“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês”: uma crítica
ferrenha à sociedade
Natalia A. C. BISIO1
Raquel de Lima TURCI2
Resumo
Este trabalho tratará dos poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, de
Gregório de Matos, e “Ode ao burguês”, de Mário de Andrade, com o principal objetivo
de demonstrar como dois textos de diferentes épocas tratam de um assunto universal,
porém de maneiras distintas. O intuito é comparar esses poemas, observando as
diferenças e semelhanças existentes na abordagem do tema, a partir da análise de
aspectos formais e semânticos, enfim, compreender o fazer poético de um texto mais
distante da contemporaneidade e outro mais próximo.
Palavras-chave: Barroco. Modernismo. Literatura comparada. Análise de poemas.
Abstract
This study presents the poems "Neste mundo é mais rico, o que mais rapa" by Gregorio
de Matos, and "Ode ao burguês", by Mário de Andrade, in which the main objective is
to demonstrate how two texts from different periods address a universal subject, but in
different ways. The aim is to compare these poems, noting the differences and
similarities in approach to the subject, based on the analysis of formal and semantic
aspects, finally, understand the the poetic creation in a text distant from
contemporaneity and a modern text.
Keywords: Baroque. Modernism. Comparative literature. Analysis of poems.
1 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara – (UNESP), orientanda da Profª Drª Guacira Marcondes
Machado Leite. CEP: 14800-721, Araraquara, São Paulo; e-mail: [email protected] 2 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus Araraquara – (UNESP), orientanda da Profª Drª Letícia
Marcondes Rezende. CEP: 14050-010, Ribeirão Preto, São Paulo; e-mail: [email protected]
1. A comparação entre textos
A literatura está em perigo, como afirmou Todorov (2009) em seu trabalho do
início do século XX, pois lhe foi tirado o poder de participar da formação cultural dos
indivíduos da sociedade. Em meio à problemática que envolve o ensino dos estudos
literários, como o trabalho privilegiado da crítica e das teorias, o ensaísta búlgaro
também comenta o fato de a literatura ser apresentada aos alunos por meio da história
literária, e não dos textos artísticos propriamente ditos. Além disso, tal concepção de
história é marcada pela lógica de linearidade e causalidade, de modo que os movimentos
literários se sucedem uns aos outros, seguindo a ideia de antes e depois, em uma
concepção progressista, como se os textos ficassem ilhados em cada período literário,
sem relação uns com os outros.
Leyla Perrone-Moisés (1990) coloca-se contra o conceito de uma história linear
e causalista para os estudos da literatura: “Em arte não há progresso, não há avanço, em
termos de valor. [...] a arte, e em particular a literatura, não tende a produzir um
concerto harmonioso, [...] mas uma função crítica, contestadora, e uma função
dilacerada em todos os níveis” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 93). A partir dessa ideia,
a estudiosa discute a essência da literatura comparada, partindo das teorias do
dialogismo de Bakhtin e da intertextualidade de Júlia Kristeva, em que ambos veem a
literatura como um sistema de trocas; dos estudos de Tiniánov e de Borges sobre a
evolução literária e a tradição; e das ideias da Antropofagia cultural de Oswald de
Andrade. Assim, Leyla Perrone-Moisés chega à seguinte afirmação:
A literatura comparada não só se produz num constante diálogo de
textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A literatura nasce da
literatura; cada obra nova é uma continuação, das obras anteriores, dos
gêneros e temas já existentes. Escrever é pois dialogar com a literatura
anterior e com a contemporânea” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 94).
É, assim, a partir dessa ideia de diálogo entre as artes que se fundamenta este
trabalho. Pretende-se comparar os poemas “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”
de Gregório de Matos, escrito no século XVII, e “Ode ao burguês”, de Mario de
Andrade, escrito no século XX, de modo que se perceba como um tema comum em
ambas as obras, a forte crítica a certas mazelas humanas – como o egoísmo, a ganância,
a falsidade e a futilidade –, é trabalhado segundo as características próprias de seu
contexto histórico e literário, porém sem perder sua universalidade.
Além da semelhança temática entre ambos os textos, pode-se também encontrar
pontos de intersecção no fazer poético de duas épocas tão distantes historicamente,
como o florescer de uma literatura brasileira mais autônoma, que, embora, nos dois
casos, tenha se inspirado em movimentos advindos da Europa, fala de assuntos de sua
própria pátria e demonstra por meio de seus processos formais o surgimento de uma
consciência criadora nacional.
2. “Boca do Inferno”
A obra de Gregório de Matos (1636-1696) tornou-se um dos grandes paradigmas
da poesia barroca no Brasil e, segundo Massaud Moisés (2001), a literatura brasileira
floresce com a estética barroca. Ecos do Barroco europeu vieram para o Brasil nos
séculos XVII e XVIII representados não só por Gregório de Matos, mas também
Botelho de Oliveira, Frei Itaparica, entre outros. “O atrito entre os valores importados e
as sugestões libertárias oriundas de um solo ainda inóspito, onde começava a florescer
uma sociedade com pruridos de autonomia, constitui a grande marca da nossa literatura
colonial” (MOISÉS, 2001, p. 80). Em um período muito importante na história da
formação não só de uma literatura, mas de uma consciência nacional, eis a importância
de um poeta de alto nível artístico como Gregório de Matos.
