Relato de Caso
FÍSTULA ARTERIO-VENOSA PÓSLAMINECTOMIA
Gláucia E. Galvão* Wolfgang G/ W. Zorn** Bonno van Bellen···
A fístula arterio-venosa aorto-cava ou ilio-ilíaca é complicação pouco freqüente da laminectomia lombar. Pode ser-aGempanhaea---fie-alterações--hemodinâmiGas-afJ~das'
com graves repercussões sistêmicas. O óbito intraoperatório pode se dever à aguda formação de hematoma acompanhada da sobrecarga cardíaca decorrente da formação fistulosa. Outras vezes a descompensação cardíaca é mais lenta, dependendo do tamanho da fístula que se estabelece. A correção da fístula é mandatória e geralmente difícil do ponto de vista técnico. Neste trabalho é apresentado um caso de fístula arterio-venosa entre os vasos ilíacos em decorrência de traumatismo iatrogênico ocorrido durante laminectomia lombar, O tratamento cirúrgico que consistiu no fechamento dli fístula mostrou-se incompleto uma vez que havia mais /de uma fístula, não demonstradas por ocasião dos ' exames radiológicos préoperatórios. As fístulas residuais, menores, foram tratadas por colocação de molas de Gianturco.
Unitermos: Fístula arterio-venosa. Traumatismo vascular.
Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Vascular e Angiologia do Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo (SP).
• Estagiária do Serviço AtuaI" Chefe do Serviço de Cirurgia Vascular e Angiologia do Hospital João XXIII de Campina Grande (PB)
•• Responsável pelo Serviço * •• R~ponSável pelo Serviço
Doutor -einMedicina pêla Faculdade de Medicina da USP Livre Docente em Moléstias Vasculares Periféricas pela UNICAMP
CIR. VASCo ANG. 7(1):17,20,1991
INTRODUÇÃO
A lesão vascular é uma complicação grave da cirurgia de hérnia de disco intervertebral. Suas conseqüências imediatas, seja quando se instala fístula arterio-venosa seja quando ocorre sangramento, pode levar à morte ou a grave descompensação cardíaca. O sangramento, é geralmente retroperitonial, e deve ser imediatamente corrigido. Quando a lesão é concomitante em artéria e veia, o trauma pode levar à formação de fístula entre esses dois vasos. Nesses casos, o sangramento retroperitonial é geralmente pequeno e o ulterior grau de descompensação hemodinâmica vai depender do tamanho da lesão que se estabeleceu. Habitualmente o diagnóstico é feito no pósoperatório tardio e geralmente se caracteriza por quadro de insuficiência cardíaca rebelde ao tratamento clínico.
Neste trabalho é apresentado um caso de fístula arte rio-venosa pós-Iaminectomia, cuja maior repercussão foi a estase venosa que se estabeleceu, ao lado de grau subclínico de insuficiência cardíaca.
APRESENTAÇÃO DO CASO
Paciente ALPR de 41 anos de idade, sexo feminino, submetida há 30 meses a hemi-Iaminectomia lombar esquerda para correção de hérnia discai entre os corpos vertebrais L4 e L5. Como intercorrência relatada apresentou sangramento moderado no intra-operatório tendo havido necessidade de transfusão sanguíneas. Logo na primeira semana de pós-operatório notou sensação de peso, edema e dilatação venosa superficial em membro inferior esquerdo. Posteriormente desenvolveu edema vespertino e sensação de peso também na outra perna, mas sempre mais intenso a esquerda. Procurou serviço médico especializado com o objetivo de tratar as varizes que estavam surgindo, quando foi diagnosticada a presença da fístula arteriovenosa, motivo pelo qual foi encaminhada ao Serviço de Cirurgia Vascular e Angiologia da Beneficência Portuguesa de São Paulo.
A exame, tratava-se de pessoa em bom estado geral. normotensa, sem sinais de descompensação cardíaca. Apresentava frêmito e sopro contínuos em região mesogástrica e em ambas as fossas ilíacas. Havia edema em membros inferiores, mais acentuadamente à esquerda, varizes com insuficiência de safena interna, perfurantes de coxa e perna à esquerda. O sopro se irradiava pelas artérias e veias da raiz do membro inferior esquerdo. Os pulsos arteriais estavam presentes e ao Doppler ultra-som, o fluxo era de caráter trifásico, normal, com índice de pressão tornozelo/braço de 1,00 à direita a 0,93 à esquerda.
Quanto aos exames complementares, a radiograha ae tórax denotava discreto aumento global da área cardíaca e reforço da trama vasobrõnquica pulmonar; o eletrocardiograma mostrava corrente de lesão subendocárdica e sobrecarga de átrio esquerdo; a fonoangiografia do sopro detectado sobre a artéria femoral esquerda confirmou a impressão clínica de sopro sisto-diastólico; o débito cardíaco, determinado por impedanciometria torácica, era de 8,4 litros por minuto com índice cardíaco, normal, de 4,0. Estes valores permitiram caracterizar a paciente como estando em insuficiência cardíaca compensada de alto débito.
