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Experiências motoras lúdicas: contribuições no processo de construção da leitura e escrita nos anos iniciais do ensino
fundamental
Adelina Soares Lobo1 Eunice Vega2
Resumo: Atualmente se ouve muito falar sobre o grande índice de analfabetismo funcional nos estudantes do ensino fundamental e médio do nosso país. A partir desta assertiva questionei-me: o que leva os alunos a serem analfabetos funcionais? Percebi que, após descartar dificuldades no desenvolvimento neurológico e emocional somados aos fatores de ordem psicomotora e ambiental, as estratégias pedagógicas utilizadas para este fim são as responsáveis por esse sucesso ou fracasso na aquisição da linguagem falada e escrita. Este estudo buscou responder acerca da contribuição das práticas lúdico-educativas pela via corporal, na construção da leitura e da escrita dos alunos do 3º Ano do ensino fundamental. Como sou professora desta turma utilizei a pesquisa etnográfica para encontrar a resposta. As conclusões remeteram que as vivências motoras realizadas pelos alunos em psicomotricidade relacional e no parquinho contribuíram para o desenvolvimento integral dos alunos, sendo o desenho, a leitura e a escrita as competências mais significativas desenvolvidas para a construção de futuras habilidades. Palavras-Chave: Educação psicomotora. Ludicidade na educação. Ensino fundamental. Aprendizagem da língua escrita. Desenvolvimento humano. Abstract: Today we hear much talk about the high rate of functional illiteracy among students of
primary and secondary schools of our country. From this statement I wondered: what leads students
to be functionally illiterate? I realized that, after discarding neurodevelopmental difficulties and added
to the emotional factors of psychomotor and environmental teaching strategies used for this purpose
are responsible for the success or failure in the acquisition of spoken and written language. This study
sought to answer about the contribution of recreational and educational practices through body
building reading and writing of pupils in Year 3 of primary school. As I teach this class used
ethnographic research to find the answer. The conclusions suggest that the motor experiences
undertaken by students in the playground and psychomotor relational contributed to the overall
development of students, and drawing, reading and writing skills are developed for significant future
building skills.
Keywords: Psychomotor education. Playfulness in education. Elementary school. Learning the written
language. Human development.
1 Adelina Soares Lobo. Graduada em Pedagogia – Habilitação em Magistério de Educação Especial,
Especialista em Prática Psicomotriz Educativa pela Feevale, RS. Mestre em Ciência do Movimento Humano pela UFRGS/UCS. Professora concursada pelo Município de Farroupilha para Ensino Fundamental anos Iniciais. E-mail: [email protected]. 2 Graduada em Educação Física e Especialista em Ginástica rítmica Desportiva pela UFSM/ RS.
Mestre em Educação pela PUCRS. Professora Aposentada do Estado/RS. Atualmente é Professora Adjunta Nível III pela Facos em Osório/RS e das Faculdades Integradas São Judas Tadeu em Porto Alegre/RS, dos Cursos de Graduação em Educação Física e Pós-graduação em Pedagogia e Educação Física. E-mail: [email protected].
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Introdução
Como docente e pesquisadora da área de conhecimento da psicomotricidade, tenho
a intenção de socializar algumas práticas pedagógicas aplicadas numa turma do 3º
ano de uma escola municipal, onde atualmente atuo como professora concursada. A
pesquisa visou contribuir para o processo de desenvolvimento integral dos alunos
com o foco no processo de alfabetização. Utilizei a Linguagem Corporal como
âncora da aquisição da linguagem escrita, oral e do desenho. Estas linguagens
serviram como diferentes possibilidades de interação e expressão utilizadas,
aprendidas e desenvolvidas no currículo dos anos iniciais do ensino fundamental. A
aprendizagem motora deve ser parte integrante e fundamental da educação nos
anos iniciais, haja vista que no corpo percebido ou descoberto (três a sete anos),
“ocorre a organização do esquema corporal, devido à maturação da função de
interiorização, que auxilia a criança a desenvolver a percepção centrada em seu
próprio corpo”. (LOBO; VEGA, 2010, p. 28-9). A partir desta idéia, uma criança que
tem suas funções psicomotoras bem desenvolvidas tenderá a não apresentar
nenhum problema de escrita e compreensão da linguagem.
Busquei observar a evolução da expressão gráfica, através do desenho, da
oralidade e da escrita em duas situações lúdico-educativas: na psicomotricidade
relacional em sala de aula; e no parquinho da escola. Estas práticas pedagógicas
seguem rotinas diferentes e ambas possuem o brincar como principal ferramenta.
Após a aula os alunos realizavam como tema de casa memoriais descritivos
individuais das suas vivências. Quanto a esta escrita espontânea, afirma Ferreiro
(1991), ser este recurso precioso para reconhecer seus saberes. Além da tarefa,
faziam desenhos por iniciativa própria para representar, ilustrar o que escreveram e
vivenciaram na aula, mesmo sem ser pedido. Seus desenhos serviram para
observar a maneira como representam suas experiências, pois a representação
gráfica é um componente importante da linguagem escrita. Falaremos sobre o valor
do desenho mais a frente neste artigo.
Já o parquinho, foi visto como uma alternativa pedagógica que proporcionou
vivências lúdicas educativas e psicomotoras. Após as brincadeiras realizadas neste
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espaço voltavam para a sala de aula e construíam um texto coletivo. Como tema de
casa realizavam um desenho individual das suas vivências no parquinho. Na aula
seguinte apresentavam seu desenho aos colegas, descrevendo-os e inseriam a
cópia do texto que escreveram coletivamente colando atrás do desenho. De acordo
com Vigotsky (1991), existe uma relação estreita entre a fala e o raciocínio ao longo
do desenvolvimento. A fala, para este autor, atribui uma nova organização à
atividade prática e possui um papel essencial na organização das funções
psicológicas superiores.
