulações teóricas jusfilosóficas críticas ao Positivismo.
Autores como Dworkin e Fuller, que em reação teórico filosófica ao
positivismo e ao tradicional método de reprodução do direito, defensores de
novas formas de interpretação do direito.
A comunidade acadêmica em geral, sentiram que o H.L.A. Hart,
positivista Oxford, na maioria das vezes prevalece sobre Lon Fuller, da
Harvard "secular lei natural" proponente, nos seus 1960 "debate" nas
páginas da revista Harvard Law Review, e a reputação de Fuller
enfraqueceu ainda mais em contraste com a de Ronald Dworkin, seu
sucessor como o defensor do direito natural dominante, e certamente hoje o
estudioso jurisprudencial dominante.
Entretanto, a visão de Fuller de direito, facilitando a interação
humana e suas raízes na interação humana previsível, pode melhor servir
como uma base credível para a jurisprudência e, como tal, como uma
melhor base para aentendimento da gênese evolucionária do direito e das
instituições jurídicas.
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2- FULLER E A MORALIDADE INTERNA DO DIREITO
Pouco conhecido no Brasil, Lon Fuller é um dos autores que mais
escreveram sobre a relação entre o direito e a moral. Fuller procura rejeitar
as abordagens moralistas atuais do direito e preocupa-se principalmente
com a moralidade interna do direito, principalmente a moralidade
procedimentalista que alcança a moral substancial, ou seja, um
procedimental moral concretizara valores morais substanciais.
A teoria moralista procedimental de Fuller assume posição
jusnaturalista e moralista descrevendo propósitos a serem alcançados pelo
ordenamento. A moralidade interna do Direito é, assim, a forma
procedimental pela qual ele perquire seus fins.
Além disso, segundo o autor “A validade do Direito depende da
qualidade de seu conteúdo, não apenas do autoritarismo de sua fonte”
(Summers,1984,p.1). Na criação das normas jurídicas o propósito e o valor
protegidos pelo Direito e aceitos pela comunidade deverão ser observados
para a melhor aceitação de seus destinatários. Perquirindo esta finalidade
Fuller procurou estabelecer um procedimento de elaboração de regras
jurídicas, moralista, para atingir a moralidade substancial na comunidade
durante o funcionamento do ordenamento jurídico que obedeceu este
procedimento moralista de Fuller.
A moralidade interna do Direito de Fuller tem como objetivo orientar
o legislador na produção das normas e não somente advertir o legislador do
que ele não deve fazer. Ou seja, garantir que um procedimento seja
respeitado, segundo os padrões morais, para que a clareza, coerência e o
amplo alcance da norma, dentre outros, sejam alcançados.
2.1 - TIPOS DE MORALIDADE
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Como já dito a busca de Fuller está na relação entre o direito e a
moral para isso, em sua obra The Morality of Law, o filósofo diferencia dois
tipos de moralidades existentes nos meios sociais: a moralidade da
aspiração (morality of aspiration), e a moralidade do dever (morality of
duty).1
A moralidade da aspiração, segundo Fuller, é a moralidade da
excelência, da vida plena ou das plenas realizações das forças humanas,
muito encontrada na filosofia grega. Neste tipo de moralidade pode-se
encontrar implicações que se aproximam do direito, mas que normalmente
estão inertes, pois representam idealizações que poderão estar além das
capacidades temporais do homem. Este poderá falhar na busca de realizar
suas capacidades plenas e por isso essa moralidade da aspiração poderá
estar inerte até o alcance da idealização almejada.
Enquanto a moralidade da aspiração se inicia no topo das realizações
humanas, no oposto temos a moralidade do dever, que se inicia no âmago
da sociedade. Esta estabelece as regras básicas sem a qual uma sociedade
organizada não seria possível ou falharia na persecução de determinados
objetivos específicos para a concretização da vida social. Nas palavras de
Fuller, “é a moralidade do velho testamento e dos dez mandamentos”.2
Explicando melhor a diferença entre a moralidade do dever e a
moralidade da aspiração Fuller faz uma analogia muito simples destas
regras em relação às línguas, como o português, afirmando que enquanto a
moralidade do dever são as regras da gramática; a moralidade da aspiração
são as regras que os críticos utilizam para alcançarem uma escrita elegante
e sublime, representando uma vaga idéia de perfeição.1
Em uma sociedade, para que haja harmonia é necessário que as
pessoas prezem pelas boas condutas, mantenedoras da harmonia social. É
isso que ocorre quando vemos grupos religiosos unidos pela fé e pela paz, e 1 FULLER, Lon L. The Morality of Law. Revised Edition. 1969 2 FULLER, Lon L. The Morality of Law. Revised Edition. 1969. p.06.
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outros grupos sociais prestadores de serviços voluntários a sociedade.
Porém, somente se poderá saber qual conduta é boa e qual é ruim caso haja
um paradigma indicador. É nesse contexto onde a moralidade da aspiração
encontra-se guiando a sociedade para a perfeição, pois está no topo da
capacidade de realizações humanas. E por este motivo há casos em que a
moral do dever incorpora algumas normas emprestadas da moral da
aspiração para direcionar as condutas da comunidade a uma idéia de
perfeição.
Segundo Fuller, não há como saber quais regras de conduta serão
ruins para a sociedade se não estivermos atrelados a idéia do perfeitamente
bom, ou seja, não pode haver um discernimento racional da moral do dever
sem que haja a incorporação da moral da aspiração em alguns casos, pois
somente se houver uma noção do perfeito haverá o estabelecimento de o
que é bom e o que é ruim, tendo os valores da moral da aspiração como
meta de alcance. Estes liames que vinculam a moralidade do dever à
moralidade da aspiração criam a dificuldade de se traçar uma linha divisória
entre esses dois tipos de moralidade. Porém, o que Fuller sugere é que a
moral do dever está relacionada à vida dos homens em sociedade, enquanto
que a moralidade da aspiração é um problema do homem consigo mesmo,
com sua consciência, ou do homem com o seu Deus. Isso só será verdade se
na medida em que se sobe a escada dos deveres mais óbvios paras as mais
altas aspirações da humanidade, diferenças individuais em capacidade e
entendimento se tornam mais importante para diferenciar as morais, já que
há um aumento do cumprimento e obediência próximo da uniformidade da
conduta devido a qualidades individuais inerentes aos indivíduos que
formam diferentes padrões de condutas, o que não significa que nessa
subida o vínculo social seja quebrado.
Fuller ainda sugere que a moralidade do dever tem uma afinidade
muito grande com as normas de direito, enquanto que a moralidade da
aspiração está em parentesco íntimo com a estética social, ou seja,
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influencia a formação dos princípios morais da sociedade, que formarão e
transformarão a cultura da comunidade. Dessa forma, inevitavelmente a
moralidade da aspiração terá uma utilidade menor para a formação de
regras sociais, denominada utilidade marginal (“marginal utility”) pelo
autor fazendo uma equiparação a economia, na prática este tipo de
moralidade tem o escopo de fazer com que nossos esforços sejam
direcionados para o melhor uso de nossas vidas curtas. (Fuller, 1969, p.15-
19)
Enquanto isso, a moralidade do dever quando comparada a ciência
econômica se aproxima da economia da troca, em que se dá algo e se recebe
algo, ou seja, onde há efetivamente uma troca, pois se refere a relação do
indivíduo com a sociedade em que convive. As obrigações, tanto morais
quanto legais, podem surgir de uma troca, seja uma promessa de troca ou
uma troca de promessa de um ato presente. Porém, para estabelecer uma
afinidade entre o dever e a troca deve-se introduzir nesta relação um
terceiro fator, um princípio mediador, a reciprocidade, pois quanto há um
dever em contrapartida há um direito, como ocorre na troca em que alguém
dá e outro recebe.
Há uma noção de reciprocidade implícita na própria noção de
deveres, seja no caso dos deveres relativos a sociedade como um todo ou no
caso das responsabilidades dos homens entre si. Mesmo imaginando um
laço social no qual não há qualquer noção de deveres que estabeleça um
vínculo entre eles, onde há união por amor ou pelo combate a uma ameaça
comum, o princípio que as organizaria seria “um por todos e todos por um”.
Mas, assim que surjam os deveres nessas sociedades algum padrão se
estabelecerá pelo qual a extensão e o tipo da contribuição exigida pelos
membros da sociedade se determinarão.
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Assim, no entendimento de Fuller a norma “deve ser derivada de um
tecido social que une os fios da ação individual.”3 , ela nasce das
obrigações recíprocas que os indivíduos tem entre si devido uma
cooperação mútua a que eles se submetem para a manutenção de sua vida
individual no meio social. A ruptura deste “tecido social”, dessa cooperação
mútua, poderá implicar na libertação do homem dos deveres que tinha com
seus semelhantes, a razão de ser da própria relação social por induzir a
cooperação entre os indivíduos, ou seja, a existência da sociedade como um
todo. Além disso, assim como é verdade que um dever geralmente poderá
ser traçado pelo princípio da reciprocidade, também é verdade que a partir
de um dado dever poderá surgir a reciprocidade.
Dessa forma, para que haja maior entendimento e aceitação por
aqueles afetados pelas obrigações sociais três condições devem estar
presentes para eficácia destas obrigações. A primeira é que a relação de
reciprocidade deverá nascer de um acordo voluntário entre as partes
afetadas por ela que faça surgir a obrigação. A segunda é que as prestações
recíprocas das partes deverão ser iguais em valor. Embora o conceito de
adoção voluntária das partes faça um forte apelo ao senso de justiça, é
necessária a complementação do fator equivalência das partes para que o
senso de justiça seja plenamente correspondido. Neste sentido, quando se
busca igualdade em uma relação de reciprocidade o que se quer é uma
medida de valor cuja aplicação poderá igualar espécies diferentes para a
efetivação da justiça.
A terceira condição para a otimização da eficácia das obrigações
implica na reversibilidade da relação de obrigação, ou seja, a mesma
obrigação que uma parte tem um dia a outra parte poderá ter outro dia. Esta
condição mostra que a reciprocidade será vista quando uma das partes se
imagina do outro lado da relação de obrigação e age de acordo com a moral
que compete a esta relação, de acordo com a moral que gostaria que lhe
3 Fuller, Lon L. The Morality of Law. Revised Edition. 1969. p.21.
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fosse dada. Tais princípios e condições são mais explícitos, segundo Fuller,
em uma sociedade econômica de mercado, atualmente pode-se dizer nas
sociedades capitalistas.
Além disso, apesar de ser difícil traçar uma linha divisória que
separe a moralidade do dever da moralidade da aspiração, esta linha
divisória é extremamente necessária já que há dois tipos de moralidade em
jogo. Assim, se a moral do dever alcançar algo acima de sua esfera ocorrerá
a supressão do experimento, da inspiração e da espontaneidade na
sociedade. Em outro sentido se a moral da aspiração atingir a área da moral
dos deveres, os homens poderão começar a qualificar e sopesar suas
obrigações com regras e padrões próprios, criados por seus próprios ideais
individuais, o que geraria iniqüidade e injustiças.
Pode-se concluir, então, que uma certa qualidade de aderência está
inerente a toda obrigação, independente de ser legal ou moral. Ao mesmo
tempo faz parte da natureza humana aspirações em direção a perfeição, e,
para isso, as regras devem ser flexíveis e ágeis, viabilizando o alcance desta
perfeição. Assim, um problema encontrado na sociedade é manter um
equilíbrio entre a “estrutura de apoio” e a “fluidez adaptativa”
(Fuller,1969,p.29),para que haja a viabilização do crescimento social em
direção aos seus ideais de perfeição. A questão principal a que Fuller se
preocupa é a harmonia e o equilíbrio dos processos da sociedade como um
todo.4
Em um sentido paradoxal mesmo a rigidez social deve manter-se não apenas estando lá, mas pressionando ativamente para o seu reconhecimento. Holmes observou uma vez que todo direito tem a tendência de se tornar absoluto. Pode-se sugerir que é exatamente esta tendência para o absoluto que constitui o sentido essencial de um ‘direito’, seja ele legal ou moral. Da mesma forma pode-se dizer que o conceito de dever terá o significado advindo da resistência de uma qualificação. Em contraste com desejos simples, conselhos de prudência, apelos para ideais vagos e outros, direito e deveres (sejam morais ou legais) representam os “pontos quentes” da relação humana. Assim, em casos específicos poderão ser qualificados, embora possa haver resistência a qualificação. (Fuller, 1969, p.29)
4 Fuller, Lon L. The Morality of Law. Revised Edition. 1969. p.29
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2.2 - A MORALIDADE QUE TORNA A LEI POSSÍVEL EM SUA
EFICÁCIA
No segundo capítulo de seu, livro The Morality of Law, Fuller busca
a definição das características necessária a aplicação da lei em que haja uma
leitura moral desta. Assim, Fuller conta uma história fictícia de um rei
soberano que pretende guiar seu povo através de leis positivadas, e no
desenrolar da história Fuller aponta os erros que fizeram Rex, o soberano,
falhar na sua tentativa.
