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FEMINISMO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE:
IGUALDADE DE GÊNERO E OS PLANOS NACIONAIS E MUNICIPAIS DE
EDUCAÇÃO
Angela Carla de Farias; Lina Maria Brandão Aras
Universidade Federal da [email protected] Universidade Federal da [email protected]
Resumo O presente artigo tem como objetivo promover uma discussão sobre as relações de gênero e a não inclusão
dessa temática nos Planos Nacionais e Municipais de Educação. Busca também demonstrar a importância do
feminismo e suas diferentes agendas como instrumento de luta pela igualdade de gênero e como prática da
liberdade no contexto escolar.
Palavras-chave: Educação, Patriarcalismo, Relações de gênero, Teoria feminista.
INTRODUÇÃO
Em âmbito nacional, grupos religiosos católicos e evangélicos têm movido uma verdadeira
cruzada contra a inclusão das temáticas ligadas à igualdade de gênero, orientação e educação sexual
no contexto escolar e, para isto, apresentam diversos argumentos contrários, nas mídias em geral,
além de patrocinar escritos (livros, revistas, jornais, blogs) a essas temáticas. Centenas de palestras
e movimentos em sessões legislativas pululam em todo o país com o intuito de não ter essas
discussões incluídas nas diretrizes dos sistemas educacionais federais, estaduais e municipais.
Inhambupe – a cidade onde leciono e desenvolvi uma pesquisa de mestrado sobre o trágico
assassinato de mulheres, à época denominados de “crime passional” e agora de feminicídio –, teve
rejeitada, em meio a uma sessão tumultuada por grupos evangélicos que gritavam palavras de
ordem e empunhavam cartazes que diziam não à igualdade ou equidade de gênero em favor da
família tradicional, a Emenda Aditiva nº 01/15 que visava a inclusão da igualdade de gênero no
plano municipal de educação.
A emenda foi criada por um vereador negro, homossexual e líder de um terreiro de
candomblé. A sessão foi tão conturbada que, no vídeo, mal dá para ouvir suas justificativas para a
proposta de emenda, além de ele ter sido interrompido pela interpelação de outros vereadores que
buscavam fazer alusão entre igualdade de gênero, a orientação sexual e a religião do vereador, o
candomblé, dando a entender, de forma velada, que a emenda era fruto da sua trajetória de vida no
candomblé e de sua orientação sexual, o que, segundo os evangélicos, o tornava “consequentemente
contra a família tradicional”, diga-se heteronormativa. A sessão terminou com a exclusão da
emenda por um voto a favor e onze contrários.
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Os vereadores, não satisfeitos com a supressão da emenda, ainda acrescentaram, de forma
inconstitucional, a seguinte frase ao Plano Municipal de Educação: “É vedada a manutenção ou
criação das expressões ‘ideologia de gênero’, ‘equidade de gênero’ e ‘orientação de gênero’ em
qualquer documento da educação, em especial nas diretrizes curriculares”. O fato foi noticiado pelo
blog “Se liga na Informação” que apresenta acontecimentos da cidade de Inhambupe e regiões
circunvizinhas. Embora o texto do blog que narra o acontecimento não dê os créditos com a devida
referência, ele apresenta trechos plagiados de uma carta aberta contra a inclusão da igualdade de
gênero nos planos educacionais, escrita pelo padre Luiz Carlos Lodi que é presidente de um grupo
intitulado Pró Vidas, na cidade de Anápolis SP, e é um dos clérigos ativistas que têm reforçado o
movimento de religiosos que discursam contra o feminismo e os direitos sexuais e reprodutivos.
A base teórica de alguns padres da igreja católica que defendem fervorosamente esses
movimentos é um livro escrito por um advogado espanhol, Jorge Scala, intitulado Ideologia de
Gênero: neototalitarismo e a morte da família cuja tradução e distribuição foram patrocinadas pela
igreja católica em vários países. Scala veio ao Brasil e divulgou seu livro em diversos municípios,
nos momentos em que esquentavam as discussões sobre a igualdade de gênero, e deu uma série de
entrevistas. Durante a entrevista concedida ao blog evangélico ADHT1: DefesaHetereo.org Scala
falou sobre os papéis sexuais de homens e mulheres dentro da família.