Problema
Com a participação sistemática dos alunos do 3º Ano do ensino fundamental nas
aulas de psicomotricidade relacional e no parquinho busco responder ao seguinte
questionamento:
Quais os efeitos que um trabalho lúdico-educativo pela via corporal pode provocar
na construção significativa da escrita e da leitura dos alunos do 3º Ano do ensino
fundamental?
Participantes do estudo
Contei com 22 alunos do 3º Ano do ensino fundamental, com idade cronológica
entre 8 e 9 anos.
Metodologia
Situa-se numa perspectiva de corte qualitativo. Utilizei como método a etnografia
que pertence a família interpretativa/qualitativa, por entender que melhor ajustava-se
ao estudo. A etnografia de acordo com Lüdke e André (1986) consiste na descrição
de um sistema de significados culturais de um determinado grupo, com especial
atenção a conduta dos sujeitos como membros do grupo.
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A coleta de informações envolveu duas etapas: a atuação como professora dessas
práticas e a coleta de informações a partir dos instrumentos selecionados.
As aulas aconteceram numa escola Municipal, localizada em Farroupilha, no Rio
Grande do Sul, no período de março a agosto de 2011. A frequência das aulas foi de
uma vez por semana de cada prática lúdico-educativa, compondo a rotina das aulas
semanais do 3º Ano.
A segunda etapa consistiu em colher informações a partir dos instrumentos
selecionados, que foram:
a) A observação seletiva - realizada pela professora pesquisadora, ao mesmo tempo
em que dirigia as aulas.
b) Memoriais descritivos - registros das aulas, como tarefa de casa, pelos alunos,
das situações vivenciadas na psicomotricidade relacional.
c) Desenhos - das vivências no parquinho.
d) Construção e cópia de um texto coletivo- das experiências lúdico-motoras no
parquinho.
e) Material fotográfico - para documentar situações pontuais que mereciam análise
no decorrer do processo investigatório, além de facilitar a comprovação dos fatos. O
uso de imagem foi devidamente autorizado pelos pais das crianças, através de um
documento de livre consentimento.
Referencial Teórico
Foram utilizadas como referência para este estudo as duas linhas da
psicomotricidade: a funcional e a relacional. Cada função psicomotora e sua relação
com as aprendizagens serão tratadas a seguir, a fim de melhor especificar a sua
utilização ao longo da experiência com as crianças, bem como a linha relacional. A
organização da escrita sobre as funções psicomotoras segue uma linha teórica que
poderá ser utilizada pelos leitores para seus estudos aplicados
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Funções psicomotoras
É indiscutível a importância do esquema corporal para o aspecto gráfico da
alfabetização. Resulta das experiências que possuímos provenientes do corpo e das
sensações que experimentamos. O esquema corporal não é um conceito aprendido,
que se possa ensinar, pois não depende de treinamento. Ele se organiza pela
experimentação do corpo da criança. É a regulação da posição das diferentes partes
do corpo num momento determinado, regulação do equilíbrio e coordenação de
movimentos. É um resumo e uma síntese de sua experiência corporal.
Perturbações do esquema corporal
De acordo com Meur (1984), exceto os problemas motores e intelectuais, as
perturbações de esquema corporal são de origem afetiva, e manifestam
normalmente os comportamentos a seguir:
a) Dificuldade em Localizar as partes de seu corpo e posicionar seus membros;
b) Lentidão nos gestos e falta de domínio na ação, o gesto vem após a palavra;
c) Impossibilidade de utilizar os esquemas dinâmicos, que correspondem ao hábito
viso-motor que intervém também na leitura e na escrita;
d) Dificuldade na orientação espaço-temporal, confundindo coordenadas de espaço
(em cima, em baixo, vertical, horizontal), e sentido de direção, o que dificulta sua
organização nas atividades realizadas no papel ;
e) Pode interferir nas relações interpessoais e levar a um mau desenvolvimento da
linguagem.
A Coordenação pode ser estudada como coordenação global, e diz respeito às
atividades dos grandes músculos. Depende da capacidade de equilíbrio postural do
indivíduo. Quanto maior o equilíbrio, mais econômica será a atividade do sujeito e
mais coordenadas serão suas ações.
A criança quando chega à escola, possui uma história corporal anterior, ligada às
suas experiências anteriores, o que sinalizará facilidades ou dificuldades na
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coordenação global de seus movimentos. O professor deve observar a relação entre
postura e controle do corpo, e se a criança apresenta cansaço ou realização
deficiente do movimento, dentro de um clima de confiança e segurança. Os
movimentos coordenados ocorrem de forma harmoniosa, econômica e precisa.
E coordenação fina e óculo-manual, constitui um aspecto particular da coordenação
global e diz respeito à habilidade e destreza manual. É através do ato de preensão,
que uma criança vai descobrindo, pouco a pouco, os objetos de seu meio ambiente.
Defende Brandão (1984, p.5) “(...) ser a mão um instrumento de ação, a serviço da
inteligência”.
Só possuir uma coordenação fina não é suficiente, é necessário que haja também,
um controle ocular (a visão acompanhando os gestos da mão). Chamamos isto de
coordenação óculo-manual ou viso-motora. Esta coordenação é essencial para a
escrita e a leitura.
Um dos aspectos que a experimentação do corpo todo favorece é a independência
do braço em relação ao ombro, e a independência da mão e dos dedos, fatores
decisivos de precisão da coordenação viso motores. A escrita necessita desta
independência dos membros, para que ocorra de maneira econômica, sem cansaço
e sem pressão sobre os dedos (tônus muscular).
