8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
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SRLMR TRNNUS
MU HRIL
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LEITURAS
C I ~ G FILOSÓFICAS
Aristóteles e o logos, Barbara
Cassil1
Aristóteles no séc ulo
XX,
Enrico Berti
Da nahneza, José
Gabriel
dos
Santos
Diálogos com a cultura contemporâ nea, W M
Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, Marcelo
Perine
Filosofia a partir de seus problemas (A), 2 ed.,
Mario Ariei
González
Porta
Filosofia da ciência - introdução ao jogo e a suas regras, 8 ed.,
Rubem
Alves
Filosofia da natureza (A), Jacques Maritail1
Foucault, simplemente - textos rennidos,
Salma
TamJUs
Mucllail
Metáfora
viva (A),
Paul Ricoeur
\1ovilllento sofista (O), G. B. K.erferd
l\ iilismo (O), Franco Volpi
Ofício do filósofo estóico ( O), RacheI
Gazolla
Ordem do discurso (A), 10 cd., Michell oucault
Para não ler ingenuamente uma tragédia grega, Rachei GazoUa
Quc
é
a filosofia antiga? (O), Pierre
Hadot
Razõcs dc Aristóteles (As), 2 ed., Enrico Berti
Saber dos antigos - terapia para os tempos atuais, 2.
ed.,
Giovallni Reale
Sete lições sobre o ser, 2 ed,
Jacques Maritain
Sobre O político de Platão,
Comeljus Castoriadjs
Sócrates ou o despertar da consciência, fean Toel
Duhot
Tempo e razão - 1.600 anos das confissões de Agostinho,
Carlos
Arthur A. Nascimel1to
Transformação da filosofia,
vol.
1, Karl Otto
Apel
Transformação cl filosofia,
vol.
2, Karl Otto Apel
Vontadc de crer
(A),
William
James
SRLMR TRNNUS
MU HRll
FOUCRULT
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DIAGRAMAÇÃO: Maurélio Barbosa
REVISÃO:
Maurício
B.
Leal
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-
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ISBN: 85-15-02992-8
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
SUMRRIO
Apresentação
A TAAJETÓRIA
DE
MICHEL FOUCAULT
A FILOSOFIA COMO CRíTICA DA CULTURA
Filosofia e ou história?
O MESMO E O OUTRO
Faces da história da loucura
EDUCAÇÃO E SABER SOBERANO
7
9
2
37
49
o
LUGAA
DAS
INSTITUiÇÕES NA SOCIEDADE OISClPLlNAA ... 59
DE
PRÃTICAS SOCIAIS
I
PRODUÇÃO DE
SABERES
73
FOUCAULT E A LEITURA DOS FILÓSOFOS .
85
OLHARES E DIZERE S .
97
,__ o,
_
..
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OEMOCRRCIA COMO PRÁTICA
Rlgumas reflexões a partir de M i c h ~ Foucault
e ornelius astoriadis
...
. ................... 109
..... COMO NA OALA DO MAR UM AOSTO DE AAEIA··
Notas sobre maio
de 68
.......... ....
115
MICHEL FOUCAULT E O DILACERAMENTO
DO
AUTOA 123
BIBLlOGAAFIA
........... 133
RPRESENTRÇÃO
o pensamento de Michel Foucaulr é um pensamento plural.
Também seus escritos têm a marca da diversidade de temas e de
abordagens. Percorrê-los exige uma dedicação
cuidadosa para
que se possa enfrentar esta diversidade e ao mesmo tempo dar
conta
de
sua
inventividade e de
sua
densidade conceitual. Por
outro lado
ao
percorrê-los o
próprio pensamento é
instigado a
tornar-se
múltiplo
e
igualmente afinado com
a inventividade e
o rigor. Os textos reunidos neste livro exprimem esse caráter.
Em sua maioria são conferências artigos e capítulos de livros já
publicados.
Como reunião
de textos dispersos o livro compor
ta
suas p róprias diversidades
não deixando
de
formar
no
en
tanto
uma
unidade
dotada de significado.
Relativamente
às
diversidades trata-se
em
primeiro lugar
de um livro escrito em diferentes
momentos. Os
textos
que
o
compõem
expressam a
marca temporal
dos
momentos em
que
foram produzidos revelada
por
vezes
na
eleição dos
Çlbjetos
tratados e por outras
na contextualização das análises. Tam
bém
os
temas discutidos
são diversos. À semelhança dos escri
tos de Foucault a
abordagem
de temas
como
o ensino a cultu
ra o poder a história a loucura
s
instituições a democracia
a filosofia
não permite que
se determine
para
este livro a pre-
apresentação 7
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sença de um
único
objeto.
Por
fim, o caráter
dos
textos é igual
mente diverso. Alguns possuem um sentido mais geral, pois,
tratando de
métodos
periodizações e
problemas
centrais
dos
escritos de Foucault, servem de iniciação
à sua
leitura. Outros
mais específicos, realizam análises detidas sobre
temas
preci
sos favorecendo a
compreensão
de um
pensamento tão
pro
fundo e complexo quanto instigante.
A unidade
de
significado do livro, por sua vez, deve-se à
natureza
dos textos que o constituem. Resultado de
uma
leitu
ra e de uma análise detidas dos escritos de Michel Foucault,
este livro
tem
sua
índole
vinculada
ao
ensino. Todos os textos
nele reunidos ou nasceram de aulas ministradas por sua autora
ou destinavam-se a prepará-las. Talvez por este motivo sejam
tão didáticos, pois
na
medida em que discutem diferentes as
pectos do pensamento de Foucault, acima de tudo esclarecem
o leitor a seu respeito.
Desse modo aos leitores deste livro diverso, escrito em
muitos tempos,
desdobrado em muitos
temas, será possível
apreender
um
pensamento que tem muito a dizer ao nosso pre
sente. Assim
como
dizer o u c a u l ~
simplesmente
implica tantas
outras coisas - como a pluralidade do pensamento a diversifi
cação das abordagens, a profundidade das análises
-
a leitura
desta
simples
reunião de textos tem muito a nos propor e ensinar.
Márcio lves da Fonseca
Professor do Departamento de Filosofia da PUC/SP
8 I Foucault.
simpl sm nt
TR JETÓRI E
MICHEL FOUC ULr
Mas
o que é filosofar
hoje
em dia ( ..) senão o trabalho
critico do
pensamento sobre
o
pensamento?
Senão (
..
) tentar
saber de que
maneira e até onde seria possível pensar diferentemente
em
vez
de leptimar o
que
á se sabe?
M. FOUCAULT O uso dos
prazeres
13.
A trajetória intelectual de Michel Foucault (1926-1984)
pode ser inscrita entre 1961, quando saiu seu
primeiro
grande
livro, e 1984,
com
seus
últimos
livros publicados. Os estudio
sos de Foucault, como também ele próprio, reconhecem, com
certo consenso, uma repartição possível dessa trajetória em três
momentos. O primeiro, conhecido como período
da
arqueo
logia , é voltado
principalmente
para questões relativas à cons
tituição
dos
saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960:
A
história da loucura (1961), O
nascimento
d clí-
nica
(1963), As palavras
e
as
coisas
(1966) e
A
arqueologia
do
saber
(1969). O segundo
mamemo
conhecido
como
períodó
da
ge-
Este texto
é
uma
versão modificada de aula ministrada no curso
Michel Foucault - Razão e Desrazão , na Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais em abril de1991. Foi publicado na Revista Extensão Belo
Horizonte, PUC/MG, v. 2 n.
1
fev. 1992.
a trajetória de Michel Foucault I 9
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nealogia , é centrado sobre questões relativas aos mecanismos
do poder e inclui os principais livros da década de 1970:
Vigiar
e punir (1975) e o volume I da História da sexualidade intitulado
A vontade
de
saber
(1976). O terceiro momento trata de questões
relativas à
constituição do sujeito
ético e
inclui os volumes
II e
III
da História
d
sexualidade
intitulados, respectivamente, O uso
dos prazeres
e
O
cuidado de
si (1984(
Tomando esta repartição
como
ponto de
partida
e roteiro,
temarem os esboçar os traços que caracterizam esses três mo
mentos, assim como suas aproximações e diferenças. Com a
transcrição
da
seleção de
passagens em
que, a cada vez, o pró-
prio
Foucault declara
suas preocupações
e seus
propósitos,
fa
remos iniciar a abordagem de cada um desses
momentos.
•••
Em
texto
de
1968,
assim
descrevia Foucault
os propósitos
de suas primeiras investigações: determinar, nas suas dimen-
sões diversas, o
que
deve ter
sido
na
Europa, desde
o século
XVII, o modo de existência dos discursos e singularmente dos
discursos
científicos ( ..)
para
que se
constitua
o saber que é
nosso
hoje
e de maneira
mais precisa, o
saber que
se
deu por
domínio
este
curioso objeto que
é o homem,,2.
