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MAURCIO DA SILVEIRA PICCINI
"FIZ POR QUERER" - O PAPEL DAS ESCOLHAS DO JOGADOR NA
CONSTRUO DO SENTIDO EM NARRATIVAS DE JOGOS DIGITAIS
Tese apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Doutor em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul
Orientadora: Dr. Vera Teixeira de Aguiar
Porto Alegre
2012
2
The hard must become habit.The habit must become easy.
The easy must become beautiful.
-- Doug Henning,ilusionista canadense
(1947-2000)
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RESUMO
A presente tese de doutorado constitui-se na investigao do papel do jogador na
construo de sentido em jogos de narrativa digital atravs da aplicao de
conceitos de teoria da literatura. Embasa-se nas teorias literrias de Vladimir Propp,
Claude Bremond, Algirdas Greimas e Tzvetan Todorov, nos conceitos de interao e
hipertextualidade das reas de comunicao e informtica, nos estudos sobre os
processos de leitura e nas estruturaes de jogo utilizadas por desenvolvedores de
software de entretenimento. Apresenta a anlise do jogo Fallout 3 como testagem
dos conceitos tericos envolvidos e formula derivaes tcnicas e propostas tericas
da aplicabilidade desse entendimento sobre a construo de sentido da literatura, da
comunicao, do desenvolvimento de jogos e do processo de aprendizagem.
Conclui que o jogador no apenas atua como leitor, receptor de uma narrativa, mas
interpreta o sistema de valores do jogo na busca do domnio das percias utilizadas
de forma ldica, transformando a mecnica e a narrativa presente no jogo em
material para sua prpria expresso.
Palavras-chave: teoria da literatura, narrativa, jogos digitais, construo de sentido, leitura
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ABSTRACT
This thesis presents the investigation over the roll of the player on the construction of
meaning in games with digital narratives through the application of concepts from
literary theory. The works of Vladimir Propp, Claude Bremond, Algirdas Greimas, and
Tzvetan Todorov, concepts of interaction and hypertextuality from communication and
semiotics, and studies about the process of reading, and the structure of games used
by developers of entetainment software were adopted as referencial to support the
research. This volume presents the results of such concepts to analyse the computer
game Fallout 3. It concludes that the player is not only the receptive reader of the
narrative presented by the game, but becomes the interpreter of a value system in
the quest for the attainment of skills, shapping the narrative and the mechanics of the
game into material for his own expression.
Palavras-chave: reading, narrative, digital games, making sense, reading
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Lista de Ilustraes
Figura 1 Sistema de atualizao de possibilidades de Bremond 20
Figura 2 Encaixe de uma sequncia bsica na etapa de abertura de possibilidades de Bremond
21
Figura 3 Sistema de actantes de Greimas 22
Figura 4 Imagem retirada apresentao do artigo Uma mquina de estados para Greimas (PICCINI, 2008b), arquivo pessoal
23
Figura 5 Grfico de tenso dramtica adaptada do artigo de LeBlanc (LEBLANC, 2006, p. 443)
25
Figura 6 - Reproduo traduzida da pirmide de Fullerton 35
Quadro 1 Etapas introdutrias ao jogo (tutoriais) e respectivas descries 60
Quadro 2 Etapas principais, etapas secundrias e descries da funo da etapa na construo narrativa.
61
Quadro 3 Nomes e descrio das etapas primrias da linha narrativa principal de Fallout 3 64
Quadro 5 Conjunto de etapas da narrativa principal em sequncia, definidas pelos objetivos primrios e secundrios.
65
Figura 7 Ilustrao da progresso do tempo do jogador (no mundo externo ao jogo) em relao progresso do tempo dentro da narrativa
83
Figura 8 Exemplo de disposio de exerccios a serem executados para o aprendizado das operaes bsicas da matemtica
84
Figura 9 Exemplo de percurso do jogador ao utilizar sidequests em contexto de aprendizagem
85
6
SUMRIO
CONSIDERAES INICIAIS 7
1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5
PRINCPIOS CONCEITUAIS DO JOGO JOGO COMO ATIVIDADE HUMANA JOGO COMO CONSTRUO NARRATIVA JOGO COMO CONSTRUO DRAMTICO-NARRATIVAJOGO COMO INTERAO JOGO E ESCOLHAS
121216242731
2 2.1 2.2 2.3
PRINCPIOS ESTRUTURAIS DO JOGO CONSTRUO DA NARRATIVA ATUALIZAO DA NARRATIVA ANLISE DA NARRATIVA
39394554
3 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6
ANLISE DO JOGO FALLOUT 3 DELIMITAO DO TEMA ETAPAS DA NARRATIVA ENCADEAMENTO DAS FUNES CONDICIONAIS DE PROGRAMAO TRANSIO DO OBJETIVO E DOS PAPIS FUNES DO JOGADOR DURANTE A PARTIDA
59596569717376
4 4.1 4.2 4.3
INTERPRETAO E SUPERINTERPRETAO JOGO COMO SISTEMA DE VALORES JOGO COMO ESPAO PARA APRENDIZAGEM JOGO COMO FORMA DE EXPRESSO
80808386
CONSIDERAES FINAIS 89
REFERNCIAS 93
ANEXO A Descrio do jogo Fallout 3 ANEXO B CD multimdia contendo vdeos do jogo em andamento
97107
7
CONSIDERAES INICIAIS
Como objetivo geral, esta tese busca dar continuidade ao trabalho iniciado
na dissertao de Mestrado do autor, quando foram formuladas as bases para um
modelo de anlise especfico para narrativas de jogos digitais. De forma mais ampla,
ambos os trabalhos visam expandir o ferramental terico da rea da literatura,
adaptando-o ao processo interativo de construo da narrativa de jogos digitais.
Alm da prpria validao das teorias da narrativa para os novos meios de narrao
de histrias, entende-se tambm que, em pesquisas futuras, ser possvel
reabsorver conceitos aplicados a essas narrativas digitais, de modo a testar os
conceitos dentro da prpria teoria literria.
Antes, atravs dos objetivos especficos, explora-se o papel do leitor na
atualizao das possibilidades narrativas e na consequente construo dos sentidos
da narrativa presente no jogo digital. Tem-se, ento, como objetivos especficos:
aplicar o modelo terico para anlise da narrativa digital proposto na dissertao de
Mestrado Por uma teoria das supercordas da narrativa (PICCINI, 2008a) no jogo
Fallout 3; identificar, a partir da aplicao do modelo terico, o fio condutor das
aes do jogo Fallout 3 e avaliar quais aes possuem causalidade obrigatria, ou
seja, induzem construo de um sentido pr-determinado; demonstrar o papel do
jogador na seleo dessas aes e, portanto, encontrar a parte do sentido do jogo
que pode ser imputado ao jogador; e avaliar a utilidade da liberdade do jogador na
construo de sentido para as diversas reas de aplicao dos jogos digitais.
Os esforos aqui empreendidos contribuem para a expanso das
fronteiras interdisciplinares, tendo em vista a organizao do conhecimento acerca
dos jogos eletrnicos de um novo ponto de vista, aquele da teoria da literatura. O
assunto j tratado pelas reas da comunicao e da semitica, por pesquisadores
como Espen Aarseth, Gonzalo Frasca e Luiz Antnio Marcuschi, para anlise do
meio hipertextual para a compreenso e elaborao de estratgias de criao
textual e suas implicaes na relao do leitor com a mensagem interativa; da
informtica, por Alison McMahan e Allen Varney, para a criao de jogos que
proporcionem maior imerso do jogador com o ambiente virtual, atravs do
desenvolvimento de tecnologia de realidade virtual e simulaes com tcnicas de
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inteligncia artificial; da produo cultural e da educao, por Lynn Alves e James
Paul Gee, para aplicao dos jogos eletrnicos e sua influncia no imaginrio infantil
e na construo de conhecimento.
A adio da investigao atravs dos preceitos da teoria da literatura
proporciona um desenvolvimento tanto no campo da informtica, na rea de estudos
de jogos, quanto da prpria teoria da literatura. Por enfocar a leitura como parte do
desenvolvimento humano e ter j embasamento no tratamento da permeabilidade
entre texto literrio, imagem, msica e demais formas artsticas, a teoria da literatura
possibilita o enfoque dos aspectos que tornam a leitura atrativa para jovens,
consequentemente, que visam formao de jovens leitores interessados nesse
meio como forma artstica, alm de entretenimento. A integrao do jogo eletrnico e
do hipertexto ao mbito dos trabalhos da teoria da literatura promove a abertura de
seus conceitos tericos para a estrutura da narrativa contempornea emergente.
Da teoria da literatura e dos estudos da narrativa, este trabalho utiliza-se
das teorias de Vladimir Propp quanto s delimitaes de etapas e personagens; de
Claude Bremond quanto aos encaixes, combinaes e interrelaes das aes
narradas; de Algirdas Greimas quanto s relaes entre os atores da narrativa, seus
objetivos e distribuio de poder e de Tzvetan Todorov quanto composio dos
sentidos do texto. Para efeito desta tese, entende-se narrativa como a
representao simblica de uma sequncia de aes ligadas por causalidade, com
base nos resultados dos estudos tericos citados, a partir dos contos tradicionais (e
expandidos para os textos novos que mantm a mesma estrutura).
Para a compreenso das propriedades dos jogos, so selecionados
aspectos distintos vindos das reas da antropologia e da sociologia, atravs de
Johan Huizinga e Roger Caillois, que caracterizam a relao do homem com os
jogos e o que o homem obtm de retorno deles; das reas da informtica e
desenvolvimento de jogos, atravs de Chris Crawford, Jesper Juul e Janet Murray,
que possuem experincia na criao de jogos de computador e em pesquisa
acadmica sobre o uso de jogos em situaes de aprendizagem; da rea da
comunicao, com as formas de tomada de deciso de Tracy Fulllerton e os
exemplos de David Freeman sobre a elaborao de emoes em narrativas
interativas.