Como na época não havia uma tábua rasa com as leis existentes Rex
revogou todas as leis existentes e tomou para si a responsabilidade de fazer
um novo código de lei, escrevendo-as e divulgando-as. Porém, Rex tinha
algumas limitações devido a sua educação, o que tornaria a tarefa de formar
generalizações normativas difícil para ele, por não ter razões próprias
suficientes para tal. Assim, Rex começaria julgando alguns casos para
depois fazer determinadas regras gerais e incorporá-las em um código.
Porém, os defeitos em sua educação não permitiram com que sua idéia
fosse concretizada, pois as razões invocadas para embasar suas decisões não
eram plenamente aceitas e muitas vezes não eram entendidas, por
discordância com a fundamentação.
A seguir, Rex interrompe seu labor para mudar sua estratégia de
elaboração de um código de leis em razão de sua falha. Assim, a partir de
uma lição aprendida por ele durante sua vida, cuja idéia é de que seria mais
fácil decidir coisas tomando como ajuda uma visão dos fatos que já
passaram ao invés de tentar ter uma visão de algo futuro para facilitar a
fundamentação de suas decisões, Rex decide elaborar o novo código.
Assim, no início de cada ano civil Rex julgava todos os casos do ano que
passou. Além disso, as razões de suas decisões seriam entendidas como não
controladoras das decisões futuras, pois seria feita em uma visão retroativa.
Os seus súditos, ao escutarem a proposta de Rex, clamaram por saber qual
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seria o conteúdo das normas, pois gostariam de saber de que forma
deveriam proceder.
Diante destas contestações populares Rex entendeu que deveria
publicar um código para que as pessoas pudessem entender as normas, e
assim o fez. Porém, ao publicar o código de normas as pessoas não
conseguiam entendê-lo, mesmo os especialistas em direito o acharam
repleto de obscuridades e de difícil entendimento. Então, Rex rapidamente
retirou o código de circulação e pediu ajuda a estes especialistas para
revisar o código com o único requisito de que o conteúdo não fosse
modificado, mas que ele se tornasse mais claro. E então inúmeras
contradições surgiram das normas do código e seus súditos novamente
protestaram.
Mais uma vez o código foi retirado para outra revisão, com a
diferença de que o soberano neste momento havia perdido a paciência com
seus súditos, pois nada do que ele havia feito estava sendo aceito, muito
menos reconhecido. Assim, ele decidiu ensiná-los uma lição definitiva e por
um fim em toda essa história impondo sua superioridade. Dessa forma, Rex
instruiu seus peritos em direito para purgar todas as contradições do código.
Em contrapartida instrui também para que, ao mesmo tempo, os peritos
endurecessem as exigências contidas no código incluindo também uma
série de crimes novos. Dentre esses novos crimes um chamava a atenção, o
que punia com dez anos de reclusão no caso do indivíduo espirrar, soluçar,
desmaiar, ou cair na presença do rei. Após a publicação deste código, uma
manifestação muito próxima de uma revolução ocorreu onde os cidadãos
declararam sua intenção de desrespeitar as novas normas propostas pelo rei,
tendo em vista os absurdos contidos nele.
Novamente houve a retirada do código revisto com a instrução feita
por Rex para que seus experts revisores do código retirassem as regras cuja
exigência fosse algo impossível, para tornar possível o cumprimento das
normas. Porém, após esta nova revisão Rex percebeu que muito tempo
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havia se passado e o conteúdo do código revisado sucessivamente estava
ultrapassado. Na iminência de haver uma nova retirada do código o povo
começou a enviar recados para o Rei com a escrita: “uma lei que muda todo
dia é pior do que lei nenhuma.” Assim, Rex novamente concentrou todo o
poder de decisão em suas mãos que novamente não foi muito eficaz, pois o
conteúdo de suas decisões seria muito semelhante ao conteúdo do código
que fora revogado, voltando aos mesmos problemas que os súditos já
haviam passado e causando as mesmas revoltas passadas outrora.
Enfim, o povo se reuniu para decidir como retirar Rex do trono, já
que essas inúmeras revogações do código estavam levando a instabilidade
das relações sociais. Porém, Rex morreu antes que qualquer atitude fosse
tomada por seus súditos. Assim, seu sucessor Rex II após assumir o trono
teve como primeira medida afastar do poder do governo os advogados e
colocá-lo nas mãos dos psiquiatras e especialistas em relações públicas.
Dessa forma, Rex II acredita que as pessoas podem ser felizes sem as leis.
Diante desta história exposta, pensa-se objetivamente o que teria
feito o soberano Rex I falhar? Segundo Fuller existem oito formas em que o
legislador e o juiz podem falhar ao tentar manter e criar um sistema de
normas jurídicas:
(1) A primeira falha indica a falta de alcance das regras a todos, de
modo que cada questão deverá ser decidida com base na exceção;
(2) A falha da publicação, ou pelo menos deixar que ela possa ser
prevista pelas partes afetadas pela norma, da regra que se espera
que se aplica, tendo em vista que Rex inclusive a deixou em
segredo;
(3) O abuso das legislações retroativas, que não deixa só de guiar as
ações do presente, mas enfraquece a integridade das regras em
vigor efetivamente, uma vez que as coloca sob a ameaça das
mudanças retrospectivas;
(4) A falha de não tornar as regras compreensíveis;
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(5) A falha de fazer normas contraditórias, conseqüentemente
impossíveis de serem obedecidas;
(6) A falha de elaborar regras de conduta que vão além da
capacidade das partes afetadas pelas normas;
(7) A falha de introduzir freqüentes mudanças na regulamentação
que os sujeitos não possam se orientar por ela, por nunca saberem
qual norma seguir;
(8) A falta de congruência entre as regras quando anunciadas e como
são administradas.
Além disso, há um tipo de reciprocidade necessária entre o Estado e
os cidadãos a ele vinculados relativo à obediência das regras por parte dos
cidadãos, e a formulação das regras por parte do Estado5. Fuller afirma que
o Estado, propõe aos seus cidadãos que sigam determinadas normas que são
apresentadas a estes. Em contrapartida os cidadãos terão a certeza de que
somente estas regras serão aplicadas a suas condutas. A obra de Fuller,
então se propõe a sanar todas as falhas que poderão ser cometidas pelos
operadores do direito ao proceder na aplicação da norma ao caso concreto
de forma a fugir do propósito que se serve o Estado Democrático.
Fuller defende a aspiração à perfeição na legalidade que se dará no
saneamento das oito falhas cometida pelo fictício soberano Rex para
concretização dos princípios morais no bojo da sociedade. Assim, deve-se
imaginar um sistema de leis perfeitamente claras, consistentes entre si,
conhecidas por todos e não retroativas. Nesse contexto as leis permanecem
constantes no tempo, demandando somente o possível e, sendo assim,
devidamente administradas pelos administradores das normas jurídicas.
É preciso também retomar as noções apresentadas anteriormente
sobre a dualidade da moralidade, da aspiração e do dever, e introduzi-la no
interior da moralidade do direito de Fuller, pois como foi dito a moralidade
do dever é punida com sanções, já a moralidade da aspiração por estar no 5 Ibid., p.39.
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plano da perfeição a ser atingida, a sua transgressão não poderá ser
sancionada, mas apenas lamentada. Portanto, a moralidade do dever
próxima que é da moralidade do dever poderá estar implícita na moralidade
interna do direito, em quanto que a moralidade da aspiração orienta o
legislador na formação da regra jurídica ou direciona os interpretadores do
direito na interpretação da norma, dentro de um procedimento específico de
formação da lei ou solução de controvérsias em que haja necessidade de
fazer a interpretação do ordenamento jurídico.
Dessa forma, as demandas intrínsecas da moralidade do direito,
embora se refiram à relação de pessoas, irão requerer além de abstenções,
afirmações que confirmem os procedimentos necessários. Na verdade, a
natureza da moralidade interna do direito é afirmativa, pois demandam
ações positivas como: tornar as leis conhecidas, coerentes e claras, tornar as
decisões oficiais guiadas por essa lei clara, entre outras. Para atender a essas
demandas as energias humanas devem ser direcionadas aos tipos
específicos de realizações necessárias e não apenas afastar os atos nocivos
promovendo abstenções. Neste sentido, Fuller acredita que as cortes e
constituições podem salvar-nos do “abismo” contido na lei quanto estas não
puderem ser perfeitamente entendidas pelos seus destinatários, mas não
podem realizar as etapas realmente significativas como publicação,
promulgação e a aplicação retroativa cuja competência é do legislador.
Além disso, devem haver regras para que os homens sejam
submetidos a um sistema de regulação de suas condutas, em outras
palavras, as regras são a fonte do direito por excelência segundo Fuller.
Assim, deve-se observar o procedimento pelo qual as regras são feitas para
que elas não sejam passíveis de lacunas. Neste sentido, analisando o caso de
Rex onde as normas, primordialmente, foram geradas a partir das decisões
dos julgamentos que surgiam com o decurso do tempo, nascendo regras
caso a caso, percebe-se que novos casos diferentes daqueles que já foram
julgados podem conter características diferentes daqueles já julgados,
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deixando uma zona obscura sem regras, insuficientes para regular a
generalidade dos fatos sociais. Portanto, um sistema de regras para ser
perfeito deverá também ser direcionado a generalidade dos casos, e não só
aos casos específicos para que não contenha zonas obscuras, ou seja,
normas insuficientes de alcance.
Além disso, ao aplicar apenas uma norma geral aos diferentes fatos
da vida permite-se o tratamento igual para todos aqueles afetados pela
norma, promovendo o exercício da equidade e sanando a falha de decidir as
controvérsias com base na exceção. Quando há uma norma geral, todos os
casos serão tratados da mesma forma, ou seja, não será criada uma regra
específica para aquele caso, não haverá iniqüidade. Assim, além de
caminhar para perfeição da norma obedecendo ao que Fuller chama de
“princípio geral”, permite-se também a efetividade do princípio da
equidade, pois trata todos da mesma forma sob a utilização da mesma
norma.
Quanto à promulgação, a sua principal função é fazer com que as
pessoas saibam quais serão as normas regulatórias de suas condutas. Assim,
o governo dá a elas segurança e paz para agirem em seu dia. Porém, o
requisito da promulgação é muito mais complexo do que parece, não é
apenas a publicização da norma pela autoridade competente. Na verdade, é
uma questão de validade, quer dizer, saber se existe ou não regra jurídica
aplicável o que pode levar a uma pesquisa no ordenamento jurídico como
um todo, ou uma busca legislativa. Alguns afirmam que a promulgação para
fins de tornar a norma pública não deveria se tratar de um requisito da
moralidade interna da lei, pois grande parte dos indivíduos não conhece o
conteúdo da lei e, portanto, a promulgação não seria suficiente para o
conhecimento da lei pelos cidadãos. De fato muitos não conhecem a lei e
por este motivo há aqueles que advogam por elas, ou que prestam
consultoria jurídica e ainda há os que julgam os litígios em que estas se
submetem ou que prestam consultoria, já que habitualmente as
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controvérsias são solucionadas pelo direito, ou seja, de alguma forma as
pessoas tomarão conhecimento do conteúdo das leis em algum momento, de
forma direta ou indireta, e este conteúdo deve estar acessível a todos
antecipadamente para que haja previsão do que deve ser obedecido pelos
indivíduos e o princípio da reciprocidade exposto por Fuller seja respeitado
para que o ordenamento jurídico seja possível em sua eficácia.