O
primeiro momento de
seus escritos
tem, portanto,
um
enfoque explicitamente histórico ( na Europa, desde o século
XVII ..
até o saber
que é
nosso
hoje ) e a
preocupação
está
1. A este conjunco devem ser acrescencadas ainda duas situaçõe s ocor
ridas após a morte de Foucault: a publicação, em 1994, dos
Dits
et écrits (são
quatro volumosos livros que reúnem textos dispersos, conferências, artigos,
aulas etc. que Foucault
p r o u z i r ~
e realizara em diversos países),
e
ainda
mais recencemence, a gradativa edição dos cursos que Fouca ult ministrou no
Collêge de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos),
cuja publicação foi iniciada em 1997.
2. FOUCAULT M. Resposta a uma Questão , Revista Tempo Brasileiro,
28
(Epistemologia), trad. de M. da Glória R da Silva, Rio de Janeiro, jan/mar,
1972.79.
1
I Foucault,
simpl sm nt
centrada na descrição dos discursos,
não
porém quaisquer dis
cursos, mas aqueles considerados científicos e mais particular
mente, os das chamadas ciências humanas ( o saber que se deu
por domínio
este curioso
objeto
que é o homem ).
Observe-se
que esta
descrição
histórica dos
discursos
não
é
feita
nem
à maneira
do
comentário ,
nem
ao
modo
de uma
análise lingüística. O
comentário
é
uma
espécie de
discurso
se
gundo a duplicar o discurso comentado, buscando fazer surgir
alguma verdade implícita
no dito
explícito do discurso primei
ro. Supõe, por um lado, alguma origem mais remota a ser reen
contrada
e um sentido oculto a ser decifrado; e supõe,
por ou-
tro
lado,
que esta origem
e este
sentido
- mais essencial
e ao
mesmo tempo, mudo - de algum
modo
atravessam o sentido
explícito, nele
dormitam,
a
fim de que possam
ser
trazidos
à
luz
pelo comentário. Supõe, pois, um
conteúdo
de significações
já-dito
e simultaneamente,
jamais-dito 3. Nas análises de
Foucault, ao contrário, os discursos são
tomados em
sua posi
tividade, como fatos , e trata-se de buscar
não sua origem
ou
seu sentido secreto, mas as condições de sua emergência, as
regras que
presidem seu
surgimento,
seu
funcionamento,
suas
mudanças, seu desaparecimento, em determinada
época,
assim
como
as novas regras que presidem a formação de
novos
dis-
cursos
em outra
época. A análise lingüística,
por sua
vez,
diz
respeito à língua como sistema formal que rege a formulação
tanto
de
enunciados
efetivamente realizados como a
dos
que,
em tese e
em número
infinito, poderiam vir a ser constituídos.
Já
a descrição
foucaultiana dos
fatos discursivos se
limita
a
enun-
ciados já formulados que
compõem
as formações discursivas, e
quer estabelecer
não
as regras
formais
de
sua
inteligibilidade,
mas o jogo de regras que define as condições de possibilidade
do
aparecimento,
das
transformações e do desaparecimento
3.
Cf. FOUCAULT M., Resposta ao Círculo de Epistemologia , in Estrutu-
ralismo e Teoria
d
Linguagem, trad. Luís Felipe Baeta Neves, Petrópolis, Vozes,
1971, 21; ver também
L Archéologie du savoir,
Paris, Gallimard, 1969, 36.
a trajetória de Michel Foucault
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de tais ou quais discursos, e não de
outros,
numa época dada e
numa dada
sociedade, jogo este que é portanto, variável num
curso histórico
marcado por diferenças e
descontinuidades.
Pode-se
chamar
a esse jogo de regras de epistéme de uma épo
ca, seu a priori histórico,
ou
ainda o
solo
onde são constituídas
as formações discursivas
historicamente
realizadas e
que
com
põem as diferentes configurações
no
espaço do saber. Assim é
por exemplo,
que
em s
palavras e
as coisas as análises mostram
como
na
Europa
dos séculos
XVII
e XVIII emergem determina
das formações discursivas que vão constituir a gramática geral,
a
história
natural e a análise das riquezas, enquanto no século
XIX
vão surgir a filologia, a biologia e a economia,
de
que as
primeiras não são meras precursoras. Estabelecer esse jogo
ou
conjunto
de regras que, numa determinada época e para
uma
determinada sociedade, autoriza o que é permitido dizer, como
se
pode
dizê-lo, quem pode dizê-lo, a
que
instituições isso se
vincul a etc., enfim, o que deve ser reconhecido como verdadeiro
e o
que
deve ser excluído como desqualificável, eis o procedi
mento
que Foucault
chama
de arqueologia .
Mas não
é
genericamente, de quaisquer discursos que
Foucault trata. Interessam-lhe os que constituem o campo do
saber considerado científico e dentr o dele, a região das chamadas
ciências humanas. Ele mesmo nos adverte de que a demarcação
desse donúnio é
uma
escolha de certo modo hipotética,
uma
primeira aproximação ou um primeiro esboço,,4. Trata-se de
uma
circunscrição relativa, e duplamente relativa. Por
um
lado,
a demarcação do domínio não l imita o ãmbito de aplicabilidade
da arqueologia que poderia, em tese, ser usada em out ros campos
do saber. Por outro, essa
d e ~ r c ç ã o
não pretende definir, salva
guardar
ou
confirmar os contornos do próprio domínio escolhi
do; pelo contrário, o campo
do
saber assim assumido
como
obje-
4. FOUCAULT,
M.,
Resposta ao Círculo de Epistemologia ,
in Estrutu-
ralismo e Teoria da
Linguagem,
27; ver também L Archéologie du savoir, 43.
2
I Foucault
simol sm nt
to de investigação pode precisamente esfacelar-se sob o efeito
da
própria análise. Nada me prova , diz Foucault, que os reencon
trarei (esses domínios do saber eleitos como área de investigação)
ao termo
da
anãlise, nem que descobrirei o princípio de sua deli
mitação e de sua individualização. Do mesmO modo, nada me
prova que tal descrição poderá dar conta
da
cienrificidade (ou
da
não-cientificidade) desses conjun tos discursivos que assumi c omo
ponto de ataque e que apresentam todos, no início, certa pre
sunção de racionalidade científica s A escolha
do
domínio, por
tanto, nem limita o método nem delimita o próprio domínio
escolhido. Trata-se tão-somente de um privilégio de partida,,6.
•••
E
contudo
é
um
privilégio. Será nos escritos posteriores
que se tornarão mais claros os motivos de
semelhante
eleição.
Em uma
passagem de 1976, a respeito dos escritos
do
segundo
momento de sua trajetória, Foucault assim declarava: O que
tentei investigar, de 1970 até agora, grosso modo, foi o como do
poder; tentei discernir os mecanismos existentes entre dois pon-
tos
de
referência, dois limites:
por um
lado, as regras
de
direito
que delimitam formalmente o poder
e
por outro, oS efeitos de
verdade que este poder produz, transmite e que
por
sua vez
reproduzem-no,,7.
Ora, é a investigação sobre os discursos científicos - e entre
eles sobre
os que
têm por domínio este curioso objeto
que
é o
homem - que melhor lhe permite trazer
à tona
os mecanis
mos existentes entre exercícios de poder e produção de sabe
res reconhecidos como verdadeiros. Com efeito, são regiões do
5.
FOUCAULT, M., L Archéologie du savoir, 53 54.
6.
FOUCAULT,
M., Resposta ao Círculo de Epistemologia , in
Estrutura-
lismo
e
Teoria da Linguagem, 27; ver
também
L Archéologie du savoir,
43.
7. FOUCAULT, M.,
Soberania
e disciplina , in Microfísica
do
poder,
trad. Maria Teresa de Oliveira e Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,
1979,179.
a trajetória de Michel Foucault I
3
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saber cujo terreno
é
mais movediço, mais
claramente
aberto a
combates
e cuja história, por isso mesmo,
pode
ter mais eficá
cia política 8.
Trata-se, agora, de evidenciar as articulações
entre
saber e
poder, mediados, por assim dizer, pelo
que podemos
chamar
de modos de produção da verdade. Por verdade deve-se
entender não
o conjunto de coisas verdadeiras a descobrir ou
a fazer aceitar , mas o conjunto de regras segundo as quais se
i s t i n g u ~
o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efei
tos específicos
de
poder 9.
E
assim
como
a verdade de
que
se
trata não é nenhuma essência universal, mas regras historica
mente
diferenciáveis, também o
poder não
deve ser compreen
dido como
uma
idéia
ou uma
identidade teórica , mas como
exercício,
como
prática,
que só
existe em sua concretude , mul
tifacetado e cotidiano
10.
Ora, compreende-se
que
é sobre os discursos científicos,
e
particularmente
sobre os das ciências
humanas, que
vai incidir
a investigação,
uma
vez que, se toda sociedade tem seu regime
de verdade
com
efeitos de poder, em
nossa
sociedade a
produ
ção
da
verdade é
regulamentada por
regras
que autorizam
a
eleição dos discursos reconhecidos como científicos e a conse
qüente
exclusão de
outros
saberes,
que
qualificam os objetos
dignos de saber, os sujeitos aptos a produzi-los, as instituições
apropriadas, e cujos efeitos
de
poder,
particularmente
no caso
das ciências humanas, são sobretudo disciplinar e normalizar.