O ensino da escrita exige também certa coordenação do ato de sentar (postura
correta), a fim de que se sinta mais cômoda e mais relaxada. Controle da pressão
gráfica sobre o papel e o lápis (mais destreza e rapidez dos movimentos) e freio dos
movimentos para responder as exigências de precisão, na forma das letras e rapidez
de execução.
A Lateralidade por sua vez diz respeito à propensão que o ser humano possui de
utilizar, preferencialmente, mais um lado do corpo do que o outro em três níveis:
mão, olho e pé. Esse lado dominante apresenta maior força muscular, mais precisão
e mais rapidez. É ele que inicia o movimento, o outro apenas auxilia. A criança
precisa realizar ações naturais com os diferentes segmentos corporais, tais como,
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mão, olho e pé, para que depois se defina a dominância lateral. Para Le Boulch
(1988), a leitura é feita a partir de uma sucessão de movimentos oculares. Esta
motricidade ocular é bastante precoce, assim como a dominância manual, que
aparece muito cedo, nos primeiros reflexos de apreensão dos objetos.
Verifica-se maior pressão social quanto ao uso da mão direita pelos pais e
educadores; quanto ao uso do pé e do olho, eles não dispensam maior importância,
talvez por desconhecerem que a lateralidade também se manifesta nestes
segmentos corporais.
É sabido que contrapor-se à lateralidade tem influência sobre o controle psíquico do
indivíduo, desencadeando uma alteração em sua conduta. Este é um dos aspectos,
que demonstra a existência de uma correspondência muito estreita entre psiquismo
e corporalidade.
Perturbações da lateralização
a) Dificuldade em aprender a direção gráfica;
b) dificuldade em aprender os conceitos: direita e esquerda;
c) comprometimento na leitura e escrita;
d) postura inadequada;
e) dificuldade na coordenação fina;
f) dificuldades na discriminação visual;
g) perturbações afetivas;
h) aparecimento de sincinesias (utilização de uma parte do corpo acompanhando
outra sem nenhuma função). Exemplo: recortar e morder a língua;
i) dificuldades na estruturação espacial, em copiar do quadro e em organizar um
texto na folha, parágrafo, título...
A estruturação espacial ocupa um lugar de destaque na aprendizagem da leitura e
escrita. A assimilação dos conceitos espaciais direito-esquerda, no seu próprio
corpo, e a verbalização desse conhecimento, no entanto, pressupõe uma
lateralidade bem definida. A partir desse momento, a criança estará preparada para
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perceber e comparar os conceitos relacionados com outras posições, como à frente,
atrás, acima, abaixo.
A verbalização pelas crianças desses conceitos auxilia o domínio das noções de
orientação, além de dar lugar à fusão entre o movimento e o pensamento, como diz
Wallon: “movimento, pensamento e linguagem são uma unidade inseparável”. (in
NEGRINE, 1986, p. 59).
Oliveira (in LOBO; VEGA, 2010), sugere algumas razões que impedem ou retardam
a integração da orientação espacial na criança:
a) as crianças limitadas no seu desenvolvimento mental e psicomotor;
b) as crianças tolhidas em suas experiências corporais e espaciais, e que não têm
oportunidades de manipular os objetos ao seu redor;
c) as crianças que não desenvolveram a noção de esquema corporal, acarretando
prejuízo na função de interiorização;
d) as crianças que não conseguiram ainda estabelecer a dominância lateral nem a
noção de direita e esquerda, mediante a internalização de seu eixo corporal.
Sendo assim, apresentam dificuldades nas suas aprendizagens, tais como:
a) a criança é incapaz de associar termos abstratos, como direita e esquerda, ao
que sente em termos proprioceptivos. Insuficiência ou déficit da função simbólica;
b) as crianças apresentam dificuldades em assimilar os termos espaciais,
confundem-se quando se exige uma noção de lugar, de orientação, tanto no recreio,
quanto nas salas de aulas;
c) as crianças demonstram dificuldades em perceber as diversas posições e, por
essa razão, não discriminam a posição de letras e números: Ex: “m” e “u”, “on’ e
“ou”, “b” e “p” , “6” e “9” “p” e “q”, “15” e “51”...;
d) as crianças embora percebam o espaço que as circundam, não têm memória
espacial. Algumas “esquecem”, ou confundem os significados dos símbolos das
letras gráficas;
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e) as crianças por falta de organização espacial,comportam-se normalmente nas
situações a seguir: esbarra com freqüência em objetos, e também quando não
consegue calcular o espaço que ocupa seu corpo mais algum objeto que traz
consigo (bolsa, caixa...); indecisões quando tem que desviar de um obstáculo. Além
disso, não consegue ordenar e organizar seus objetos dentro de um armário ou de
uma gaveta.
f) as crianças com dificuldade em reversibilidade e transposição (a partir dos 8
anos), apresentarão defasagens na compreensão das igualdades, tais como:
8+5=3+10 3x7=21/ 7x3=21;
g) as crianças com dificuldade para compreender relações espaciais, o que envolve
raciocínio e um trabalho mental mais elaborado. Faz parte da lógica matemática.
Não percebe relações, como simetria, inversão, transposição, elementos
adicionados ou subtraídos. Não consegue realizar progressões das mais simples.
A estruturação temporal traz que seu conceito não é inato. Por essa razão, deve
ser construído e exige um esforço, uma capacidade mental ligada ao
desenvolvimento cognitivo da criança.
Segundo Le Boulch (1988) o ritmo traduz uma organização dos fenômenos
sucessivos, tanto para a motricidade quanto para a percepção dos sons emitidos no
curso de sua linguagem.
Neste sentido, no início a criança vivencia seu corpo tentando conseguir harmonia
em seus gestos e movimentos. Como esse corpo não existe isolado, esses
movimentos devem se ajustar ao tempo e ao espaço exterior disponíveis. Paralelo a
isso, assimilará os conceitos de velocidade e duração presentes na sua rotina diária.