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As ferramentas presentes na base terica so utilizadas para anlise do
ttulo Fallout 3, jogo de computador disponvel tanto para plataformas de
computadores pessoais com Sistema Operacional Windows, como para os
videogames de ltima gerao Playstation 3 e XBOX 360. O jogo selecionado
possui enredo extenso e segue um modelo de Role-Playing Game (RPG)1, no qual o
jogador, alm de controlar uma personagem, deve fazer escolhas para guiar o
desenvolvimento de atributos dessa personagem (como fora, velocidade, carisma,
inteligncia), bem como interagir com elementos narrativos (ambientes virtuais,
motivaes implcitas e explcitas e personagens que contam uma histria), para
conseguir navegar na estrutura do jogo.
Alm da experincia do autor desta tese com o prprio jogo, so utilizados
walkthroughs (guias e colees de dicas publicadas na internet que contm
instrues passo-a-passo para a soluo de um jogo) para conferncia das
informaes, bem como para, dada a oportunidade, comparar as percepes sobre
o jogo pelos autores desses guias.
O relato do desenvolvimento deste projeto distribui-se em quatro
captulos. No primeiro captulo, so apresentadas definies de jogo do ponto de
vista antropolgico e sociolgico, suas aproximaes com definies de leitura e
interpretao de texto e a distino entre dois conceitos quanto interatividade. O
jogo visto inicialmente como atividade humana regrada e arbitrria. Essa atividade
desenvolve-se como construo narrativa e dramtica, em que os jogadores
assumem papis e experimentam a tenso consequente do desenrolar de suas
aes. Sendo esses leitores/jogadores agentes das prprias aes da narrativa, so
revistos os conceitos que regem a interao entre jogadores e o prprio jogo.
No segundo captulo, apresentada uma formulao do conceito de
narrativa que rene as interaes possveis dentro de um jogo com aquelas
disponveis ao leitor no sentido de preenchimento do texto literrio com seu prprio
imaginrio. Os conceitos de leitura e de composio da narrativa so atualizados,
1 Normalmente traduzido como jogo de interpretao de personagem, RPG um tipo de jogo em que a construo das personagens parte essencial da evoluo do jogo, no bastando aos jogadores completar os objetivos dados pelo jogo, mas complet-los agindo, pensando, atuando conforme os poderes e limitaes de suas personagens.
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tomando-se por guia as noes de preditibilidade leitora2 e de vazios literrios3, para
incorporar a interatividade e o feedback do leitor. Nesse captulo, so elencados
tambm os passos para a anlise a partir do modelo proposto pelo autor desta tese
em dissertao de Mestrado.
No terceiro captulo, o jogo Fallout 3 analisado para identificar o modo
como esse preenchimento dos sentidos do texto afetam e so afetados pelas
decises do jogador. A anlise segue os passos propostos no segundo captulo,
reconstruindo a estrutura narrativa luz das definies de jogo e interao
presentes no primeiro. Os diversos nveis de anlise so sobrepostos at a obteno
de uma descrio dos espaos abertos para decises do jogador enquanto leitor e
agente da narrativa.
E, no quarto captulo, a partir da anlise, so avaliadas as interpretaes
possveis e suas extrapolaes para a elaborao de uma viso do processo de
construo de sentido pelo jogador. O jogo passa a ser entendido tendo o pacto (da
narrativa ou das regras do jogo) como porta de entrada do leitor no mundo
diegtico4. Em seguida, esse mundo serve como campo de treinamento, um espao
onde o leitor expande sua zona de conforto. Por fim, sendo o jogo compreendido
como matria para criao de significado pelo jogador, o leitor passa a produtor,
expressando-se atravs de suas aes sobre o jogo.
Uma vez que esse trabalho uma elaborao dos fundamentos da
aproximao dos papis de leitor e jogador, nas consideraes finais, so sugeridos
focos para pesquisas futuras e aplicaes dos conceitos aqui construdos. Em
anexo, para facilitar a visualizao do jogo como visto pelo jogador, segue um
resumo descritivo de Fallout 3 (ANEXO A), seu modo de integrao, combate e
narrativa, e um CD com vdeos (ANEXO B) apresentando cenas do jogo em primeira
2 A preditibilidade (BORBA, 2008) a capacidade do leitor de completar o texto enquanto o l, preenchendo espaos lingusticos criados pela tcnica de escrita do autor (omisses para criar suspense ou elipses sintticas, por exemplo) ou pelo desconhecimento de uma palavra usada (obrigando o leitor a criar uma hiptese para seu significado). Conforme a autora, a leitura no uma atividade meramente linear, mas um processamento em paralelo de diversos nveis atravs de diversos processos lingusticos que se alteram conforme o objetivo da leitura.
3 Vazio literrio a expresso utilizada por Wolfgang Iser para se referir a intervalos ou lacunas do texto. Para Iser, o texto literrio distinto do texto no literrio por possuir espaos para a interpretao do leitor. Esses espaos no so falhas do autor, mas so indutores da leitura, permitindo que cada leitor atinja certa interpretao potencial do texto que lhe cabe por sua disposio individual. (ISER, 2011)
4 Termo utilizado por Gerard Genette para distinguir o mundo existente dentro dos limites da narrativa (chamado diegtico) daquele que o leitor possa conhecer como mundo real fora da narrativa (extradiegtico). (GENETTE, 1980)
11
pessoa e a sequncia de animao final do jogo, que apresenta ao jogador o epilogo
da histria.
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1 PRINCPIOS CONCEITUAIS DO JOGO
1.1 JOGO COMO ATIVIDADE HUMANA
Segundo Johan Huizinga (1955), historiador holands, em sua obra
Homo ludens, publicada em 1938, jogo uma atividade voluntria exercida dentro
de certos e determinados limites de tempo e espao, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatrias, dotada de um fim em si mesma,
acompanhada de um sentimento de tenso e alegria e de uma conscincia de ser
diferente da vida cotidiana.
So pontos-chave para a compreenso do conceito de jogo no presente
trabalho:
arbitrariedade das regras todos os jogadores devem ter conscincia de
que esto em um jogo e devem estar em comum acordo sobre o sistema
de regras a ser utilizado; dessa forma, nenhum jogador pode ser forado
a jogar;
finitude do tempo todo jogo tem um comeo e um fim definidos no
tempo. As regras de definio de tempo devem ser conhecidas por todos
os participantes. Os eventos ocorridos antes do incio e depois do trmino
so desconsiderados para fins de jogo;
finitude do espao todo jogo tem limites espaciais. Quem estiver fora
das linhas demarcadas como limite ser desconsiderado para fins de
jogo;
representao de papis todo jogador representa um papel no jogo,
pois participa dele como parte de si prprio e no como o todo;
obrigatoriedade das regras as regras de um jogo no podem ser
modificadas, pois tal mudana transforma um jogo em um outro.
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Roger Caillois (1990), em obra publicada em 1958, Os jogos e os
homens, especifica a definio de jogo classificando-o em grupos de atividades que
podem ser mais ldicas ou mais regradas. A essas qualidades d os nomes,
respectivamente, de paideia e ludus.
Paideia a qualidade de ser sem regras, livre de restries. A sequncia
das atividades dentro do jogo desenvolvida conforme a partida jogada. J ludus
a qualidade de ser bem regulamentada, no s havendo muitas regras, mas
regras que restringem aes legais de ilegais, controlando as sequncias
possveis de aes e mesmo as estratgias a serem desenvolvidas pelos jogadores.
Alm dessa escala de regras, Caillois categorizou os jogos pelas
propriedades que definem a mecnica do jogo e que so exploradas durante as
partidas. As categorias se chamam agon (oposio), alea (sorte), mimicry (mscara),
e ilinx (vertigem).
Agon o tipo de jogo que coloca jogadores em posies opostas,
podendo ser traduzido como competio. Fazem parte desta categoria os jogos em
que cada jogador deve superar os outros jogadores, ao invs de superar apenas um
objetivo comum (por exemplo, xadrez, futebol e boxe). Alea a classificao para
jogos de sorte, normalmente definida atravs de um instrumento (moedas, roleta,
dados) que formalize essa aleatoriedade. Mimicry so as simulaes, jogos que se
baseiam em imitar o comportamento de outras pessoas, animais ou personagens.
Note-se que teatro est aqui relacionado como jogo, pois a palavra jogo contm
as mesmas funes rituais propostas anteriormente por Huizinga (atores e
espectadores, unidos pelas regas do espetculo teatral, comprometem-se a tomar
os atos das personagens como verdadeiros). Por fim, Ilinx indica os jogos em que
perder o domnio do prprio corpo e depois retomar esse domnio so as atividades
principais. Ilinx so os jogos que geram vertigem ou causam algum tipo de medo no
jogador, como medo de altura e de cair, ou simplesmente ficar tonto depois de girar
muitas vezes.
Caillois define jogo (no caso, o verbo jouer, definindo o ato de jogar) como
uma atividade essencialmente:
livre entendida como no obrigatria;
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separada pois possui limites no tempo e no espao;
incerta cujo resultado no pode ser definido antes de a atividade
ocorrer;
improdutiva no cria novos elementos, valores ou riqueza, permitindo,
no mximo, pode haver troca de objetos entre os jogadores;
governada por regras definida sob orientao de convenes entre os
jogadores e suspendendo as leis ordinrias do mundo exterior ao jogo;
faz-de-conta os jogadores compreendem que um jogo e que as aes
tomadas durante o jogo e dentro de seus limites fazem parte de uma
segunda realidade.
Alm da definio de jogo do ponto de vista de atividade social, h ainda
a necessidade de definir a dinmica de jogo, ou seja, como as regras funcionam e,
mais importante, como elas podem ser descritas e entendidas. Em oposio s
descries humansticas do jogo e do ato de jogar, existe a abordagem matemtica
e informacional dos jogos e suas regras. A rea de pesquisa conhecida pelo nome
Teoria dos Jogos faz parte da matemtica e tem diversas aplicaes em reas
como Administrao e Contabilidade, chegando poltica internacional, para servir
como modelo para simulaes de comportamento de mercados.
A principal diferena na abordagem , alm do carter formal, a
possibilidade de tratar como jogo atividades no compreendidas como tal pelo
pblico e pelos jogadores. Assim, a conscincia do ato de jogar, por parte dos
jogadores, no obrigatria. Por exemplo, so considerados jogos, para fins de
modelagem matemtica, a disputa comercial pelo pblico que compra pes caseiros
em mercearias de cidades pequenas e a concorrncia entre emissoras de rdio pelo
pblico que ouve msica sertaneja das 16h s 17h durante a semana, bem como a
troca de clientes entre mdicos de especialidades diferentes.