Nesse momento
de
seus escritos,
Foucault amplia
o âmbi
to
das análises: de análises quase sempre mais preocupadas
com
discursos ou interdiscursos, passa a priorizar seu cruzamento
8. FOVCAULT, M.,
Sobre a geografia , in
Microfisica do poder,
154.
9. FOUCAULT,
M., Verdade e poder , in
Microfisica do poder,
13.
10. Ver a este respeito,
por
exemplo, em
Microftsica
do
poder:.
Introdu
ção (de
R.
Machado),
XVI;
Verdade e poder ,
6;
Os Intelectuais e o poder ,
75-76; Poder-Corpo , 149; Genealogi a e poder , 175; Soberan ia e discipli
na , 183-185;
O olho
do poder , 221; Sobre a
história
da sexualidade , 251.
I Foucault Simplesmente
com a trama das instituições e práticas sociais, como faz prin
cipalmente em sua
história do nascimento
das prisões Vigiar e
punir .
Abandona, praticamente, a noção de epistéme pela noção
mais complexa de dispositivo estratégico , entendendo-se que,
enquanto
a epistéme é
também
um dispositivo - ou, antes, um
elemento prioritariamente discursivo do dispositivo - o dis
positivo,
prioritariamente
de
natureza
estratégica, envolve arti
culações entre elementos heterogêneos, discursivos e extradis
cursivos, tais
como
práticas jurídicas, projetos arquitetônicos,
instituições sociais diversas. Quando
Foucault
passa a explici
tar esse momento de sua investigação, passa também a defini
lo
menos como
arqueologia ,
para denominá-lo
genealogia .
Assim, arqueologi a e genealogia
se
distinguem ao mesmo
tempo em
que guardam, de
certo
modo,
a mesma natureza e o
mesmo
teor. Mais
de
uma vez
Foucault afirma que
os propósi
tos explícitos nos escritos
da
fase genealógica já estavam pre
sentes, mas
não
percebidos,
nos
primeiros escritos. Mas adverte
também que
uma
mudança ocorreu
na
condução das análises.
Enquanto a arqueologia , escreve ele, é ométodo para a aná
lise
da
discursividade local, a genealogia é a
tática
que, a
partir
da discursividade local assim descrita, ativa os saberes liber
tos da sujeição
que
emergem
desta
discursividade l1. Poder-se
ia dizer que a arqueologia é como englobada e ampliada na
genealogia e que, enquanto a arqueologia efetua uma análise
descritiva veiculando uma denúncia, a genealogia
constrói
uma
política de resistência e de luta. A
denominação
genealogia
será mantida
por Foucault
ao referir-se
ao
terceiro e
último
momento de sua trajetória. Mas com outras transformações.
Em
entrevista
concedida pouco
antes de sua morte, assim
se
exprimiu Foucault a respeito de seus últimos escritos: Ten-
11. FOUCAULT, M.,
Genealogia e poder , in
Microftsica do Poder,
172.
a t rajeto ria de Michel Foucault I 5
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9/71
to responder a
um
problema preciso: nascimento de
uma
mo
ral, de uma moral enq uanto reflexão sobre a sexualidade, sobre
o desejo, o prazer,,12.
Entre a publicação do volume I
da História
da
sexualidade
-
A
vontade de saber
(1976) - e a dos volumes II e
1II
- O
uso dos
prazeres
e O cuidado de
si
(1984) - passaram-se oito anos. Neste
intervalo, Foucault
alterou
radicalmente o plano inicial previs
to
para a obra. Uma mudança
importante ocorreu
relativamen
te ao período histórico estudado. Como nos livros anteriores,
continua
a fazer filosofia fazendo pes quisa histórica. Mas ago
ra
a
cronologia
é
outra.
Até
então
as histórias
que
escrevera
atravessavam, quase sempre,
um
percurso que ia desde o final
do Renascimento (por volta do século
XVI
até a nossa Moder
nidade (séculos XIX e
XX ,
com realce para a
chamada
Idade
Clãssica (séculos
XVII
e
XVIII ,
buscando trazer
à
luz as trans
formações
que marcaram
a passagem
do
Renascimento à Idade
Clássica e, principalmente, as
que assinalaram
a passagem do
final
da
Idade Clãssica
à
Modernidade, na direção, pois, de com
preender nosso presente. O
projeto
inicial da História da sexua-
lidade
anunciava um percurso histórico
semelhante. Porém,
como
reconhece o
próprio
Foucault, a pergunta
que
ele
então
se
colocou
- Por
que
tínhamos feito da sexualidade
uma
expe
riência moral? - levou-o a
procurar mais
atrás pelo nasci
mento de
uma
moral , detendo-se então
na Antiguidade
grega
e greco-romana, nos últimos séculos antes
de Cristo
e
nos
pri
meiros séculos da era cristã
13
.
12. EWALD, F., O cuidado
com
a verdade ,
in
O Dossier- últimas entrevis·
tas org. de C H ESCOBAR, trad.
Ana Maria
de A Lima e M da Glória R da
Silva, Rio de Janeiro, Taurus, 1984, 75.
13. Cf. BARBEDEITE, G.
eSCALA,
A.,
O
retorno
da
moral ,
in
O Dossier
últimas entrevistas
136; R
BELLOUR,
Um
devaneio moral , in
O
Dossier
- últi·
mas entrevistas 86; FOUCAULT, M., História
da
sexualidade voI. 11, O uso dos praze-
res
trad. M. T da Costa Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, Introdu-
ção , 16.
6 I Foucault
simpl sm nt
A alteração na
cronologia
foi
acompanhada
por
mudanças
teóricas e deslocamentos de temas. Agora, o foco das investiga
ções será o sujeito,
não
porém como aquele curioso objeto de
um
domínio de saber, mas como sujeito ético, indivíduo que se
constitui
a si mesmo, tomando então a relação a si e aos ou
tros, enquanto
sujeito
do
desejo 14,
como
espaço de referência.
Nesse enfoque, a perspectiva que ele privilegia não é a dos
códigos morais, jurídicos ou religiosos, ou a das leis defini
doras
do
que
é
permitido
ou
interditado, mas a
da
conduta, do
modo
de comportar-se
ou
das posições em face de códigos e
leis, daquilo, enfim, que Foucault chama de prátic as de si ,
técnicas da vida , artes da existência ls.
Ao privilegiar essa perspectiva, a investigação
permite
me
lhor aproximar dados
da
Antiguidade de problemas de nossa
atualidade,
mantendo,
assim, a característica da genealogia
de
compreender
o presente. A este
propósito,
eis
algumas
observa
ções de Foucaulr:
O que
me
impressionou
é
que
na ética grega
as pessoas se
preocupavam
com sua conduta moral, sua ética,
suas ligações
com
elas próprias e
com
os outros muito
mais do
que
com
problemas religiosos (
..
.
A segunda observação é que
a ética não estava relacionada a nenhum sistema social - ou
pelo menos legal-institucional ( ..
.
O terceiro ponto a observar
é
que
o que os preocupava, seu tema, era constituir
um
tipo de
ética
que
era uma estética da existência . E as aproximações
que em seguida faz: ''(.
.
) eu me pergunto
se
nosso problema
atualmente não é,
de
certa
maneira, semelhante a este, desde
que a maioria de nós já não acredita que a ética esteja fundada
na religião, e nem quer um
sistema
legal
que interfira
na
nossa
moral pessoal, privada ( ..
.
Estou interessado nessa semelhança
de problemas 16.
14. Cf.
FOUCAULT,
M., O
uso
do
prazeres
Introdução ,
10-11.
15. Cf. ibid., 15.
16.
DREYFUS,
H. L e
RABINOW,
P.,
Sobre
a
genealogia
da ética:
uma
visão
do trabalho em andamento , in
O Dossier - últimas
entrevistas
43-44.
a traietória de Michel Foucault I 17
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
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Mudanças, pois, na cronologia, nos temas, na visão teórica,
que o própr io Fouca ult faz questão de reconhecer. Aliás, ao pri
meiro tópico
da
Introdução
de O uso
dos prazeres
dá o
título
Modificações .
Em
outra
passagem
realça essas diferenças,
jun-
tando sugestivamente
as
duas pontas
de
sua
trajetória,
da Histó-
ria da
loucura
à História da sexualidade: A propósito da loucura,
parti do 'problema'
que ela podia constituir num certo
contexto
social, político e epistemológico: o problema que a loucura co
locava para os outros. Aqui, parti do problema que o comporta
mento sexual podia colocar aos próprios indivíduos (
..
). Em
um
caso, tratava-se
em
suma de saber como se 'governava' os lou
cos,
agora como
'governar-se' a si próprio . E
conclui
apontan-
do
para aproximações: São,
em
resumo,
duas
vias de acesso
inversas
em
direção a uma mesma questão: como se forma uma
'experiência'
onde
estão ligadas a relação a si e aos outros l?
Com
efeito, na passagem dos
momentos
anteriores ao úl
timo,
as
semelhanças também
existem. E elas
têm pelo
menos
dois eixos comuns.
Primeiro,
há, em
todos
eles, um
mesmo
propó sito de base: escrever a históri a das relações que o pensa
mento mantém com a verdade 18.