A mulher é a mãe, ou seja: o amor incondicional e que sempre está presente. O
varão é o pai, ou seja: a autoridade, o amor que põe limites e condições, para tirar o
melhor de si de cada um. Ambos amores são necessários para chegar à maturidade
humana. Conhecer um homem e uma mulher assim é a melhor ‘vacina’ contra a
ideologia do gênero.
O que estaria por trás desses ativismos religiosos contra a igualdade de gênero e direitos
sexuais e reprodutivos com base em argumentos essencialistas e biologizantes? A manutenção do
poder, dos privilégios “morais” e materiais das igrejas em ditar as regras sociais e da vida alheia,
realizando casamentos, batizados e perpetuando-se por meio da defesa de uma família
heteronormativa em que a mulher é subordinada, representando sempre o cuidado com os outros,
ressaltando que as religiões, em sua grande maioria, são dominadas por homens e as mulheres,
embora estejam em expressiva quantidade e realizem todo o trabalho pesado de base e organização,
não têm poder de fato.
1 Associação para Defesa da Heterossexualidade, do Casamento e da Família Tradicional, Proteção de
Crianças, Adolescentes e Jovens contra o Assédio, Aliciamento, Proselitismos e abuso Sexual e
Homossexual; contra o Aborto e Agenda Gay.
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Desconstruindo o discurso da grande maioria das religiões, percebemos que as mulheres são
o “segundo sexo”, fazendo alusão à total falta de autonomia das mulheres na sociedade
(BEAUVOIR, 1980). No que concerne às igrejas católicas e evangélicas, estas pregam uma mulher
submissa ao marido, que não tem projetos individuais, além de não gozar do status de ser dona do
seu próprio corpo. É importante ressaltar que o campo do direito, durante muitos séculos, foi
controlado pela igreja católica, o denominado direito canônico que foi o responsável pela criação e
manutenção das leis durante a Idade Média e parte da Modernidade, representa um pensamento
patriarcal, sexista e heteronormativo. Observemos um dos artigos do direito canônico sobre o
casamento.
‘Canon 1055
§ 1 – O pacto matrimonial, pelo qual o homem e a mulher constituem entre si o
consórcio de toda a vida, por sua índole natural ordenado ao bem dos cônjuges e à
geração e educação da prole, entre batizados foi por Cristo senhor elevado à
dignidade de sacramento.
§ 2 – Portanto, entre batizados não pode haver contrato matrimonial válido, que
não seja por isso mesmo sacramento’ (VERITATIS DIREITO CANÔNICO
ONLINE).
O Direito Canônico representa algo inquestionável, no Brasil, o Direito Canônico teve
uma forte relação com os códigos civis de 1916 e 2002.
Mais do que regras, são leis, isto é, são verdades reveladas por um ser superior,
onipotente, e a desobediência, muito mais que uma infração, é um pecado. Os
cânones são desígnios de Deus, transformados em regras a serem seguidas sem
questionamentos dos homens (WOLKMER, 2005, p. 224).
Neste cenário religioso cristão de subalternização das mulheres, os feminismos, em
contrapartida, representam movimentos revolucionários e universais em que um dos pontos centrais
é a igualdade de gênero a partir da problematização das relações de gênero histórica e culturalmente
construídas, percebendo que estas não podem ser concebidas como fatos naturalizados e sim como
elementos centrais para a compreensão da realidade contemporânea (SCAVONE, 2008).
FEMINISMO, IGUALDADE DE GENERO E EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
O conceito de gênero é um conceito polissêmico, mas, neste momento, suscitamos seu
sentido dentro da literatura feminista, que remete para as diferenças existentes entre homens e
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mulheres, diferenças estas não de caráter biológico, mas resultantes do processo de socialização. O
conceito de gênero delineia, nesta perspectiva, o conjunto de qualidades e de comportamentos que
as sociedades esperam dos homens e das mulheres, formando a sua identidade social. Assim, as
questões de gênero são elementos imprescindíveis à compreensão da realidade contemporânea.