Para termos de simulao matemtica, um jogo no competitivo ou
cooperativo por si, mas pode ser abordado de forma competitiva ou cooperativa
entre os jogadores. O comportamento dos jogadores deve ser escolhido atravs de
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avaliaes e selees das estratgias possveis. Em alguns casos, pode ser melhor
competir e, em outros, cooperar. Por exemplo, as mercearias podem definir que uma
delas vende pes s segundas, quartas e sextas e a outra s teras, quintas e
sbados. Ou, talvez, selecionem que uma delas deve vender pes mais salgados e
a outra, mais doces. Dessa forma, distribuem os ganhos em vez de competirem
pelos mesmos recursos.
O principal conceito para a compreenso da modelagem matemtica do
jogo a de melhor escolha. Tem-se aqui um exemplo: duas irms devem repartir
um bolo, uma metade para cada uma. Como fazem para que o bolo seja repartido
da forma mais justa possvel? Se a mesma irm corta o bolo e escolhe qual metade
ser a sua, ela pode cortar uma fatia maior e escolher essa mesma fatia. Assim, a
outra irm fica com a menor parte. Obviamente, nenhuma das irms permitir que a
outra corte e escolha a metade do bolo. Elas precisam, ento, comprometer uma
ao a cada uma. Dessa forma, seja qual irm cortar o bolo, ela o cortar da forma
mais prxima metade possvel, pois sabe que outra irm ir escolher a maior parte
para si. Ou seja, nesse jogo especfico, a competio entre as irms atinge um ponto
em que elas trabalham em direo ao maior bem comum.
So, portanto, termos importantes para a compreenso do jogo do ponto
de vista matemtico5:
cooperatividade jogos cooperativos so aqueles em que os jogadores
podem se comprometer uns com os outros (so obrigados a seguir pactos
entre eles); jogos no cooperativos so aqueles em que os jogadores no
se comprometem uns com os outros (mesmo que faam pactos, no so
obrigados a segui-los);
simetria jogos simtricos so aqueles em que todos os jogadores
podem ganhar e perder de forma equivalente uns aos outros; caso um
dos jogadores tenha chance de sofrer mais danos ou receber mais
recompensa que os demais, o jogo dito assimtrico;
5 O modelo matemtico para jogos aceito pela comunidade acadmica, no estando em discusso. Portanto, a referncia aqui para uma obra que possui a descrio reunida dos conceitos tratados, evitando a citao de cada um dos autores que definiram os termos individualmente. A descrio aqui presente pertence ao artigo de Poundstone (2006).
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simultaneidade jogos simultneos ocorrem quando os jogadores
precisam definir suas aes todos ao mesmo tempo, sem saber qual ser
a ao dos outros; caso um deles seja capaz de ver a ao do outro
jogador antes de definir sua estratgia ou os jogadores atuem
alternadamente (jogador A, depois jogador B, depois jogador A etc.), o
jogo chamado sequencial;
informao perfeita jogos de informao perfeita so aqueles em que os
jogadores podem saber todos os seus movimentos j feitos e os
movimentos que seus adversrios j fizeram at um dado momento no
jogo; se alguma informao se perde ou ocultada durante a partida, o
jogo de informao imperfeita;
informao completa jogos de informao completa so aqueles em
que todos os jogadores sabem os valores de recompensas (e dados) de
cada ao; se alguma ao tem recompensa indefinida ou oculta, o jogo
considerado de informao incompleta.
1.2 JOGO COMO CONSTRUO NARRATIVA
O modelo de construo narrativa aqui utilizado uma ampliao a partir
da pesquisa apresentada em Dissertao de Mestrado pelo autor desta tese. Tal
modelo parte do pressuposto de que a narrativa pode ser segmentada em unidades
menores identificveis para posterior reordenao ou mesmo substituio por
segmentos de outras narrativas. Assim, possvel comparar esse tratamento da
narrativa com os clculos e formulaes prprios do computador e do hipertexto. O
desmembramento da narrativa em funes e personagens segue o modelo dos
estudos formalistas de Vladimir Propp (1984), publicados originalmente em 1928,
influenciando as bases do Estruturalismo. A reconstruo das partes em uma nova
narrativa obedece aos modelos de Claude Bremond, para as sequncias, e de
Algirdas Greimas, para as personagens, ambos devedores do Formalismo.
Propp segmentou os contos populares russos em sequncias menores de
aes dependentes de seus agentes e de sua posio na histria. Da mesma forma
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que textos so separados em frases e frases em palavras, Propp define os trechos
intercambiveis da narrativa como funes e, apesar de diferenas na descrio e
na apresentao, classifica personagens fixos que se repetem ao longo dos diversos
contos maravilhosos6. Personagens so os agentes das aes apresentadas na
narrativa. Possuem qualidades especficas e podem ser reconhecidos facilmente
nas diversas formas em que aparecem nesses textos.
A seguir, tem-se uma demonstrao de como o pesquisador organiza seu
modelo narrativo. As aes ocorrem em quatro contos diferentes:
O rei d uma guia ao destemido. A guia leva-o para outro reino.
O velho d um cavalo a Sutchenki. O cavalo leva-o para outro reino.
O feiticeiro d a Ivan um barquinho. O barquinho leva-o para outro reino.
A filha do Czar d a Ivan um anel. Moos que surgem do anel levam Ivan para outro reino.
Propp elimina as personagens:
O _____ d uma _____ ao _____. A _____ leva _____ para outro reino.
O _____ d um _____ a _____. O _____ leva _____ para outro reino.
O _____ d a _____ um _____. O _____ leva _____ para outro reino.
A _____ d a _____ um _____. _____ levam _____ para outro reino.
Depois, agrupando-as por seu papel, o autor renomeia-as:
O (MANDANTE) d uma (OBJETO MGICO) ao (HERI). A (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.
O (MANDANTE) d um (OBJETO MGICO) a (HERI). O (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.
O (MANDANTE) d a (OBJETO MGICO) um (HERI). O (OBJETO MGICO) leva (HERI) para outro reino.
A (MANDANTE) d a (OBJETO MGICO) um (HERI). (OBJETO MGICO) levam (HERI) para outro reino.
6 A expresso contos maravilhosos caracteriza o tipo de narrativa estudado por Propp, sendo utilizada no ttulo da traduo da obra do autor para a lngua portuguesa (Morfologia do conto maravilhoso).
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Repetindo essa simplificao, Propp obtm sete personagens:
AGRESSOR
DOADOR
AUXILIAR (Adjuvante)
PRINCESA (e seu pai)
MANDANTE (Rei)
HERI
FALSO HERI
O objeto mgico indicado anteriormente no personagem, mas algo
que o heri deve conquistar, sendo essencial para o desenvolvimento da narrativa e
ainda smbolo de crescimento da personagem principal, que adquire poder atravs
de alguma prova. Tambm so recorrentes a presena de mensageiros e a
descrio de, pelo menos, dois territrios: a terra onde o heri inicia sua jornada e
uma outra onde ele deve ser provado em confronto com o agressor. Mas nenhum
desses caracterizado como personagem, uma vez que no participa do avano
das aes, apenas contribui para que uma das sete personagens o faa.
O sistema de funes de Propp cumpre papel importante, ao demonstrar
o funcionamento da estrutura na narrativa, e serve de apoio para os formalistas
tratarem das relaes entre forma e sentido. No entanto, a existncia de 31 funes
com fortes interdependncias sintticas torna o modelo baseado nos contos
populares russos muito custoso para ser usado e pouco flexvel em comparao
com estruturas narrativas mais modernas. A partir dele, vrios estudiosos propem
simplificaes adicionais.
Claude Bremond (1973), em artigo original de 1966, parte exatamente do
estudo da parte mais penosa do modelo de Propp, a construo das sequncias. No
entando, diferente do anterior, Bremond prope no a obrigatoriedade das ligaes
entre as funes, mas a possibilidade delas. A ligao entre as funes ocorre como,
pois, consequncia da narrativa, e no o contrrio. Apesar de no tratar de casos
especficos, como Propp, Bremond consegue em suas sequncias, encaixes e
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emparelhamentos narrativos apresentar a evoluo das personagens
(melhoramentos e degradaes) em relao a seus objetivos.
O modelo de Bremond segue quatro regras iniciais para fundar-se:
o tomo narrativo continua sendo a funo, como descrita por Propp;
o agrupamento elementar constitudo por trs funes, sendo a primeira a abertura das possibilidades, a segunda, o processo de atualizao de uma das
possibilidades e a terceira, a possibilidade atualizada;
por se tratarem de possibilidades, as sequncias no so pr-estabelecidas, e as funes nelas se relacionam em forma de rvore, encaixando funo de
objetivo, de atualizao e de fim (a primeira funo apresenta o objetivo do heri
abrindo as possibilidades de ao, a segunda seleciona uma das possveis
aes do heri para atualiz-la e a terceira conclui o sucesso ou a falha do heri
em atingir seu objetivo);
as sequncias bsicas podem, ento, ser combinadas para criar sequncias complexas, por encadeamento sucessivo (a concluso de uma sequncia
incio de outra), enclave (uma sequncia ocupa o papel de funo de outra
sequncia maior) ou emparelhamento (a funo de uma personagem
corresponde a uma funo oposta de outra personagem).
O sistema de atualizao das possibilidades da sequncia elementar
acontece conforme esta imagem:
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Figura 1 Sistema de atualizao de possibilidades de Bremond
Para exemplificar o enclave, uma sequncia bsica colocada no lugar
da etapa de abertura de possibilidades, conforme a figura a seguir:
21
Figura 2 Encaixe de uma sequncia bsica na etapa de abertura de possibilidades de Bremond
A partir dessas regras, Bremond indica que h necessidade de sucesso
(do contrrio, haveria descrio, deduo ou efuso lrica) e integrao entre as
funes (do contrrio, haveria apenas cronologia). E deduz que, para haver
narrativa, h a necessidade de interesses humanos, porque somente por relao
com um projeto humano que os acontecimentos tomam significao e se organizam
em uma srie temporal estruturada (BREMOND, 1973, p.113).