Dito
de outro
modo,
todos
os
escritos
são sustentados
por uma
mesma pergunta
de
fun-
do: Através de quais jogos de verdade o homem se dá seu ser
próprio a pensar quando se percebe como louco
A
história da
loucura), quando
se
olha
como doente
(O nascimento
da clínica),
quando
reflete sobre si
como
ser vivo, ser falante e ser traba-
lhador As palavras e
as coisas),
quando
se
julga e se pune en
quanto criminoso Vigiar
e punir)?
Através de quais jogos de
verdade o ser humano se
reconheceu como homem
de desejo
História da
sexualidade)?" '.
17. EWALD, F.,
O
cuidado com a verdade , in O Dossier - últimas
entrevis-
tas,
76.
18. Ibid., 75.
19. FOUCAULT, M., O
uso
dos
prazeres,
Introdução , 12 (os títulos entre
parênteses foram acrescentados
por
nós).
8
Foucault.
simpl sm nt
l
Um segundo
eixo desses escritos
está em certo ângulo
a
partir do qual os temas são abordados. Todos eles se direcio
nam
a problematizações . Aliás, o segundo
tópico da Intro-
dução de O uso dos prazeres tem por
título
As formas de proble
matização . Eis
ainda
uma
passagem em
que esse eixo
comum
é
explicitado:
Em
A
história
da
loucura
a
questão era saber como
e porque a loucura, num
dado momento,
foi problematizada
através de
uma certa
prática
institucional
e um certo
aparelho
de
conhecimento.
Do
mesmo modo,
em
Vigiar e punir,
tratava
se de analisar as mudanças na problematização das relações
entre delinqüência e castigo através de práticas penais e insti
tuições
penitenciárias
no fim
do
século XVIII e no início
do
século XIX. Agora,
como
se
problematiza
a atividade sexual?,,20.
Os dois eixos comuns, por sua vez o propósito de fazer a
história das
relações
entre pensamento
e verdade e o
ângulo das
p r o b l e m a t i z a ç õ e s ~ articulam-se entre si, já que
por
problema-
tização deve-se entender
o conjunto
de práticas discursivas ou
não-discursivas
que
faz
alguma
coisa
entrar no
jogo
do
verdadeiro
e
do
falso e a constitui como
objeto
para o pensamento
JJ
.
•••
A
partir daqueles
eixos de aproximação pode-se, finalmen-
te, compreender a
reunião dos
três
momentos da trajetória
de
Foucault
em
um
mesmo conjunto, sem contudo escamotear
suas
diferenças: o
primeiro momento
interroga o
que habitual-
mente se entende por progresso
do
conhecimento , conduzin-
do
à análise das
práticas
discursivas constitutivas
dos
saberes
reconhecidos
como
verdadeiros; o
segundo interroga
o
que
ha
bitualmente se entende por poder ,
conduzindo
à análise dos
mecanismos
de exercícios dos
poderes
relacionados à
produção
de saberes; o terceiro momento interroga o que
habitualmente
20.
EWALD,
F., O cuidado com a verdade , in O ossier últimas entrevis-
tas, 76.
21. Ibid., 76.
a trajetória de Michel Foucault I 9
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
11/71
se entende
por
sujeito , conduzindo
à
análise da constituição
de
si mesmo como sujeito 22. Ou pode-se, inversamente, enu
merar
os
momentos
dessa trajetória
c e n t ~ n d o
as diferenças
sem
necessariamente
perder
suas conjunções: trata-se, como
indica um estudioso
de
Foucault, de três campos ou continentes
de reflexão,
um
mais marcadamente epistemológico, outro po
lítico, outro étic0
; ou trata-se, como se exprime o
mesmo
Fou
cault, de três ordens de problemas, o da verdade, o do poder e
o
da conduta
individual 24.
De todo
modo,
a reconstituição da trajetória desse pensa
mento, quer se lhe acentuem os momentos, quer se lhe realce o
conjunto, faz nela perceber a presença daqueles traços com que
Foucault desenha o perfil, hoje, do intelectual e que, em certas
passagens, ele descreve
como
exigências, por exemplo, assim
expressas: Conseguir
pensar
algo
que não
seja o
que
se pensa
va
antes,,25; ser capaz permanentemente
de
se desprender
de
si
mesmo 26;
pensar diferentemente do que
se
pensa
e perceber
diferentemente
do
que
se
vê,,27.
Semelhanças e dessemelhanças, aproximações e diferenças
compõem
assim
um tipo
de
pensamento
- a
que
se
pode
cha
mar filosofia - que duvida
do
estabelecido, que abala o habi
tual
e que, por isso mesmo, expõe a si
próprio
à mobilidade e
dispõe-se constantemente a se recompor.
22.
Cf.
FOUCAULT, M., O uso
dos
prazeres, Introdução , 11.
23. Cf. EWALD, F., Michel Foucault , in O
Dossier
- últimas entrevistas, 71.
24. BARBEDElTE,
G. eSCALA,
A.,
O
retorno da moral , in O Dossier
últimas
entrevistas,
129
25.
EWALD,
F.,
O cuidado com
a verdade ,
in
O
Dossier - últimas
entrevis-
tas,
74.
26. Ibid., 81.
27. FOUCAULT, M., O uso dos
prazeres,
Introdução , 13.
2
I Foucault. simplesmente
FILOSOFI COMO
CRíTIC D
CULTUR
Filosofia e/ou história?
A
título de introdução, lembremos
um
conhecido problema
afrontado
por
Husserl e muitas vezes explorado
por
Merleau
Ponty. Poderia receber ele formulações diversas,
todas
elas, po
rém, contrapondo dois pólos
ou
dois termos: trata-se do anta
gonismo
ou da correlação
entre
idéia e fato, ou entre essência e
experiência,
ou
ainda entre interioridade e exterioridade,
ou
mes
mo entre
subjetividade e objetividade, e
que constituiria
a base
do antagonismo
ou
da correlação entre o pensamento filosófi
co e a elaboração científica. Esta,
como
se sabe, é uma questão
a que Merleau-Ponty dedica vários textos nos quais trata parti
cularmente
das relações entr e a filosofia e as ciências
humanas.
Basta evocar, por exemplo,
Le philosophe et la
sociologie,
Éloge de la
philosophie, Risumés de cours como ainda os opúsculos Les sciences
de l hommeet
la
phénoménologie
e Le
métaphysique dans l homme.
Ne-
Este texto reproduz, com algumas alterações, comunicação apresen
tada
no
V Simpósio Nacional da Sociedade de Estudos e Atividades Filosó
ficas (SEAF), em Belo Horizonte, em novembro de 1981. Foi publicado em
Cadernos PUC,
n. 13, São Paulo, EducfCortez, 1982. Posteriormente, foi
republicado com o acréscimo de Discussão em Epistemologia
das Ciências
Sociais, FAVARETIO,
C F., BOGus,
L
N., VERAS, M. B. orgs.), Série Cadernos
pue, n. 19, São Paulo, Educ, 1984.
a filosofia como critica da cultura I
2
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
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les, o autot
aborda
aquela questão do ângulo das relações entre,
por
um lado, a filosofia e,
por
outro, a psicologia, as ciências da
linguagem,
a história, a sociologia.
Em quase
todos esses en
saios,
retoma
a questão desde
onde
Husserl a tinha levantado e
a conduz na direção
da superação do
impasse. Interessa-nos, para
introduzir nosso estudo, resumir alguns aspectos de sua posi
ção a respeito
da
filosofia e
da
história.
Primeiramente,
Mer
leau-Ponty rejeita certas alternativas
que confundem ou
falseiam
O
conceito de história e que fazem
da
filosofia e
da
história tra
dições rivais l.
Não
há que escolher,
por
exemplo,
entre
uma
filosofia que postula uma consciência fora
do
tempo, desliga
da de todo interesse pelo fato , e as '''filosofias da história', que,
ao
contrário, inserem no curso das
coisas
uma
lógica oculta ,
como que a predeterminá-I0
2
•
Alternativas deste teor
podem
in
corporar seja uma
ilusão
retrospectiva ,
projetando
as catego
rias de hoje na leitura do passado, seja uma ilusão prospecti
va , reduzindo os
fatos
à
imediatez
de seu
presente
sem qual
quer abertura para
o
futur0
3
• Ademais,
pressupõem isolados
entre si o fato e o homem interior ,
a
história e o intempo
ral,,4, elegendo,
numa
verdadeira
guerra
fria ,
ou bem
o
mito
da filosofia
ou
bem
a idolatria da objetividade 5. Em contra
partida,
Merleau-Ponry afirmará que
é precisamente
pela nossa
inerência a uma determinada situação, pela nossa inserção
numa
cultura
particular, que podemos realizar o movimento de com-
L MERLEAu-PONTY, M.
Éloge
de
l
philosophie, in
Éloge
de la
philosophie et
autres essais. Paris, Gallimard, 1960, 56. A idéia da rivalidade aparece igual
mente em outros
textos.
Por
exemplo, em Le métaphysique
dans
l'homme ,
in
Sens et non-sens,
Paris, Nagel, 1965, 171;
ou
em Le philosophe et la socio
logie , in
Éloge
de
l philosophie et
au tres essais,
112.