O termo ‘gênero’ torna-se, antes, uma maneira de indicar ‘construções culturais’ –
a criação inteiramente social de idéias (sic) sobre papéis adequados aos homens e
às mulheres. Trata-se de uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais
das identidades subjetivas de homens e de mulheres. ‘Gênero’ é, segundo essa
definição, uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado. Com a
proliferação dos estudos sobre sexo e sexualidade, ‘gênero’ tornou-se uma palavra
particularmente útil, pois oferece um meio de distinguir a prática sexual dos papéis
sexuais atribuídos às mulheres e aos homens (SCOTT, 1995, p. 75).
Para Scott, as diferenças entre os sexos servem de esteio para dar significado às relações de
poder, assim, o termo gênero não significa um substitutivo do termo mulheres, mas um conceito
carregado de potência que deve ser utilizado como instrumento teórico, metodológico e político de
análise das condições históricas e sociais de existência de homens e mulheres. Scott introduz o
conceito de gênero na história e dialoga com os autores pós-estruturalistas, a exemplo de Foucault e
Deleuze, criticando junto com estes a ideia iluminista de um sujeito universal “produtor e
reprodutor de conhecimento” com características biológicas consideradas a-históricas que alicerçam
os discursos de dominação masculina. Questionamos quem é este sujeito universal que serve como
parâmetro da construção do pensamento científico? É o homem branco, ocidental, cristão e
heterossexual representante de estereótipos e de um “modo de vida” que, historicamente, vem
servindo como medida de todas as coisas e que passa a sofrer duras críticas dos estudos feministas,
pós-estruturalistas ou de estudos que vão de encontro ao modus operandi do fazer científico
tradicional. (SARDENBERG, 2002).
Alerta Saffioti (2004) que gênero é um conceito carregado de significações entendido como
a imagem que a sociedade constrói do masculino e do feminino: não há sociedade sem gênero.
Campo de consenso, segundo a autora, o gênero é, portanto, a construção histórica, social e cultural
do masculino e do feminino, das visões do que é ser homem e do que é ser mulher em uma
sociedade, recorte epistemológico do qual me aproximo, pois, identificar e delinear esta construção
nos permite compreender, historicamente, as condições subalternas da mulher como também o
poderio masculino: e aí está o patriarcalismo. Na visão de Saffioti:
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O gênero é aqui entendido como muito mais vasto que o patriarcado, na medida em
que neste as relações são hierarquizadas entre seres socialmente desiguais,
enquanto o gênero compreende também relações igualitárias. Desta forma, o
patriarcado é um caso específico das relações de gênero. (2004, p. 119).
Partindo das análises de Saffioti (2004, p. 60), sendo o patriarcado um traço das relações de
gênero, pois remete à formação da propriedade privada e da sedentarização dos humanos, portanto,
de cerca de 250 mil anos, a cultura, o gênero e o patriarcado se cruzam nas condições subalternas
vividas pelas mulheres na história do Brasil, haja vista que o poder, em diversas culturas e, em
específico, no Brasil, devido ao seu processo de colonização, sempre foi uma prerrogativa
masculina: aos homens, principalmente brancos, é atribuído o poder, o domínio tanto público como
privado e, às mulheres, o espaço do lar, da família, da maternidade e da subalternização.
Nesta ótica, a cultura de subordinação do feminino reforçada pela estrutura patriarcal
atravessa o gênero, a classe social, a raça e a etnia, compondo uma sociedade desigual e assimétrica
entre homens e mulheres. Segundo Saffioti, vivemos uma ordem patriarcal de gênero. Isto pode ser
observado nos diversos discursos que transitam em nossa sociedade, nas mais diferentes instâncias,
midiáticos, populares, discursos processuais proferidos pelos atores jurídicos, discursos
institucionais de uma gramática androcêntrica que teima em não flexionar o “gênero”; enfim,
discursos diversos reforçados por valores sustentados pela tradição e subjetivados na memória que,
mesmo com a constituição de um aparato jurídico, na tentativa de barrar a sua subsistência, se
perpetuam e se reproduzem em confronto com novas posturas libertárias e democráticas de
equidade entre os gêneros. Assim, mesmo havendo movimentos de resistência à assimetria entre os
sexos, à violência contra a mulher, a subjugação do gênero continua sendo uma forte característica
do nosso país até hoje.