Na mesma linha de pensamento de Bremond, Algirdas Julius Greimas
(1973), tambm na dcada de 1960, prope um sistema de relaes entre os atores
presentes na narrativa literria. Tambm esse sistema parte das personagens
sugeridas por Propp e sistematiza-as para um conjunto de obras maior que os
contos maravilhosos russos estudados. Mais do que o papel das personagens na
obra, o sistema de Greimas baseia-se em uma relao sinttica e relativa das
personagens, semelhante relao das palavras em uma frase.
22
O esquema de Greimas indica trs oposies: sujeito e objeto, destinador
e destinatrio, adjuvante e oponente. Em relao ao modelo de Propp, pode-se
cham-los respectivamente de heri e objetivo, mandante e mandatrio, ajudante e
oponente. Cada oposio encaixa-se em um eixo diferente do espao da narrativa,
criando trs linhas ortogonais. Esse esquema pode ser aplicado a cada uma das
funes dentro de uma narrativa ou narrativa inteira. , assim, uma descrio
sincrnica, ao contrrio da descrio da narrativa por sequncia de aes.
Para aplicar a proposta, necessrio, primeiro, identificar o sujeito.
Iniciando como o esquema frasal, o sujeito quem age na transformao de uma
dada funo narrativa, o heri de Propp, por exemplo. O objeto o alvo da
transformao iniciada pelo sujeito. Adjuvante a personagem que auxilia o sujeito
na realizao da ao, e opositor a que impede ou dificulta a realizao da
mesma. Por fim, destinador a personagem que demanda a ao do sujeito,
enquanto o destinatrio aquele a quem o resultado da ao se destina. A Figura 3
apresenta o sistema de actantes proposto por Greimas:
Figura 3 Sistema de actantes de Greimas
Da mesma forma que as aes descritas conforme Bremond so relativas
aos pontos de vista de cada personagem, a escolha do sujeito do esquema de
Greimas modifica toda composio. Ou, ainda, como ser visto adiante, a mudana
do ponto de vista da personagem, ao longo da narrativa, tambm cria um esquema
diferente, de acordo com sua percepo do mundo a sua volta, pela troca de seus
chefes ou aliados e assim por diante.
Cabe resgatar a origem da notao proposta pelo autor desta tese e
apresentada no Simpsio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital/SBGames de
2008 relacionada ao sistema de actantes de Greimas. A notao, para assimilar os
termos dos jogos de computador, foi desenhada da seguinte maneira, conforme
apresentado na Figura 4:
23
Figura 4 Imagem retirada apresentao do artigo Uma mquina de estados para Greimas (PICCINI, 2008b), arquivo pessoal
Conforme a notao, o objetivo do jogo PAC-MAN percorrer o labirinto
inteiro. Para tal, h uma isca dada ao jogador, que precisa que sua personagem
coma bolinhas coloridas ao longo do labirinto. Essa isca tanto indica ao jogador o
que deve fazer como marca os caminhos j percorridos por ele. O auxlio recebido
pelo jogador apresentado no jogo na imagem de plulas que aumentam seu poder.
Os inimigos tomam forma de fantasmas estereotipados. Mesmo tendo sido
publicado pela primeira vez no ano de 1980, a estrutura do jogo PAC-MAN, como
ser demonstrado ao longo da pesquisa, ainda repetida nos jogos mais modernos.
A diferena principal a complexidade dos objetivos ampliada atravs do modelo de
encaixes, enclaves e emparelhamentos na terminologia de Bremond.
Nas ltimas dcadas, o que vem atraindo as diversas reas de
conhecimento em direo aos jogos no so exatamente as propriedades inerentes
aos jogos, mas a possibilidade de transform-los em programas de computador.
Durante o processo de programao dos jogos computadorizados, seus
mecanismos so analisados e copiados (ou simulados) na forma de outras
sequncias de software menores. Assim, no s so feitas hipteses para definir
como um jogo funciona, mas essas hipteses so testadas em forma de programas
de computador que tentam imitar o funcionamento esperado dos jogos.
24
Essa experimentabilidade (trialability), aliada ao crescente acesso ao
computador como elemento apoiador as atividades de ensino e de aprendizagem,
especialmente potenciaizados pelo uso da rede (internet), torna os jogos de
computador uma possibilidade para as mais diversas aplicaes, quer para pesquisa
sobre sociabilizao de comportamento ou para apresentao de narrativas
hipertextuais ou outros gneros (com foco nos jogadores que entram em rede e se
comunicam atravs da internet).
O Brasil conta com diversas pesquisas sobre vrias dessas abordagens.
A professora Lynn Alves (2005) vem trabalhando com jogos do ponto de vista
pedaggico e sociolgico. Em seu livro Game over: jogos eletrnicos e violncia, ela
estuda os jogos de computador como meio de propagao de linguagem. Nesse
caso, o jogo considerado meio de divulgao de linguagens sociais. A violncia
tratada como linguagem. Os sons e as imagens funcionam como forma de
comunicar um conjunto de valores socioculturais ao jogador, e ele os utiliza para
interagir simbolicamente com esses valores. O jogo passaria a ter uma funo
catrtica. J os pesquisadores Cristiano Pinheiro e Marsal Branco, da Federao de
Estabelecimentos de Ensino Superior em Novo Hamburgo/FEEVALE, atuam na
busca de uma formulao semitica especfica do jogo digital atravs da
decomposio dos jogos em camadas tipolgicas (semelhantes s funes de
Jakobson7) e em unidades ldicas mnimas os ludemas.
O ludema a unidade mnima do jogo, ponte entre a ao do interator e o
resgate das regras do sistema ludolgico (atualiza os desafios que at ento existem
apenas em potncia) e do sistema narrativo, do qual converte as informaes e
transforma em experincia de jogo. a presena dos ludemas que garante a
existncia de um jogo. (PINHEIRO e BRANCO, 2008, p. 73).
1.3 JOGO COMO CONSTRUO DRAMTICO-NARRATIVA
Para a abordagem do jogo sob os aspectos do drama, Marc LeBlanc
(2006) associa o jogo ao teatro, indicando a tenso dramtica como elemento de
7 O linguista russo Roman Jakobson prope seis funes, de acordo com o foco da comunicao em suas seis dimenses: chama de funo refencial, quando o foco est no contexto; esttica, quando o foco est na prpria mensagem; emotiva, quando o foco o emissor da mensagem; conativa, quando o foco o receptor da mensagem; ftica, quando o foco est no canal; e metalingustica, quando o foco est no cdigo utilizado para transmitir a mensagem.
25
comparao. Para cri-la corretamente em um jogo, deve-se tratar de dois fatores
especificamente: incerteza e inevitabilidade. Incerteza a sensao de que o
resultado do jogo ainda desconhecido, ou seja, qualquer jogador pode vencer ou
perder. Inevitabilidade a sensao de que a competio est se direcionando a um
fim, de que o resultado iminente. A tenso dramtica composta obrigatoriamente
desses dois fatores, nenhum deles sozinho pode criar tenso dramtica. Sua
evoluo segue uma curva conhecida nos estudos literrios: baixa tenso dramtica
inicial, aumento gradativo da tenso em direo ao clmax da histria e rpido
declnio aps o clmax e at a resoluo. A figura 5 apresenta o grfico de tenso
dramtica baseada no trabalho de LeBlanc.
Figura 5 Grfico de tenso dramtica adaptada do artigo de LeBlanc (LEBLANC, 2006, p. 443)
Para empurrar o jogador atravs da tenso dramtica, LeBlanc sugere o
uso de feedbacks8 positivos e negativos. Feedbacks positivos levam o jogador em
direo concluso, aumentando a sensao de inevitabilidade. E feedbacks
negativos levam o jogador em direo incerteza, pois suas tentativas (hipteses)
de soluo para o jogo lhe so negadas .
Na rea da educao, apesar de avaliar o uso de narrativas em sua
pesquisa, Janet Murray (1994), pesquisadora do MIT (Massachusetts Institute of
Technology, EUA), deixa de lado a importncia da histria e afirma que os jovens
leitores de textos no computador e os jovens jogadores de videogames buscam
8 Traduzido como retroalimentao, indica o resultado de uma operao que usado como informao para novas iteraes do mesmo sistema.
26
explorar a estrutura do texto (hipertexto, pginas da Internet e jogos eletrnicos) at
que tenham compreendido essa estrutura. Quando isso acontece, o texto deixa de
ser interessante afinal, o usurio sabe que pode voltar a ele quando quiser. Por
outro lado, segundo Murray, a estrutura do texto precisa ser aprendida antes de seu
contedo, isto , deve-se saber navegar para depois buscar as informaes de
interesse.
J James Paul Gee, pesquisador das reas de psicolingustica e anlise
do discurso, publica, em 2003, suas experincias na rea de jogos de computador,
focando seus estudos nos domnios semiticos proporcionados pelos jogos. James
Gee no define formalmente o que so domnios semiticos, mas os usa como
parte fundamental em seus estudos sobre o uso de jogos com finalidade de ensino.
Em What video games have to teach us about learning and literacy (GEE,
2007), que se pode traduzir como o que video games tm para nos ensinar sobre
aprendizagem e alfabetizao, o prprio autor sugere que:
semiticos uma pea de jargo se isso o incomoda, traduza domnios semiticos para algo como uma rea ou conjunto de atividades nas quais as pessoas pensam, agem e do valor de uma certa forma (GEE, 2007, p. 19; traduo do autor da tese).
Ainda de acordo com Gee, as atividades presentes nos jogos so teis no
processo de ensino e de aprendizagem quando so apresentadas em um domnio
semitico simulado de forma a ser reconhecida pelo jogador, facilitando sua
utilizao no mundo exterior ao jogo. Da mesma forma que Murray afirma que o
jogador aprende a forma do texto antes de aprender o contedo, Gee tambm indica
que o jogador aprende primeiro as regras do jogo (aprende como se mover dentro
do jogo) para depois prestar ateno ao contedo apresentado. A melhor forma de
ensinar atravs de jogos , ento, fazer com que suas regras sejam semelhantes ao
que o jogador precisa aprender e no forando o jogador a aprender um jogo para ir
sendo informado do contedo. Em outras palavras, mais coerente que um jogo
que se proponha a ensinar matemtica estimule o jogador a solucionar problemas
de soma, subtrao, diviso e multiplicao ao invs de obrigar o jogador a aprender
a controlar uma personagem que percorre um labirinto resgatando algarismos e
sinais de operaes aritmticas. Embora a primeira alternativa parea at bvia em
comparao com a segunda, jogos educativos tm utilizado a segunda opo com a
desculpa de tornar o jogo "mais divertido".