A arteriografia digital mostrou existência de fístula
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entre os vasos ilíacos internos esquerdos. Era notável a dilatação da artéria ilíaca na região pré-fistulosa (Fig. 1).
FIGURA I - Aspecto angiográfico da fistula italo-ilíaca, observando-se a passagem do contraste da artéria iliaca esquerda para a veia homônima.
A cirurgia para correção dessa fístula foi realizada através de laparotomia mediana infra-umbilical. Chamavam a atenção o aumento da rede venosa retroperitoneal, a intensa fibrose local, a dilatação da artéria ilíaca comum esquerda, e o frêmito tanto na artéria quanto na veia. Proceceu-se ao isolamento proximal e distai da artéria sendo o controle do sangramento feito por compressão da estrutura. O orifício fistuloso foi abordado e tratado por via trans-arterial.
O pós-operatório transcorreu sem intercorrências e ao redor do trigésimo dia havia desaparecido o edema. A dor e a dilatação venosa haviam diminuído. O exame físico, no entanto, mostrou persistência de discreto sopro sistodiástólico em fossa ilíaca esquerda.
A impedanciometria torácica realizada um mês após a cirurgia demonstrou débito cardíaco de 6,8 IImin, índice cardíaco médio de 4,9. A fonoangiografia mostrou diminuição da intensidade mas não abolição do sopro anteriormente registrado.
Tendo em vista a persistência dos sinais de fístula residual, foi feito novo estudo angiográfico (Fig. 2). Havia dois orifícios fistulosos, pequenos, que foram tratados por introdução de molas de Gianturco. Um mês após esse procedimento foi repetida a impedanciometria torácica que mostrou normalização do débito cardíaco, cujo valor caiu para 3,7 I/min.
DISCUSSÃO
O trauma vascular em cirurgia de hérnia de disco ocorre em consequência da perfuração do ligamento espinhal anterior durante a instrumentação do espaço intervertebral, atingindo-se os grandes vasos da região.
Somente 25% dos casos que sofrem lesão vascular apresentam sangramento para o espaço intervertebral. A hemorragia pode permanecer tamponada no espaço retroperitoneal ou pode se apresentar como sangramento maciço. Neste caso torna-se necessário o acesso anterior transperitoneal para seu controle e resolução. Pode também evoluir para pseudoaneurisma e posteriormente para fístu-
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Fístula A-V pós laminectomia
... f
2A e 28 - Aspecto angiográfico pós-operatório , notando-se a passagem de contraste do sistema arterial para o venoso por meio de comuni· cações fistulosas do sistema iliaco interno . Após a colocação de moIas e Gianturco desaparece a contrastação precoce do sistema nervoso.
la arterio-venosa (F A V), ou ainda, quando há lesão aterial e venosa simultânea, formar-se-á imediatamente uma fístula arterio-venosa3,5,6,7,12.
É evidente que o local da instalação da F A V depende do espaço intervertebral envolvido, mas ocorre mais freqüentemente entre L4-L5 e L5-S 13,5,6,7 , 12. V ~Ie lembrar que a bifurcação da aorta ocorre na altura do corpo da quarta vértebra lombar e que na altura do bordo inferior de L4 as artérias ilíacas passam lateralmente ao corpo vertebral, prosseguindo posterior e inferiormente para a pelve. A veia cava inferior está à direita da aorta, sendo sua bifurcação um pouco inferior em relação à da aorta. Havendo, portanto, lesão no espaço L4-L5, pode-se desenvolver uma FA V aorta-cavaiS. Em caso de lesão pósteromediai de ambos os vasos, quando a lesão é no espaço L4-L5, pode-se formar F A Ventre artéria ilíaca comum direita e veia ilíaca comum direita ou esquerda3.6,i , ls.
Das FAVs pós-Iaminectomia, 75% ocorrem ao nível de L4-LS. Isto se explica pelo fato de a discectomia a esse nível ser a mais frequente e também por nessa região os vasos serem relativamente fixos e próximos da coluna quando o paciente está em posição lateral com flexão dos membros sobre o tronco.
Quando a fisiopatologia da lesão, ela se comporta como as fístulas arterio-venosas em geral. O tamanho e a 10-
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calização são os principais fatores determinantes dos seus efeitos hemodinâmicos. As comunicações arte rio venosas permitem a passagem direta do sangue do sistema arterial de alta pressão para o sistema venoso de baixa resistência. Gradualmente vai ocorrendo dilatação do sistema circulatório, acompanhada de aumento de volemia. Aumento do débito cardíaco ocorre em função de maior volume sistólico e secundariamente por aumento da frequência cardíaca. A instalação da hipervolemia pode levar a insuficiência cardíaca aguda ou crônica, dependendo do tamanho da fístula e das condições cardíacas prévias2.4.