Segundo pesquisa realizada em dez capitais do Brasil, jovens entre 16 e 24 anos defendem o
uso da violência na resolução de disputas afetivas e/ou como reparação de danos causados por
traições (1/5 concorda muito que uma mulher infiel ao marido deve apanhar), um item liderado
pelos municípios de Salvador e de Manaus (CARDIA apud NJAINE et al., 2009, p. 86). Logo, se a
cultura patriarcal não estivesse, ainda, tão presente, como explicar os resultados desta pesquisa?
Jovens meninos e meninas revelam o quanto o machismo é reproduzido em seus namoros e
“ficadas”, relações marcadas pela ótica de submissão da mulher e por justificativas de agressões
físicas por atos considerados imorais na conduta feminina. Frequentemente, os adolescentes
justificaram a ocorrência de violência física com base nas atitudes e comportamentos da própria
vítima, que teria “dado motivos” para ser agredida. E tal vítima, na maioria dos casos, é menina.
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Em outra pesquisa sobre jovens, violência e as DSTs/AIDS, Taquette et al. (2003) mostram
que grande parte destes considera normal a agressão verbal ou física na resolução de conflitos,
principalmente no caso de ciúmes que, segundo os pesquisados, justifica a ocorrência de violência e
de desrespeito nas relações afetivas. Estes comportamentos se expressam na forma como algumas
experiências de namoro e do ficar se estabelecem, reproduzindo padrões sociais cristalizados ou
criando novos padrões de relações influenciados pela cultura de violência, pelos modelos
comportamentais em voga deste grupo social e, ainda, pela interpretação dada pelos meios de
comunicação.
Para Butler, teórica que problematiza as concepções de gênero buscando confrontá-lo com o
sexo, identidade, cultura, feminismo e linguagens discursivas, o gênero é também uma criação
discursiva comprometida com determinados períodos e/ou instituições. Para ela, se o gênero ou
sexo são fixos ou livres, isto ocorre em função de um discurso e de como este irá surgir, ou seja, o
gênero se estabelece por meio de um discurso cultural hegemônico baseado “em estruturas binárias
que se apresentam como linguagem de racionalidade universal” (2003, p. 28). Assim, a coerção é
introduzida naquilo que a linguagem constitui como domínio inimaginável do gênero.
Vale ressaltar que a Igreja Católica, no apogeu da Idade Média, produziu e patrocinou
discursos depreciativos sobre as mulheres, que ecoaram ferozmente no Ocidente e influenciaram a
literatura ocidental, desde a literatura médica até a jurídica, como também as formas de se pensar
sobre “o que eram as mulheres e os seus devidos lugares”. Logo, analisar estes discursos ladeados
por poderes institucionais, localizando suas abrangências, incongruências, resistências e
permanências no cotidiano, desmontando-os, é oportunizar outras formas de pensar e propor
políticas de enfrentamento da desigualdade de gênero como também da violência contra a mulher.
A violência contra a mulher remete a tempos distantes em diversas culturas e organizações
sociais. Na sociedade ocidental, atingiu sua hegemonia durante a Idade Média e início da Idade
Moderna quando a Igreja Cristã se tornou a grande controladora dos costumes de uma sociedade
afogada em peste, fome e guerra, que via nesta instituição mediadora entre o céu e a terra alguma
esperança de felicidade. Apropriando-se das normas sociojurídicas, após as invasões bárbaras, o
intitulado Direito Canônico ditou modelos comportamentais para homens e mulheres e para a sua
sexualidade os quais, quando não cumpridos os seus desígnios, estavam fadados à punição. Porém,
eram as classes sociais mais desfavorecidas que eram perseguidas: mulheres, pobres, judeus,
negros, índios ou mestiços, ressaltando-se que os crimes contra a moral e os bons costumes sempre
tinham a mulher como alvo.