Diferente da promulgação, mas de igual relevância, é a retroatividade
das leis, não sua presença, mas a sua ausência. Assim como a ausência de
promulgação, a presença da retroatividade das leis obstaria o princípio da
reciprocidade, e ainda, causaria insegurança e instabilidade social, e seria de
difícil aderência uma vez que não se pode obedecer uma lei que não se
conhece, causando diversas controvérsias. Um ordenamento jurídico feito
de regras, que devem ser conhecidos por aqueles afetados por elas, não será
caso todas as suas leis sejam retroativas. É importante ressaltar que aqui
Fuller se refere ao caso de todas as regras do sistema serem retroativas, pois
há casos em que poderá haver a necessidade da retroatividade para o
saneamento de regras prospectivas em excesso, e por exceção é plausível a
utilização da retroatividade. Portanto, Fuller não afirma total eliminação da
retroatividade da norma, mas afirma que um sistema de normas não pode
ser feito somente por leis retroativas ou pela maioria de leis retroativas, ou
seja, a retroatividade deverá ser exceção. Para tanto, sempre que se fala em
retroatividade da lei deve-se ter cautela em sua aplicação. Os homens em
sua vida social têm planejamentos e a aplicação de regras retroativas, como
as civis e as tributárias (Fuller, 1969, p.60), poderão induzi-los a erros em
seus planos.
Outro requisito imposto pela moralidade interna do direito é a
clareza das normas, no sentido de que as pessoas comuns, que serão
atingidas pela norma, devem entendê-la sem dificuldades. A legalidade só
poderá ser plena enquanto as leis forem claras, independente da forma da
regra, já que havendo incoerências dentro da legislação a legalidade estará
20
prejudicada e a moralidade interna do direito sucessivamente. Ou seja, a
norma para produzir a legalidade possível terá sua circunscrição delineada
pela sua clareza. A elaboração da regra é livre porém a falta de clareza não
poderá ser responsabilizada mas tão somente prejudicar a eficácia da
aplicação da lei, diferente da ação de um administrador do direito que é
livre mas pode ser responsabilizada se não for clara. Então, a clareza
importa em um procedimento específico em busca da eficácia da legalidade
como Fuller afirma:
Ás vezes a melhor maneira de alcançar a clareza é aproveitando, e incorporando na lei, o bom senso de julgamento que crescem na vida cotidiana vivida fora das assembléias legislativas. Afinal, isso é algo que inevitavelmente se faz usando a linguagem comum como um veículo para transportar a intenção legislativa. (Fuller,1969, p.64)
O requisito da não contraditoriedade lógica entre as normas do
sistema jurídico observado pela moralidade interna de Fuller, também ao
ser aplicado, deve ser analisado em seu amplo efeito, que dizer, no
ordenamento como um todo. Assim, em um ordenamento que se pretende
ser feito com regras que surjam caso por caso, a especificidade dos casos
poderia criar regras contraditórias, ou seja, todos os outros requisitos
apontados até aqui sobre a moralidade interna da lei devem conjuntamente
se aplicar para se entender a eficácia da não contrariedade lógica das regras
de um ordenamento. Nesse caso, o procedimento a ser adotado poderá ser
feito pelas cortes, ao tentar adotar uma interpretação que consiga sanar a
contradição da norma. Para ilustrar a situação Fuller, cita o caso levado a
Corte Americana em que um regulamento autorizava o fiscal federal da
indústria de alimentos a entrar nas fábricas de alimentos para realizar a
devida fiscalização, em contrapartida este mesmo regulamento dava direito
ao dono da fábrica de se recusar a autorizar a entrada deste mesmo fiscal
federal. O que aconteceu foi que o dono de uma determinada fábrica, após
ter deixado o fiscal entrar na fabrica, pediu para que este se retirasse, com
base no regulamento que lhe dava o direito de recusar a entrada do fiscal. A
Suprema Corte Americana decidiu em benefício do fiscal uma fez que,
21
apesar de contraditória em determinado ponto, a regulamentação, a corte
entende que o fiscal não poderia estar sob o domínio do bel- prazer do dono
da fábrica, e, assim que adentrasse ao interior desta não se aplicaria mais o
dispositivo em que o dono tem o direito de recusar a entrada do fiscal
(Fuller,1969, p.67). Portanto, o saneamento das contradições lógicas entre
as normas de um sistema de regras muitas vezes não terá a necessidade de
ser feita uma nova norma, mas os próprios aplicadores do direito poderão
interpretá-lo de uma forma coerente enquanto não sanada a contradição, ou
seja, é uma solução de compatibilidade6 de normas.
Muitas vezes a contradição poderia estar mesmo dentro da norma,
ordenando dois comandos ao mesmo tempo em que juntos poderiam
parecer impossíveis. Seria o caso de uma antiga norma cuja conduta exigida
era “atravesse o rio, mas não se molhe”. No período em que não existiam
pontes, esta regra era de realização impossível, o que fazia que o próprio
operador do direito não pudesse achar uma interpretação correta. Mas
somente as inovações tecnológicas poderiam dar a norma um sentindo, uma
aplicação. (Fuller,1969, p.68) Ou seja, existe mais de uma forma de sanar a
contradição lógica das normas, e, muitas vezes, o melhor procedimento
poder não ser a revogação da norma, pois percebe-se que até mesmo fatos
da vida podem excluir a contradição.
A discussão acerca da contradição lógica dentro de uma norma,
fazendo com que uma norma requeira o impossível, nos remete a outro
requisito da moralidade interna do direito: as normas devem exigir sempre o
possível dos cidadãos. Uma regra só pode ser obedecida se a conduta
exigida por ela seja possível. O caso da auto-contradição, em que uma
norma tem uma contradição lógica dentro de si mesma, é o mais comum.
Ocorre que muitas vezes o legislador na busca da perfeição das relações
requer algo que está acima da capacidade do homem razoável, assim, o
6 Em conformidade com a retórica de Perelman, Fuller fala em incompatibilidades quando não há sintonia entre dois argumentos jurídicos morais, ao invés de falar em contradição.(Fuller,1969, p. 67)
22
paradigma de exigência de conduta deverá ser este “homem razoável”
(Fuller,1969, p.72). Nos casos concretos, a problematização estaria nos
casos de punir a intenção dos homens, que só podem ser conhecida através
de seus atos, pois exigir do homem que pratique determinado ato, por meio
do qual se afirma a exteriorização de sua intenção, é um método suscetível
de erros. Um homem e uma mulher em uma discussão de relacionamento
poderiam se acusar de morte, reciprocamente, inúmeras hipóteses são
possíveis através desse ato, e ainda, poderiam eles estarem em um momento
de ódio ou em uma breve separação. Poderia esta acusação ser suscetível de
acusá-los de algum crime? Seria exigir o impossível diante de um momento
passional, acusar qualquer um dos dois por um crime de ameaça, pois seria
exigir o impossível com base em uma intenção de matar rodeada de vários
fatores que influenciam.
Além disso, também nos casos em que o imprevisível ocorre e
desequilibra determinada situação, e o cidadão estaria inadvertido, a
recondução do equilíbrio deste é defendido por este pressuposto da
moralidade interna da lei de Fuller, pois exigir a mesma prestação após o
desequilíbrio seria exigir o impossível. Para isso, a lei deverá também
prevenir e advertir os cidadãos dos riscos de um contrato, para que estes
não tenham prejuízos inadvertidamente, e, ainda responsabilizando aqueles
que agiram de forma contraria ao advertido. É o que Fuller chama de
princípio da retificação onde aquele que obteve vantagem indevida deverá
ser punido para reequilibrar a relação que fora constituída. (Fuller, 1969,
p.75) Para entender o que Fuller descreve como impossível é preciso fazer
uma relação entre a natureza do homem e do universo através de uma
análise histórica que contextualize a situação para delinear as capacidades
humanas, desenvolver quais condutas poderiam ser exigidas e afastar
aquelas que seriam impossíveis diante desta capacidade (Fuller, 1969,p.79)
Porém, outro pressuposto nem menos e nem mais importante, afirma
que as leis devem ter uma constância no tempo, devem ser pouco
23
modificadas. Para Fuller, uma lei que muda diversas vezes é tão prejudicial
quanto uma legislação retrospectiva, aquela feita só de leis retroativas. Os
prejuízos são quase os mesmos, pois não há como os cidadãos terem uma
certeza de que lei eles devem obedecer, gerando uma instabilidade social,
algo contrário ao propósito da instituição de um Estado de Direito, que
consiste em estabelecer a harmonia na sociedade.
O mal de uma lei retroativa surge, pois os homens podem ter agido sobre o estado anterior da lei e, assim, as ações praticadas podem ser frustradas ou inesperadamente reguladas por uma alteração legal de efeito retroativo. Mas às vezes ação tomada com base na lei anterior pode ser desfeita, desde que algum aviso é dado sobre a iminente mudança e a mudança, por si só, não se torna eficaz rapidamente, que o tempo insuficiente é desconsiderado, para que se faça os ajustes ao novo estado da norma.(Fuller,1969, p.80)
Dessa forma, para não haver prejuízos percebe-se que a posição
apontada por Fuller, previu um duplo prejuízo na moralidade interna do
direito, quais sejam aplicação de uma lei retroativa e mudança repentina da
lei, reduzindo a eficácia da lei.
Outrossim, é preciso haver congruência entre a ação dos operadores
do direto e o que as normas declaram. Para Fuller, este é o mais complexo
de todos os requisitos da moralidade interna da lei, pois poderá ser
desobedecido de várias formas. Como se percebe este pressuposto se
correlaciona com a interpretação das normas e, por isso, o papel das cortes
na aplicação deste é um dos mais relevantes. No caso brasileiro, pode-se
apontar as decisões proferidas pelo STF7 para exemplificar uma ação que
procede de acordo com o pressuposto abordado neste parágrafo. Para
descrever o que entende por interpretação Fuller cita Gray, cuja concepção
indica para interpretar procurando os significados nas noções e idéias
individuais que a linguagem oferece e não nas idéias gerais:
Interpretação é geralmente falada como se sua principal função fosse descobrir qual o sentido que o Legislador realmente quis dar a norma. Mas quando o Legislador teve uma intenção real, um caminho ou outro, em um ponto, não é uma vez em cem vezes que alguma dúvida surgirá sobre qual intenção era...(Fuller, 1969 , p.83)
7 A proposta das súmulas vinculantes é o melhor exemplo da aplicação deste requisito no STF, onde se procura unificar a interpretação para evitar conflitos de interpretação.
24
E aí está a complexidade da interpretação, muitas dúvidas surgem, e
diversas formas aparecem, o que leva algumas vezes a diversas soluções.
Assim, como já dito anteriormente este principio também funciona segundo
uma espécie de “corporativismo” cujo funcionamento só será efetivo se
todos os outros requisitos da moralidade interna do direito estiverem de
acordo, pois o legislador deve facilitar a tarefa de interpretar a regra. Na
verdade, a questão da congruência significa um esforço de uniformizar a
interpretação que se faz do sistema de regras para que as ações dos agentes
oficiais sejam previsíveis, esperadas e conhecidas. Um ponto ligeiramente
tratado por Fuller é no caso de ausência de regra, qual interpretação deveria
ser tomada, e aí neste caso Fuller é uníssono ao dizer que o juiz tem toda
atribuição para fazer uma lei que possa regular o fato da vida carente de
regulação legal. Assim, procedimentalista que é, Fuller entende que “se os
autores da legislação trabalham para cumprir suas responsabilidades, eles
devem ser capazes de antecipar os modos racionais e relativamente estável
de interpretação”.(Fuller,1969, p.91)
Por último, Fuller destaca que aplicação dos pressupostos
demandados pela moralidade interna do direito depende de um legislador
consciente de suas responsabilidades, de formar que um sistema de regras
livre de vicissitudes aterradoras de sua aplicação. As infrações à moralidade
da lei tendem a se tornar cumulativas, ou seja, quando se infringe um
pressuposto e não se move para desconstituir esta infração a tendência é que
outro pressuposto seja também prejudicado. Por exemplo, a falta de
publicidade poderá causar a necessidade da retroatividade da lei,
promovendo a possível mudança, que caso seja lenta poderá gerar a
utilização do uso do poder discricionário pelo operador do direito, e, por
sua vez, prejudicar a obediência da conduta dos agentes oficiais em relação
à lei, que não sabem o conteúdo correto da lei e, portanto, não poderão estar
em congruência com a substância da legislação. Percebe-se, então, que a
moralidade interna do direito é um todo que funciona organicamente para
tornar a eficácia da lei possível e carente de erros que possam gerar
25
controvérsias e instabilidades nas relações sociais. Muitos estudam Fuller e
o dizem procedimentalista, pois sua análise da moralidade quando
concluída só se tornará livre e plena quando realizada pelo legislador, mas
nos casos em que o legislador não previu tais requisitos nada impede a
aplicação destes pelas cortes, como explicitado neste trabalho por decisões
da corte americana.