Numa etapa seguinte toma consciência das relações do tempo, realizando-as nas
suas brincadeiras em relações de ordem, sucessão, duração e alternância entre
objetos e ações.
A seguir, passa a organizar e coordenar as relações temporais, a partir da
representação mental e, nesse momento, apresenta capacidade para trabalhar em
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nível simbólico. Essas aquisições favorecerão a realização das associações e
transposições necessárias aos ensinamentos escolares, principalmente em relação
à leitura, à escrita e à matemática.
O corpo se movimenta em um espaço e tempo correspondentes sem que haja
superposição de um sobre o outro. A relevância de estimular a estruturação
temporal está relacionada à aprendizagem da palavra falada, que tem como pré-
requisito a emissão de palavras ordenadas e sucessivas, obedecendo a certo ritmo
e dentro de um tempo determinado. E também a leitura, pois requer uma sucessão
de sons no tempo, domínio do ritmo, diferenciação de sons, reconhecimento da
frequência, duração dos sons das palavras, noções adquiridas na estruturação
temporal.
Dificuldades de estruturação temporal
Meur (1989), Santos (1987), Morais (1986) e Kephart (1986), citados por Oliveira
(1997), sugerem algumas dificuldades que podem advir de uma má orientação
temporal:
a) não perceber os intervalos de tempo, isto é, apresentar dificuldade para perceber
os espaços entre as palavras, normalmente escreve as palavras de maneira
ininterrupta, sem espaços entre elas;
b) apresentar confusão na ordenação e sucessão dos elementos de uma sílaba, não
se situa antes e depois, isto é, escrever inicialmente a segunda letra antes da
primeira (por ex: porblema); apresenta insegurança na direção esquerda- direita;
c) haver problema de falta de padrão de ritmo constante. A falta de ritmo motor
ocasiona uma falta de coordenação na realização dos movimentos (por ex: quando
corre, entre os braços e as pernas). Essa dificuldade perpassa o padrão de ritmo
visual; quando ao ler seus olhos ou não saem de um trecho da página, ou não se
movem nem para a direita, nem para a esquerda, comprometendo sobremaneira a
leitura;
d) ter dificuldade na organização do tempo; a criança não consegue prever o tempo
que necessita para realizar uma determinada atividade (muito rápida ou muito lenta);
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e) uma organização espaço-temporal inadequada pode provocar fracasso em
matemática, pois as crianças precisam ter noção de fileira e coluna para organizar
os elementos de um cálculo. Podem, também, não utilizar corretamente os termos
ontem, hoje e amanhã numa frase. Por ex: Sugerir às crianças que falem de sua
rotina de hoje, usando os tempos: passado, presente e futuro;
f) ter dificuldade na representação mental e sonora; as crianças “esquecem” dos
sons dos fonemas especialmente nos ditados;
g) dificuldade em compreender os fatos históricos, por não conseguir situar-se no
tempo passado.
Quando a criança ainda não desenvolveu as estruturas temporais, torna-se uma
“repetidora de palavras”. Isso evidencia que identifica as palavras, mas não
consegue integrá-las no tempo e, portanto, a criança não percebe o sentido,
compreende muito mal o conteúdo.
O equilíbrio é um fundamento que serve de pano de fundo para todas as funções
psicomotoras já tratadas até aqui. Sabe-se que o homem, no decorrer de seu
processo evolutivo, adquire, pela maturidade neurológica, o equilíbrio corporal
(através da posição bípede), ainda que com apoio das mãos. A fase anterior à
postura bípede é caracterizada pelo ato de engatinhar.
De acordo com Kisner e Colby (2005), o equilíbrio é a habilidade de alinhar os
segmentos do corpo contra a lei da gravidade, para manter ou mover o corpo dentro
da base de suporte disponível, mediante a interação dos sistemas sensorial e motor.
Faz parte de um conjunto de qualidades psicomotoras possíveis de serem
desenvolvidas, pela experiência vivida com o corpo.
Do ponto de vista pedagógico, o equilíbrio é visto, pela maioria dos autores, como a
valência física que pode ser vivida de duas maneiras:
a) de forma estática (sem movimento), capacidade de manter determinada postura
sobre uma base (estátua);
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b) de forma dinâmica (com movimento), muito utilizado nas atividades físicas em
geral (andar sobre o cordão da calçada).
c) Além disso, apresenta-se a partir de três situações que merecem consideração
sobre o assunto:
d) equilíbrio do corpo - refere-se à capacidade que o indivíduo evidencia para manter
o equilíbrio corporal;
e) equilíbrio de objetos sobre determinada parte do corpo - diz respeito à
capacidade de o indivíduo equilibrar coisas sobre determinados segmentos
corporais;
f) equilíbrio do corpo sobre determinados objetos (móvel ou imóvel) - é capacidade
de controlar o corpo, evitando quedas, sobre objetos parados ou em movimento.
A criança, desde muito cedo, começa a experimentar sua capacidade de equilíbrio
ao caminhar, por exemplo, por cima das linhas traçadas no solo, por cima de
escadas deitadas sobre o solo, sobre objetos, no meio-fio das calçadas...
O estímulo psicológico em atividades motoras que requerem equilíbrio tem grande
valor pedagógico às aprendizagens, sejam elas psicomotoras ou somente
cognitivas.
Conhecemos até aqui o valor do desenvolvimento das funções psicomotoras no
processo de desenvolvimento dos alunos na idade escolar dos anos iniciais do
ensino fundamental, e sua relação com as aprendizagens escolares. Em seguida
trataremos de outra atividade utilizada pelas crianças, considerada natural nesta
etapa da vida, mas que é não inato, sendo assim, o ambiente onde a criança vive e
a escola devem fomentá-lo. Estamos tratando do jogo no sentido de brincar, como
atividade de grande valor para a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças.