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Para reforçar a perseguição às mulheres, foram escolhidos e adaptados trechos da Bíblia, em
um discurso de cunho criminológico elaborado por clérigos e intelectuais, a exemplo dos frades
dominicanos nomeados inquisidores pelo Papa Inocêncio VIII, para erradicar, das terras alemães, os
“vício, heresia e a bruxaria”. Como exemplo um tratado sobre a inferioridade das mulheres,
denominado Malleus Maleficarum2 ou O martelo das feiticeiras, escrito em 1484, por dois monges
dominicanos. Essa perseguição latente foi culturalmente absorvida, a sexualidade feminina
subjugada e os modelos da virgindade, da castidade e do enclausuramento enaltecidos: aquela
mulher que escapasse da normatização cultural era julgada e condenada. A figura da bruxa surge
neste cenário e, então, com o objetivo de desarticular um gênero que representava metade da
população: a caça às bruxas mandou milhares de mulheres para a tortura e a fogueira.
A equidade de gênero, diferente do que propagandeiam discursos religiosos, pressupõe que
homens e mulheres devem ser tratados de forma justa, de acordo com suas respectivas necessidades.
O tratamento deve considerar, valorizar e favorecer, de maneira equânime, os direitos, benefícios,
obrigações e oportunidades entre homens e mulheres. A igualdade de gênero faz parte da agenda
feminista que contesta todo o determinismo biológico ou desígnio divino presente nos discursos
(científicos e religiosos tradicionais) sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. O feminismo se
mostra, historicamente, comprometido com as transformações das relações de dominação e poder
masculinos revelando a disparidade social, política, econômica, cultural e científica de gênero
presente nas sociedades. Enquanto teoria crítica busca desconstruir papéis de gênero que muito mais
representam “destinos sociais, camisas de força” atribuídos a homens e mulheres, fugindo, assim,
da ótica binária do pensamento cartesiano ocidental baseado em opostos: o feminismo conclama a
multiplicidade de diferenças e a igualdade de oportunidades.
Se os discursos filosóficos e científicos foram construídos sobre uma ótica iluminista,
binária e, consequentemente, identificados com o masculino, o que seria pensar uma epstemologia
feminista como rota de fuga que promova, entre outras questões, a igualdade de gênero? De acordo
com Sardenberg, pensar em uma epstemologia feminista:
2 Através desse livro fica cravada a satanização da sexualidade, base da misoginia da cultura ocidental. Uma
satanização que tem sua primeira expressão no Capítulo II do Gênesis e sua materialização no Malleus
Maleficarum. É importante ressaltar que entre os dois textos há uma distância de 3.500 anos. De acordo
com Muraro (2000, p. 78), o Gênesis e O martelo das feiticeiras são os textos mais importantes sobre a
mulher no período patriarcal, porque é neles que a sexualidade e, portanto, a mulher, é satanizada. Para
maior aprofundamento sobre a discussão ver: Silenciadas: A Representação Cultural da Mulher e sua
utilização nos processos de crimes passionais na cidade de Inhambupe – Bahia (1996-2006). Dissertação
de Mestrado - UNEB (FARIAS, 2013).
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Requer como primeiro passo, a desconstrução dos pressupostos iluministas quanto
à relação entre neutralidade, objetividade e conhecimento científico [...] A noção
subjacente é que todo conhecimento é medido pela linguagem e, portanto também
metafórico. Modelos e teorias funcionam como metáforas complexas, ou se
utilizam de associações metafóricas para criar significados. Logo, a tarefa principal
da desconstrução é expor essas associações e as consequências práticas da sua
aplicabilidade. (SARDENBERG, 2002, p. 91-95).
A autora defende um conhecimento situado, calcado em uma objetividade robusta no qual os
sujeitos se posicionam dentro do fazer científico. Essa perspectiva desnuda as ciladas de um fazer
científico hegemônico que não parte da diferença entre os sujeitos produzindo hipostasias.