...é fácil ver que as leis devem ser claramente expressas, por meio de regras gerais, que tenham efeito prospectivo e sejam conhecidas pelo cidadão. Mas saber como, sob que circunstâncias e em que equilíbrio estas coisas devem ser realizadas, só sendo um legislador para responder e normatizar tais indagações. (Fuller, 1969, p.64)
26
3 – O POSITIVISMO JURÍDCO
Para discorrer sobre a teoria positivista de Hart é inevitável se fazer
uma incursão histórica sobre o positivismo, por ser extremamente complexa
a teoria positivista do direito. Assim, recorremos a obra Sul Positivismo
Giuridico8- lançada por Bobbio, em 1961, logo após a realização de um
encontro em uma cidade italiana, do qual Hart e Ross se fizeram
presentes.O termo positivismo jurídico nada tem a ver com o sentido dado
pela filosofia à expressão positivismo, aliás é o que alerta Bobbio9, mas
indica apenas um antagonismo ao direito natural. O direito positivo e o
direito natural são os dois grandes paradigmas da historia da teoria e
filosofia do direito, existentes desde a Grécia clássica.
Os doutrinadores jusnaturalistas defendem que existem normas e
princípios superiores aquelas positivadas atreladas ao valor de justiça. Tal
sistema de normas e princípios dariam validade às normas estabelecidas
pelo Estado. Assim, a idéia de justiça para o direito natural é fundamental
para a validade do direito, pois há um sistema anterior à existência do
soberano e superior a este que regula suas ações, devendo prevalecer sobre
as normas formalmente positivadas.10
As diferentes concepções de justiça influenciadas pelos momentos
históricos proporcionaram, paradoxalmente, o surgimento do positivismo
jurídico11. É na virada da época Medieval, na qual teorias científicas eram
8 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 1995. 9 Ibid., p.15. 10 BEDIN, Gilmar Antonio. Direito Natural. In: BARRETO, Vincente de Paulo (ORG.). Dicionário de Filosofia do Direito. São Leopoldo: Unisinos; Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.240 11 HUPFFER, Haide Maria. Educação Jurídica e Hermenêutica Filosófica. 2006. 380f. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Direito. Universidade Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2006, p.54: “Bobbio é um dos melhores autores que resume esta posição dizendo que o direito natural não é direito com o é o direito positivo e, em segundo lugar, diz que o direito natural é um equívoco; portanto, não serve para fundamentar um acordo unânime sobre o que se entende por justo ou injusto. Seu fundamento está sobre a unanimidade sobre o que se entender por justo ou injusto. Seu fundamento está em que não há unanimidade sobre o que se conceitua como
natural. Enfatizar esta questão significa, para Bobbio, uma forma de mostrar a impossibilidade de a sociedade ser regida por um sistema de legitimidade natural, ou seja, por um direito natural que
27
justificadas com base na ordem divina, para a Modernidade que a
racionalidade passa a ser o parâmetro do fundamento científico o que
implica uma definição cientifica de justiça. A partir da transição dos
paradigmas da humanidade, em que a razão passou a ser a base de todo o
cientificismo, elaborou-se um dos primeiros conceitos sobre o Direito do
Positivismo, por Hobbes, segundo o qual: uma lei é a ordem daquele ou
daqueles que tem o poder soberano, dada àqueles que são seus súditos,
declarando publicamente e de modo claro o que todos podem fazer e o que
devem se abster de fazer. 12
Esta idéia, que subsistiu aos dias atuais traz
uma concepção que o Estado estaria acima de todos os indivíduos da
sociedade, possuindo um poder ilimitado sobre todos eles.
Atento a esta definição Bobbio aponta duas características inerente a
concepção positivista do direito: o formalismo, expresso no fato de ser
direito o que é posto pelo Estado independente do conteúdo; e o
imperativismo, manifesto na idéia de comando na qual o direito é
constituído pelos comportamentos autorizados ou proibidos pelo Estado.
Nada obstante, ainda não se pode falar em positivismo nessa época, tendo
em vista a forte expressão de algumas idéias do direito natural como a lei
natural, o contrato social, dentre outras. Somente com o fenômeno das
codificações pode-se identificar resquícios de positivismo tal como o
defendido por Bobbio e Hart. É na França de Napoleão que surge um dos
mais importantes códigos da história, utilizado inclusive na atualidade
como parâmetro para determinadas situações. Foi no Código de Napoleão
(1804) que ficou consagrado o princípio da codificação, segundo o qual
será feito um código de leis civis comum a todo povo.13
tem como dogma valores naturais e imutáveis no tempo. Essa característica, para ele, não garante, nem segurança, nem paz, principalmente por que carece do atributo da eficácia.” 12 HOBBES, Thomas. Diálogo entre um filosofo e um jurista. São Paulo: Landy, 2001. 13 BOBBIO, Norberto. O positivismo Jurídico, op.cit., p. 65-66.
28
É, também, no Código de Napoleão em seu art. 4º 14 que se
estabeleceu pela primeira vez o princípio do non liquet, segundo o qual o
juiz não poderá se eximir de julgar as questões que chegam a seu controle
sob pena de estar negando a justiça ao cidadão. Tal artigo enseja grandes
debates até os dias atuais, tendo em vista que nos casos de insuficiência e
silêncio da lei o juiz não teria uma resposta do sistema jurídico para
resolver a controvérsia. O positivismo por afastar a valoração moral das
normas do direito dá abertura a discricionariedade do juiz para o julgamento
destes casos. Retornemos agora a Bobbio para apontar as sete premissas
que ele se pautou para estabelecer o positivismo na época do Estado
Moderno:
1) O direito deve ser encarado como um fato e não um valor.
2) A coação é elemento essencial a definição do direito.
3) A lei é a única fonte de qualificação. Ou seja, uma lei só é válida
se emanada de uma fonte autorizada. A teoria positivista adota o
princípio de que a lei tem maior hierarquia do que qualquer outra
fonte de direito.
4) A norma jurídica é um comando.
5) O sistema jurídico é considerado o conjunto de normas vigentes
em uma sociedade, dotada de coerência, completude e unidade.
Segundo esta teoria, denominada teoria do ordenamento jurídico,
direito passa a ser visto não como uma norma singular, mas como
um unitário conjunto sistemático de normas, sempre
fundamentado em três características essenciais: unidade,
coerência e completude; indicadoras do unitarismo das normas,
ausência de antinomias e de lacunas na lei, conceito muito
criticado pelos que estudam a ciência jurídica.
14 Este artigo foi o primeiro da história do direito a estabelecer o princípio do non liquet, segundo o qual o juiz que se denegar a julgar sob o pretexto do silêncio, da obscuridade, ou da insuficiência
da lei, poderá ser processado como culpável de justiça denegada.
29
6) A interpretação do Direito é uma atividade mecanicista. O jurista
deve limitar-se a declarar e reproduzir o direito preexistente
através de técnicas interpretativas textuais tais como: a léxica,
teleológica, sistemática e histórica.
7) O dever de obedecer às leis é absoluto e incondicionado.
Ressalte-se que para ser um positivista jurídico não se deve
necessariamente se pautar nessas premissas. Elas apenas apontam
características principais deste, existindo inclusive contradições lógicas
entre teses positivistas. Atualmente existe uma infinidade de teorias
positivistas jurídicas, sendo quase que impossível fazer uma crítica
antipositivista geral ou até definir o que seja o positivista de maneira
uniforme, conforme aduz Bobbio. Por isso, o positivismo jurídico é
considerado uma teoria descritiva, analítica e explicativa, proporcionando
uma precisa caracterização do direito tal como ele é na realidade. Dessa
forma, é preciso distinguir cada tipo de positivismo jurídico de acordo com
o seu defensor. Hierro por exemplo definiu algumas classificações para
poder traçar linhas gerais de teses positivistas tais como: a tese das fontes
sociais, que como o próprio nome diz afirma que do direito tem origem
social, através de convenções; a tese da identificação objetiva, cujo
significado defende que o direito surge de fatos observados ou de fontes
objetivas; e, por último, a tese da separação, que a definição separa o
direito da moral. Como veremos a seguir a teoria do direito de Hart se
encaixa em todas estas teses, e, por isso, é uma corrente positivista
completa. As discussões ocorridas dentro das teorias positivistas fizeram
com que esta fosse se modelando e se modificando em busca do melhor
aperfeiçoamento. Após estas considerações iniciais, passemos ao
positivismo de Hart para entender o que o positivismo mais atual entende
filosoficamente como se interpreta, como se aplica e como se fundamenta o
direito.
30
3.1- O POSITIVISMO ANALÍTICO DE HART
Hart pretende descrever o Direito como ele efetivamente é para
estabelecer seu critério de identificação. Assim, ele é filósofo do direito da
área denominada “jurisprudência analítica”15, pois seu método pretende
descrever o direito como ele é. O direito para Hart é um sistema de regras, a
fonte do direito por excelência para ele, além disso, não serão somente as
regras jurídicas que imputam uma sanção que serão definidas por Hart
como jurídicas, ao contrário dos outros positivistas como Asutin. Sua
principal obra O conceito do Direito é considerada, por muitos, uma das
grandes obras de renome do século XX sobre a Teoria do Direito, e tem
como crítica a teoria do direito de John Austin que define a regra jurídica
baseando-se no comando que impõe uma sanção a seu infrator.
A definição feita por Hart é construída a partir de um entendimento
sociológico em que se busca o contexto onde o termo “direito” é usado na
comunidade. Ou seja, quando observadas as práticas sociais dentro de uma
comunidade Hart, conforme sua concepção convencionalista do direito,
defende a investigação dos padrões praticados pela sociedade quando é
realizada determinada prática social para que se possa normatizar esta
prática social de maneira efetiva. Assim, o gênero lingüístico na teoria do
Direito de Hart é bastante utilizado para definir o direito, pois através da
investigação da linguagem convencionada construtivamente para definir o
direito da comunidade surgirá a devida descrição normativa para Hart por
meio da linguagem comum da sociedade.
Nada obstante, ao analisar a natureza da linguagem Hart percebeu que
elas são dotadas em determinados casos de certa ambigüidade e vagueza,
prejudicando a clara interpretação da norma para sua reprodução. Nestes
casos, Hart denomina de “textura aberta” da norma a dúvida quanto ao
sentido expresso por ela, permitindo aquele que está autorizado a interpretar
15
STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem Uma análise da Textura Aberta da Linguagem e sua
aplicação. Renovar, 2002, p.02.
31
a lei, o poder judiciário ordinariamente, criar um sentido. Quanto as críticas
em relação a tomar o sentido correto, Hart entende que se não tinha a norma
sentido algum não há que se falar em sentido correto ou em sentido errado,
pois não existe qualquer interpretação que o juiz deva estar vinculado.
Somente se houver uma interpretação preexistente dando interpretação
duvidosa a norma é que o juiz estará vinculado ao sentido exato da norma
(Sgarbi, 2006, p.130). Fugindo das classificações feitas pelos formalistas e
antiformalistas16.