Os contrastes de sua produção literária são muito acentuados: desde a sátira mais
irreverente até o pesar do poeta devoto. De acordo com Bosi (2006), tais contradições
ocorrem devido à ambiguidade da vida moral existente como pano de fundo da
educação ibero-jesuítica, em que a retórica nobre e moralizante mascarava o desejo pela
riqueza e pelo gozo. É por isto que, em sua sátira, Gregório de Matos faz uso de um
vocabulário popular e, muitas vezes chulo, sendo chamado de “Boca de Inferno” por
conta da sua língua viperina que visava atingir autoridades da colônia, escravos, além de
direcionar-se a todas as classes da nova sociedade, de preferência aos fidalgos
“caramurus” – referindo-se à mestiçagem –, aos senhores de engenho e ao novo
mercador lusitano, ávido por lucro.
“Seus poemas satíricos constituem um vasto painel das mazelas da sociedade
baiana do tempo” (MOISÉS, 2001, p. 96). Neles, “a virulência atinge o ápice em
poemas que podem ser considerados as suas obras-primas no gênero, quer como
denúncia social, quer como invenção poética” (MOISÉS, 2001, p. 97), como por
exemplo o soneto “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”, que será analisado mais
adiante. A respeito da sua poesia sacra, Gregório era tão religioso quanto libertino. Tal
paradoxo representa o estilo barroco. Já na poesia lírica, escreve peças de amor, também
consideradas como obras-primas por Massaud Moisés (2001), sendo muito influenciado
por Camões quanto à descrição de seus sentimentos amorosos. A força artesanal em
Gregório é evidente. “Alguns de seus sonetos sacros e amorosos transpõem com brilho
esquemas de Góngora e de Quevedo e valem como exemplo do gosto seiscentista de
compor símiles e contrastes para enfunar imagens e destrinçar conceitos” (BOSI, 2006,
p. 39).
Segundo Moisés (2001), a poesia gregoriana possui um arsenal metafórico,
porém usado com discrição, e um jogo de palavras, ambas características típicas do
Barroco. o autor utilizou-se também de trocadilhos, de rupturas de palavras no fim dos
versos, “de um recurso formal que consiste em compor o poema com palavras
terminadas em idêntico fonema” (MOISÉS, 2001, p. 94). Um novo recurso utilizado
pelo poeta nesses anos de triunfo do cultismo ibérico foi a miscigenação da língua tupi –
e, em menor escala, da língua africana – com sua dicção barroca.
Apesar de serem exemplos formais, Gregório não deixa de demonstrar uma
temática que apresentava sua visão de mundo e da vida e suas vinculações conceptistas.
Por tratar da experiência cotidiana, “os poemas gregorianos equivalem a páginas dum
diário, nada íntimo, levando em consideração a vida libertina do poeta e o teor histórico
e social das confidências” (MOISÉS, 2001, p. 95).
Segundo Bosi (2006),
Em toda sua poesia o achincalhe e a denúncia encorpam-se e movem-
se à força de jogos sonoros, de rimas burlescas, de uma sintaxe
apertada e ardida, de um léxico incisivo, quando não retalhante; tudo o
que dá ao estilo de Gregório de Matos uma verve não igualada em
toda a história da sátira brasileira posterior (BOSI, 2006, p.40).
Moisés (2001) também expõe uma ideia semelhante à de Bosi quando afirma
que Gregório de Matos, “[...] dentre os poetas do tempo, em língua portuguesa, ninguém
se lhe iguala, e em outras literaturas poucos se lhe equiparam em talento genuíno, em
valor e em largueza de visão de mundo”. (MOISÉS, 2001, p. 110).
Enquanto Gregório viveu, seus poemas circulavam de mão em mão, de forma
manuscrita, ou de maneira oral. Suas obras foram publicadas apenas no século XX,
entre 1923 e 1933, pela Academia Brasileira de Letras, nos seis volumes a seguir: Sacra,
referente aos poemas religiosos; Lírica, reunindo os poemas lírico-amorosos; Graciosa,
com os poemas que exploram o humor; Satírica, contendo os poemas que exploram a
sátira (portanto, é aqui que se encontra o soneto em análise); Última, em que há poemas
de várias temáticas. A publicação da coletânea da Academia assim se organiza devido
às várias configurações poéticas gregorianas, como a lírica, a sacra e a satírica.
Posteriormente, os poemas gregorianos foram publicados em outras obras de reunião de
poemas, como por exemplo, Poemas escolhidos, organizado por José Miguel Wisnik.
3. A flor baixa se inculca por Tulipa: a crítica à sociedade colonial
“Neste mundo é mais rico, o que mais rapa”
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
Com sua língua ao nobre o vil decepa:
O Velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
(MATOS, 1984. p. 42).
O poema “Neste mundo é mais rico o que mais rapa”, de Gregório de Matos, já
deixa evidente, mesmo em uma primeira leitura desavisada, tanto a forma bem
trabalhada que apresenta, quanto a crítica mordaz feita à sociedade de sua época: a do
Brasil colônia no século XVII.
Constituindo-se soneto, forma clássica muito utilizada pelo barroco, apresenta
uma estrutura fixa, composta por dois quartetos seguidos de dois tercetos. A métrica
apresentada pelo autor também é rígida, pois o soneto todo é composto em versos
decassílabos.
Além disso, Gregório de Matos não deixa por menos ao compor as rimas de seu
poema. Observam-se, nas duas primeiras estrofes, rimas soantes interpoladas e
emparelhadas ABBA, como é percebido em “rapa”, “carepa”, “decepa”, “capa” e
“mapa”, “trepa”, “increpa” e “Papa”. E, nos dois últimos tercetos, pode-se verificar que
as rimas são soantes e intercaladas CDECDE, com “Tulipa”, “tripa”; “garlopa”, “topa”
e “chupa”, “upa”.