2. MERLEAU-PONIT, M., Máteriaux
pour
une théorie de l'histoire , in
Résumés de cours (ColJege de France), Paris, Gallimard, 1968,43.
3. Ibid., 45.
4. Ibid., 43.
5.
Cf MERLEAU-PONTY, M., Le philosophe et la sociologie , in
Éloge.
113-114; Le métaphysique dans l'homme , in Sensetnon-sens 160.
I Foucault
simplesmente
preensão de
outras situações
e
de outras
formações culturais. Se
nossa particularidade nos limita é também, paradoxalmente, o
único
meio de acesso à
compreensão
de
outras
situações parti
culares com as quais podemos nos comunicar enquanto varian
tes da nossa
6
•
Ou seja, é nossa experiência de sujeitos situados,
pela
qual
vivenciamos uma co-existência histórica ?,
que
impe
de,
por
um lado, a submissão da história à força de uma lógica
todo-poderosa e atemporal
e, por outro,
a
sua redução
a uma
reunião
de fatos
circunstanciais
e
sem
significação.
Nessa
medi
da, história e filosofia serão
não
apenas solidárias, mas ainda
mutuamente
indispensáveis.
Uma
história
que
se estreitasse a
um relato empírico dos fatos sem buscar compreender-lhes a
significação através do concurso
da
filosofia
não
saberia, lite
ralmente,
do que
ela fala ,
assim como uma
filosofia
que
sobre
voasse os fatos só desembocaria
em
verdades formais, isto
é,
em
erros s. Assim, se
para
Merleau-Poncy só
haverá história na
medida
em
que houver uma lógica na contingência, uma razão
na desrazão 9, pode-se completar que só haverá filosofia se os
sentidos ou
as verdades
que
ela
busca
forem
procurados no
seio
do
devir,
na trama
histórica dos acontecimentos.
Merleau-Ponty
atribuía
assim certa inerência
entre o
tra
balho do h istor iador e o do filósofo. Não foi, é claro, a primeira
nem a
última
vez que um pensador travou relações entre filoso
fia e história. Mas a peculiaridade está, cremos,
em que neste
caso as relações
não
são
tão
sistemáticas a ponto de conduzir
finalmente
à
anulação
de uma
sob
o jugo da
outra;
e
sobretudo
6.
Cf MERLEAU-PONTY, M.,
Le philosophe et la sociologie , in
Éloge
137; Le métap hysiq ue dans l'homme , in Sens
et non-sens,
162;
Ciências
do
homem e enomenologia, trad.
S.
T. Muchail, São Paulo, Saraiva, 1973,61.
7. MERLEAU-PONTY, M.,
Ciências
do homem e enomenologia, 69.
8.
MERLEAU-PONTY,
M., Le méta physi que
dans
l'homme , in
Sens
et non
sens, 171.
9. MERLEAU-PONTY, M., Matériaux
pour
une théorie de l'histoire , in
Résumés des Cours, 46.
a filosofia como critica da cultura I
3
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
13/71
nem
tão
precisas
que
desfaçam certa
ambigüidade
a atravessar,
na prática, o
intercâmbio entre
ambas. Ora, a
nosso
ver, é essa
certa ambigüidade
que,
além de marcar
uma postura fortemen
te
anti
dogmática, parece
abrir
espaço para a possibilidade da
eventual
reunião
das duas atividades
numa
mesma prática. E é
essa a
prática
que, ao
que
parece, é executada
nos
escritos his
tórico-filosóficos de Michel Foucault.
A partir destas considerações iniciais,
tentemos
ver
como
o
próprio Foucault compreende seu trabalho enquanto filosofia e
enquanto
história e,
em seguida, em que sentido se poderia di
zer que algo
como
uma crítica da
cultura
permeia esse trabalho.
É sempre difícil tentar encaixar os escritos de Michel Fou
cault
em classificações estabelecidas
do
saber,
buscando
dese
nhar seus traços eventualmente inalteráveis
ou
circunscrever
características invariáveis.
Questões
dessa ordem são ampla
mente
discutidas por
estudiosos
de Foucault.
Não nos
importa
aqui reproduzi-las, mas acentuar o lado francamente positivo
dessa resistência à classificação. É
que
esses ~ r i t o s
assumem
um
caráter por assim dizer flutuante, que atesta
uma
evasão
sadia em relação a todo
dogmatismo. Podemos
dizer
que
Pou
cault escreve com segurança sobre suas próprias incertezas e
toda vez que aborda o trajeto de sua produção é pata questioná
lo. Já no final da Introdução de A arqueologia do saber escrevera
ele: Não me perguntem quem sou e não me digam para per
manecer o mesmo: isso é
moral
de
estado
civil; ela rege noss os
papéis. Que ela nos deixe livres quando se
trata
de escrever lO. E
num debate a
propósito
do
primeiro
volume da História da se-
xualidade depois de a ele referir-se como
um
livro-programa
tipo queijo gruyere, cheio de buracos para
que
neles
possamos
nos
alojar , escreve:
Não
quis dizer - 'Eis o
que
penso', pois
ainda não estou muito seguro quanto ao que formulei ( .. . O
que
existe de incerto
no que
escrevi é
certamente
incerto (
..
.
E
10
FOUCAULT, M., L Archélogie du savoir, Paris, Gallimard,
1969,28.
2 -1 j Foucault Simplesmente
não
estou certo quanto
ao que
escreverei nos próximos volu
mes ; chama-o de discurso hipotético e, mais de uma vez,
de
jogo ll. Em outras passagens afirma o caráter parcial e zigue
zagueante de suas investigações
12
.
Noutra ainda, justifica
ter
gostado de determinada entrevista pelo fato de ter mudado de
opinião
entre o começo e o fim,,13. Salvaguardadas estas obser
vações,
não
será
porém
artificioso
afirmar que
os escritos de
Poucault têm a ver com a história e têm a ver com a filosofia.
Ele
próprio parece situar a si mesmo em ambas. Não são pou
cas as vezes
em
que se refere a seu
trabalho de
historiador.
Quando, por exemplo, rejeitando ao intelectual o papel de con
selheiro na
militância
política e designando-lhe, ao contrário,
a função mais modesta de fornecer os instrumentos de análi
se , conclui
dizendo
ser este, hoje, essencialmente, o papel do
historiador 14. Por
outro
lado, quando, durante
uma
entrevis
ta,
após
a observação de
que
em muitos momentos você se
definiu como
historiador , lhe é
perguntado
por
que
'historia
dor' e não 'filósofo ', sua resposta indica que a questão da filo
sofia hoje
não
deixa de ser
igualmente
uma
questão
de história:
é a
questão
deste presente
que
é o
que
somos,,15.
Noutra
oca
sião, já mais
claramente
afirmará: E mesmo que eu diga que
não sou
filósofo, se
for
da verdade
que me
ocupo,
eu sou apesar
de tudo filósofo , realçando porém que a questão da verdade
que
ele coloca é a
de perscrutar qual
é
sua
história, quais são
seus efeitos,
como
isso se entrelaça
com
as relações de
poder
JJ
.
Ou
ainda, ao referir-se às mudanças ocorridas desde algum tem-
11
FOUCAULT,
M., Sobre a História
da
sexualidade , in Microfisica do
poder,
incrod. e org. de Roberto Machado, Rio de Janeiro, Graal,
19'(9, 243.
Ver
também
259.
12 Cf. FOUCAULT, M., Soberania e disciplina , in
Microfisica
do
poder,
180.
13
FOUCAULT,
M., Sobre a geografia , in Microfisica do poder,
164.
14.
FOUCAULT,
M.,
Poder.Corpo , in
Microfisica do poder,
151.
15.
FOUCAULT,
M.,
Não ao sexo rei , in
Microfisica do
poder,
239.
16. FOUCAULT, M., Sobre a geografia , in Microfisica do
poder,
156.
a
filosofia como crítica da cultura
5
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
14/71
po na escrita da história, Foucault faz ver que a história do
Ocidente "não é dissociável da maneira pela qual a 'verdade' é
produzida e assinala seus efeitos", deixando claro que é seu
propósito
fazer
a história
da 'verdade' -
do
poder
próprio
aos
discursos aceitos como verdadeiros" 7.
Eis, pois,
que
filosofia e história se entrelaçam
num
mesmo
trabalho que se pretende história da produção da "verdade". Mas
que história e que verdade?
Ou
melhor, de que tipo de história
esse filósofo que se ocupa d a verdade é hoje o historiador?
Afastemos, de início, os traços de uma
história que
Fou
cault não elabora. Já no Prefácio a O nascimento da
clínica
1963)
aponta dois recursos tradicionais
que
rejeita e chama-os
de
"es
tético" e "psicológico". O
primeiro
consiste em descrever
uma
história das idéias fundada em analogias estabelecidas pelo
historiador, quer no curso sucessivo do tempo (buscando de
tectar "gêneses, filiações, parentescos, influências"), quer no
âmbito interno
de uma
época (buscando captar seu
espírito,
sua Weltanschauung etc.). O segundo consiste em buscar "inter
pretar" os fatos no
sentido
de
encontrar como que
por detrás
deles suas razões mais secretas,
uma
lógica escondida,
como
se
os fatos fossem
sempre
uma espécie
de
"alegoria" a dizer outra
coisa
que não
eles próprios 8.