(1) um enunciado do tipo ‘X tem um direito’ é verdadeiro se as seguintes condições são satisfeitas: (a) existe um sistema jurídico; (b) sob a regra ou as regras do sistema uma pessoa Y está, nos eventos que aconteceram, obrigada a praticar ou se abster de praticar uma determinada ação; (c) em virtude do direito,essa obrigação depende da escolha feita por X ou por outra pessoa autorizada a agir no seu interesse, de tal forma que Y está obrigado a praticar ou abster-se de praticar a ação determinada somente se X (ou alguém autorizado) assim escolher ou, alternativamente, somente até que X (ou aquela pessoa) escolha de outra maneira. (2) Um enunciado do tipo “X tem um direito” é usado para extrair uma conclusão do direito em um caso particular que se subsuma. (Hart, 1953, p.16)
Esta é a forma como Hart entende que um sistema de regras deverá
funcionar. Explicando melhor é mais prático contextualizar o uso do termo
“direito” em uma dada sociedade para se extrair a regra, ou seja, os padrões
utilizados pela sociedade no cotidiano que constroem determinada regra
social que irão definir o conteúdo do direito, segundo Hart. Esta é a teoria
do direito de Hart. Além disso, pretende-se através desta teoria responder e
desenvolver três questões : de que forma o direito se diferencia e se
relaciona com outros poderes baseados na ameaça; como se diferencia
obrigações jurídicas e obrigações morais; e o que são regras e em que
medida o direito é uma questão de regras.17
16
A diferença consiste, nas palavras de Hart que o formalismo: “ consiste numa atitude para com as regras formuladas de forma verbal que, ao mesmo tempo, procura disfarçar e minimizar a necessidade de tal escolha, uma vez editada a regra geral. Um modo de conseguir isto consiste em fixar o significado da regra, de tal forma que os seus termos gerais devam ter o mesmo significado em cada caso em que esteja em causa sua aplicação”. Já o antiformalismo, ceticismo para Hart, “(...) falar sobre regras é um mito que esconde a verdade que afirma o direito simplesmente em decisões dos tribunais”. SGARBI, Adrian, Os clássicos da Teoria do Direito. Lumen Juris, Rio de Janeiro ,2006, p. 131. 17
Ibid., p.106.
32
Na busca por estas respostas Hart procurou estudar como as normas se
estruturam e se aplicam segundo um observador, ponto de vista externo, e
do ponto de vista interno, ou seja, daquele que é afetado pela norma. Assim,
na perspectiva do observador da ocorrência da regra, observa-se que ela é
dotada de “persistência”, cujo significado é que as regras perduram àqueles
que as criaram, ou seja, elas continuam existindo mesmo com o
desaparecimento ou extinção de quem as criou. Já a continuidade, outra
característica externa da regra apontada por Hart, pressupõe que o poder de
criação de regras é ininterrupto, estas podem ser criadas indefinidamente.
São estas características que diferenciam o direito de outras ordens
baseadas na ameaça como a ordem de uma mãe a um filho, ou a de um
chefe a seu subordinado, extremamente diferente da regra que obriga o
pagamento do imposto de renda anualmente.
Observando um fato, em que uma mãe obriga seu filho a ir à escola e se
alimentar, caso contrário um castigo lhe será imposto, a primeira vista
poderíamos entender que esta não é uma regra jurídica, pois se o filho fosse
para a casa de outro parente ele poderia fazer o que bem entendesse, e a
persistência desta estaria quebrada. Porém, ao chegar a casa desse outro
parente, o menor novamente é obrigado a ir à escola e se alimentar, ou seja,
mesmo fora da casa de sua mãe a mesma regra lhe foi imposta, e a cada
casa que o garoto chegava o mesmo lhe ocorria. Observa-se aqui a
característica da persistência, mas neste fato extrai-se outro elemento do
conceito do Direito elaborado por Hart, a institucionalização pela qual uma
regra é amplamente aceita e praticada por toda a sociedade, de forma
institucional.
As regras jurídicas são aquelas obedecidas pela sociedade como um
todo, resgatando novamente a idéia da contextualização usada por Hart para
a definição do direito. Além disso, a persistência e continuidade por si só
não poderiam definir um conjunto de regras que é o direito se não ocorresse
o fenômeno da institucionalização. Este seria mais um elemento
33
caracterizador da regra social que irá compor o sistema de regras jurídicas,
tendo em vista o seu caráter usual e observados os três elementos de formas
conjugada: persistência, continuidade e institucionalização. Para tanto é
fundamental entender o direito como uma prática social. Estes
apontamentos feitos por Hart são uma crítica feita a Austin cuja teoria
defende o direito como um conjunto de regras dotadas de ameaça.
Ao analisar a institucionalização do direito, herdeiro e crítico que é Hart
de John Austin, o autor faz uma critica a falta de diferenciação que este faz
aos termos “hábitos” e “regras sociais”, destacando que em uma teoria
jurídica somente as regras sociais têm relevância, pois são nelas que
aparecem as expressões normativas que ensejaram na existência de uma
norma jurídica. Os hábitos são comportamentos corriqueiros dos indivíduos
tem persistência, até continuidade e institucionalização, porém eles não
estão obrigados agir ou se abster de agir de tal forma. Já as regras sociais
possuem uma obrigação, existe uma pressão social para que os indivíduos
tenham determinados comportamentos podendo sofrer retaliações. Nas
palavras de Hart hábitos são “comportamentos regulares” e regras sociais
“comportamentos regulados”.
Por conseguinte, analisando o aspecto interno do hábito e das regras
sociais pode-se perceber uma grande diferença. Como diz Hart o aspecto
interno é: “o ponto de vista conforme dos que não se conformam a anotar e
a predizer o comportamento conforme as regras, mas que usam as regras
como padrões para a apreciação do comportamento próprio e dos outros”.18
O que queria dizer Hart com isso? O autor aponta para o fator reflexivo e
comparativo do aspecto interno, ou seja, a autocrítica feita pelo autor do
comportamento quando pensa em seu ato e relaciona com a forma que seus
semelhantes agem para concluir com a melhor conduta a ser tomada.
Outrossim, é no aspecto interno que também surgirá o elemento
diferenciador das práticas sociais relevantes para a definição do direito, o
18 HART, Herbert Lionel. The Concept of Law. Oxford: Oxford University Press, 1961, p.108.
34
fator que levará os indivíduos a criticarem suas posturas quando se
compararem em relação aos outros. É essa abordagem que, segundo Hart,
torna presente expressões avaliativas, “isso é bom”, ou “isso é ruim”. Nada
obstante a existência de uma regra social ser a condição necessária para
haver uma obrigação, esta não é uma condição suficiente, pois o “sentir-se
obrigado”, que tem maior relação com a eficácia, não é o mesmo de “estar
obrigado”, que tem maior relação com a validade.19
3.1.1- OBRIGAÇÃO MORAL E OBRIGAÇÃO JURÍDICA SEGUNDO
HART
É notoriamente conhecido que Hart, e os positivistas como um todo,
definem o direito de forma a distingui-lo de outras regras sociais como a
moral e a coerção. Em sua obra O conceito do Direito Hart já inicia
afirmando esse propósito, mas, no desenvolvimento desta, ele reconhece
que o direito apesar de ser um fenômeno distinto da moral contém
resquícios desta.20 Assim, Hart descreve quatro semelhanças entre o direito
e a moral, reconhecendo que há um ponto de contato entre eles. A
equivalência entre as partes é a forma como o direito e a moral tendem a se
reproduzir na sociedade com as seguintes características: vinculação à
obrigatoriedade da norma independente do juízo que se faz dela; pressão
social; cumprimento necessário a manutenção da vida social constituindo
uma obrigação do indivíduo com o meio social regulando condutas
cotidianas.
Em contrapartida, Hart entende que o direito e a moral se diferem
nos seguintes pontos: uma regra moral só terá vigência, validade e eficácia
em uma sociedade se esta a aceitar, já uma regra do direito pode ser
aplicada e não ser aceita pela sociedade; as regras morais não são passíveis
de alterações ao bel-prazer de seus destinatários como são alteradas as
regras do direito; a isenção de responsabilidade que a regra da moral dá
19 SGARBI, Adrian, op. cit., p.122-123. 20 Ibid. p.138.
35
aquele que a transgride sem intenção também a distingue da regra do
direito; a forma de pressão imposta pela norma moral é menos intensa que
aquela imposta por uma norma de direito, pois a transgressão moral é
ordinariamente punida pela consciência, já a do direito pelo aparato estatal.
(Sgarbi, 2006,p.137-143)
Além disso, Hart considera a existência de um “direito natural
mínimo” onde os indivíduos que são regulados por este direito o aceitam
sem questionamentos por serem “verdades óbvias” sem necessidades de
argumentações ou deliberações a seu favor, aproximando a moral ao direito
novamente, cuja pura apresentação, já constitui prova de sua afirmação de
validade, existência e outros requisitos que uma regra jurídica exige para
ser positivada.21 Neste sentido, Hart considera que existem “quatro
verdades obvias”. A primeira se refere a um possível ataque em que os
homens estão expostos a sofrer dos outros homens e, por isso, a maioria das
regras jurídicas e morais são abstenções, formulações negativas, para
impedir que este ataque ou violação ocorra, e que a vida social se torne
impossível. A segunda afirma que somente um homem individualmente não
poderá subjugar outros homens a seu poder para realização de suas
necessidades a revelia, fazendo com que a cooperação seja necessária para
constituir também uma vida social estável estando esta verdade na base
tanto da obrigação moral quanto da obrigação jurídica. O terceiro truísmo é
algo denominado “altruísmo limitado”, que reconhece que o homem
naturalmente não é nem bom por excelência e nem totalmente ruim, o
homem mediano esta no meio, tem tanto a bondade quanto a maldade
dentro de si o que é reconhecido pela moral e pelo direito. O quarto truísmo
reconhece que a natureza não pode oferecer recursos suficientes a todos
homens, pois estes são finitos, promovendo a necessidade de cooperação
mútua, de trabalho conjunto, para que os recursos possam ser divididos, ou
seja, necessidade de formação da sociedade e de equivalência entre os
21
Id., ibid., p.140.
36
indivíduos. Por último, a quinta verdade obvia é que tanto a moral quanto o
direito prevêem sanções para as transgressões de suas regras, pois se
aqueles que tivessem cumprindo não tivessem um diferencial que os
incentivasse a continuar obedecendo as regras provavelmente elas poderiam
ser transgredidas por todos.
3.1.2- A REGRA DE RECONHECIMENTO DE HART
Dentro das práticas sociais institucionalizadas relevantes para o
direito existem dois tipos de regras para Hart: aquelas que impõem deveres,
as normas primárias, e as instituidoras ou atribuidoras de poderes, as
normas secundárias. Segundo o filósofo, um sistema jurídico deverá ter
fundamentalmente estes dois tipos de normas sob pena de: não ter um
critério para determinar quais regras pertencem e quais não ao sistema
jurídico, tornando-se um sistema incerto; não descrever a forma como
novas normas são incluídas no conjunto e como outras do próprio conjunto
são incluídas, constituindo certa rigidez; e não ter uma autoridade com
poder para determinar, de forma definitiva, uma violação. Portanto, em um
sistema jurídico devem existir normas primárias e secundárias:
“[o] remédio para cada um destes três defeitos principais [rigidez,incerteza e
ineficácia], consiste em complementar as regras primarias de obrigação com
regras secundárias, as quais são regras de diferentes espécies. A introdução de um
corretivo para cada defeito poderia em si ser considerado um passo na passagem
do mundo pré-jurídico para o jurídico, uma vez que cada um desses remédios traz
consigo muitos elementos que vão permear o direito: os três remédios em
conjunto são o bastante para converter o regime de regras primárias naquilo que é
indiscutivelmente um sistema jurídico.” ( Hart 1994, p. 103 )
Para o juspositivista Hart, esse novo modo de descrever as normas
revela uma sofisticação em relação ao modo anterior elaborado por Kelsen,
onde normas completas eram aquelas dotadas de sanções e as que não
tinham não eram consideradas verdadeiras normas e, por isso, incompletas.
37
A partir deste momento, desloca-se a questão das ordens baseadas em
ameaças para leis dirigidas a funcionários para que apliquem sanções22, ou
seja, para a dicotomia: “normas coercitivas”, as normas primárias, e
“fragmentos de normas coercitivas”, as normas secundárias, estas que
atribuem a competência a pessoas para a aplicação de sanções.
Através do estabelecimento das noções de norma primária e normas
secundárias, Hart propõe uma nova concepção do ordenamento jurídico e
da teoria da nulidade. As normas primárias são aquelas que impõe deveres,
e as normas secundárias são aquelas que atribuem poderes. Assim, ao invés
de classificar como normas incompletas aquelas em que não há sanções,
Hart classifica como normas secundárias, cuja competência é atribuir
poderes a quem deve impor sanções, mitigando a teoria da nulidade de
Kelsen, como dito no parágrafo acima.