27
1.4 JOGO COMO INTERAO
Para a anlise da estrutura dos jogos, partindo da imagem que se tem do
hipertexto como modelo de leitura diferente do texto comum, o pesquisador
noruegus Espen Aarseth descreve, em Cybertext: perspectives on ergodic
literature (traduzido como Cibertexto: perspectivas sobre a literatura ergdica9),
jogos como mquinas de estado, conjuntos de operaes que alternam dados em
um processo algortmico. A partir dessa abordagem, infere que jogos de simulao
podem ser muito mais que hipertexto do ponto de vista do poder de processamento
e de representao. As reas de interesse de suas pesquisas, conforme o prprio
Aarseth, so a esttica da cibermdia e da literatura ergdica e esttica do
hipertexto.
Aarseth (1997), preferindo a denominao cibertexto, indica que os
textos eletrnicos possibilitam um envolvimento muito maior do leitor com o texto do
que simplesmente a leitura. O cibertexto seria um texto e algo mais. Para o leitor
venc-lo, seria necessrio um esforo no-trivial. O esforo do leitor em reorganizar
o texto ao tentar percorr-lo maior do que o esforo de simplesmente interpretar o
que est escrito, como acontece no processo linear10. A definio de narrativa
hipertextual do presente trabalho, contudo, deixa em aberto a forma de construo
da narrativa (ramificao, alternativa ou simulao). O modo de interao e a
possibilidade de influenciar a histria contada so, por enquanto, o mais importante,
sendo deciso, para esta pesquisa, primeiramente a compreenso do objeto para,
mais tarde, formular hipteses para avaliao de seu processo de criao.
A forma escolhida para definir a interao do jogador com o texto ou jogo
precisa ser mais clara que a utilizada por Aarseth, tendo por objetivo selecionar
apenas tipos de narrativa em que haja uma interdependncia entre as aes do
jogador e a histria contada. A ao (ou inao) do jogador deve ser considerada na
evoluo da fbula alterando a evoluo das aes no plano diegtico11. Alison
9 A palavra ergdica cunhada por Aarseth a partir de ergos, trabalho. Para Aarseth, o processo de leitura de um cibertexto demanda esforo por parte do jogador maior do que o que ocorre no processo de recepo de um texto tradicional.
10 A classificao linear utilizada neste conjunto terico faz referncia sintaxe do texto enquanto objeto e no ao processo de leitura em si. Embora a distino entre objeto e processo na leitura e na interpretao dos significados torna-se aparente ao se comparar o corpo terico da teoria da literatura com o do design de jogos, tal distino no foi aprofundada no presente trabalho.
11 Referente ao mundo que existe dentro da narrativa - na nomenclatura de Gerard Genette.
28
McMahan usa o termo imerso com uma definio semelhante; contudo, como ela
mesma indica, muitos jogadores apreciam jogos em um nvel no diegtico
(preferindo apenas contar pontos e completar misses, em vez de se envolver com a
histria contada). (MCMAHAN, 2003)
Evoluindo diante do tema, Jesper Juul, do Center for Computer Games
Research de Copenhagen, posiciona-se at mesmo contrrio a uma utilidade da
narrativa para a compreenso dos jogos digitais. Em referncia a Gerard Genette12,
Juul ressalta, que, embora seja possvel narrar uma histria sem especificar o
espao, impossvel narrar algo sem especificar ao menos a relao entre o tempo
em que se passam os eventos narrados e o tempo em que feita a narrao (JUUL,
2011). Contudo, em um jogo, no h marcas gramaticais para identificar quando
ocorrem os eventos. E, ao contrrio da narrativa, fica claro ao jogador que o tempo
apresentado no pode ser o passado, pois quem joga tem poder de influenciar os
acontecimentos. O tempo do jogo, como profere Juul, o tempo presente.
A partir dessa afirmao, Juul conclui que impossvel haver narrativa e
interatividade ao mesmo tempo. Retornando a Genette, Juul afirma que o jogo
sempre ocorre no tempo de cena, e que o jogo pressupe a diferena essencial de
que os eventos no so repetidos, enquanto a narrativa uma eterna repetio de
eventos escritos e reiterados a cada leitura. A interatividade do jogo eletrnico
impede esse ponto essencial da narrativa oral, escrita ou flmica.
Jesper Juul indica que a palavra interatividade vem sendo usada por
modismo em grande parte da produo cientfica e cultural. Alguns usos indicam
uma necessidade de interao entre sujeitos (jogos interativos), outros so vazios de
significado (discusses interativas) e h ainda a indicao de alguma relao vaga
com o meio eletrnico ou com a informtica em geral (educao interativa ou
exibies interativas). (JUUL, 2011)
Tentando assimilar a narrativa de forma til, embora no obrigatria, aos
estudos de jogos digitais, o uruguaio Gonzalo Frasca (2003), participante do mesmo
Centro de Pesquisas que Juul, na Dinamarca, passou a tratar, em suas pesquisas
12 Juul faz referncia direta a Narrative discourse (GENETTE, 1980), obra na qual afirmado que o texto narrativa no possui outra temporalidade seno a que lhe emprestada pelo seu leitor. A pesquisa de Jesper Juul utiliza-se, pois, das distines de tempo propostas por Gerard Genette: o tempo da histria (a ordem em que os eventos acontecem), o tempo da narrativa (a ordem em que os eventos so contados na narrativa, que pode ser distinta da ordem da histria, porque o narrador pode comear pelo fim ou adiantar informaes futuras) e o tempo do leitor (o tempo real utilizado pelo leitor para ler a obra).
29
de Mestrado e Doutorado, de definir o lugar do discurso narrativo nesse campo de
pesquisas. Frasca considera que toda representao uma ferramenta j enraizada
em nossa cultura e faz parte da mdia tradicional. Ao contrrio da simulao, ela
no orientada a objetivos. No h um ponto aonde chegar atravs da
representao. Simulaes, ao contrrio, consistem de uma forma de retrica
independente da narrativa, embora muitos pontos sejam comuns. Jogos seriam um
modo de estruturar a simulao, da mesma maneira que narrativa seria uma forma
de estruturar a representao. Atravs da simulao, pode-se expressar mensagens
de modos que a narrativa no permite. Os chamados advergames13 jogos criados
como forma de propaganda so os pratos de Petri para entender a retrica das
simulaes.
Por outro lado, h pesquisadores, como Chris Crawford e Jakub
Majewski, que buscam definir topologias para narrativas digitais, sem julgar se so
elas prprias dos jogos ou se existem de forma independente.
Seguindo a definio de interatividade anterior, a narrativa ser
hipertextual quando permitir que o leitor (jogador) modifique a histria narrada. A
partir dos tipos de interatividade indicados por Chris Crawford (2003), projetista e
roteirista de jogos desde a dcada de 1980, as narrativas interativas construdas em
ramificaes narrativas (branching storytrees) e os jogos construdos a partir de
simulao (world simulations) assemelham-se ao conceito de narrativa hipertextual
utilizado no presente trabalho. Crawford considera que as narrativas em
ramificaes desapontam o jogador, enquanto as simulaes raramente permitem o
desenvolvimento de um enredo (plot).
Como indica Chris Crawford (2003) projetista de jogos eletrnicos, muitas
histrias so maquiadas para parecerem interativas ao serem publicadas em meios
digitais. Em muitos casos, a interao apenas superficial. Com o uso de botes
que permitem animar alguns objetos na tela, a interao entre jogador e narrativa
no causa modificaes na fbula (entendida como o contedo da narrativa, isto , o
conjunto de fatos e aes que so contados), apenas diferenas mnimas no
discurso (entendido como forma como a fbula contada).
De maneira oposta, para Crawford, alguns jogos so fantasiados de
formas narrativas. Nesses casos, a narrativa serve apenas para amarrar os
13 Palavra criada a partir de advertisement (propaganda) e game (jogo).
30
problemas e quebra-cabeas que o jogador deve solucionar, dando ao jogo um
aspecto de unidade, como se vrios textos distintos fossem amarrados para
parecerem um s. Em ambos os casos, os quebra-cabeas apresentam-se como a
parte interativa da fbula (uma parte dos fatos pode ser modificada levemente),
mas o discurso (a ordem das aes presentes na fbula ou mesmo a subtrao ou
adio de novas aes) em si no se modifica (CRAWFORD, 2003).
Em dissertao de Mestrado de 2003, Jakub Majewski (2010) prope
classificaes intermedirias s de Crawford. Para Majewski, os jogos podem
possuir narrativas lineares, em forma de colar de prolas, de galhos, de parque de
diverses e de blocos de construo. Linear a estrutura comum dos textos
literrios e no literrios escritos e falados. A leitura se move em uma direo e no
h necessidade ou possibilidade de alterar a ordem do texto e ainda assim ter o
contedo apresentado de forma compreensvel. Colar de prolas (string of pearls)
uma estrutura em que a leitura se move para frente e travada por uma
necessidade de ao correta por parte do leitor (ou jogador). Ao ser travada, o
processo de avano alternado para um estado de parcial liberdade dada ao
leitor/jogador. Normalmente, um problema ou quebra-cabea apresentado ao
jogador, que precisa o solucionar para avanar a narrativa. Ao resolver o problema
(completar o quebra-cabeas), o texto alterna novamente em direo narrao,
limitando as aes para um estado de apenas leitura. Galhos (branching) um
modelo de estrutura em que os caminhos de leitura se abrem em bifurcaes a partir
das escolhas do leitor. As bifurcaes so apresentadas como possibilidades
alternativas e atualizadas como se fossem trechos literrios lineares, ocultando as
demais alternativas. Parque de diverses (amusement park) uma estrutura
semelhante "colar de prolas", mas na qual no h ordem pr-definida para a
execuo de cada parada. Os diversos problemas ou quebra-cabeas so
apresentados simultaneamente, cabendo ao jogador escolher qual deles tentar
solucionar a cada momento. Blocos de construo (building blocks) uma estrutura
semelhante parque de diverses, mas as consequncias das aes do jogador
so somadas umas s outras. Dessa forma, quando soluciona um problema, o
jogador recebe alguma recompensa e ele ou mesmo os demais problemas sofrem
alguma alterao. A metfora a de construo por sobreposio de camadas de
jogo (regras ou narrativa) em vez de justaposio. Por exemplo, o jogador, para
31
construir uma cidade no jogo SimCity14 pode ter a opo de comear pela
construo do sistema de gua e esgoto ou pelo zoneamento de reas residenciais
e comerciais. Ambas as aes devem ser feitas, mas a definio da soluo de um
dos problemas implica a definio de melhores ou piores condies para a soluo
do outro problema.