É
basicamente a esses
mesmos
recursos que também se refere noutro texto, quando recusa a
elaboração da
história
tanto por um
método que
procede pelo
"recurso
histórico-transcendental
(isto
é
que quer encontrar,
por meio
de
todo
acontecimento, de
toda manifestação histó
rica, as linhas de
sua
origem, apontando assim
em
direção a
um
horizonte
sempre
longínquo
e cad a vezmais recuável) como
por
um
método que
procede pelo "recurso empírico ou psico
lógico" (isto é que quer interpretar as significações explícitas
dos
fatos objetivando fazer falar, por meio deles, um
sentido
17. FOUCAULT, M., Não ao sexo rei , in Microfúica
do
poder; 239-23l.
18. FOUCAULT, M., Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1972, Préface, XIII.
6
I Foucault. simplesmente
oculto" de que supostamente estariam carregadosr
9
. Esses pro
cedimentos
têm
em comum o uso da técnica
que
lhes
é
apro
priada, a saber, o tratamento
dos
textos na forma
de
"comentá
rios", capazes que seriam de trazer
à
luz a suposta origem e o
suposto segredo
que
o discurso explícito
implicitamente
conte
ria. Mais ainda, esses
procedimentos cunham
a
história com
a
marca
unitária do contínuo e da sub}etividade. São próprios
às histórias
do
espírito" e às histórias "globais".
Com
efeito,
uma história do
espírito"
é
precisamente
aquela
que, median
te a "decifração" dos textos,
quer
desvelar a "consciência", as
"intenções" ou o "espírito"
que
os
teriam inspirado
; uma "his
tória global"
é
precisamente aquela que,
na
dispersão dos fatos
e
documentos, quer
encontrar "vestígios"
que
permitam traçar
uma
linha contínua,
uma direção única,
que
expliquem,
de
mo
do uniforme e
homogêneo,
as multiplicidades e as
transforma
ções. Trata-se sempre, nesses casos, de histórias "evolutivas" ou
"progressivas", que não pensam as "diferenças" mas "as conti
nuidades ininterruptas
de
uma teleologia segura. Ainda mais,
assegurando a linearidade
do
progresso, essas histórias salva
guardam
a
unidade soberana do
sujeito, "consciência históri
ca"
que
se
constitui
em núcleo
unificador
ou
centro
originário
capaz de
reunir em
si a explicação e
portanto,
a dissolução da
heterogeneidade,
da
multiplicidade, da dispersão.
Ao se
salvar
a linha segura da
continuidade
histórica, de
algum
modo salva
se
ao mesmo tempo a consciência como seu eixo: Querer fazer
da análise histórica o discurso do contínuo e fazer
da
consciên
cia humana o
assunto
originário de todo devi r e de toda
prática
são as duas faces de
um
mesmo sis tem a de pensament,?JJ22.
19. Cf. FOUCAULT, M., "Resposta a
uma
questão", Tempo Brasileiro)
28
Rio de Janeiro, 1972,59.
20. Ibid., 65.
21. FOUCAULT, M., L'Archélogie du savoir,
21.
22. Ibid., 22.
a filosofia como critica da cultura I 7
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
15/71
Nem
histórias do espírito, nem histórias globais, as históri
as que Foucault
escreve são, como ele
mesmo
as chama, histó
rias gerais,,23 entendidas como descrição dos fatos em sua sin
gularidade de acontecimentos, em suas correlações,
em
suas
transformações, em seus desaparecimentos; são histórias que,
no lugar de
uma
teleologia
da
continuidade e do progresso,
buscam
antes "detectar a incidência das interrupções 24, de sor
te que se antes a descontinuidade equivalia ao impensável ,
que por ser impensável devia ser suprimido e desintegrado
me-
diante sua integração numa explicação continuísta, passa agora
a ser "um dos elementos fundamentais
da
análise histórica 25.
O deslocamento é explícito: "Uma descrição global encerra to
dos os fenômenos
em
torno de um centro único - pri nc íp io ,
significação, espírito, visão do mundo,
forma
de
conjunto; uma
história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dis
persão 26. Concomitantemente, as
histórias
que Foucault escre
ve desfocam a categoria da consciência e se voltam para as aná
lises dos discursos considerados quer
em
suas correlações inter
nas, isto
é,
interdiscursivas, quer em suas relações com o extradis
cursivo, isto é,
com
as práticas e as instituições sociais.
À
prática
desse
procedimento Foucault
chamou
primeira
mente arqueologia e posteriormente genealogia . Sem dúvi
da, reporta a Nietzsche
não
só o termo genealogia , como o
modo de seu uso. Nesse uso, contrapõe a genealogia compreen
dida
como "história efetiva (Wirkliche Historie) à história tra
dicional dos historiadores. Faz ver que esta última
"reintroduz
(e supõe sempre) o ponto de vista supra-histórico: uma história
que reria por função recolher em
uma
totalidade bem fechada
sobre si
mesma
a diversidade, enfim reduzida,
do
tempo; uma
23. Cf. ibid., 17.
24. Ibid., I .
25.
FOVCAULT,
M., Réponse au Cercle d'épistémologie ,
Cahiers
p ur
l analyse, 9, Paris, Seuil, 1968,
10.
26. FOUCAULT, M., L Archéologie du savoir, 19.
8 I Foucault Si mplesmente
história
que
nos
permitiria nos
reconhecermos em toda
parte
e
dar a todos os deslocamentos passados a forma
da
reconcilia
ção; uma história que lançaria sobre o que está atrás dela um
olhar de fim de mundo,m. A "história efetiva , ao contrário, a
genealogia, "reintroduz no devir tudo o que se tinha acreditado
imortal
no
homem"; reintroduz
"o
descontínuo
em nosso pró
prio ser,,28. A história tradicional,
em
sua perseguição da origem
(Ursprung),
considerando acidentais todas as peripécias que
pu
deram ter
acontecido,
todas
as astúcias,
todos
os disfarces 29,
pretende recuar ao reencontro de uma identidade
enfim
desve
lada, essência
única
e sempre a mesma. Para a genealogia, ao
contrário, não há por trás da trama histórica qualquer identida
de pura de um sentido ou de uma essência; o
que
existe é preci
samente a multiplicidade de fisionomias, como tantas másca
ras sob as quais
não
há um rosto a ser desmascarado: A genea
logia
é um
carnaval organizado 30. Recolhamos estes traços da
história praticada
por
Foucault
na
seleção de algumas passa
gens
em
que ele explicita o perfil
da
genealogia. Primeiro, ela
recusa a identidade das origens e a segurança das teleologias:
A
genealogia
não
se
opõe
à
história como
a visão altiva e
profun
da do filósofo ao olhar de toupeir a do cientista; ela se opõe, ao
contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações
ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe
à
pesquisa da
'origem '31. Segundo, ela desvia o enfoque antropológico em
direção aos discursos que compõem os saberes: É isto que eu
chamaria de genealogia, isto
é, uma
forma
de
história que
dê conta da constituição dos saberes, dos discursos, dos domí-
27. FOUCAULT,
M.,
Nietzsche, a genealogia e a história , in Microftsica do
poder, 26.
28. Ibid., 27.
29. Ibid.,
17.
30. Ibid., 34. É interessante observar a freqüência no uso deste tipo de
metáfora: carnaval, máscara, bastidores, disfarce, cena, cenário, teatro, jogo etc.
31. Ibid.,
16.
a filosofia como crítica da cultura I 9
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
16/71
nios de objeto etc.,
sem
ter que se referir a
um
sujeito, seja ele
transcendente com
relação
ao campo de
acontecimentos, seja
perseguindo sua identidade vazia ao longo da história 32. Ter
ceiro, ela
não está preocupada com
o progresso :
Tenho esta
precaução de método, este ceticismo radical mas sem agressivi
dade
que
se dá por princípio não tomar o ponto em que
nos
encontramos
por final
de
um progresso
que nos
caberia recons
tituir com precisão
na
história. Isto é, ter em relação a nós mes
mos, a nosso presente,
ao
que somos,
ao aqui
e agora, este ceti
cismo que impede que se
suponha
que
tudo
isto é melhor ou
que é mais do que o passado (
..
). E não digo que a humanidade
não progrida. Digo que considero
um
mau método colocar o
problema
'por
que
progredimos?'. O
problema
é
'como
isto se
passa?'. E o
que
se passa agora
não
é forçosamente melhor, ou
mais elaborado, ou melhor elucidado do que o que se passou
antes,,33. Finalmente, despida de origens, teleologias, sujeito cons
tituinte e progresso evolutivo, a genealogia descreve uma histó
ria
marcada
pela
descontinuidade
dos acontecimentos, enten
dendo-se por acontecimento , não
uma
decisão,
um
tratado,
um reino, ou uma batalha, mas uma relação de forças , forças
que no jogo da história não
obedecem
nem
a
uma
destinação,
nem a uma mecânica,
mas ao
acaso da luta , acaso do
jogo que
não é simples sorteio , mas antes risco sempre renovado (
..) 34.