Os estudos feministas, atuando interdisciplinarmente com a sociologia, antropologia,
estudos culturais entre outros ramos do conhecimento, demonstram que os papéis de gênero são
construtos sociais e colocam por terra a ideia de uma natureza feminina versus uma natureza
masculina. Margareth Mead, em seus estudos antropológicos com diferentes culturas ao redor do
mundo, observou que não há relação entre sexo (homem/mulher) e jeito de ser, temperamento, ou
seja, “cada sociedade constrói sua tecitura social ao seu modo” (1979, p. 162). A perspectiva de
um temperamento intrínseco ao masculino ou ao feminino representa a caricatura de categorias
sexuais culturalmente construídas na sociedade. Mead, ao fazer uma crítica às noções superficiais
entre sexo e raça, afirma que “se quisermos uma cultura mais rica em valores contrastantes,
cumpre conhecer toda gama de potencialidades humanas e assim tecer uma estrutura social menos
arbitrária, na qual cada dote humano encontrará um lugar adequado” (1979, p. 303).
Na nossa sociedade, não se ajustar ao papel de feminilidade ou masculinidade estabelecido
significa transgredir um conjunto de imposições sociais, culturais, religiosas e morais, observando
que as religiões católica e evangélicas se apoiam em uma estrutura patriarcal onde o homem é o
detentor da autoridade, partindo da cultura ocidental na qual estou inserida.
Historicamente, o sistema patriarcal apresenta fenômenos de violência de gênero contra
mulheres, mulheres brancas, mulheres negras, homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais e
transgêneros. No que diz respeito às mulheres, podemos citar a ablação do clitóris, a venda, a
escravização, os feminicídios, dentre outras variedades de crueldades e barbarismos. No tocante às
comunidades LGBTs, muitos e muitas são vítimas de preconceito, discriminação, podendo, até
mesmo, ser assassinados(as) ao demonstrarem sua orientação sexual e, em alguns países, até
punidos(as) com pena de morte.
Masculinidades e feminilidades são campos de atuação política e religiosa, logo, campanhas
de encorajamento à castidade, a criminalização da prostituição, o desencorajamento da masturbação
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entre jovens, o ataque ao aborto, a demonização da liberdade sexual, entre outras situações que
envolvem gênero e exercício da sexualidade são formas ideológicas de atuação do Estado e das
religiões sobre corpos e mentes (RUBIN, 2012) objetivando o não desenvolvimento de políticas de
gênero como também de raça, haja vista que os negros foram historicamente destituídos de direitos
e tratados de forma subalterna com base em fenótipos biológicos e passagens bíblicas racistas.
Assim, o sexismo imbricado ao racismo e classismo complexifica a situação das mulheres negras no
que tange a direitos e oportunidades e quando falo em complexificar não o digo no sentido de
hierarquizar: estas categorias (gênero, raça/etnia, classe e geração) são agenciadas em diferentes
momentos, no entanto as oportunidades oferecidas às mulheres negras são ainda menores do que os
homens negros, a experiência das mulheres negras tem muito a nos dizer.
O pensamento feminista negro apresenta uma agenda específica de luta contra o status quo
do pensamento colonizador e positivista branco na construção das relações humanas e no fazer
científico e, nesta perspectiva revolucionária, as mulheres negras são colocadas no centro da
discussão objetivando romper as “matrizes de opressão” que agenciam oportunamente sexo, raça e
classe criando opressores e oprimidos que atuam em diferentes contextos (HILL COLLINS, 2000).
O pensamento feminista negro como centro objetiva romper com as condições subalternas de
existência das mulheres negras por meio da autoidentificação pessoal e coletiva transformadora.
Refutando a objetividade e optando pelo relativismo, o pensamento feminista negro coloca em
evidência saberes que são subjugados pelas teorias hegemônicas que produzem conceitos
limitadores e controladores buscando, ao contrário, evidenciar os pensamentos múltiplos e diversos
enquanto conhecimentos parciais, situados e inacabados.