Mas, o grande avanço do positivismo de Hart se refere à regra de
reconhecimento. Para o autor, um sistema ou ordenamento jurídico onde só
existem normas que estabelecem condutas e comportamentos, ou seja,
normas primárias:
(1) As regras devem conter restrições ao livre uso da violência, ao furto
e à fraude;
(2) Mesmo que exista uma minoria que rejeite essas normas, deve haver
uma maioria que as aceite;
(3) A sociedade em questão deve ser pequena e ligada por estreitos laços
de parentesco, sentimentos comuns e crenças;
(4) É necessário que o ambiente desta sociedade seja estável.
Caso contrário, sem qualquer destas características esta comunidade não
continuaria a existir harmonicamente conforme o escopo perseguido pelo
Direito, pois careceria de certeza, dinamicidade e eficiência. Certeza porque
22 HART, Hebert Lionel, op. cit., p. 140.
38
sem que haja uma autoridade para indicar quais regras serão aplicadas e um
procedimento estabelecido, determinando a identidade e o pertencimento da
norma, não há que se falar em marca “comum” identificadora da norma.
A falta de dinamicidade consiste no fato de que um sistema que só prevê
regras de conduta não possui mecanismos para modificar as alterações
sociais do tempo e, portanto, tende a se tornar obsoleto. E, por último, o
critério da eficiência aponta para a necessidade de uma estrutura que torne
efetivo o cumprimento das normas, pois somente a pressão social não se
mostra eficaz, por ser difusa e descentralizada. Assim, para suprir a
carência destes requisitos do ordenamento jurídico em uma sociedade
simples ou pré-jurídica, certeza, dinamicidade e eficiência, Hart defende a
prescindibilidade das normas secundárias, aquelas que atribuem poderes,
quando houver a formação de um sistema complexo de normas, ou seja, em
uma sociedade como a que vivemos nos dias atuais, já que em sociedades
simples como as tribais a pressão social se encarrega de tornar estes três
requisitos eficazes.
Na verdade, Hart observou que diante do contexto em que viviam as
comunidades tribais, a simplicidade das relações sociais intersubjetivas era
compatível com a existência de normas primárias, tão-somente. Porém, com
o crescimento e ulterior complexidade das populações, bem como das
relações sociais, o caráter difuso da pressão social não seria capaz de tornar
efetiva a obrigação de cumprir as normas primárias, trazendo a necessidade
da construção das normas secundárias.
Às normas secundárias competirá, além de por fim à incerteza da norma
primária em um sistema complexo, por fim ao caráter estático e à carência
de eficácia. Nesses termos as normas secundárias poderão ser: norma de
reconhecimento, norma de modificação, normas de julgamento, ou de
adjudicação. Normas ou regras de julgamento, ou de adjudicação, são as
solucionadoras da carência de eficiência do ordenamento. Elas têm o
escopo de instaurar os órgãos de aplicação das normas primárias, bem como
39
os procedimentos a serem aplicados. Normas ou regras de “modificação” se
prestam a solucionar o problema da carência de dinamicidade especificando
as pessoas que podem legislar, estabelecendo o procedimento que deverá
ser aplicado, os efeitos e atos. Desse modo, estas são as regras que afastam
o problema da estaticidade do ordenamento jurídico possibilitando a criação
de normas de acordo com os avanços sociais.
Normas ou regras de reconhecimento são as mais importantes, pois dão
ao ordenamento jurídico segurança. As regras de reconhecimento
esclarecem quais normas primárias pertencem ao direito, eliminando as
dúvidas de o que é e o que não é da ordem jurídica. A partir da
desconstituição da teoria imperativa de Austin, que se baseava na vontade
ilimitada do soberano, Hart explica que as obrigações geradas pelo direito
advêm de regras, e este é ponto diferenciador de Hart em relação a Austin,
pois este imputava as sanções dos comandos do soberano a gênese das
obrigações do direito. A crítica feita a Austin por Hart é o fato deste não ter
definido o direito utilizando o conceito de regras como fonte principal do
direito.
Nestes termos, a regra de reconhecimento deve ser manejada dentro do
contexto das regras sociais em geral e, além disso, a relevância do grupo
que a determina não importa, pois é o padrão como as regras sociais se
reproduzem na sociedade que terão relevância para a regra de
reconhecimento. Como enfatizado anteriormente, a regra de
reconhecimento é dotada de autocrítica e reflexão, assim como as regras
sociais ela também tem aspecto interno. Além disso, a regra de
reconhecimento tem uma ampla abrangência social podendo ser utilizada
por qualquer um da sociedade, desde um cidadão normal até os juízes da
corte para validar uma regra. Hart usa o exemplo das colônias, onde as
decisões eram subordinadas a decisão do Rei, e não havia uma organização
local suficiente para determinar quais regras seriam válidas para o
desenvolvimento daquela comunidade. A princípio imaginar-se-ia que não
40
há aqui construção social de uma norma secundária em contrapartida das
normas primárias pré-estabelecidas.
Porém, apesar de haver a invalidação do sistema jurídico anteriormente
em vigência, observa-se que a estrutura do sistema permanece a mesma e as
pessoas que faziam parte do sistema reconheciam quais normas seriam
direito. E, não importa qual seja a razão da derrocada do sistema jurídico,
os tribunais poderão continuar em funcionamento, cabendo somente a
estrutura política a manutenção do funcionamento da estrutura do direito, a
regra de reconhecimento permanece a mesma, o que muda é a estrutura
social, por este motivo o grupo social não é relevante para a validade do
direito segundo a regra de reconhecimento de Hart.
Então, a regra de reconhecimento é inclusiva e exclusiva. Inclusiva
quando reconhece as normas, e exclusiva quando não reconhece as normas,
ou seja, em relação às normas de outros ordenamentos. Igualmente, a regra
de reconhecimento é o último critério de validação das normas do
ordenamento, ou seja, está acima da constituição.23 Por último, ressalta-se
que a regra de reconhecimento é uma prática social e, por isso, não há que
se falar em validade ou invalidade desta.
A última distinção que deve ser feita sobre a regra de reconhecimento é
que apesar de o último critério de validação de uma norma jurídica, a regra
de reconhecimento de Hart não é o mesmo que a Regra Fundamental de
Kelsen. A regra de reconhecimento é um fato e como tal não pode ser
válido ou inválido, somente passível de ser verdadeiro ou falso. Já a norma
fundamental de Kelsen se fundamenta em pressuposições norteando e
principiando a elaboração de uma constituição, aí sim poderia falar-se em
validade ou invalidade. Nas palavras de Hart:
A afirmação de que existe só pode ser uma afirmação externa de fato. Porque, enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido, ‘existir’, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais dos
23
Ibid., p.118.
41
funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referencia a certos critérios. A sua existência é uma questão de fato.24
A regra de reconhecimento do professor Hart tem um caráter híbrido
“extrapositivo”, pois é uma prática social e não uma norma jurídica, ou uma
obra do pensamento que é a Norma fundamental de Kelsen. Portanto, a
regra de Hart é do mundo empírico, representando uma descrição normativa
das práticas sociais que tenham todas as características aqui apontadas, qual
seja: persistência, continuidade, institucionalização, auto-refelexividade do
indivíduo, e que seja uma descrição lingüística segundo a linguagem
convencionada socialmente.
24
Ibid., p.121.
42
4 – O DIREITO SEGUNDO DWORKIN
Apesar de Dworkin ter sido aluno de Hart na Universidade de
Oxford o decurso do tempo o fez se tornar crítico de seu professor ao
desenvolver sua teoria do direito. Assim, Dworkin recebe ampla
ressonância internacional quando publica sua obra Levando os Direitos a
Sério (1977), fundando as principais bases teóricas de sua obra, que será
retocada posteriormente em O império do Direito (1986).
A grande diferença de Dworkin em relação a Hart está na base de sua
teoria do direito que, ao invés de ser uma teoria analítica do direito, presta-
se a desenvolver uma teoria “melhor” do direito, ou seja, descrever como o
direito deve ser. Dworkin pretende estudar os casos onde não haja uma
regra de direito clara e, também, onde a subsunção da norma seja de difícil
ou impossível aplicação nos fatos da vida real, nos chamados casos difíceis
(hard cases).
Hart, defensor e instituidor da regra de reconhecimento, entende que
o direito e a moral estão separados, apesar de garantir a existência de um
direito natural mínimo, onde a moral estaria presente diante de algumas
verdades incontestáveis. Em contrapartida, Dworkin ao pontuar a
aproximação entre o direito e a moral através dos princípios, demonstra
insatisfação com critério de identidade do Direito de Hart da regra do
reconhecimento.
4.1 – O MODELO DE REGRAS DE DWORKIN
Diante do Direito anglo-saxão o filósofo se utiliza de dois casos
ocorridos nos Estados Unidos, em que os juízes julgam através de
princípios e não de regras. Nestes termos, no desenvolvimento de sua
concepção de direito e criticando seu professor Hart estipula que os
princípios são fonte do direito e, ainda, diferentemente das regras onde há
43
uma proposição verdadeira ou falsa, pois as regras regulam uma situação
específica e são menos flexíveis em sua aplicação.
Um dos casos apontados por Dworkin é o Riggs VS. Palmer onde o
demandante, neto e beneficiário do testamento de seu avô, requere que o
testamento seja obedecido para desfrutar da herança que lhe cabia. A
dificuldade do caso é o fato do neto ter matado o avô com a intenção de
antecipar a herança. Assim, no julgamento deste caso, os juízes aplicaram o
princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza decretando
que o neto não poderia ser beneficiário da herança do avô por tê-lo matado.
Dessa forma, para o filósofo o direito é um conjunto de regras e
princípios morais, e não só de regras. As regras são normas que se
subsumem ou não a situação da vida real de acordo com o preenchimento
das condições fixadas por ela mesma. Já os princípios não são auto-
aplicáveis ou subsumidos aos casos da vida real, mas são direções pelas
quais os aplicadores do direito deverão se pautar ao julgarem os fatos da
vida. Nas palavras de Dworkin:
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis quanto à natureza da orientação que oferecem. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso nada contribui para a decisão (Dworkin, 1989, p.39)
Um princípio como ‘nenhum homem pode beneficiar-se de seus próprios delitos’ não pretende estabelecer condições que tornem sua aplicação necessária. Ao contrário, enuncia uma razão que conduz um argumento em certa direção, mas necessita de uma decisão particular.(Dworkin, 1989, p.39)
Nada obstante, os princípios têm a característica do peso ou
importância com elevada relevância, por não apresentarem um resultado
específico. Assim, é na dimensão do peso ou importância que haverá um
juízo de razão para efetivar a melhor aplicação dos princípios na ocorrência
de antinomias entre mais de um princípio em determinadas situações. Ou
seja, quando ocorrer a identificação de mais de um princípio em um
determinado litígio, o de maior peso ou importância sobrevalecerá. Assim, a
44
escolha de um princípio não se faz através da subsunção, mas através de um
juízo avaliatório de seu peso.
A flexibilidade dos princípios possibilita à argumentação jurídica
melhor conformidade ao caso da vida real. Inúmeras são as exceções que os
princípios suportam, talvez até incontáveis, já as regras são mais rígidas e
carecem desta flexibilidade. Um sistema composto só de regras poderá
excluir as reais razões jurídicas e forças sociais envolvidas na elaboração do
debate e argumentação jurídica.
A aproximação do direito a moral através dos princípios feita por
Dworkin visa trazer as considerações morais de justiça, equidade,
igualdade, dotando os conflitos judiciais de maiores mecanismos para sua
solução. Portanto, o Modelo das Regras de Dworkin, em que existem
princípios e regras, pretende solucionar casos difíceis, onde não existam
regras claras definindo qual direito a ser aplicado, e também uma melhor
aplicação das regras nos casos solucionáveis, tendo os princípios como um
norteamento moral da melhor resposta da integridade do sistema jurídico.
Com efeito, o filósofo rechaça o critério de identidade da regra de
reconhecimento, pois esta só identifica as práticas sociais como regras,
excluindo os princípios, segundo Dworkin.