Mas a
prática
deste
procedimento
na escrita da história
não
é
também
movida
ao
acaso
de
um capricho. Afinal,
por
que
tantas inversões ? Com efeito, não se trata
pura
e simplesmen
te de
efetuar substituições
de algum modo
arbitrárias: a conti
nuidade pela descontinuidade, a uniformidade pela dispersão, a
linearidade pela diferença;
nem
de troca r o núcleo consciência
por
outro chamado discursos . Ao contrário, essa orientação
32.
FOUCAULT,
M.,
Verdade
e
poder , in
Microfisica
do
poder
7.
33.
FOUCAULT,
M.,
Sobre
a prisão , in
Microfisica
do
poder; 140.
34.
FOUCAULT,
M., Nierzsche, a genealogia e a história ,
in Microfoica
do
poder 28.
3
Foucault.
simpl sm nt
conferida ao entendimento e à escrita da história, longe de ser
inocente,
funciona
como uma estratégia
porque
calcada num
comprometimento crítico com pretensões a
uma
eficácia políti
ca. Ouçamo-lo mais uma vez: Uma edição
do
Petit Larousse
que
acaba de sair diz: 'Foucault:
um
filósofo que funda sua teoria da
história na descontinuidade'. Isto me deixa pasmado (
..
). Meu
problema
não
foi
absolutamente
dizer: viva a descontinuidade,
estamos nela e nela ficamos; mas colocar a questão: como é
possível que
se
tenha, em certos momentos e em certas ordens
do saber, estas mudanças bruscas, estas precipitações de evolu
ção, estas transformações
que não
correspondem à imagem tran
qüila e
continuísta que normalmente
se faz? Mas o
importante
em tais mudanças não é se serão rápidas ou de grande amplitu
de, ou melhor,
esta
rapidez e
esta amplitude
são apenas o sinal
de outras coisas:
uma
modificação nas regras de formação dos
enunciados aceitos
como
cientifi camente verdadeiros 35.
Ora, é precisamente a eleição, para domínio
da
investiga
ção histórica,
daquilo que
é aceito
como
cientificamente ver
dadeiro
que nos encaminha
à
abordagem
dos vínculos dessa
história com a questão
da
verdade enquanto assunto da filoso
fia, e daí à compreensã o do que
chamamos
seu comprometimen
to crítico com a cultura.
Com efeito,
ao
privilegiar os acontecimentos discursivos
como campo de análise, Foucault restringe a região de seus es
tudos: entre os discursos, aqueles
que
são reconhecidos como
científicos e, entre estes, os
que compõem
a região mais cam
biante e imprecisa
que
é constituída pelos saberes das chamadas
ciências
humanas.
Essa escolha é, sem dúvida, uma estratégia. E
essa estratégia
se
aloja no ponto de cruzamento entre a questão
da verdade e os mecanismos
do
poder.
Por
um lado, ocupar-se,
enquanto
filósofo,
com
a questão
da
verdade significa aqui
não
ir
em
busca de
uma
essência a ser descoberta, mas descrever e
35. FOUCAULT, M., Verdade e poder , in Microftsica do poder 3 4.
a filosofia como crítica da cultura
j 3
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
17/71
analisar os modos como a verdade vem sendo historicamente
produzida; trata-se, precisamente, daquele estabelecimento
do
jogo de regras - regras que são transformáveis de
uma
socieda
de
para
outra, de
uma
época
para
a outra -
que
autoriza a
qualificação de objetos, de sujeitos, de instituições, para a pro
dução de saberes reconhecíveis como verdadeiros. Por outro lado,
e
ao mesmo
tempo, ocupar-se, enquanto filósofo, com a ques
tão
da
verdade encarada segundo seus modos históricos de pro
dução é ocupar-se
também do
vínculo circular que ela
mantém
com os modos de exercício do poder: o exercício
do
poder cria
perpetuamente saber
e,
inversamente, o saber acarreta efeitos de
poder 36.
Assim, podemos dizer que,
se
a verdade é efeito do po
der das regras
segundo
as quais
determinados
saberes têm a
competência
para
a verdade, essa competênci a lhes atribui, por
seu turno, os direitos de uso do poder (em seu nome se distingue
não só
o verdadeiro e o falso,
como
o
permitido
e o interditado,
o correto e o errado, o normal e o patoló gico etc.). Eis a pergun
ta de filosofia política
que Foucault
se coloca: Em uma socie
dade como a nossa, que tipo de poder é capaz de produzir dis
cursos
de
verdade dotados de efeitos
tão
poderosos?,,37
Ora,
posto que em
nossas sociedades ocidentais são os
discursos reconhecidos como científicos os que compõem os
saberes aceitos
como
verdadeiros, é desses saberes
que
tratará a
genealogia. E posto que
é
a região das chamadas ciências hu
manas
a
que melhor
ou mais claramente permi te fazer ver aquele
entrelaçamento entre regime de verdade e regime de poder,
na
medida em que ela envolve saberes cujo perfil epistemológi
co ,
por
ser pouco definido 38, abriga combates, linhas de
força, pontos de confronto, tensões 39, é sobre ela que vai par
ticularmente
recair a invesrlgação.
36.
FOUCAULT
M., Sobre a prisão ,
in
Microfisica do poder,
142.
37. FOUCAULT M., Soberania e disciplina , in Microfísica
do poder,
179.
38. FOUCAULT M., Verdade e poder ,
in
Microfísica do poder, l
39.
FOUCAULT M.,
Sobre a geografia , in
Microfísica do poder, 154.
3
I Foucault. Simplesmente
Nesse sentido pois, ocupando- se da análise das relações entre
saber e poder que, mediados pela verdade, mutuamente se pro
duzem e se reproduzem, a genealogia
pretende
constituir-se em
foco de crítica e em instrumento de resistência. Quer propor
um
saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táti
cas atuais,,40. E isso
duplamente.
Busca, por
um
lado, recuperar,
num
trabalho que
exige paciência e erudição,
conteúdos
histó
ricos que
foram
subestimados ou silenciados pelo saber quali
ficado das históri as tradicionais:
mostra, por
exemplo, de
que
modo a pretensão ao estatuto científico dos saberes sobre o
homem lhes imprime as marcas do exercício do poder, atribuin
do
ao
sujeito
detentor do
conhecimento sobre o homem a com
petência que autoriza o domínio de seus objetos , dissoci ando
assim o sujeito do
conhecimento que
possui a verdade de seus
objetos que nada sabem ; descreve, em face das histórias
da
Razão e do mesmo, a história
da
Desrazão e do Outro, revelan
do os mecanismos correlatos
de
exclusão, de enclausuramen
to e de redução ao silêncio; faz emergir, pela análise do nasci
mento das prisões, conteúdos históricos que evidenciam o po
der
na
forma
da
disciplina etc. Por
outro
lado,
é
aliada
da
recu
peração de saberes considerados ingênuos, hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível da cientificidade
(por
exem
plo, do doente, do enfermeiro, do delinqüente etc.) .
A
genea
logia seria portanto, com relação ao projeto de uma inscrição
dos saberes na hierarquia de poderes
próprios à
ciência,
um
empreendimento para libertar a sujeição dos saberes históricos,
isto é, torná-los capazes
de
oposição e de luta contra a coerção
de
um
discurso teórico, unitário, formal e científico. 42
Mais ainda:
lembremos que
enquanto a arqueologia pre
tendia realçar principalmente as epistémes isto
é,
o nível das
40. FOUCAULT M.) Genealogia e poder , in Microfísica
do poder,
171.
41. Ibid., 170.
42. Ibid., 172.
a filosofia como critica da cultura I
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
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correlações interdiscursivas, a genealogia se dirige não somente
ou sobretudo aos discursos, como ainda a suas relações com as
estruturas
sociais. Lê-se, por exemplo,
numa
passagem de
Vigiar
e punir: O sistema carceral reúne numa mesma figura discur
sos e
arquiteturas, regulamentos
coercitivos e proposições cien
tíficas
..
43. Do mesmo teor, Foucault não rejeita a afirmação
que
lhe é
dirigida
por um entrevistador: Você mostrou
como
o saber psiquiátrico traz ia consigo, pressupunha, exigia a reclu
são asilar, como o saber disciplinar trazia consigo o modelo da
prisão, a medicina de Bichat o espaço do Hospital e a economia
política a estrutura
da
fábrica 44. Enten de-se ass im que, ao esta
belecer a
história
da
constituição
dos saberes explicitando seu
vínculo com exercícios do poder, a genealogia os considera como
peças
nas
tramas de uma rede - por ele chamada de disposi
tivo - que envolve
tanto
as inter-relações dos saberes como
suas articulações com as práticas institucionais.