1.5 JOGO E ESCOLHAS
Alm da definio topolgica das sequncias narrativas, h ainda a
possibilidade de descrev-las de acordo com a forma com que elas so dispostas
em relao interao do jogador com os elementos do jogo. No artigo The
narrative and ludic nexus (2011), podendo ser traduzido como "a narrativa e o
nexo ldico", os pesquisadores Jeffrey Brand e Scott Knight utilizam as seguintes
descries das possibilidades de apresentao da histria narrada:
enacted narrative narrativa atuada ocorre quando h no jogo qualquer
combinao de dramatizao ou histria inicial, parcial. Normalmente,
existe uma sequncia pr-definida de aes que o jogador deve seguir
para se aproximar da soluo dos conflitos do jogo;
embedded narrative a narrativa encaixada no jogo est presente
quando o jogador apresentado a objetos e artefatos que vo se
tornando familiares ao longo do jogo, constituindo dicas de que h um
caminho ou comportamento esperado dele no jogo;
emergent narrative narrativa emergente ocorre quando o jogador
imagina ou se torna autor de uma histria atravs de sua atuao e
interpretao dos conflitos presentes no jogo;
evoked narrative uma narrativa evocada aquela em que as aes da
narrativa no influenciam a soluo do conflito dentro do jogo, nem
mesmo so apresentadas durante as partidas. Normalmente, so
narrativas de filmes ou outros jogos da mesma franquia e so lembradas
atravs da imagem de personagens ou episdios dessas outras
narrativas.
14 Jogo que simula uma cidade, no qual o jogador, representando um prefeito vitalcio, deve cordenar a construo da infraestrutura de esgotos, ruas, reas domiciliares e industriais, bem como a distribuio correta de recursos para suprir as necessidades de seus habitantes.
32
Alm das diferentes formas de apresentar a narrativa dentro de um jogo,
h tambm diferentes formas de apresentar escolhas. A tipologia de Tracy Fullerton
baseia-se na teoria dos jogos e tem por objetivo aprofundar a experincia do
jogador, a imerso ou a interao com o gameplay. Quanto s decises referentes
iluso de deciso, Tracy Fullerton apresenta-as segundo os critrios que seguem:
hollow decisions - decises que no trazem consequncias reais, como
cor de cabelo e de pele no The sims15 ou pintura do carro na srie The
need for speed16;
obvious decisions - decises cujas consequncias so claramente
guiadas pela moral ou mecnica do jogo, como saltar para cima de uma
plataforma ou para o vcuo inferior em Mario17 (e todas as decises de
"vida ou morte" em que fica claro qual opo vida e qual morte
equivalem a decidir entre "continuar a jogar ou sair do jogo" e, portanto,
no so decises reais dentro do jogo);
(real decisions) - decises que causam alteraes reais nas
possibilidades do jogo, como o tipo de motor, de pneus ou composto da
gasolina em m jogo de corrida, que alteram a performance do carro, ao
contrrio de escolhas como a cor da pintura do carro ser vermelha ou
preta, que no influenciam na vitria ou derrota no jogo.
No excludentes, tambm so apresentadas as seguintes definies
quanto informao:
uninformed decisions - decises que o jogador toma sem ter informaes
suficientes. Normalmente, no aconselhvel utiliz-las em jogos.
Jogadores odeiam sentir que no tm controle das consequncias do
15 Esse jogo de computador que consiste na simulao de um ambiente domstico. Mais do que controlar as personagens, o jogador constri os ambientes (quarto, cozinha, sala de estar, banheiros, piscinas) em que elas vivem. Atributos como asseio so importantes para o jogo, sendo que asseio garante que a personagem limpe a casa sozinha, sem o comando direto do jogador. Atributos ligados raa da personagem, bem como roupas e acessrios, no interferem no jogo.
16 um jogo de simulao de corrida. Atributos como potncia do motor so importantes para o jogo, mas cores e desenhos da pintura do carro no interferem nas performance e consequente pontuao.
17 um jogo em que o heri um encanador que deve salvar uma princesa. chamado de jogo de plataforma por ser elaborado sobre a habilidade do jogador em controlar Mario em seu caminho de saltos e corridas sobre diversos obstculos fixos e mveis.
33
jogo. Mas, quando bem feitas, servem para afirmar o "salto de f" do
jogador e sua consequente entrega ao papel e imerso. So melhor
usadas quando associada a uma dramatic decision descritas a seguir.
Quando o jogo multiplayer18 (ou jogador x jogador), comum que as
decises sejam feitas sem a informao sobre o adversrio. Nesse caso,
e para efeito de simulao desse tipo de jogo, os jogos de estratgia, por
exemplo, utilizam o fog of war19, artifcio de mostrar apenas parcialmente
o mapa para os jogadores. H uma diferena aqui (na teoria dos jogos)
sobre informaes imperfeitas e incompletas, mas no vem ao caso;
informed decisions - decises tomadas pelo jogador tendo todas as
informaes necessrias (como xadrez, damas, jogo da velha).
As decises podem ser, portanto, importantes mas no informadas. Quer
dizer, o jogador pode ser induzido a fazer uma escolha sem saber que ela afetar o
jogo futuramente. Para identificar o que leva a uma dada deciso, Fullerton utiliza os
seguintes critrios:
dramatic decisions - decises tomadas para completar o enredo, em que
geralmente o jogador toma um papel, uma personagem para si, e
interpreta suas aes. O melhor modo de usar dizer ao jogador
parcialmente como ele deve interpretar o papel e deixar que ele o
complete tomando essas "decises dramticas". Assim, ele obrigado a
tomar decises baseadas em seu gosto pessoal ou em seus prprios
valores morais, ao invs de utilizar pesos e medidas impostos pelo jogo (e
inventados pelo game designer);
weighted decisions - decises "pesadas", no sentido de "medidas",
julgadas, como "Se eu for por aqui, eu perco energia. Se eu for por ali,
perco poder para fazer magias. Tenho muito mais poder para magias do
que energia, portanto o melhor caminho por ali." So decises
18 Nome dado aos jogos que permitem diversos jogadores interagirem ao mesmo tempo e at disputarem uns contra os outros.
19 Neblina de guerra um artifcio que visa impedir que o jogador obtenha informaes em demasia ao olhar para o mapa do jogo. Enquanto o mapa apresentado em sua totalidade ao jogador, as reas distantes a tal ponto que um soldado no mundo real no poderia enxergar o que se passa naquela regio aparece borrada ou obscurecida pela chamada neblina.
34
racionais, baseadas nos pesos e medidas impostos pelo jogo. So
tambm "informed decisions", decises baseadas em informaes, pois,
para calcular suas chances, o jogador precisa saber com quais dados
est lidando.
Algumas decises podem at mesmo no causar efeito imediato,
dificultando sua compreenso pelo jogador. Fullerton define-as quanto ao tempo de
atualizao como segue:
immediate decisions - decises que possuem resposta imediata. Um
exemplo pode ser atirar contra um guarda em Splinter Cell20 e ter todas
as luzes acesas e um bando de homens armados correndo atrs do
jogador;
long-term decisions - decises que podem demorar alguns minutos, horas
ou dias para atualizarem suas consequncias. Raramente vemos essas
decises sendo usadas como artifcio narrativo em games,
principalmente, porque os programadores e desenvolvedores no
enxergam to frente da narrativa (normalmente, seu trabalho prestar
ateno especial interao e diverso que o jogador pode obter em
cada etapa do jogo, deixando um pouco de lado a narrativa como um
todo). Mas elas existem. Se um jogador faz sua personagem masculina
se casar com uma mulher no meio de Fallout 3, isso uma deciso
iniciada na escolha do gnero da personagem. Em Bioshock 221, matar
as meninas tm consequncias a longo prazo, mas elas no so decises
"reais".
Considera-se nesta pesquisa que as decises mais interessantes so
dramatic, uninformed, long-term, real decisions. O jogador precisa tomar decises
importantes para a narrativa, a partir de suas preferncias morais pessoais, e seria
surpreendente para ele s se dar conta muito tempo depois de que aquela deciso
teve importncia fundamental para o enredo.
20 Jogo em que o jogador atua como agente secreto, cumprindo misses que demandam furtividade e pacincia para percorrer o territrio inimigo sem ser notado.
21 Jogo em que a personagem do jogador deve escolher entre salvar crianas antes que outros seres se alimentem delas ou alimentar a si mesmo da energia dessas crianas.
35
Tracy Fullerton (2010) tambm apresenta um tringulo de urgncia para
definir uma distribuio das escolhas dadas ao jogador no jogo, como se v na
Figura 6:
Figura 6 - Reproduo traduzida da pirmide de Fullerton
Assim sendo, a urgncia da deciso entendida como segue:
crtica - em situaes de vida ou morte, em que jogador sempre deve ser
avisado de que uma deciso de vida ou morte. H pequenas excees,
como jogos que seguem o gnero horror, em que necessrio manter o
nvel de estresse alto. Mesmo assim, prefervel utilizar decises de
urgncia inferior (importantes) para fazer isso. No contar ao jogador
quais so as decises crticas faz parte da dinmica de jogos um-contra-
um, como nos jogos de cartas em que um jogador no avisa ao outro que
est prestes a completar sua mo ou bater. Ao contrrio, regra do jogo
de xadrez avisar quando o rei adversrio est em perigo de vida ou
morte, o chamado xeque;
importante - em decises de impacto direto e imediato, como decidir entre
jogar-se contra os tiros inimigos ou fugir;
necessria - em decises de impacto indireto ou com algum retardo, das
quais o jogador ainda pode se esquivar em um momento posterior do
jogo, mas que precisam ser tomadas agora. No xadrez, seria melhor
comear com os pees ou com o cavalo? Em um RPG, o jogador deveria
comear a colecionar feitios ou investir na fora da minha personagem?