Além dessas rimas verificadas ao fim de cada verso, o poema é extremamente
trabalhado do ponto de vista sonoro ao apresentar também: rimas toantes, como as
encontradas em “língua” e “limpo”; um vasto número de aliterações com a consoante p
– “patife”, “pode”, “Papa” – ou com o som tr – “tropa”, “trapo”, “tripa” –, por exemplo;
assonâncias como em “trepo”, “trapo” e “dinheiro”, “ligeiro”; e uma anáfora,
encontrada na segunda estrofe com o termo “Quem”.
Como ocorre em todo bom poema, os aspectos formais até agora apresentados
são estruturados de tal forma que contribuem para a construção do sentido do texto. Os
sons de que o poeta mais se utiliza para construir o estrato sonoro de sua poesia são
secos, travados e fortes, constituídos principalmente pelas vogais orais /a/ e /ε/, e por
consoantes oclusivas, bilabiais surdas e alveolares vibrantes antecedidas por oclusivas,
repetindo, desse modo, várias vezes os /p/, /t/, /k/, /t/, /bɾ/, /tɾ/.
Tal uso denota rigor, severidade e intensidade na fala do eu lírico, além de
transmitir a sensação da presença de afirmações incisivas e de ideias fortes, definidas e
persistentes, dando ao estrato sonoro, desse modo, o tom agressivo utilizado pelo autor
no poema todo.
A linguagem adotada pelo poeta é satírica, portanto, também agressiva. Com um
vocabulário chulo – no qual são encontrados termos como “chupa”, “tripa” e “patife” –
que contém somente artigos definidos, tudo é bem claro e determinado, não ficando nas
entrelinhas a quem o ataque dirige-se, fazendo com que o poema seja curto e grosso,
sem cuidados ou delicadezas.
Porém, ao mesmo tempo em que se utiliza de disfemismos, o texto é
barrocamente engenhoso ao não nomear os objetos, apresentando um bom arsenal
metafórico e fazendo trocadilhos, como o encontrado no último verso “Em apa, epa, ipa,
opa, upa”.
A engenhosidade é também percebida na incorporação de antíteses como
nobre/vil, limpo/sujo e elevado/baixo, que perpassam todo o poema a fim de representar
a contradição existente entre aparência e realidade, e na apresentação de uma sintaxe
apertada, ardida, repleta de correlações, verificadas, por exemplo, nos 2º e 6º versos,
“Quem mais limpo se faz, tem mais carepa”, “Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa”.
Tudo isto é feito pelo autor a fim de que formalmente se consiga construir e
reforçar aquilo que também transmite com maestria ao leitor no plano dos sentidos: a
crítica ferina de sua sociedade.
Assim, é possível notar que, de maneira ácida, agressiva e bem construída, o
poema fala sobre a encenação social e a forma questionável de enriquecimento
encontrada no país, principalmente na sociedade baiana, à qual pertencia o poeta. Logo
na primeira estrofe, já é dito que os mais ricos são os que roubam: “Neste mundo é mais
rico, o que mais rapa” e que o “Velhaco” sempre tem proteção, “capa”.
A crítica à encenação social é encontrada também nessa primeira estrofe, pois
aquele que se apresenta como alguém muito limpo, que fala nobremente, em realidade,
é sujo e “vil”, tendo inclusive mais “carepa”, ou seja, caspa. Ao observar-se com
atenção essa estrofe, é possível reparar que a sujeira nela explicitada pode ser de caráter
tanto físico quanto moral, quando se pensa em alguém muito preocupado com a
aparência e com a vida social, mas que tem pouca moralidade.
A partir do que é apresentado nessa primeira estrofe, o ataque à sociedade
persiste durante todo o soneto, sempre em tom intenso e agressivo por meio da sátira
construída com seu vocabulário chulo e sua sonoridade seca. Percebe-se que a crítica
sobre o enriquecimento questionável dos colonos é reafirmada na segunda estrofe,
enquanto que na terceira é a encenação social que protagoniza. Já o último terceto fecha
o soneto retomando de modo inteligente e sintético tudo o que já foi dito, ao utilizar-se
da estratégia de expor as rimas que perpassaram o poema inteiro: “apa, epa, ipa, opa,
upa”.
Isso posto, ao aprofundar-se a análise da segunda estrofe, observa-se que ela
critica o fato de o “patife” exibir sua genealogia, pretendendo-se nobre, ao mostrar “da
nobreza o mapa”, e revela que as estratégias usadas por algumas pessoas era o roubo:
“Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa”; e, além disso, as de censurar, acusar e
repreender os outros, ao invés de “menos falar”, afinal, não teriam condições morais
para criticar seu próximo. Sendo que é enfatizado de modo contundente o aspecto
corrompido e voltado às aparências da sociedade quando, nessa estrofe, é afirmado que
aquele que tem o dinheiro conseguido por meio da “trepa” consegue até ser “Papa”.
No primeiro terceto, é evidenciado o fato de as aparências serem o que
realmente importa a esta sociedade, pois até “A flor baixa se inculca por Tulipa”.
Ademais, esse verso, juntamente com o que vem em seguida, leva o leitor a pensar
também no quão questionável é a ascensão social da população colonial, sendo que essa
aparente “tulipa”, em seu íntimo, é desonesta e imoral “flor baixa”.