O valor do jogo como alavanca das aprendizagens e do desenvolvimento das crianças
A criança utiliza-se da interação com seu corpo, com o mundo dos objetos e com os
outros, para desenvolver as capacidades cognitivas, afetivas e motoras. Na
epistemologia genética, a ação serve de combustível para o desenvolvimento das
estruturas da inteligência. Parte do pensamento sensório motor ao pré-operatório e
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deste ao operatório formal, não abandonando o estágio anterior, mas evoluindo
sempre. Para que ocorram estas transformações qualitativas do pensamento, as
crianças necessitam de experiências corporais de caráter lúdico, com a intenção de
desenvolver os aspectos psicomotores que dizem respeito às capacidades de
pensar, sentir e agir de forma precisa, harmoniosa e econômica, e o pensamento
simbólico, tão requisitado nas linguagens escrita e oral.
A alfabetização como processo permanente de construção, tem sido cada vez mais
defendida por aqueles que a estudam, e como tal, entendida como ativa, que não se
inicia em um determinado momento e não se limita a rituais exaustivos de leitura e
cálculo, mas que começa quando as crianças se expressam por gestos ou palavras
no seu dia-dia.
Seguindo este raciocínio o sujeito é construtor de seu conhecimento e como tal,
utiliza-se de inúmeras hipóteses na intenção de apropriar- se dos signos de uma
determinada cultura. Neste caminho ocorrem “erros” reconhecidos como “erros
construtivos”. Com relação à linguagem oral, defendem autores, como Piaget, e
Vigotsky que a criança fala uma determinada língua porque observa o que falam a
sua volta, estabelece relações, busca regularidades, faz generalizações. Por
exemplo: quando a criança responde “eu fazi” está indicando um erro construtivo,
que será logo substituído pelo verbo correto, através da observação dos falantes ao
seu redor, indicando que está em processo de construção desta linguagem oral.
De acordo com os estudos de Piaget e Vigotsky, por volta dos dois anos a criança
desenvolve a função semiótica. A criança vai se tornando capaz de distinguir
significante de significado. Logo função simbólica e construção da linguagem são
elementos interligados. Ler e escrever são ações mentais que não podem dispensar
a função simbólica. A riqueza ou pobreza das manifestações da função simbólica já
são observadas no jogo da criança, do nosso tempo, conforme defende Negrine
(2003) antes dos dois anos. A partir deste momento já podem iniciar os estímulos
para que isto ocorra, e ou se realizar intervenções pedagógicas pontuais, caso ainda
não apareçam no comportamento da criança. Uma vez que a presença do
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comportamento simbólico sinaliza o bom curso do desenvolvimento cognitivo das
crianças.
Para Vigotsky (1991), a criança numa situação de jogo é capaz de separar o
significado do objeto, e assim, ela vai acrescentar a uma definição funcional dos
conceitos ou objetos, atribuindo uma grande importância à criação de uma situação
imaginária. O esforço que uma criança faz para cumprir as regras no jogo sinaliza
seu autocontrole. Esse respeito às regras constitui fonte de prazer e sugere que a
criança não atua no jogo de forma puramente simbólica, pois ela também deseja e
realiza seus desejos. Os jogos necessitam de regras, sem elas, eles não têm graça
e não atraem a criança. Se por um lado, a criança sente-se livre enquanto joga, por
outro, esta liberdade é aparente, pois suas ações ficam subordinadas ao significado
das coisas. Jogando, a criança desenvolve o pensamento abstrato.
Outro aspecto de destaque em sua teoria sobre o jogo refere-se à pré-história da
linguagem escrita. Enfatiza Vigotsky (1991), que os gestos e os signos visuais
presentes no jogo e no desenho, como elementos importantes no processo da
escrita da criança. Afirma o autor que a representação simbólica no jogo (corporal e
oral) é uma forma de linguagem em estado prematuro – “uma forma que nos conduz
diretamente à linguagem escrita”. Ele destaca que o jogo não é uma característica
da infância, porque ela aprende a brincar, mas é um fator básico e indispensável
para o bom curso do seu desenvolvimento. É no decorrer do jogo que a ação se
subordina ao significado, portanto, tudo que interessa à criança é o jogo em si, pois
na vida real a ação domina o significado.
Conforme Vigotsky num espaço lúdico, onde a criança joga cria-se a zona de
desenvolvimento proximal, Isto é, as experiências vividas e os estímulos oferecidos
no ambiente lúdico, servem de ponte entre o que a criança é capaz de realizar
sozinha e o que ela ainda não é capaz de realizar só. Contém todas as tendências
do desenvolvimento sob forma condensada e como tal, é uma grande fonte de
desenvolvimento. Destaca também, que no momento do jogo, poucas situações
pertencem ao campo do imaginário. Na verdade, a criança reconstitui alguma
situação vivida, sendo o jogo, então, um processo de memória.
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Estudos de Ferreiro e Teberosky (1991) apontam que as crianças constroem
hipóteses a respeito da leitura e da escrita, assim como na linguagem oral, citada
anteriormente neste texto. Neste caso, buscam respostas para os sinais gráficos que
utilizam como comunicadores de seus pensamentos: formulam hipóteses, testam,
avançam e retrocedem como nas outras aprendizagens, e aproximam-se cada vez
mais da escrita convencional.
Relatando e interpretando os dados
A metodologia utilizada para estimular a escrita, a oralidade e o desenho nas
atividades lúdico-educativas foi embasada nas teorias que amparam a
psicomotricidade em seus momentos pedagógicos. A participação dos alunos do 3º
Ano através das experiências lúdico-educativas foi fundamental para o
desenvolvimento do estudo, com a consequente aplicação da linguagem oral, do
desenho e da escrita.