Nessas decises, preciso responder de imediato, para que a trama se
36
desenrole. Em compensao, h chances para que a deciso seja
alterada depois, caso se descubra ser mais fcil investir em uma
personagem brutamontes ao invs de em uma feiticeira inteligente;
menores - em decises de pouco impacto, como, por exemplo, quando o
sexo da personagem pode alterar um pouco a trama (uma personagem
pode ter mais chance de ser bem recebida por outras personagens do
sexo oposto), mas no facilita a soluo do jogo como um todo (tanto o
homem ou a mulher tero de matar um drago gigante);
inconsequentes - em decises que no causam impacto no resultado do
jogo, em que cor do cabelo e cor de pele, nome da personagem,
orientao religiosa ou viso poltica no alteram o resultado do jogo.
Muitos RPGs so balanceados para que as escolhas de raa no afetem
o jogo. O que muda o nome e o efeito visual das aes da personagem.
Por exemplo, uma personagem mestre do fogo seria capaz de lanar
bolas de fogo que explodem e queimam um espao circular no cho do
campo de batalha. No entanto, se o jogador escolher ser um mestre da
gua, ele seria capaz de lanar jatos de gua que afetam uma rea
circular no cho do campo de batalha. Ou seja, o efeito visual dos dois
tipos de personagem so diferentes, mas, para efeitos de jogo, so
personagens equivalentes.
Nota-se que os jogadores normalmente prestam muita ateno s
escolhas inconsequentes, como forma de personalizar o jogo (cores das roupas,
tipos de armas, nome do heri). Mesmo que elas caiam no tipo de hollow decisions,
o jogador as trata como sendo de suma importncia para sua experincia de
imerso. Contraditoriamente, os jogadores podem achar que as escolhas crticas
no so exatamente escolhas, mas caem no tipo obvious decisions e
consequentemente no so importantes o suficiente para os jogadores nem mesmo
para serem lembradas ao final da partida (jogadores em geral no se lembram de
quantas vezes se esquivaram de uma facada de um guarda inimigo, mas acham que
eles eram obrigados a se esquivar).
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Talvez essa interao seja melhor estudada partindo dos exemplos de
jogos dados por Freeman em seu livro sobre emoes em jogos (FREEMAN, 2005).
Nele, Freeman prope uma srie de paralelos entre as escolhas do jogador e as do
heri. Essas escolhas, prope, devem-se construir por duplicao das relaes. Por
exemplo, se a personagem do jogador deveria, por motivos de roteiro, sentir-se
atrado pela princesa, o jogador deve ser estimulado a gostar da mesma
personagem por causa de algum objetivo do jogo, seja alguma informao que ela
trar para o desenvolvimento da trama, proteo que ela proporcionar atravs de
armas mais poderosas ou outros artifcios que movam o objetivo das etapas em
direo da proteo dessa personagem. Em termos do modelo analisado, h dois
objetos nas relaes dos atores: um do heri dentro do mundo diegtico e outro do
jogador fora desse mundo. A narrativa deve servir ao jogo, unificando esses dois
objetos em um nico comportamento necessrio para que o jogador e o heri que
ele controla se movam adiante na narrativa pelo mesmo caminho.
Um dos exemplos o jogo Ico, no qual o heri precisa ajudar uma
princesa a atravessar um mundo cheio de perigos. A princesa uma personagem
completamente indefesa, dependendo do heri at mesmo para se movimentar. A
sensao de que a princesa um fardo ampliada pela dificuldade de locomoo
do heri a cada vez que ele precisa mover a princesa. Prximo ao final do jogo
(aps horas de lenta caminhada carregando a princesa atravs das fases do jogo), a
princesa transformada em pedra, o que faz o heri (e, espera-se, o jogador) sentir
raiva da vil. Na cena final, tendo o heri sido ferido em sua tentativa de vingar a
princesa, essa aparece para carreg-lo nos braos. As horas de investimento
emocional do jogador na personagem da princesa so recompensadas com a
motivao emocional da princesa pela personagem do heri.
Parte dessa captura dos sentimentos do jogador vem do pacto inicial, no
aspecto de arbitrariedade do jogo a que se refere Huizinga, pois, se o jogador
aceita as regras e o objetivo do jogo atualizados na forma de uma personagem
humanizada, aceita tambm os sentimentos humanos atribudos a essa
personagem. Essa assimilao de valores e sentimentos remete a frase de Sartre:
"A espera de Raskolnikov minha, que empresto a ele". No caso de Ico, os
sentimentos do heri pela princesa so emprestados pelo jogador, quem
efetivamente precisa se importar, cuidar, carregar a jovem pequena e indefesa. E,
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alm do contedo, o restante dos sentimentos capturado pela prpria estruturao
do jogo, trabalhada no prximo captulo.
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2 PRINCPIOS ESTRUTURAIS DO JOGO
2.1 CONSTRUO DA NARRATIVA
O modelo proposto a partir das teorias da literatura estudadas funda-se
no princpio de que uma narrativa um conjunto de aes representadas de forma
simblica e encadeadas por relaes de causalidade. Essa simplificao propicia
observar analogias entre o funcionamento dos jogos eletrnicos e as narrativas
escritas. Embora jogos eletrnicos de representao de papis (RPGs digitais)
inicialmente se vale de longos textos com descries, atualmente a tecnologia opta
por fornecer a imagem e o som que presentificam as descries existentes em suas
verses textuais. A forma , contudo, simblica. H a escolha de imagens e sons
que passam informaes ao jogador, mas no apenas as de que ele necessita para
jogar. Os sons e as imagens funcionam como forma de comunicar um conjunto de
valores socioculturais ao jogador, que os utiliza para interagir simbolicamente com
esses valores (ALVES, 2005).
Para anlise de jogos eletrnicos, so consideradas as aes como
alteraes de estado. Do ponto de vista da narrativa, no basta escrever, por
exemplo, Mrio corre. Isso apenas descrio do estado de Mrio em um dado
instante ou perodo. Para a narrativa, necessrio que haja uma mudana de
estado. Se levarmos em considerao a interpretao do texto, podemos supor que
Mrio est parado e que corre indica o incio de uma ao. Dessa forma h uma
alterao de estados. A forma mais clara , por exemplo: Mrio est parado. Mrio
corre.
clara a necessidade da sequncia (BREMOND, 1973), implcita ou
explcita, mas essa ainda no suficiente. Os dois estados descritos precisam estar
ligados, precisam formar uma unidade. Essa unidade conseguida por uma relao
de causa e efeito. Algo deve causar a alterao de estado de Mrio. Para a
narrativa, apenas sentir vontade de correr no suficiente. A causa no deve
apenas ser imaginada pelo leitor, ela deve estar indicada, explcita ou
implicitamente, para que o leitor a encontre no texto. Por exemplo, Mrio est
parado. Mrio ouve o alarme de incndio. Mrio corre. Nesse caso, a sequncia
sugere que a causa da alterao de estado de Mrio seja o fato de ele ouvir um
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alarme de incndio. Importa notar que essa relao parte da suposio de que isso
uma narrativa. Ela no cria por si a narrativa, mas a narrativa que cria a
causalidade (TODOROV, 2003). Ao ler, o leitor busca fechar a sequncia de relaes
causais. No est dito, por exemplo, se a personagem Mrio est fugindo do fogo,
nem se ela um bombeiro que ir socorrer as vtimas. Mas, ao ler, completa-se o
significado para dar uma explicao causal.
Alm de simplesmente indicar a sequncia de aes conforme elas
ocorrem, por se estar trabalhando com uma representao, a narrativa apresenta-se
atravs de smbolos, e esses smbolos esto sujeitos interpretao do leitor. Na
etapa de construo da narrativa, o autor seleciona smbolos que, supe, so
reconhecidos pelo leitor. Esses smbolos, alm de informar as mudanas de estados
da narrativa, permitem ao leitor se ambientar no mundo apresentado. Isso ocorre,
porque os smbolos possuem relaes entre si, e essas relaes so adicionadas ao
conjunto de relaes j existentes entre as aes. Por exemplo, a sequncia Mrio
brinca. Mrio ouve um barulho na porta. Mrio corre. permite a suposio de que o
barulho na porta causa da corrida de Mrio. O mesmo ocorre no exemplo do
alarme de incndio, em que no h indicao do julgamento de Mrio quanto ao
barulho ou da motivao de Mrio. H apenas uma indicao causal.
Sabendo que os smbolos so importantes, o autor pode escolher criar
outros tipos de relao dentro da narrativa. Por exemplo, O menino brinca no
quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na porta. O menino corre.
uma construo que sugere a relao causal da sequncia narrativa e ainda uma
relao entre menino e pai. O leitor pode supor, ento, que o menino est
correndo para receber o pai. Pode supor ainda que o menino est feliz ou que tem
saudade. E essas duas inferncias no esto na sequncia narrativa, mas na
relao entre as ideias do smbolo menino e do smbolo pai. H ainda uma
relao possvel ao se observar que o menino brinca no quarto (ento, sozinho) e
que essa brincadeira interrompida pela chegada do pai.
A ligao entre menino e pai , no entanto, ditada pelo leitor. No
exemplo dado, o autor no explicita a natureza dessa relao. As frases utilizadas
so intencionalmente vagas. Ele poderia ter dado mais informaes. J, em O
menino brinca de bonecas no quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na
porta. O menino corre para debaixo da cama., por exemplo, o autor adiciona a
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imagem de uma brincadeira (ainda) feminina (bonecas) a um menino. A chegada de
uma imagem masculina (a de pai) faz com que o menino se esconda (corre para
debaixo da cama). Caber ao leitor decidir o motivo que leva o menino a se
esconder do pai. Ele pode ter medo de repreenso, por estar brincando de bonecas.
Mas pode ainda estar brincando de bonecas por causa da represso paterna. A
causalidade no se move apenas para frente na narrativa (TODOROV, 2003).