Por fim, o poema é encerrado confirmando e reforçando tudo o que foi dito para
a parcela repulsiva desta sociedade, principalmente quando, em uma grande
manifestação de desprezo pela “tropa do trapo”, o eu-lírico vaza “a tripa”, expressão
que tem o sentido de defecar. Sem contar que ele só não diz mais porque a “Musa” vai
acabar topando novamente com as mesmas situações já descritas, aquelas que o
interessante eco “apa, epa, ipa, opa e upa” retoma na última linha do poema ao utilizar-
se do recurso de quebrar as últimas palavras de cada verso e dispô-las sequencialmente.
Torna-se importante salientar que, nessa última estrofe, é estabelecido também
um jogo com o elevado da épica e o rebaixado da sátira justamente quando é feita
alusão à Musa: inspiração clássica dos poetas para que sejam capazes de cantar a poesia.
Isso se compõe no texto como mais um reforçador das contradições que o perpassam
desde seu início.
Um último fato interessante a ser observado no texto de Gregório de Matos é
que somente as palavras “Velhaco”, “Papa”, “Tulipa” e “Musa” encontram-se escritas
em letra maiúscula no meio dos versos, estabelecendo uma inevitável correlação entre
esses quatro vocábulos. Escritos nessa ordem, um em cada estrofe, permitem o
estabelecimento de mais um reforço engenhoso às ideias desenvolvidas no poema.
Sendo as duas primeiras palavras masculinas e as duas últimas femininas, a relação
entre as duplas formadas é evidente, colocando-as em um mesmo nível, tanto os
velhacos e o papa, quanto a tulipa e a musa. Igualação que faz todo o sentido no texto,
já que os que enriqueceram por meio da velhacaria conseguiriam tranquilamente ser
papa, e a tulipa, flor rara e bela, é da mesma sublimidade da musa, aquela que inspira o
poeta.
4. Um homem moderno
Mário Raul de Andrade nasceu em São Paulo, em 9 de outubro de 1893.
Formou-se no Conservatório Dramático e Musical e, em 1917, estreou com um volume
de poesias chamado Há uma gota de sangue em cada poema, sob o pseudônimo de
Mário Sobral.
Pôs-se à frente da geração que inaugurou o modernismo no Brasil e, com sua
poética, seus “desvairismos” e “antropofagismos”, exerceu grande atividade em favor
dessas ideias – sobretudo no início de tal movimento literário. Quando os anos de 1920-
1921 viviam intensa campanha em favor dos ideais modernistas, Mário de Andrade
escreveu Paulicéia Desvairada, obra que viria a público dois anos depois, após a
Semana de Arte de Moderna, que pode ser considerada como uma “histórica virada de
1922”, segundo Massaud Moisés (2001).
O período anterior a 1922 era chamado de heróico por Mário de Andrade e,
junto a Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, entre outros artistas, sabiam
contra que, ou contra quem se rebelavam “[...] contra o status quo literário reinante no
país [...]” (MOISÉS, 2001, p. 22, grifos do autor).
[...] pode-se perfeitamente localizar em 1922 um divisor de águas:
invadíamos a história moderna, com todas as suas implicações.
Parecia que despertávamos de secular hibernação, em que o nosso
provincianismo ia de mãos dadas com o nosso subdesenvolvimento,
para ingressar na modernidade. [...] Evidentemente, o atraso cultural
não desaparecia como por milagre, mas a partir de 1922 acelera-se o
processo da nossa identidade histórica [...] (MOISÉS, 2001, p. 18).
Como um “homem de 22”, Mário de Andrade viveu com “[...] dramaticidade
uma consciência dividida entre a sedução da ‘cultura ocidental’ e as exigências do seu
povo, múltiplo nas raízes históricas e na dispersão geográfica”. (BOSI, 2006, p.306).
Ainda provou em sua ficção que, felizmente, conseguiu explorar essa multiplicidade.
Ensaísta e ficcionista, crítico de literatura e de música, tratadista e
pesquisador de folclore, poeta e teórico de arte, homem de gabinete
nas suas criações e homem de ação nas batalhas literárias, Mário de
Andrade é um escritor que, na sua múltipla fragmentação, resiste,
entretanto, a ser mutilado (MARTINS, 2002, p.259).
Entre suas obras principais encontram-se: Clã do Jabuti (1927), A escrava que
não era Isaura (1925), Macunaíma (1928), Lira Paulistana (1946), Contos Novos
(1946), O Movimento Modernista (1942). Ao todo, foram mais de 20 publicações, desde
contos a ensaios. Destaca-se de todas Paulicéia Desvairada, obra na qual se encontra o
poema tema de nossa análise, “Ode ao burguês”. Lançada em 1922, deu, assim, “[...] o
arranco inicial nos domínios da criação literária [...]” (MOISÉS, 2001, p. 52).
Segundo Benedito Nunes, em seu trabalho Mário de Andrade: Enfibriaturas do
Modernismo (1984), Pauliceia desvairada foi um grande marco na história da literatura
brasileira, pois “[...] pela primeira vez, frutificou, e até com certo atraso, em nossas
letras e artes, ‘o estado de espírito universal, cujas manifestações mais clamorosas,
cubismo e futurismo, deram seus primeiros vagidos europeus por 1909’” 3 (NUNES,
1984, p. 64). O próprio Mário de Andrade atesta esse atraso quanto às inovações
advindas com os movimentos de vanguarda europeus em seu Prefácio Interessantíssimo
– verdadeiro texto teórico sobre a poesia modernista, em que introduz seu novo “lirismo
desvairado”:
E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais.
Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das
teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si
pretendesse representar orientação moderna que ainda não
compreende bem. (ANDRADE, M., 1966, p.14).
Mário de Andrade também revela em seu prefácio: “Não sou futurista (de
Marinetti) [...] Tenho pontos de contato com o futurismo” (ANDRADE, 1966, p.16).
Assim, o poeta demonstra sua leitura e aplicação dos movimentos vanguardistas
europeus, porém reinterpretando-os segundo sua formação como poeta e criando uma
poesia moderna totalmente brasileira.
Pauliceia Desvairada
[...] teria o destino de fixar não somente os rumos do Modernismo, em
sua primeira fase, mas, também, os estais da carreira literária de Mário
de Andrade: o experimentalismo e o individualismo, que, de resto, ele
compartilhava com todos os seus companheiros de geração
(MARTINS, 2002, p.191).
Tratando-se ainda de sua poesia, São Paulo constitui o ponto de partida de sua
obra poética em Paulicéia Desvairada, e o seu ponto final, em Lira Paulistana. É nessa
última obra, por sua vez, que se encontravam seus poemas mais maduros do ponto de
3 Benedito Nunes cita Mario de Andrade, “Modernismo”, em O Empalhador de Passarinhos (São
Paulo: Martins Editora, s/data), pp. 159-160.
vista estético. Talvez, foi o momento em que o autor pode ser ele mesmo, e como disse
em 1942, fazendo um balanço melancólico do Modernismo, abandonar a ficção em
favor de um homem-de-estudo, que, por natureza, não era.
Com vasta contribuição no cenário artístico e da crítica nacionais, Mário de
Andrade morreu em 1945, deixando para trás sua complexa personalidade literária,
longe de ter nos revelado todos os seus segredos.
5. Ódio ao burguês
“Ode ao burguês”
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem-feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
"– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...
(ANDRADE, 1987. p. 88-89)
Vaias. É assim que o poema “Ode ao Burguês” foi recebido na semana de Arte
Moderna, quando declamado pelo seu autor, Mário de Andrade. Tal ode tinha o objetivo
de atingir uma classe, a burguesia, que se sentia gloriosa por seus grandes lucros. O
poema irritou muitos industriais e fazendeiros de café.
Mário de Andrade também utiliza uma espécie de vaia, de insulto e faz em seu
texto uma caracterização pejorativa da burguesia, além de questioná-la e ridicularizá-la.
Tudo começa no paradoxo do título. O texto chama-se “Ode ao Burguês”, mas o que
realmente ocorre é o contrário do que esse tipo de composição possibilita: a ode
caracteriza-se por um poema que possui um tom alegre e entusiástico, e trata-se de uma
composição de tom elevado. Assim, ao ler o título do poema, pode-se pensar que se
trata de algo que vai elevar o burguês. Porém, Mário de Andrade é bastante irônico,
pois, na verdade, a figura a qual dedica a ode será totalmente escandalizada. Com isso, é
possível afirmar que o poeta joga com o som da palavra ode, que, lido na frase “ode ao
burguês”, torna-se ódio, vocábulo que se repete várias vezes no texto.
Esse sentimento de raiva espalha-se por todo o poema, que tem um ar de
manifesto. A presença constante de exclamações dá ao texto um tom eufórico e
agressivo, que chega a se parecer com um discurso marxista dirigido a essa classe, a
burguesia. “Ódio vermelho! Ódio fecundo [...]”, um sentimento da cor da bandeira
comunista. Pode-se dizer que a rebeldia também é encontrada nesse texto não somente
no plano temático, mas também no plano teórico: ao expressar uma forma inovadora,
contra a rigidez das composições anteriores. Esse desejo de ruptura com o tradicional já
começa, pode-se observar, no emprego de versos livres e brancos: a liberdade plena da
forma.
Há, desse modo, um ritmo livre de uniformidades, que surge da exploração da
potencialidade musical das orações. Sendo assim, nesse poema, não existe o trabalho
com o metro. O que acontece é que todo o texto se constitui como um conjunto rítmico,
totalmente sensorial. Essa liberdade dos ritmos ainda imprime uma significação estreita
com o campo semântico, como se comprova na grande repetição do som /ↄ/, encontrado
principalmente na palavra ódio, sobretudo na última estrofe, que expressa a intensidade
emocional do eu-lírico quando expõe suas impressões sobre o burguês. O som /S/
também aparece várias vezes, assim como a palavra burguês, contribuindo também para
o ritmo e a sonoridade do texto.
A expressividade dos fonemas também é obtida pelo seu posicionamento e sua
iteração. Essa variação relacional se constrói nesse poema por meio das figuras fônicas,
como a anáfora e o polissíndeto, em que ambos podem ser exemplificados com o verso
“Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!” (ANDRADE, 1987, p. 89). É
importante salientar que a anáfora é a figura fônica mais explorada no poema, dando,
com a repetição dos vocábulos, uma sonoridade maior aos versos.
Os efeitos sonoros também são reforçados pelo paralelismo sintático presente
nesse texto poético, que pode ser encontrado nos três primeiros versos das três primeiras
estrofes: “Eu insulto o burguês! [...]”; “Eu insulto as aristocracias cautelosas!”; “Eu
insulto o burguês-funesto!”. Além disso, os versos “Morte à gordura! /Morte às
adiposidades cerebrais!/ Morte ao burguês-mensal!”, também podem exemplificar esses
conjuntos semelhantes.