O desenvolvimento psicomotor foi promovido de forma não diretiva, a partir de duas
estratégias pedagógicas: a psicomotricidade relacional e as vivências no parquinho.
Estas ações contaram com o brincar espontâneo, como principal ferramenta de
trabalho do professor, com a intenção de promover nos alunos o emergir da
criatividade e do simbolismo, além dos aspectos afetivos e relacionais,
aprendizagens tão perseguidas no ato pedagógico.
Conhecer o valor do desenvolvimento das funções psicomotoras como base para a
construção do processo de alfabetização foi de fundamental importância para a
compreensão da aprendizagem da leitura e da escrita. Isso basicamente significa o
desenvolvimento das funções psicomotoras, que são: o esquema corporal, a
coordenação, a lateralidade, a estruturação espaço-temporal e o equilíbrio.
Na psicomotricidade relacional e no parquinho estes fundamentos foram
desenvolvidos de forma não diretiva, a partir das explorações lúdicas naturais das
crianças.
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A psicomotricidade relacional era realizada numa quadra coberta, mas abertas nas
laterais. Também aconteceu em outros espaços, como: numa lateral do pátio que
tinha o piso de cascalho, e na sala de aula, quando chovia. Os materiais utilizados
são os de educação física, mas nestas aulas os alunos lhes davam o significado
simbólico ou técnico que desejavam, como por exemplo, a bola pode ser a barriga
de uma mulher grávida (simbólico) ou uma bola para jogar vôlei (técnico). Além
desses materiais pode se utilizar tecidos, maquilagens e madeiras pequenas para
construções variadas como, casa, castelos... Devemos evitar a utilização de
brinquedos estruturados como carros, bonecas... com significados já pré-
determinados, uma vez que buscamos provocar o emergir do mundo simbólico e
da criatividade dos alunos. O espaço para a psicomotricidade não deve ser um fator
limitante da sua realização, haja vista que as escolas, em sua maioria, não possuem
locais específicos para esta prática.
Quanto ao parquinho sua estrutura é semelhante aos demais, com três balanços,
dois escorregadores, uma escada e uma rede de cordas para subir numa casinha; e
duas barras de ferro suspensas apoiadas em postes no chão. Além disso, os alunos
contaram com uma casa de cimento pequena com mobília de madeira, e um banco
em toda a extensão de uma parede lateral da escola, feito de cimento. Neste local
muitas vezes realizávamos o momento inicial da aula. O piso do parquinho era de
terra e também contava com algumas plantas e pequenas árvores.
A seguir descrevo as rotinas pedagógicas das práticas lúdicas educativas
apresentadas e observadas neste estudo.
A psicomotricidade relacional é composta por quatro momentos, os quais formam
sua rotina.
a) Ritual de entrada - combinávamos as normas de convivência e os momentos
diferentes da aula. Para dar início era feita sempre uma provocação lúdica, na forma
de uma brincadeira técnica ou simbólica, como por exemplo: quero ver quem
consegue saltar mais alto (técnica)? Ou, quem sabe imitar um sapo quando salta
(simbólica)?
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b) Momento principal - após o ritual inicial os alunos tinham liberdade de escolher o
jogo que quisessem brincar, sem sofrer julgamento de mérito, por parte dos colegas
e professora, desde que seguissem as normas de convivência acordadas
inicialmente. O final deste momento se dava a partir do comando: “a brincadeira
acabou”. Os alunos recolhiam o material utilizado, guardavam nos seus lugares, e
encaminhavam-se para o relaxamento, sempre dirigido pela professora.
c) Ritual de saída - nesta parte da aula, organizados em círculo, verbalizavam sobre
o que brincaram, falando e ouvindo os colegas com respeito.
d) Registro das vivências - Como tarefa de casa os alunos realizavam o memorial
descritivo, onde relatavam suas vivências nessa aula. Além disso, alguns alunos
manifestavam o desejo de também expressarem-se através dos desenhos. Esta
produção é bem aceita por oportunizá-los a utilizar outra forma de expressão, além
de servir de base para a construção da escrita.
O parquinho é um excelente recurso lúdico educativo da escola. Neste espaço as
aulas seguem o rito metodológico composto por quatro momentos:
a) Momento inicial - combinávamos as regras para utilizar os aparelhos e o espaço
do parquinho, que mudavam a cada semana, conforme a intenção do professor. Por
exemplo: os escorregadores quando estavam algumas aulas em desuso, pedia que
fossem explorados, já os balanços, por serem a preferência das últimas aulas, pedia
que em algumas não os utilizassem. A intenção pedagógica é provocar os alunos
para que sejam criativos e variem seu vocabulário psicomotor.
b) Momento Principal - a partir desse momento os alunos iniciavam suas
brincadeiras neste espaço. Além de utilizarem os aparelhos do parquinho
exploravam todo o ambiente como a casinha, bancos de cimento, o piso de
cascalho, as folhagens, árvores, folhas secas. Também o seu próprio corpo, como
objeto técnico e simbólico. E tudo isso se transformava a cada aula, ou seja,
possuindo um significado diferente, isso quando não, na mesma aula. Quando
encerrava o tempo deste momento o professor dava um sinal, normalmente com um
apito e os alunos reuniam-se num lugar combinado previamente para dar início a
próxima atividade.