Em Levando os Direitos a Sério, Dworkin também diferencia
princípios de políticas, considerando que a confusão poderá tornar o direito
lugar de embates políticos no caso da utilização errada da política sob a
roupagem de princípios. Para o jusfilósofo, princípios descrevem direitos
segundo exigências das dimensões da moralidade, tais como justiça e
imparcialidade. Já as políticas são metas, um direito político tem por escopo
a proteção social, econômica e política dos indivíduos.
Um direito político é um objetivo político individualizado. Um indivíduo tem direito a certa oportunidade, recurso ou liberdade, se esta conta a favor de uma decisão política que a decisão tem a probabilidade de promover ou proteger o estado de coisas em que ele usufrui o direito, mesmo quando nenhum outro objetivo político é servido e algum objetivo político é desservido com isso, e conta contra essa decisão o fato de que ela retardará ou colocará em perigo o
45
estado de coisas, mesmo quando algum outro objetivo político é servido com isso. (Guest, 2010, p.65)
Muitas vezes, percebemos que um juiz ao esgotar todos os
argumentos jurídicos recorre ao “princípio” gerador da norma para aplicá-lo
ao caso concreto. Na verdade, deve-se fazer uma análise mais apurada, pois
poderá o magistrado estar na busca da vontade do legislador, e não às
ordens morais embasadoras da norma e, devido a ambigüidade do termo
política, exclui-se esta vontade para sobrepor os princípios morais.
Nada obstante, no direito norte-americano há casos em que os juízes
aplicam o termo política quando na verdade estariam falando de princípios,
como no caso em que Lorde Denning cita os critérios para demarcar os
limites do dever do réu na recuperação de sua perda econômica no caso
Spartan Steel25. Com isso, Dworkin aponta que a distinção entre princípio e
política, na verdade, é de forma e não de conteúdo, ou seja, não importa a
quantidade de pessoas que defendam uma ou outra posição, o importante é
a forma de sua aplicação. O que não significa que sejam também diferentes
em conteúdo, pois para Dworkin, direito são “trunfos” que vencem metas
políticas utilitaristas.
4.2 – O DIREITO COMO INTERPRETAÇÃO
Após esta breve introdução pode-se entender melhor a dimensão que
Dworkin dá ao direito. A teoria de Dworkin é interpretativista. Para
Dowrkin o direito deve ser visto segundo um corpo coerente dotado de
integridade e segundo suas finalidade e intencionalidade, mas não aquela
intenção do legislador, mas da fundamentação principiológica social, quer
dizer, dos valores morais que envolvem uma sociedade. Dworkin aproxima
a construção da interpretação do direito à interpretação artística em que
determinados princípios a definem para se desenhar um todo integro. O
exemplo do romance em cadeia, que será explicado, utilizado por Dworkin
explica melhor esta analogia com a arte e a importância dos princípios.
25
Spartan Steel v. Martin & Co. [1973] 1 QB 27, 36.
46
Sua teoria do direito sugere uma interpretação do direito direcionada
por propostas morais diretas, de aplicação universal, como a igualdade e a
liberdade. Estas propostas por serem universais jamais poderão ser
subjetivas já que são valores humanos enraizados ao redor de todo o mundo
independente de raça, cor, crença ou sistema político. Valores como
igualdade, imparcialidade, justiça podem facilmente ser encontrados no que
se conhece como direitos naturais, tais valores para Dworkin direcionam
qual interpretação deve ser feita do ordenamento jurídico.
Imagine a seguinte história a propósito de uma comunidade fictícia. Seus membros seguem um conjunto de “regras de cortesia”, usando-as em certo número de situações sociais. Eles dizem: “A cortesia exige que os componentes tirem o chapéu diante dos nobres”, por exemplo, e sustentam e aceitam outras proposições desse tipo. Por algum tempo, essa prática tem um caráter de tabu: as regras simplesmente estão ali, e ninguém as questiona nem tenta mudá-las. Mas em seguida, talvez lentamente, tudo isso muda. Todos desenvolvem uma complexa “atitude interpretativa” com relação às regras de cortesia, uma atitude que tem dois componentes. O primeiro é o pressuposto de que a prática da cortesia não apenas existe, mas tem um valor, serve a algum interesse ou propósito, ou reforça algum princípio – um resumo, tem alguma finalidade – que pode ser afirmado, independente da mera descrição das regras que constituem a prática. O segundo é o pressuposto adicional de que as regras de cortesia – o comportamento que ela evoca ou os juízos que ela autoriza – não são, necessária ou exclusivamente, aquilo que sempre se imaginou que fossem, mas, ao contrário, suscetíveis a sua finalidade, de tal modo que as regras estritas devem ser compreendidas, aplicadas, ampliadas, modificadas, atenuadas ou limitadas segundo essa finalidade. Quando essa atitude interpretativa passa a vigorar, a instituição da cortesia deixa de ser mecânica; não é mais deferência espontânea a uma ordem rúnica. As pessoas agora tentam impor um significado à instituição – vê-la em sua melhor luz – e, em seguida, reestruturá-la à luz desse significado. (Dworkin, 1986, p. 47-48)
A teoria do direito de Dworkin tem um entendimento interpretativo
dos fenômenos sociais para, em seguida, aplicá-lo ao caso específico do
direito. Neste sentido, Dworkin descreve o Direito usando a noção de
“simples fato” (“plain fact”). Utilizando a teoria de Hume elaborada em A
Treatise Human Nature, Dworkin baseia-se na idéia de que as proposições
factuais,construídas da observação do mundo, são a descrição dos fatos do
mundo. As proposições avaliatórias são aferições de valores dos fatos
sociais que estão no mundo. A noção do direito como “simples fato” se dará
com o contraste entre a proposição factual e a proposição avaliatória, pois
se unirá a descrição de fatos unida a valoração destes fatos. Ressalte-se que
47
quando se fala em valor não é necessariamente valor moral, mas um valor
qualquer que diferencie aquela proposição de uma proposição comum.
Assim, a proposição de valor não tem o condão de descrever a sociedade
que vivemos, mas de determinar a conduta correta, impondo-as sentidos de
bom ou ruim para a comunidade, ou seja, podemos chamá-las de
proposições normativas pelo sentido que se dá a estas condutas.26
Assim como Hart Dworkin também entende que as regras sociais
sejam dotadas de descrição e normatividade, mas para Dworkin é
necessário entender a semântica da construção regra para que haja sua
melhor aplicação. Então, na interpretação das normas é fundamental
entender não somente a descrição lingüística e normativa, mas
especialmente o seu sentido.
Assim, um relato unicamente descritivo do jogo de xadrez pode assumir várias
formas; por exemplo, na sua forma mais simples, ‘empurrar peças de madeiras
sobre um tabuleiro’, ou, na maneira mais refinada, ‘o deslocamento de peças em
conformidade com um conjunto específico de regras’. Uma descrição como esta
nos diz que isto é xadrez, em vez de dizer que é, digamos, damas, mas deixa de
descrever o que muitos poderiam considerar como algumas das características
vitais do jogo. (Guest, 2010, p.30)
Neste sentido, a interpretação se funde a descrição expressando os
sentidos das regras. Os enunciados observados sob a forma da “descrição
bruta dos fatos” não apontam o sentido exato que a regra social de fato esta
regulamentando, segundo Dworkin. Assim, na interpretação do direito
busca-se a “melhor” aplicação da norma, ou seja, o seu “melhor” sentido, e
para o filósofo “melhor” está sendo empregado para qualificar o substantivo
moral, ou seja, buscar o melhor sentido moral da norma.
Na verdade, Dworkin afirma que a interpretação da norma deve ser
feita em três etapas: pré-interpretativa, interpretativa, e pós-interpretativa.27
A fase pré-interpretativa identifica o direito, a interpretativa dá a esse
26 GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Elsevier, 2010, p.110. 27 Ibid, p.33.
48
direito um significado e a pós-interpretativa é onde se busca a “melhor luz”
do direito. A grande diferenciação na teoria de Dworkin está na segunda
fase, interpretativa, pois é nela que aparece a justificativa do sistema
jurídico para a coerção estatal através do sentido expresso pela norma.
Mais uma vez Dworkin aproxima o direito e a moral no sentido de
que a existência desta é uma justificação para a coerção do Estado quando
dá sentido as descrições normativas. Ao interpretar as práticas sociais,
formadoras das regras de direito, Dworkin considera que se deve dar ao
direito o sentido de limitar e autorizar a coerção governamental, através dos
princípios morais:
O direito insiste em que a força não seja usada nem retida, não importa quão útil isso seja para fins em vista, não importa quão benefícios ou nobres esses fins, a não ser conforme autorizado ou exigido por direitos e responsabilidade individuais emanadas de decisões políticas passadas a respeito de quando a força coletiva é justificada. (Law´s Empire,1986, p.93)
Esta passagem da fase pré-interpretativa para a fase interpretativa se
assemelha ao que Hart denomina passagem da fase pré-jurídica para a fase
jurídica, a inovação feita por Dworkin se baseia na crítica de que a teoria de
Hart é meramente descritiva. O sentido que Hart deu às normas em sua
teoria do direito, através da regra do reconhecimento, se restringe a apontar
as razões que os funcionários aceitavam empiricamente considerar como
critérios de validade do direito, para Dworkin o sentido deverá vir de
princípios morais que formam um corpo coerente com o ordenamento.28
Não obstante, a teoria de Dworkin sobre a interpretação só pode ser
entendida por completo através da estrutura das regras delineada por Hart,
pois Dworkin sugere que hajam regras sociais aceitas no meio social e que
estas devam ser interpretadas. Foi Hart, professor de Dworkin, que ao
distinguir hábitos e regras sociais definiu que há práticas sociais onde a
comunidade como um todo exige o cumprimento de uma forma objetiva,
diferenciando-as no ponto de vista interno daquele que é afetado por esta
norma e apontando qual destas regras são relevantes para o Direito.
28
Ibid, p.35.
49
Nesta seara, a teoria de direito como integridade de Dworkin possui
dois aspectos importantes: o legislativo, onde deverá haver a observância
dos pressupostos de adequação da interpretação, como na idéia de ajuste,
expost a seguir; e o adjuticativo, em que o método interpretativo deverá ser
feito por meios de justificativas que estejam ligadas aos pincípios morais e
políticos do sistema jurídico. Dworkin em sua obra O Império do Direito
prioriza dois valores morais a justiça e a equidade são estes que deverão ser
observados na interpretação do sistema. A integridade do ordenamento
significa ter um corpo jurídico dotado de coerência e fundamentado em
princípios para que possa haver a aplicação do “resultado correto do
sistema político”, classificação de justiça de Dworkin, e que haja uma
equidade ou “estrutura correta para esse sistema, a estrutura que distribui
a influência sobre as decisões políticas.” (Dworkin, 1986, p.404)
Além disso, a coerência que importa à integridade aqui expressa por
Dworkin é mais do que somente aquela atrelada a idéia de consistência, ou
“consistência pura” nas palavras do autor. A coerência que Dworkin requer
não é a mera inexistência de antinomias de normas, ou seja, o autor se
refere a ausência de contrariedade de sentidos dentro do sistema jurídico ,
consistência em princípios, para que possa haver “uma visão única e
abrangente de justiça”.(Dworkin, 1986, p.134)
Mais uma vez, a integridade de Dworkin existirá em dois níveis, no
princípio legislativo que impugna a simples barganha entre a justiça e a
imparcialidade feita pelos legisladores, onde o legislativo deverá proteger
aquilo que entende como direitos morais e públicos para a efetividade da
justiça e equidade.(Dworkin, 1986, p.221) E no princípio adjudicativo
dizendo para os operadores do direito para integrarem seus fundamentos e
decisões ao corpo do direito existente na fase pós-interpretativa.
O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e
deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos
50
criados por um único autor – a comunidade personificada – expressando uma
concepção coerente de justiça e equidade. (Dworkin, 1986, p.167)
4.3- A IDÉIA DE “SUBSTÂNCIA” E “AJUSTE” DE DWORKIN
Para entender o fenômeno da interpretação buscando aplicação da
melhor luz do direito, e, principalmente, formulando postulações jurídicas
que remetam a idéia de integridade de Dworkin devemos nos remeter a
idéia de romance em cadeia formulado por ele. Segundo esta idéia vários
autores se juntam para escrever um romance sendo que o primeiro capítulo
é escrito por um, o segundo por outro e assim por diante.