Todo o furor dirigido ao burguês expressa características do movimento
futurista, sobretudo pela agressividade, uma das principais teses de Marinetti, italiano
redator do primeiro manifesto futurista, Fondation et Manifeste du Futurisme (1909). A
violência aparece praticamente nas 11 teses apresentadas por Marinetti. Para o futurista,
na literatura, a intenção é romper com as tradições que exaltavam “[...] a imobilidade
pensativa, o êxtase e o sono [...] [e] exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o
passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco” (MARINETTI, 1926 apud TELES,
2009, p.115). Eis o modo como o poeta agride tanto ao burguês quanto à velha forma.
Nesse poema, do ponto de vista gramatical, é evidente também a relação com as
ideias futuristas. A ordenação paratática, como por exemplo no verso “Ódio vermelho!
Ódio fecundo! Ódio cíclico!” (ANDRADE, 1987, p. 89), que faz as orações
semelhantes estruturalmente pela sua formação definida em um substantivo – que é
sempre o mesmo: ódio – e um adjetivo. Trata-se do recurso chamado “palavras em
liberdade”, em que as frases substantivas estão em aposição.
Com esse uso inovador da sintaxe, as imagens libertam-se. No Manifesto técnico
da literatura futurista (1912), Marinetti já via a necessidade de libertação das imagens:
“A poesia deve ser uma sequência ininterrupta de imagens novas [...]” (MARINETTI,
1968 apud TELES, 2009, p.120). Essa ideia das imagens dispostas em série acaba por
lembrar também o princípio da simultaneidade dos futuristas, em que a arte deveria
mostrar concomitantemente os vários estados da mente e a representação de estágios
sucessivos de movimento. Em Mário de Andrade, portanto, a enumeração caótica, como
outro emprego sintático utilizado nesse poema, está intimamente relacionada com a
ideia de simultaneidade futurista.
No âmbito semântico, retornando ao apelo, também futurista, à violência,
podemos perceber que a fragmentação das ideias, que parecem explodir, contribui para
o tom agressivo dessa ode: o eu-lírico parece fazer um desabafo, bastante espontâneo,
do que pensa e sente pelo burguês. Um exemplo desse emprego sintático encontra-se
nos versos “O homem-curva! o homem-nádegas!/ O homem que sendo francês,
brasileiro, italiano,/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco” (ANDRADE, 1987, p. 88).
Além de toda essa expressividade da sintaxe, o poder sugestivo do poema é
enriquecido com o emprego de determinadas classes de palavras, que têm uma
importante funcionalidade literária. Há, por exemplo, o predomínio de artigos definidos,
que indicam o interesse de revelar a essência do objeto referido no texto poético. Na
maioria das vezes, esses artigos são ligados ao burguês, deixando claro que se fala desse
tipo social.
Há também o uso recorrente de adjetivos unidos a um substantivo por um hífen,
processo no qual o poeta utiliza uma espécie de “imagem-síntese” e cria palavras,
relacionando o conteúdo conceitual dos dois vocábulos e formando um sentido novo.
Trata-se de outro recurso criativo próximo ao conceito das palavras em liberdade. A
criação desses compostos também imprime a ideia de simultaneidade e de fragmentação
ao texto. É assim que surgem o “burguês- níquel”, o “burguês-burguês”, o “homem-
curva”, o “homem-nádegas” dentre muitos outros. Pode-se dizer que esses neologismos
concebem uma imagem metafórica, em que há uma relação binária entre as palavras,
uma aproximação de dois termos em busca de uma nova significação. Tudo para falar
de alguém extremamente ganancioso, que tem todas as características negativas: o
burguês, homem estático e preguiçoso.
O poema, em sua crítica voraz a tal classe da sociedade, considera o burguês um
homem que nunca muda, independentemente até de sua nacionalidade, sendo uma
pessoa extremamente cautelosa, temerosa, comedida com o dinheiro e que tenta prever,
medir e planejar tudo, sempre em busca do seu lucro. São aqueles que “algarismam os
amanhãs”. Vê-se essa caracterização nos versos: “O homem que sendo francês,
brasileiro, italiano, / É sempre um cauteloso pouco a pouco” (ANDRADE, 1987, p. 88).
No poema, o burguês é a figura que quer a ascensão social e busca sempre as
aparências: como se vê na segunda estrofe, as moças devem falar francês e tocar piano,
pois é sinônimo de nobreza, de boa educação, e também na quarta estrofe, quando é
transposta a fala do burguês e da filha, que quer um colar caro, para ostentar seu status.
O retrato criado pelo eu lírico é de um homem que não nasceu nobre, mas que pode
comprar títulos de nobreza –“Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros”
(ANDRADE, 1987, p. 88). Toda essa classe está inserida em seu “mundinho”, numa
vida regrada –“vivem dentro de muros sem pulos” (ANDRADE, 1987, p. 88).
Além das aparências, encontram-se também no texto aspectos que definem
certos costumes dessa classe. Em “burguês-cinema” e “burguês-tílburi” é feita
referência explícita ao hábito dessas pessoas de irem ao cinema e andarem nessa espécie
de carroça – sendo relevante o fato de eles não andarem a pé. A justaposição dos
substantivos cinema e tílburi a burguês, contudo, faz com que funcionem como
adjetivos, o que nos permite pensar não apenas naquilo que está explícito, mas também
em outros traços semânticos transferidos de um elemento a outro ao realizar-se a
justaposição.