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c) Momento final - Os alunos faziam um relaxamento, onde eram explorados
principalmente movimentos respiratórios, a fim de que relaxassem, retomando a
atenção e a postura corporal para a atividade a seguir.
d) Registro das vivências - já na sala de aula construíam com a ajuda da professora,
textos coletivos com diferentes gêneros textuais, e também histórias matemáticas,
tendo sempre como tema as brincadeiras por eles realizadas naquela aula. Esta
tarefa aconteceu na maioria das vezes no grande grupo, mas também ocorreu,
poucas vezes, em pequenos grupos. Além disso, como tarefa de casa, os alunos
realizavam o desenho das suas vivências. Na próxima aula apresentavam oralmente
aos seus colegas, além de copiarem o texto ou história matemática que haviam
construído coletivamente, e de colarem atrás do seu desenho.
Do ponto de vista da escrita que é o nosso principal foco de discussão, as pesquisas
indicam que as pessoas parecem refazer o caminho percorrido pela humanidade.
Inicialmente o homem “escrevia” a partir do desenho (pictogramas e ideogramas) do
próprio objeto, sem relação com o aspecto sonoro da palavra, por exemplo, para
escrever soldado desenhava-se a figura de um soldado. Depois os logogramas,
neste caso, a representação dos objetos constituíam a representação gráfica dos
segmentos sonoros da palavra, por exemplo: o desenho do sol e do dado para
escrever: soldado. A criança faz o processo parecido, pois inicialmente “cola” o
significante ao significado num primeiro momento da gênese. Para elas coisas
grandes devem ser escritas por palavras grandes... Diferenciar escrita de desenho e
do próprio objeto é um grande avanço de cada leitor no processo de apropriação do
código escrito e oral.
Outro grande salto nesta construção ocorre quando a criança descobre que a escrita
não se relaciona ao objeto, nem ao nome dele, mas sim a fala. Em seguida busca
saber como isto acontece e constrói a idéia de que para cada emissão de voz deve
colocar um “sinal gráfico” no papel. Conforme pesquisadores como Ferreiro, este
momento do processo de alfabetização denomina-se hipótese silábica. E quando a
criança descobre a relação entre fonema e grafema que ela se aproxima de grande
segredo da linguagem escrita.
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Antes disso, diz Vigotsky (1991) ”(...) a criança transforma traços indiferenciados
(sem significado aparente) e rabiscos simbolizadores (com algum significado para a
criança) por pequenos desenhos. Estes, logo em seguida transformam-se em
“signos””. (p.152). Defende o autor ser os desenhos, símbolos de primeira ordem e
representam diretamente as ações e ou objetos. A seguir, a criança evolui para o
simbolismo de segunda ordem, e compreendem a criação de signos, sinais escritos,
que representam os símbolos falados através das palavras. Essa descoberta levou a
humanidade ao método da escrita por letras e frases e às crianças a escrita
convencional, deslocando a atividade de desenhar coisas para a atividade de
desenhar a fala.
Algo semelhante acontece corporalmente através do jogo no sentido de brincar. A
criança até aproximadamente dois anos utiliza-se do simbolismo de primeira ordem,
ou seja, age de maneira real ao que se propõe fazer na sua brincadeira. Por
exemplo, ao se imaginar um cachorro pode morder seus companheiros de jogo de
verdade. Já no simbolismo de segunda ordem, ela faz de conta que morde com
gestos e expressões que simbolizam esta ação do cachorro. Essa transição deve
ser favorecida a partir da corporeidade, da exploração criativa do corpo, objetos,
espaço e na relação com os outros.
A escrita para Vigotsky, é um tipo de objeto substituto, assim como acontece no jogo
simbólico, onde um bastão de madeira pode ser um cavalo. O lúdico para o autor
favorece que a criança possa satisfazer desejos que na vida real não é possível,
para resolver essa tensão, a criança se envolve num mundo imaginário através do
jogo simbólico. Para jogar simbolicamente a criança opera com significantes e
significados e, põe em ação seu corpo inteiro. E como tal, ativa os processos
mentais superiores como a capacidade de pensar, memória, atenção e percepção.
Esta evolução mental adquirida pelos estímulos provocados na atividade lúdica
serve também como alavanca para o conhecimento lógico-matemático, a
representação do mundo, a linguagem a leitura e a escrita.
Ao brincar a criança representa através dos gestos a sua realidade. O ser humano
através da sua corporeidade é capaz de exprimir conscientemente conceitos
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abstratos, sentimentos, noções perceptivas racionais. Segundo Lapierre (1985,
p.25), “O gesto consciente se torna um significante que exprime um significado
afetivo ou racional. O gesto já é, em si, um símbolo sustentado por um valor
semântico”.
A leitura e a escrita vão penetrando nos espaços de educação e se tornam
naturalmente uma linguagem necessária no jogo das interlocuções e das interações
que estabelecem. Além da sua função social quando, por exemplo, as crianças as
utilizam na forma de cartões de aniversário para os colegas, escrita de uma receita,
recados, cartas...
Neste momento em que fizemos relações entre o valor do jogo simbólico nas
atividades motoras lúdicas e na psicogênese da língua escrita, cabe também
lembrar a contribuição da literatura infantil no emergir da imaginação através das
letras. Ao ler e ouvir histórias as crianças lêem as imagens através das relações que
estabelecem entre textos e as imagens propriamente ditas. Descobrem a leitura e
que se pode desenhar não só os seres, os objetos, mas também as palavras.
Segundo Vigotsky (1991), ”o gesto é o signo inicial que contém a futura escrita,
assim como a semente contém o futuro carvalho”. Observa-se aqui o valor que este
autor atribui ao movimento como nutriente indispensável para o desenvolvimento
integral das crianças.
A seguir, apresento algumas observações da evolução das aprendizagens em sala
de aula, a partir do desenvolvimento das funções psicomotoras. Para tal, o corpo foi
palco da evolução da lateralidade, estruturação espacial e estruturação temporal,
fundamentos que apresentam uma relação direta com as aprendizagens escolares
passíveis de observação. Os demais, como o esquema corporal, a coordenação e o
equilíbrio também evoluíram e serviram de base para sustentar o progresso desses
fundamentos.