Ora, sem entrarmos
na
pluralidade possível de acepções
que podem ser cobertas pelo termo cultura , nem nos diferen
tes ângulos sob os quais
pode
ser
abordado e, menos
ainda, nas
muitas questões que suscita, poderíamos considerar cultura ,
de um modo
tão
geral quanto simples, o conjunto de saberes
teóricos e de práticas sociais que compõem o quadro em que se
move uma determinada sociedade e cujos limites lhe demarcam
as possibilidades de nomear, falar, pensar,,45. É nesse sentido
que não nos parece abusivo reconhecer nos trabalhos histórico
filosóficos de Foucaulr algo a que poderíamos chamar
uma
crítica da cultura ou, pelo menos, da cultura qualificada .
E, finalmente, não há
que
se esquecer que, contudo, essa
crítica da cultura, esse t r b ~ l h o filosófico de constituição de
43. FOUCAULT, M., Surveiller et
punir
Paris, Gallimard,
1975,276.
44. Cf. Sobre a geografia ,
in
Microfísica
do
poder
16l.
45. FOUCAULT, M., Les Mots et les choses Paris, Gallimard, 1966, Préface,
11.
É aliás numa concepção assim bem ampla que o termo é freqüentemente
usado neste Prefácio.
4
Foucau t.
simplesmente
um saber histórico das lutas é, ele próprio, (saber , partícipe
da
história e
da
cultura . Daí o cuidado insistente de Fou
caulr em não se vir a rransform ar a análise realizada pelas ge
nealogias em outro saber centralizador
ou
monopolizador
da
verdade
e,
portanto,
habilitado
para o poder. Assim, em opo
sição às teorias gerais e globalizantes, a crítica tem
um
caráter
local e específico
46
•
Em
oposição
ao
teórico legislador , Fou
cault sonha com o intelectual destruidor das evidências e das
universalidades 47. Neste sentido , escreve Roberto
Machado,
«nem a arqueologia,
nem, sobretudo,
a genealogia têm
por
objetivo fundar
uma
ciência, construir
uma
teoria
ou
se consti
tuir
como
sistema: o programa
que
elas formulam é o de reali
zar análises fragmentárias e transformáveis. 48
Essa mobilidade
que
é
constitutiva
da postura mesma
das
investigações de Foucault vem confirmar aquela distância de
quaisquer dogmatismos a que inicialmente nos referíamos. E
permite
que
reencontremos, a respeito da filosofia e da histó
ria, bem como das relações entre ambas, alguns aspectos que
apontávamos
em nossas pr imeiras considerações em torno de
Merleau-Ponty. E pelo menos dois aspectos. Recusando a alter
nativa entre
uma
história atravessada por
um
sentido teleológi
co e uma
história
desprovida
de
sentido porque concebida
como
um conglomerado de fatos, Merleau-Ponty recusava igualmen
te tanto a ininteligibilidade da
história
como as pretensões de
uma
História Universal inteiramente desdobrada diante do his
toriador como o seria
sob
o olhar de
Deus,,49.
As histórias
que
Foucault
escreve, além de avessas a
qualquer
aspiração de uni
versalidade, assumem,
na
prática, aquela simultaneidade entre
46.
Cf.
principalm ente Verdade e poder , Genealogia e poder , Os
intelectuais e o poder ,
in
Microfísica ..
47.
FOUCAULT,
M., Não ao sexo rei ,
in
Microfisica
do
poder
242.
48. MACHADO R., Introdução , in
Microfísica
do poder XIII.
49. MERLEAU-POl\. TY, M., Le métaphysique
dans
l'homme , in
Sens
et
non·sens
158,
Ver
também, Éloge .. 59.
a
filosofia como
crítica da cultura
5
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
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a ausência de
um
sentido único e a presença de inteligibilidade,
agora,
porém,
conduzindo este
aparente
paradoxo a uma
nova
direção: A história não tem 'sentido', o que não quer dizer que
seja absurda ou incoerente. Ao
contrário,
é inteligível e deve
poder
ser
analisada em
seus
menores
detalhes,
mas segundo
a
inteligibilidade das lutas, das estratégias, das táticas 50. Segundo,
e
conseqüentemente, afirmando que
é pela inerência a uma
situação
histórica particular que podemos compreender a sig
nificação de
outras
situações
que compõem
a
trama da
histó
ria, Merleau-Ponty se opunha ('ao ideal
de
um espectador abso
luto,
de
um
conhecimento
sem
ponto
de
vista,,51. Afinal, nem
ilusão retrospectiva ,
nem
ilusão prospectiva . Saber pers
pectivo , eis como Foucault (na descrição
da
genealogia nietzs
chiana) caracteriza a história: os historiadores
que
perseguem a
neutra objetividade de
uma
consciência isenta e soberana pro
curam, na medida do possível,
apagar
o
que
pode revelar, em
seu
saber, o
lugar de onde
eles
olham,
o momento em
que
eles
estão, o partido que eles tomam - o incontrolável de sua pai
xão ; já o saber perspectivo ,
ao contrário,
sabe
que
é perspec
tivo , olha de
um
determinado ângulo, com o propósito deli
berado
de apreciar, de dizer
sim
ou não , é um olhar
que
sabe
tanto
de onde olha como o que olha 52.
Por ser perspectivo , e se saber assim,
elaborado
a partir
da
cultura que
o torna possível,
olha-a
criticamente,
mas
a olha
de dentro dela; e justamente por isso é também visado por seu
mesmo
olhar crítico, de
sorte
que, se provoca deslocamentos,
há
que se dispor, ele próprio, a deslocar-se.
50.
FOUCAULT,
M.,
Verdade
e
poder , in
Microfísica
do
poder
5.
51.
MERLEAu-PONTY,
M., Le
philosophe et
la sociologie ,
in Éloge
136.
52. FOUCA.uLT, M., Nieczsche, a genealogia e a história , in
Microfoica
do
poder
30.
6 I Foucault. Simplesmente
O M SMO O OUTRO
Faces da história da loucura
De
que
valeria
a
obstinação
do
saber
se ele
assegurasse apenas
a
aquisição dos conhecimentos
enão
de certa maneira
e tanto quanto
possível odescaminho
daquele que
conhece? Existem
momentos na
vida
nos
quais
a questão
de saber se se pode
pensar
diferentemente
do que se pensa
e
perceber
diferentemente
do que se vê é
indispensável para
continuar a
olhar
ou a refletir.
M. FOUCAULT, o
uso dos
prazeres
13.
Foucault faz filosofia fazendo pesquisa histórica. As histó
rias que escreve desenvolvem-se no espaço do Ocidente, e o
tempo que percor rem é quase sempre aquele que vai desde o fi
nal do Renascimento (por volta do século XVI) até a nossa
Modernidade (séculos XIX e XX), atravessando com realce a
chamada
Idade Clássica (séculos
XVII
e
XVIII).
É
possível sugeri r que a questão que, genericamente, po
demos
denominar
do
outro e
do mesmo
se
estenda como
um
pano de fundo dessas histórias. Comecemos, pois, por
propô-la, partindo
de
uma
ilustração que está nas
primeiras
Conferência
apresentada
na
VII Semana de
Estudos em
Filosofia
da
Universidade Metodista de Piracicaba, em agosto de 1994. Publicaclaem Foucault
e a destruição das evidências (MARlGUELA, M., org.), Piracicaba, Unimep, 1995.
o
m smo
e o outro j
7
8/18/2019 Foucault, Simplesmente - Salma Tannus Muchail-www.livrosGratis.net
20/71
páginas
do
Prefácio de As palavras e as
coisas.
Trara-se da rero
mada de uma classificação dos animais,
citada
por Jorge
L
Borges,
supostamente extraída
de uma
enciclopédia
chinesa.
Segundo esta
classificação, os animais se dividem em: a) per
tencentes
ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos,
g)
cães
em
liberdade, h) incluí
dos na presente classificação, i) que se
agitam como
loucos, j)
inumeráveis,
k)
desenhados com um pincel fino de pêlo de
camelo,
I)
et
cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que
de
longe parecem
moscasJ1
1
.
Esta
classificação
reúne
de
modo incongruente
categorias
sem
nexo que, a nós, parecem impossíveis de nomear, falar, pen
sar,,2. Ora, a possibilidade e a impossibilidade de
nomear,
falar,
pensar
podem
ser analisadas em torno de três termos:
ordem)
lugar,
espaço. Com
efeito,
há
uma
ordem
que, naquela classifica
ção, parece vincular a seqüência
das
classes
nela
reunidas, a sa
ber, a série alfabética. Mas, justamente, é esta
ordem
que ali pa
rece
não
caber . A
estranheza da
ordem
está em
sua articulação
com a ausência de lugar capaz de permitir a reunião das classes e
sua
ordenação,
ainda que meramente
alfabética:
O absurdo
ar
ruína o
e
(ordem) da enumeração, marcando de impossibilidade
o em (lugar)
onde
se repartem as coisas enumeradas 3.
Ordem e lugar, porém, dependem de um
espaço
homogê
neo e comum dentro
do
qual somente
ou
sobre o qual as
coisas
possam
ser localizáveis e ordenáveis,
espaço
que torna
possível
nomeá-las,
dizê-las, pensá-las. Assim, é a
justaposição
desse e (ordem), desse em (lugar) e desse
sobre
(espaço) que
instaura, para
nós, a
estranheza dessa
classificação
4
.
Estranhe
za, porém,
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