O pensamento feminista negro aplicado ao sistema educacional colocaria em evidência a
realidade da grande maioria de alunos e alunas negros/as que engrossam o sistema público
educacional do nosso país fazendo emergir suas experiências como algo substancial e promovendo
o empoderamento, ao conhecer, valorizar, podendo, assim, transformar a sua história e a da sua
comunidade haja vista que a proposta do Plano Nacional de Educação que foi rejeitada falava em
“igualdade racial e de gênero”. Sexo e relações de gênero são temas que continuam a ser pensados
sobre o viés biológico, determinista, religioso e não como construtos sociais, escamoteando, assim,
a manutenção dos privilégios do Estado patriarcal, dos homens e das religiões calcadas no sexismo,
racismo e na heteronormatividade.
Segundo as afirmações do radicalismo fundamentalista religioso e político antidemocrático,
a igualdade de gênero é uma proposta ideológica marxista que objetiva o aniquilamento da família,
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uma análise simplória e tendenciosa que configura um simulacro. É importante salientar que o
pensamento marxista (fazendo alusão aos escritos de Marx e Engels) criticou o modelo tradicional
de família demonstrando que este núcleo é a gênese que retroalimenta a manutenção do capitalismo
e, neste contexto, consequentemente, a opressão das mulheres, no entanto as ideias marxistas sobre
a opressão das mulheres e sua relação com a propriedade privada, que deu origem o modo de
produção capitalista, há muito tempo vem sofrendo críticas do pensamento feminista.
Segundo o feminismo, não há relação única explicativa entre propriedade privada e opressão
das mulheres, já que, em sociedades em que não havia a propriedade privada ou o modo de
produção capitalista verificou-se a opressão das mulheres pelos homens. Além disto, o marxismo
não lança o olhar para o trabalho doméstico, ou divisão sexual do trabalho, enquanto mais valia,
fazendo parecer que ele é inerente à condição feminina. Mesmo com as devidas críticas ao
pensamento marxista, a obra clássica de Engels (2002), A origem da família da propriedade
privada e do estado, trouxe reflexões importantes, ao afirmar que a subordinação feminina é
cultural e, portanto, passível de transformação.
O pensamento religioso e político que se coloca contra a igualdade de gênero representa sim
uma ideologia patriarcal com raízes coloniais não progressistas que atua em desfavor das liberdades
individuais, isto é, negando o respeito à identidade de gênero, a igualdade entre homens e mulheres,
os direitos reprodutivos ou direitos sobre o corpo, como também se nega a utilizar as lentes de
gênero e reconhecer o imbricamento entre os fenômenos de sexo, raça, classe e geração que
atravessam as relações de gênero.
Considerações Finais
O feminismo enquanto movimento revolucionário na contemporaneidade tem atuado com
uma agenda política extensa que apoia uma multiplicidade de sujeitos nômades que foge às
configurações cartográficas da sexualidade impostas como norma pela igreja e pelos grupos de
direita radicais, e em sua luta contra as opressões ao visibilizar as agendas das mulheres negras,
indígenas, lésbicas, os homossexuais, os travestis, os transexuais, os transgêneros, entre outros
grupos que têm suas demandas rejeitadas por fugirem do padrão estético imposto ou dos
pressupostos de uma sociedade androcêntrica, sexista e misógina. O que une os diferentes
feminismos são as lutas contra as opressões.
É imprescindível destacar que a grande discussão em torno do Plano Nacional de Educação,
fio condutor das inquietações deste artigo e que influenciou a construção dos demais planos de
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educação nas esferas estaduais e municipais, versava sobre a alteração da diretriz que previa a
superação das desigualdades educacionais (inciso III do art. 2º do substitutivo da Câmara). O
Senado alterou esse dispositivo, retirando a ênfase na promoção da “igualdade racial, regional, de
gênero e de orientação sexual”, expressão substituída por “cidadania e erradicação de todas as
formas de discriminação”. A contenda entre Câmara e Senado terminou favorável ao Senado, com a
aprovação do seu texto castrador.
As articulações religiosas e políticas barraram a promoção da igualdade racial, regional,
de gênero e de orientação sexual como um dos eixos centrais do processo educativo e como
superação das desigualdades educacionais, situação esta que demonstra que muito ainda deve ser
feito e discutido pelos movimentos negros, feministas e LGBTs no sentido de provocar ainda mais
mudanças e rupturas sociais significativas que impeçam o racismo, classismo, sexismo e a
homofobia.
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