A fístula provoca hipertensão venosa distalmente à sua localização provocando, nos membros inferiores, típico quadro de estase venosa crônica, com edema e varicosidades.
O fluxo sanguíneo está sempre aumentado, tanto na artéria proximal quanto na veia proximal. Nesta, o fluxo se torna pulsá til mas, em decorrência da complacência do sistema venoso, as pulsações tendem a desaparecer a pouCos centímetros da fístula9• Na artéria distai o fluxo pode ser normal, como ocorre nas pequenas fístulas, ou diminuído, como ocorre nas grandes comunicações.
No sistema venoso o sistema valvular pode inicialmente impedir o fluxo retrógrado mas, com o passar do tempo, as válvulas se tornam incompetentes e se instala, além da hipertensão venosa, fluxo retrógrado ls .
Na fase aguda da fístula, pode ocorrer queda de pressão arterial sistólica e diastólica decorrente da perda energética e do aumento de fluxo sangüíneo pela artéria9. 11 .
Com o passar do tempo aumenta o tamanho da abertura entre artéria e veia e produz-se alongamento e dilatação progressiva da artéria proximal. Inicialmente a parede da artéria se torna espêssa e a seguir ocorrem alterações degenerativas com atrofia da camada muscular, diminuição da quantidade de tecido elástico e formação de placas ateromatosas. Essas alterações ocorrem em função da maior velocidade do sangue e do efeito de vibrações na parede arterial.
A veia proximal se torna dilatada e tortuosa, sua parede se espessa e apresenta alterações degenerativas. As veias distais se tornam tortuosas e suas paredes afinadas em função da destruição das suas válvulas.
A fístula arte rio venosa é grande estímulo para o desenvolvimento de circulação colateràl em função da maior velocidade do fluxo sanguíneo e pelo aumento da diferenciai de pressão através do leito colateraI9•ls .
Do ponto de vista sistêmico é necessário ocorrer um ajuste circulatório para compensar a queda da resistência periférica total, a queda da pressão arterial, o aumento da pressão venosa, e para evitar desvio do sangue dos tecidos periféricos. Em função disso ocorre aumento do débito cardíaco que é dependente do fluxo pela fístulaarteriovenosa e existe para manter pressão de perfusão nos tecidos periféricos. O aumento do volume sistólico é responsável por aumento de 80 a 90% do débito cardíaco e é dado por contratilidade miocárdica aumentada l,8,14, ls. A cardiomegalia é dependente do tamanho da fístula e das condições cardíacas prévias. A hipervolemia é resultado do mecanismo de retenção de água e sódio por àtivação do sistema renina-antiotensina-aldosterona, sendo que o excesso de sangue é acomodado em todo o circuito fistuloSOI4.
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Fístula A-V pós laminectomia
Quanto ao quadro clínico, 37% dos pacientes com fístula arteriovenosa cursam com insuficiência cardíaca de alto débito, 56% com edema periférico, insuficiência arterial dista'!, pressão de pulso alargadas, massa abdominal pulsátil e sopro abdominal em maquinária. Nas fístulas entre aorta e cava, a insuficiência cardíaca descompensada ocorre em 40% dos casos, insuficiência renal em 27% e hematúria em 32%.
O tratamento é eminentemente cirúrgico sendo que a morbimortalidade é maior nas fístulas aorto-cava pois, além das complicações próprias da cirurgia aórtica, associam-se distúrbios hemodinâmicos decorrentes da insuficiência cardíaca congestiva, da função renal e das alterações de fluídos do terceiro espaço.
Os resultados cirúrgicos são melhores para os casos de fístula pós-Iaminectomia pois são pacientes mais jovens e as fístulas são de menor diâmetro. A mortalidade operatória gira em torno de 7 %.
O tratamento ideal é a cirurgia reconstrutora que pode ser realizada através do acesso abdominal transperitoneal com controle dos quatro vasos e fechamento do orifício fistuloso por via trans-arterial. Quando o campo operatório se mostra simplificado, pode-se somente proceder à dissecção da fístula e sua secção e reparo arterial e venoso com ou sem remendo. Eventualmente pode ser utilizado material protético para sua resoluçã06. 12.ls.
SUMMARY
ARTERlà-VENOUS FISTUAL AS A COMPLICA TlON OF LUMBAR OIS C SURGERY
Arterio-venous fistules between the abdominal aorta and vena cava or the iliac vessels are uncommon complications of lumbar disc surgery. When the acute hemodynamic alterations are severe and course together with important blood loss, intra-operative death can occur. A smal/ fistula cause cardiac fail/ure as a late complication. Its correction is mandatory and often difficult. This paper describes a case of post-Iaminectomy arterio-venous fistula between the iJiac vessels. The fistula was surgical/y corrected but a second communication between the vessels was not suspected by pre-operative arteriography and had to be treated by introduction of Gianturco wires.
Uniterms: Arteriovenous fistula. Vascular trauma.
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