Assim, para a efetivação do romance em cadeia cada autor deverá
manter determinadas características que já foram postas nos capítulo
anteriores como nome da personagem principal, enredo, linguagem, entre
outros. A esta manutenção de determinados dados pré-constituídos Dworkin
chama de limitação de “ajuste”, onde haverá a formação de um corpo
coerente. Fazendo uma comparação ao já explicado a limitação de ajuste é
manter o significado da história o que seria manter a integridade dos valores
morais do sistema jurídico como um todo. Tal idéia muito se aproxima do
que Dworkin chama de “consistência pura”, ou seja, coerência lógico-
semântica. A idéia de “ajuste” é o que Dworkin chama de vínculo, que liga
cada autor ao seu sucessor no romance em cadeia.
Adiante, quando o autor subseqüente do romance encadeado pega o
romance, faz um julgamento de como este deverá se desenrolar a partir dali
e indaga qual desenvolvimento tornaria aquele romance melhor como
romance. Diante deste julgamento o autor do romance se encontra como
uma infinidade de proposições, tais proposições é o que Dworkin chama de
“substância”. Tal ponto é muito criticado, principalmente por Fish, pois não
há qualquer critério objetivo que possa definir em que sentido deveria o
aplicador do direito seguir, abrindo caminho à subjetividade criticada por
Dworkin ao discorrer sobre a discricionariedade de Hart. Assim, a
integridade é a referência cujo operador do direito deverá se pautar na
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aplicação da lei, para encontrar a melhor interpretação do direito segundo a
coerência do ordenamento jurídico, mas que possui carga subjetiva segundo
alguns críticos como Fish.
Imagine que, na jurisdição de Hércules, a constituição escrita proíba o estabelecimento de uma religião. A legislatura promulga um estatuto que parece permitir o transporte gratuito em ônibus para crianças que freqüentem escolas de uma religião favorecida. Uma criança tem direito a transporte gratuito em ônibus em virtude desse estatuto? Qual é a teoria subjacente à proibição na constituição do estabelecimento de uma religião? Dworkin sugere duas. Hércules pode decidir que está fundamentada no dever do Estado de impedir a grande tensão ou desordem social que o estabelecimento de uma religião poderia provocar. Outra possibilidade é que a proibição é entendida da melhor maneira como confirmando um direito geral à liberdade religiosa. Cada uma dessas teorias que justificam a proibição tem igual ajuste à proibição na constituição. (Guest, 2010, p.57)
A questão da “substância” para Dworkin é da filosofia política. Em
sua obra Levando os direitos a Sério ele explica como um juiz ao interpretar
e observar a “substância” das regras sociais deverá não apenas fazer um
“ajuste entre uma teoria e as regras da instituição”, ele deverá escolher qual
é a melhor concepção das normas para então fazer o ajuste. A integridade,
neste sentido, deve ser vista como um ideal político em busca dos melhores
valores morais, pois a comunidade deverá ser de princípios, onde os
princípios almejados não serão os meramente comuns, ou seja, não é o
princípio utilizado pela maioria ou por todos que será o melhor, mas a
própria valoração moral deste princípio que determinará a relevância deste,
ou seja, o “peso” deste princípio, independente de ser utilizado pela maioria
da comunidade.29
29 DWORKIN, Ronald. Law´s Empire. Cambridge. Harvard University Press, 1986, p.25-48
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5 – CONCLUSÃO
Após a análise desses três expoentes uma coisa fica bem clara o
debate entre o direito natural e o direito positivo ainda está presente nos
dias atuais. Fuller com seu conceito de moralidade interna do direito retoma
os propósitos para os quais o Estado se formou, promover a defesa dos
direitos naturais do indivíduo mantendo a estabilidade das relações sociais.
A corrente jusfilosófica dominante dos últimos tempos é o positivismo do
direito, porém muitas críticas foram feitas contra o positivismo jurídico por
medo de que as atrocidades cometidas na segunda guerra mundial se
repetissem. Neste sentido, existem várias teorias positivistas jurídicas
buscando sanar as falhas cometidas no tempo, bem como formar um
sistema jurídico mais próximo da perfeição.
Este trabalho se propôs a analisar a teoria positivista do direito de
Hart, pois esta tem uma proposta mais filtrada por todas as críticas ao
positivismo até o momento, e, ainda, traz uma inovação que as outras não
tinham, reconhece que apesar da moral e do direito estarem em planos
diferentes, separadas, há determinadas características que aproximam estes
dois tipos de obrigação. A preponderância do positivismo como corrente
filosófica majoritária nos permite concluir que esta forma de pensar o
direito é uma solução firme. Porém, aos leigos o direito tem um conteúdo
moral, o próprio conceito de justiça tem natureza moral, e ainda, a busca
por soluções de controvérsias nas cortes remete a maioria daqueles que não
tem um conhecimento científico do direito à idéia de justiça. Dessa forma,
cabe-se a indagação como se exigir do ordenamento jurídico valores morais
como a justiça?
Apesar de aparentemente simples, esta é uma pergunta muito
complexa, pois no decorrer da história o positivismo jurídico tem defendido
a separação do direito e a moral e não há, pelo menos no ordenamento
jurídico brasileiro, nenhuma norma expressa impondo a obrigação de um
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resultado justo, ou positivando o significado de justiça para os fins das
obrigações jurídicas. Porém, quando se elabora as normas, em um processo
democrático, há o debate de valores que pretendem ser resguardados pelas
regras jurídicas. Tanto a proposta de Hart, que emprega o
convencionalismo, como a de Fuller, que propõe um procedimento cujo
significado leva a moralidade interna do direito, são compatíveis com a
idéia de que a formação das regras sociais não está livre de sentido moral.
Na verdade, Dworkin explica muito bem a necessidade do entendimento do
sentido proposto pela lingüística, já que as mesmas palavras poderiam
definir uma mesma situação, assim, o seu significado juntamente com o
contexto são importantes para a aplicação da norma. Ou seja, se na gênese
da regra há um sentido, qual seria a razão de na sua aplicação negar este
sentido para fazer uma descrição bruta do fato?
As regras jurídicas não podem ser entendidas como equações
matemáticas, pois o Direito é uma ciência humana repleto de fatores que
direta ou indiretamente modificam o resultado de suas proposições. Quando
Fuller diz que é preciso assegurar uma “estrutura de suporte” que possa
promover a “fluidez adaptativa”, é a esta natureza humana da ciência
jurídica que ele chama atenção de seus leitores que poderá trazer a
moralidade ao direito. Neste sentido, a proposta de Dworkin de entender os
princípios como uma fonte do direito, em que estes não regulam casos
específicos mas direcionam a regulamentação deste, dando as diretivas, se
torna válida no sentido de não enrijecer as transformações sociais e se
adaptar rapidamente a estas transformações. Além disso, não é contrária a
teoria do direito de Hart, pois se as normas nascem das práticas sociais, a
regra do reconhecimento poderá validar as novas práticas sociais surgidas
no tempo, pois a regra de reconhecimento é um meio social de validação
jurídica.
Além disso, apesar de afirmar a separação do direito e da moral Hart
reconhece que há similaridade entre as obrigações morais e as obrigações
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jurídicas, conforme exposto neste trabalho. Assim, como o próprio Hart
expõe tanto a moral quanto a regra do direito quando transgredidas terão
uma sanção previstas como uma forma de desanimar aqueles que a
cometem e animar aqueles que a obedecem. Enquanto a regra jurídica tem
uma sanção externa, a coerção estatal, a moral tem uma punição mais
interiorizada do homem consigo mesmo, com sua consciência. Nesse
sentido, a regra jurídica tem uma praxe de maior eficácia quanto a sua
obediência. De fato, o direito e a moral são diferentes, mas não deve estar
separados, pois conforme expôs Fuller, uma sociedade, ou o humano como
indivíduo, busca a perfeição, e a moral da aspiração (“moral of aspiration”)
pode guiar estes indivíduos e a sociedade como um todo rumo à perfeição
sem violar o propósito de um Estado Democrático de Direito. O Estado
Nazista se propôs a evoluir de maneira rápida e violou diversos direitos
humanos, através de uma ideologia positivista de direito. Esta violação de
direitos pelo nazismo foi alvo de diversas críticas, inclusive por parte de
Fuller, e sua solução foi encontrada através de um procedimento moral para
a elaboração da lei. Porém, enquanto Fuller tem um enfoque no legislador,
Hart não dá importância a este legislador, pois a sua regra de
reconhecimento tem uma fluidez adaptativa de extrema importância.
O que devemos lembrar, é que o país em que Hart vive faz parte de
uma tradição jurídica diferente da brasileira. Para o Brasil de tradição
romano germânica, atender aos pressupostos da moralidade interna do
direito de Fuller é de suma importância. A clareza, por exemplo, constitui a
eficácia da legalidade e os legisladores brasileiros costumeiramente tem a
tendência de redigir textos confusos, que não são claros. Além disso, a idéia
exposta por Dworkin de proposição normativa em que através de uma idéia
interpretativa do direito se entende que a norma em sua etapa interpretativa
tem um sentido, e que este deve ser levado em consideração ao aplicar a
norma deve ser observado também em país de tradição romano germânica.
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Portanto, partindo-se da idéia de Fuller sobre a tentativa de se atingir
a moralidade substancial através de um procedimento em que certos
pressupostos são seguidos segundo uma moralidade interna do direito.
Dworkin se coaduna com um pressuposto em especial que se refere a
congruência da redação legal a ação dos administradores da lei, pois esta
exige uma interpretação única do ordenamento e a teoria de Dworkin tem
essa proposta, apesar de estarem vias de formulações até os dias presentes.
Assim, Dworkin quando afirma “a integridade da concepção de justiça (...)
exige que os princípios morais necessários para justificar a substância das
decisões de seu legislativo sejam reconhecidos pelo resto do direito” apesar
de elevado grau de subjetivismo já representa um avanço para a busca de
algum procedimento interpretativo e não mais só de elaboração de normas.
Exigir da interpretação adequação ao princípio da justiça dentro de uma
comunidade é uma atividade de trabalho árduo e que poderá possuir
opiniões tão diferentes que poderia causar a desestabilização do sistema
jurídico como um todo. Por este motivo, a garantia do procedimento moral,
tais como o devido processo legal, tem sido a melhor via em busca do
caminho da justiça. Neste sentido, em uma teoria de direito o melhor é a
utilização do melhor que cada método tem, ou seja, o pluralismo de
métodos. A consideração do truísmo de Hart de que o homem razoável
tende a cooperação mútua com seus semelhantes leva a crença de que há
uma moralidade da aspiração que deveria servir de base para a interpretação
do sistema jurídico, e principalmente, para a elaboração de normas,
promovendo a evolução social através das normas jurídicas. Diante da
análise dos três autores percebe-se a influência que Fuller teve tanto na
teoria de Hart como na de Dowrkin. Na teoria de Hart tem influência
quando o convencionalismo busca na linguagem comum os melhores
termos para definir o direito e na de Dowrkin quando a teoria
interpretativista visa a melhor efetivação do princípio da reciprocidade
exposto por Fuller, concluindo-se que apesar de o positvismo separar a
moral e o direito eles estão em vias de atrair critérios moralistas objetivos
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como o procedimentalismo de Fuller e afastar critérios subjetivos morais,
como a teoria da integridade de Dworkin.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GUEST, Stephen. Ronald Dworkin.Elsevier, 2010. 313 p.
STRUCHINER, Noel. Direito e Linguagem: Uma Análise da Textura
Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Renovar, 2002. 152 p.
FULLER, Lon L. The Morality of Law. Revised Edition, 1969. 262p.
SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito.Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2006. 204p.
HART, H.L.A. The Concept of Law. Oxford: Clanrendon Press, 1998
http://www.cervantesvirtual.com/portal/doxa/
http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A1gina_principal.
Dworkin, Ronald. Taking Rights Seriously, Cambridge [ MA] : Harvard
University Press, 1977/1978.
Dworkin, Ronald. Law´s Empire, Cambridge [MA] : The Belknap Press of
Harvard University Press, 1986.