Por fim, o autor pode ainda utilizar a repetio de ideias para tornar o
conjunto de relaes ainda mais denso. Por exemplo, O menino brinca de esconde-
esconde com bonecas no quarto. O menino ouve o barulho das chaves do pai na
porta. O menino corre para debaixo da cama. Assim, h duas imagens de
esconder na sequncia. O menino est brincando de esconde-esconde e, com a
chegada do pai, esconde-se. Nessa verso, como na anterior, ele pode estar com
medo do pai, mas tambm pode estar se escondendo para brincar com o pai. A
relao das imagens masculinas menino e pai ainda esto ali, assim como
permanece o contraste entre essas imagens e as das bonecas (femininas). Contudo,
a ao de se esconder est repetida e, por estar repetida, agrega as duas imagens
a de brincadeira e a de fuga.
Essas relaes internas dos smbolos adicionadas s relaes causais
entre as aes so o que Tzvetan Todorov chama de sentidos do texto literrio. E
as inferncias feitas pelo leitor ao selecionar os sentidos que lhe servem para
construir um significado alm do texto formam o que Todorov chama de
interpretao. Deve-se considerar que um texto literrio tem um cuidado com a
linguagem muito maior do que o apresentado nos exemplos. Possivelmente h
menos repeties de palavras e mais cuidado com a ordem e o ritmo da frase.
Mesmo assim, a estrutura narrativa clssica j pode ser observada.
Tambm se pode separar as etapas como situao inicial, abertura de
possibilidades, atualizao (BREMOND, 1973). A brincadeira pode continuar ou ser
interrompida. Ela interrompida pela chegada do pai. O menino poderia ignorar o
pai, ir conversar com ele ou fugir. O menino decide fugir. Nessa separao de etapas
tambm fica evidente a distncia entre o que descrito e o que inferido pelo leitor.
Bremond, no entanto, nos d duas ferramentas que so teis mais adiante ao
passar para o funcionamento do jogo eletrnico: a ideia de que h um grupo de
possibilidades a serem selecionadas e a ideia de que h uma narrativa para cada
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ponto de vista. o jogador quem escolhe o comportamento do menino, e essa
escolha d-se de acordo com o que o jogador compreender da narrativa at ento (e
s at ento). Ou seja, a parte principal da escolha ocorre quando o jogador
seleciona o sentido das palavras e imagens.
Em um jogo de representao de papis, o jogador coloca-se como o
menino. informado ao jogador que ele est brincando de esconde-esconde com
bonecas no quarto e que pode ser ouvido o barulho das chaves do pai na porta.
Ento, o jogo pergunta: o que voc quer fazer? Seguindo Bremond, o jogador pode
escolher entre ignorar o pai (e mesmo as bonecas, se assim desejar), correr para
encontrar o pai que chega ou esconder-se debaixo da cama. A seleo do jogador
claramente feita de acordo com o que ele acaba de compreender da narrativa.
Pode-se ainda observar a narrativa como um conjunto de atores
(GREIMAS, 1973). Tome-se o menino como sujeito e o objeto como a brincadeira de
esconde-esconde. O pai pode aparecer como opositor, afinal, a figura masculina
pode se opor brincadeira com bonecas. Nesse caso, o menino foge para se
proteger de seu agressor. J, se colocado o pai no papel de adjuvante, ou seja, no
papel de auxiliar do menino, a chegada do pai apenas incendeia a vontade do
menino de brincar, ao tornar a possibilidade mais fcil ou mais divertida. Ainda h a
opo de que o objeto de desejo do menino seja o pai. O barulho das chaves do pai
o informam da boa notcia a chegada do pai. E a brincadeira a forma encontrada
para dar meios aos dois para se relacionarem como pai e filho (num primeiro
momento, a brincadeira supre a carncia e, logo aps, torna-se a ligao entre os
dois).
O modelo de Greimas contribui, ento, com outros dois conceitos teis
para a anlise de jogos. Primeiro, traz noo de objetivo. O jogo , essencialmente,
a busca de um objetivo seja ele uma meta especfica (derrubar o oponente, no
sum, ou pr o rei em xeque, no xadrez), uma meta relativa (fazer mais pontos que
o adversrio, no basquete, no vlei, no futebol; atingir a linha de chegada no menor
tempo, na maratona, na natao) ou simplesmente o acmulo de pontos em geral
(como o jogo Tetris, que consiste em uma sequncia de fases com acrscimo
constante de dificuldade). E segundo, traz a noo de que a alterao do objetivo, e
mesmo das relaes entre os demais atores, altera o sentido. Assim, quando um
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jogador faz uma escolha, ele leva em considerao os objetivos do jogo, mas
tambm leva em considerao os sentidos que percebe ao longo da leitura do jogo.
Os jogos mais propcios para esse tipo de anlise so os de
representao de papis (role-playing games, RPGs). Primeiramente, sua estrutura,
voltada simulao e representao, permite que o jogador pense seu
comportamento no jogo valendo-se de informaes e valores do mundo
extradiegtico (mundo real ou mundo ficcional de outras obras de diversas mdias).
O jogador pode tomar decises baseado no que sabe sobre outros jogos
semelhantes (aquisio de fora, gasto de energia ou uso de furtividade para atacar
algum) ou sobre mundos semelhantes. Alm disso, os prprios criadores de RPGs,
ao longo da evoluo (da mesa para o computador) desenvolvem formas eficazes
de transmitir as regras de jogo para o jogador, valendo-se de todo o ferramental da
mdia digital e do prprio tipo de jogo.
As primeiras fases dos jogos tm a funo de tutoria dos jogadores, que
entram em um novo mundo (com novas regras e novos sistemas de valores). As
informaes necessrias para adaptao do jogador so inseridas na narrativa do
jogo. E as possibilidades de explorao dadas pela simulao do jogo (entrar em
qualquer porta, tentar pegar qualquer objeto) permitem que o jogador aprenda a
maior parte das regras por si, por tentativa e erro. Esse modo de transmitir as regras
aos jogadores, que emerge dos RPGs, torna-se to atrativo que est sendo
aproveitado para o ensino acadmico (ALVES, 2005; MURRAY, 2003).
Por fim, os RPGs tambm se tornam timos objetos de estudo por serem
um modelo de jogo digital bastante evoludo nas ltimas dcadas e altamente
difundido nos meios de entretenimento. H mesmo jogos que absorvem e adaptam
caractersticas vindas dos RPGs para aumentar a aparncia de interao com o
jogador. Por exemplo, nesses jogos, h a possibilidade de o jogador escolher as
roupas e a aparncia de sua personagem. Embora a cor de uma camisa no altere
as regras do jogo nem mesmo interfira na pontuao, o jogador faz tal seleo por
preferncia pessoal, o que leva um sentido novo (no existente anteriormente no
jogo) a essa pea de uniforme, podendo significar um time, um pas ou uma
preferncia sexual da personagem controlada pelo jogador.
Todas essas caractersticas estruturais do modelo de narrativa levadas
aos jogos eletrnicos e todas as possibilidades tcnicas presentes no meio digital
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pedem uma reestruturao do modelo de anlise, para compreender as implicaes
da estrutura do jogo na construo de sentido pelo jogador. Como o foco deste
trabalho a narrativa e sua possibilidade de interpretao pelo leitor, atravs
formulao de uma base para descrio e anlise de sua estrutura aplicada ao jogo
eletrnico, deixam-se muitos elementos de fora, por exemplo: o funcionamento da
programao do jogo, as relaes das imagens e do som com o enredo e os
ambientes sociais dos jogadores. Tais elementos so considerados teis para
anlise de jogos, mas no so obrigatrios para compreenso de seu
funcionamento. Por isso, so indicados para pesquisas com foco especfico em tais
reas.
O modelo proposto, assim, observa o jogo como um emaranhado de
aes possveis. A narrativa que surge selecionada pelo jogador dentre essas
possibilidades. A seleo ocorre tendo em vista o cumprimento do objetivo proposto
pelo jogo. No depende, contudo, apenas desse objetivo, pois ao jogador so
apresentados smbolos que, por um lado, o informam sobre o funcionamento do jogo
e, por outro, remetem a seus conhecimentos prvios, o conjunto de informaes que
o jogador traz de suas experincias com outros jogos, sobre o funcionamento dos
controles, sobre a histria apresentada e que servem de pistas para o jogador
"intuir" o que esperado dele. A seleo feita, portanto, unindo as informaes que
o jogador j possui com as que ele est adquirindo ao longo do jogo. Provavelmente,
ento, o jogador no as distingue durante a seleo.
Para analisar o jogo, deve-se indicar o conjunto de aes obrigatrias
(aquelas ligadas diretamente ao cumprimento do objetivo principal). Ento, preciso
identificar o conjunto de aes que permitem desvios do eixo principal, mas que no
interferem na possibilidade de cumprimento do objetivo. Algumas dessas aes
permitem ao jogador adaptar a personagem ao jogo, caso necessite de mais poder
ou mais conhecimento; outras permitem ao jogador simplesmente adaptar a
personagem a seus gostos pessoais, como tipo de arma (maior, menor), corte de
cabelo, vestimenta etc.
Sendo as aes principais obrigatrias, analisando-as podem-se observar
relaes de sentido possveis a todo o pblico de jogadores de um dado jogo. Esse
conjunto de relaes importa para a anlise, por exemplo, da violncia em jogos
eletrnicos. O conjunto de aes alternativas selecionado pelo jogador depende
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diretamente de suas escolhas e, portanto, de seu humor, sua vontade, sua
habilidade. Esse conjunto de aes tambm sofre influncia do objetivo principal do
jogo (alm de objetivos secundrios que podem ser apresentados ao jogador),
devendo ser analisado observando sua contribuio em relao ao cumprimento
desse objetivo. Por exemplo, pode ser permitido ao jogador voltar no tempo e matar
o vilo, enquanto ele tinha trs meses de vida, em vez de esperar lutar contra ele
quando adulto. Tal rota facilita a vida do jogador, mas implica em matar um beb.
Por isso, embora o jogador faa a escolha, o jogo o induz a deciso.
Portanto, a deciso do jogador depende tanto da inteno de cumprir o
objetivo do jogo (matar o vilo) quanto do balano de significados que o jogador
pode atribuir a cada s
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