Os alunos, quando tomaram consciência da sua lateralidade e a seguir da
estruturação espacial, passaram a organizar seu texto na folha, respeitar a direção
gráfica (esquerda para direita), perceber o lugar que deve ocupar o título, parágrafo,
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o tamanho e a força que devem atribuir às letras e números. Com relação ao espaço
que dispõem, além de discriminarem a posição das letras e números (ex: n/u- 9/6),
observou-se também uma melhor organização no espaço que ocupam. Isto foi
percebido na sala de aula, com os seus materiais, seu corpo, conseguindo
desviarem-se melhor dos obstáculos (móveis, objetos...) e do corpo dos colegas.
Neste caso específico, evitando, muitas vezes, problemas de relacionamentos na
sala de aula.
Para que o aluno avance no discernimento dos termos abstratos como direita e
esquerda ele necessita de um pensamento pré-operatório. Eles apropriaram-se
deste conhecimento a partir de experiências corporais que favoreceram perceber
seu corpo como referência no espaço, necessitando de habilidades do pensamento
pré-operatório para tratar desses termos abstratos (os conceitos de esquerda e
direita). O movimento lúdico foi quem auxiliou sobremaneira o avanço desse
pensamento. Ao atingir o reconhecimento do seu corpo como referência no espaço,
o aluno melhorou também a função simbólica, necessária para as aprendizagens
cognitivas. Isto se percebeu na sala de aula quando foram solicitados a construir um
texto, a interpretar textos de outros autores e a criar e resolver histórias
matemáticas.
Com relação ao desenvolvimento da estruturação temporal, os alunos
demonstraram seus avanços na leitura e escrita ao apresentar mais ritmo na leitura.
Isso acontecia quando eles evitavam persistir num determinado trecho ou palavra do
texto respeitando os espaços entre as palavras, o que demonstrou a aquisição de
um bom ritmo no padrão visual. Após o recreio, tem o momento da leitura diária, que
dura quinze minutos, em que os alunos podem ler o que desejam. Quando
encerrava o tempo da leitura, três alunos liam um trecho para os colegas. O mesmo
aconteceu na escrita das palavras, pois passaram a atender os intervalos de tempo
e corrigirem-se na sua escrita, para como costumam dizer, não escrever “junto” ou
“separado”, como nos exemplos: “obastãodepauqueaprofessoradeu”, ou “de pois”
como escreveram uns alunos nos seus memoriais após uma aula de
psicomotricidade. Cabe salientar que estas apropriações das noções de tempo e
espaço ocorrem a partir de um processo individual, e sofrem avanços e retrocessos,
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assim como todas as manifestações do desenvolvimento, de acordo com Vigotsky,
até que se estabeleçam.
Considerações finais
Esta experiência demonstrou que a satisfação dos alunos alcançada, a partir do
êxito na realização das atividades motoras propostas por eles mesmos ou com a
intervenção da professora, ultrapassou o desenvolvimento das funções
psicomotoras. Uma vez que seus benefícios foram levados para outras situações de
aprendizagens na sala de aula, como o desenho, a leitura e a escrita, para não se
falar de outras, uma vez que este texto buscou centrar sua atenção nestas
aprendizagens. Isso confirmou o valor da educação psicomotora como um pré-
requisito dessas aquisições, e o corpo como uma unidade indivisível, de onde
aspectos motores, cognitivos e afetivos apresentam-se sempre interligados.
Foi motivo de muita satisfação como professora pesquisadora ter oferecido esses
espaços lúdico-educativos aos alunos do 3º Ano. Além de observar os seus avanços
nas aprendizagens esperadas no currículo, também percebi que todos
demonstraram imenso prazer, companheirismo, criatividade e afetividade nos seus
comportamentos. Os alunos passaram a conhecer-se melhor e aceitarem-se como
são com facilidades e também dificuldades, que são diferentes uns dos outros, o que
favoreceu sobremaneira a ajuda e aceitação mútua.
Cada aula era motivo de festa e também um desafio, que poderia ser vivido só, caso
desejasse, ou com o auxílio dos outros. Existiu sempre um clima de permissividade
e confiança para as novas investidas de cada um e muito espaço para a criatividade,
sempre bem-vinda em todos os papéis simbólicos ou nas experiências dos gestos
técnicos que utilizavam para experimentarem seus corpos. Depois dessas vivências,
aprender nesses espaços ou na sala de aula convencional não tinha muita
diferença, pois o que mudava para os alunos era somente o lugar que ocupavam, já
que o desejo de aprender mantinha-se vivo neles.
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Acredito que isto se deve ao reconhecimento dos alunos como pessoas autônomas,
criativas e relacionais. Todos tiveram garantido espaço para ser ouvidos, para
experimentar, para observar e também avaliar suas derrotas, na certeza de que tudo
pode ser modificado, e que para isso depende deles. Acima de tudo, perceberam
que são capazes de alcançar as aprendizagens que desejam, de verdade! Sozinhos
ou com ajuda dos outros, aceitando corajosamente os diferentes desafios que a
escola e a vida lhes oferecerem.
Parafraseando Vigotsky pode-se dizer que as vivências realizadas pelos alunos em
psicomotricidade relacional e no parquinho, foram a terra fértil que abrigou e
ofereceu os nutrientes na forma de experiências lúdico motoras educativas. Estas,
em seguida, transformam-se em frutos e contribuem para a aprendizagem e o
desenvolvimento integral dos alunos, sendo o desenho, a leitura e a escrita, algumas
das competências adquiridas para a construção de futuras habilidades quando se
pretende educar para a vida.
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