O termo “burguês-cinema” pode-nos remeter, por exemplo, ao grande valor que
a burguesia dá às aparências, procurando copiar o modo de ser – tanto dos atores quanto
dos personagens representados – importado pelo cinema, e exibindo futilmente a seu
“público” o quão cinematográfica sua vida parece. Ao mesmo tempo, “burguês-tílburi”
ressalta novamente os aspectos da preguiça e do ócio que constituem o burguês que não
anda a pé, algo possível de ser relacionado, novamente, a um modo de vida repleto de
glamour e ócio divulgado pelo cinema.
Esses termos, portanto, chamam a atenção para o aspecto do status: o burguês
procura aparentar alguém bem sucedido, educado e culto perante a sociedade, e, como
seu objetivo é, sobretudo, parecer tudo isso, não é necessário muito esforço de sua
parte, realizando o suficiente para sustentar sua(s) máscara(s).
Algumas construções do poema levam-nos, ainda, a pensar em uma burguesia
gulosa, com a mania da comilança, por fazer caracterizações utilizando-se de palavras
referentes à comida, como: “o indigesto feijão com toucinho”; “gelatina pasma”; “purée
de batatas morais”. “Come! Come-te a ti mesmo [...]” (ANDRADE, 1987, p. 89),
conclui o eu-lírico. Há a referência intertextual com a conhecida frase filosófica de
Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”. Ao invés de conhecer seu interior em todos os
aspectos e cuidar de seu intelectual, o burguês faz o contrário e não possui firmeza
moral, é fútil e só pensa em dinheiro, cultivando suas “adiposidades cerebrais”.
Em seu mundinho de ganâncias, de luxos e de comilança, acrescenta-se ainda ao
burguês a falsa religiosidade. É a figura de um homem que vai à igreja, mostra-se
cristão, mas na verdade tudo isso é para manter as aparências. Para o eu-lírico é o
burguês “cheirando religião e que não crê em Deus!” (ANDRADE, 1987, p. 89).
A sátira é evidente nessa composição de Mário de Andrade, quando ridiculariza
o burguês. Porém, é importante ressaltar que essa ode critica essa figura não somente
pelo fato de ser membro da classe dominante. Benedito Nunes, em seu artigo Mário de
Andrade: As enfibraturas do Modernismo, afirma que essa ode hostiliza a vida
medíocre e o pouco desenvolvimento moral e mental dos burgueses,
Censurando-lhe o arrivismo, a pseudo cultura, o falso tradicionalismo
e a falta de religiosidade autentica, o poeta arlequinal, dissidente dos
hábitos da camada intelectual a que pertencia, achou-se igualmente em
desacordo com a sua própria classe, mas sem dela divergir
politicamente, muito embora rejeitasse o aparato da vida politica,
relegada a categoria do grotesco (NUNES, 1984, p.68).
Todo esse ódio pela burguesia se dá, na última estrofe, com o trabalho de uma
imagem visual bem sugestiva, na qual os burgueses marcham como soldados, no
comando do general, o eu-lírico, rumo ao seu “rancor inebriante” – “De mãos nas
costas! Marco eu o compasso! Eia!/ Dois a dois! Primeira posição! Marcha!”. Com essa
marcha da burguesia, o eu-lírico termina o poema expressando toda sua raiva, seu ódio,
parecendo expelir todo o seu sentimento em gritos, em um ar manifestante. “Fora! Fu!
Fora o bom burguês!...”.
6. Ódio à tropa do trapo: a crítica agressiva em “Neste mundo é mais rico, o
que mais rapa” e “Ode ao burguês”
Após as análises apresentadas dos poemas de Gregório de Matos e Mário de
Andrade, é possível estabelecer pontos comuns e divergentes entre os textos, pois, como
perceberemos no transcorrer deste tópico, mesmo com a distância temporal existente
entre eles, suas aproximações são relevantes e aquilo que os diferencia constitui
informação importante para melhor compreender-se o fazer poético de épocas distintas.
Algo evidente já em uma primeira leitura dos dois poemas selecionados é a
coincidência temática existente e tom satírico adotado pelos poetas. O tema abordado
por ambos os textos é o da crítica social que destaca os aspectos hipócrita, fútil e de
pouca moralidade da população ou de determinada camada dela, satirizando-a ao fazer
isso. É importante salientar, entretanto, que, devido à distância temporal existente na
produção dos textos, essa crítica abrangerá aspectos sociais distintos, consoantes com a
estrutura da sociedade na qual cada poema está inserido: no poema de Gregório de
Matos é criticada, sobretudo, a sociedade baiana do século XVII. Não há um
direcionamento da sátira para determinada classe social, como ocorre no caso de “Ode
ao burguês”, devido ao fato de na época do Brasil colônia as classes sociais não estarem
exatamente estabelecidas e determinadas, sendo a sociedade dividida basicamente entre
senhores de engenho, homens livres e escravos, algo bem diferente daquilo que se
passava no Brasil do século XX de Mário de Andrade, em que o poeta criticará
especialmente a burguesia.
Além disso, a abordagem de Gregório de Matos, por pertencer ao estilo barroco,
é muito mais preocupada com uma forma mais rígida do que a abordagem feita por
Mário de Andrade, um dos que iniciou o modernismo no Brasil. Enquanto no soneto
tem-se uma forma poética fixa, de estrutura e métrica rijas, cheia de rimas e dotada de
uma preocupação muito grande com as estruturas e os jogos sonoros; na poesia
modernista encontra-se um texto em versos livres e brancos que trabalha com o aspecto
sonoro de forma mais livre por meio de paralelismos e repetições de fonemas,
utilizando-se mais da potencialidade musical da oração, do que de rimas. Contudo, em
ambos os textos a sonoridade consegue intensificar o caráter agressivo e crítico dos
poemas.
Outro aspecto a ser observado é o de que Mário de Andrade explora o léxico
criando novas palavras e utilizando-as de forma não habitual, como quando diz
“homem-nádegas” ou “barões lampiões”; já Gregório de Matos, no poema analisado,
não cria neologismos, nem explora o léxico do mesmo modo que o vanguardista, porém
abusa de metáforas e antíteses, construindo, também, por meio de uma sonoridade
marcada e travada, repleta de sons oclusivos e vibrantes, sua crítica ferrenha.
Tais características formais e semânticas acima destacadas, apesar de serem
próprias de seu contexto histórico e literário, marcam o florescer de uma literatura
brasileira mais autônoma, que se apropria de assuntos nacionais, e o surgimento de uma
consciência criadora nacional.
Embora os dois movimentos brasileiros aqui citados tenham respirado um os
ares europeus do barroco e outro o das vanguardas europeias, Affonso Ávila (1977) vê
tanto no barroco quanto no modernismo dois segmentos do projeto literário brasileiro,
advindos “[...] de uma linguagem em curso criativo e de uma realidade contextual
inseparável de nossa peculiar experiência de expressão” (AVILA, 1977, p.28, grifos do
autor). Segundo o estudioso, juntamente com a visão ideológica de seu tempo, a obra de
Gregório de Mattos – como também o barroco brasileiro – representa um processo de
apropriação da linguagem própria brasileira dentro de uma consciência criadora
nacional, que simplesmente não se subordinou ao projeto literário europeu.
Com efeito, não será difícil constatar que o discurso poético
gregoriano difere em muitos aspectos do discurso padrão da poesia
lusa do mesmo período, quer pela temperatura semântica, mais quente
em sua referencialidade imediata, quer pela própria índole da dicção,
menos solene e afetada. Para o acaloramento semântico do verso
concorrem, sem dúvida, o aproveitamento de um novo material
significante, retirado ao vivo de uma fala de nítida feição popular ou
nativa, e o recurso frequente a um repertório temático de
predominância prosaica. [...] Através da leitura digamos linguística da
poesia de Gregório de Matos, o especialista poderá rastrear o
fenômeno emergente de uma entonação brasileira da língua, que não
será outro senão um modo já específico de sentir, de mentar e
exprimir o choque entre as formas de herança e os estímulos e
sugestões da peculiaridade tropical do país. Assim, a sua obra poética,
aberta tanto estética quanto semanticamente e voltada sempre para a
urgência comunicativa, traduz exemplarmente um processo de
apropriação da linguagem e da realidade, que é o próprio processo do
barroco brasileiro. (AVILA, 1977, p. 30).
Veem-se tais características apontadas acima pelo poeta e estudioso mineiro ao
se observar que Gregório faz sua critica, em “Neste mundo é mais rico, o que mais
rapa”, de forma ferina, com um vocabulário chulo e popular – como já foi mostrado em
nossa análise –, o que dá ao seu poema um tom tipicamente nacional.
Ainda no mesmo artigo, Ávila (1977) analisa o modernismo como um processo
de reflexão sobre a linguagem e a realidade, retomando o elo da primitiva apropriação
barroca e representando o grande vetor do processo literário brasileiro. Referente à
linguagem poética, o modernismo instaura a liberdade formal e uma moderna
criatividade estética:
Esse princípio valorizador da experimentação exerce-se em nível de
reflexão, com o escritor voltado de início para a inerência linguística
imediata – a palavra, a frase, o sintagma –, daí evoluindo para
operações mais complexas que abarcam toda a problemática estrutural
de seu texto. Entretanto, o que passa a ser questionado e reflexionado
não é tão só uma linguagem literária brasileira que se precisa rever e
reformular, mas a própria modernidade da escrita naquilo que as
correntes internacionais do momento impõem então como força
renovadora do pensamento criador. (AVILA, 1977, p. 34, grifos do
autor).
Quanto à questão do processo de reflexão da realidade, Ávila (1977) afirma que
o modernismo demonstra uma conscientização quanto a nossa realidade nacional, que
acrescentou a suas obras uma expressão propriamente brasileira e atual:
[...] o processo da reflexão modernista, como um grande leque de
arejamento crítico, primeiro se abre ao sopro novo da viração
universal, para depois fechar-se sobre nossa própria perplexidade e
repensá-la já não apenas em termos de linguagem, mas sobretudo de
realidade. O pêndulo linguagem/realidade,
experimentação/construção ritmará o desenvolvimento do projeto
literário brasileiro ao longo de uma vigência cíclica em que viremos,
afinal, a conhecer a nossa opção maior de originalidade. (AVILA,
1977, p. 34, grifos do autor).
Tais características previstas por Ávila (1977) encontram-se em “Ode ao
burguês” em seus versos livres e brancos, em seu trabalho por meio de paralelismos e
repetições de fonemas e em sua exploração do léxico criando novas palavras. Todo esse
trabalho criativo e muito original em termos literários é aplicado para refletir sobre o
contexto de sua época, voltado para a contestação de uma casta social de seu tempo, a
burguesia, preocupada somente com o seu status.
Assim, em “Neste mundo é mais rico, o que mais rapa” e “Ode ao burguês” não
observamos somente a coincidência temática – a crítica a uma camada social hipócrita,
fútil e de pouca moralidade – mas também o florescer de uma literatura preocupada em
falar da realidade de seu tempo e criar uma expressão mais nacional.
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