EXISTÊNCIA E PROJETO: CONTRIBUIÇÕES DE HEIDEGGER E SARTRE
PARA A PSICOLOGIA COMPREENDER O SER-NO-MUNDO1
2 O EXISTENCIALISMO DE JEAN-PAUL SARTRE
“Os filósofos continuam a ‘pensar contra Sartre’ - e nós todos deveríamos fazer isso, pois pensar contra ele é pensar com ele” (MORRIS, 2009).
Em busca da compreensão da existência humana numa era industrial, chamada de modernidade,
produtora de valores e produzida por esses que, paradoxalmente, enaltecem o homem coisificando-o e
humanizam as coisas por conceberem a liberdade e a facticidade dicotomicamente, Sartre (1997) escreve
seu projeto sobre a existência objetivando chamar a atenção à responsabilidade de nossas escolhas que
afetam não somente nossa singularidade, mas a toda humanidade. Pontua este autor, a importância de
assumirmos os valores que escolhemos para fundamentar nosso projeto de ser, uma vez que para ser,
querendo ou não assumir, estamos engajados na construção da nossa história e da humanidade.
Muitas vezes não nos apropriamos responsavelmente sobre a maneira que elegemos e agimos no
mundo, quiçá por não considerarmos o contexto em que estamos inseridos, enriquecido por uma história
já construída, pelas coisas e, principalmente pelo outro. Situarmo-nos no tempo, nas relações com as
coisas e com os outros, e na materialidade concreta que configuram o cenário da nossa condição humana,
do nosso espaço vital, requer a constante atitude reflexiva crítica que nos coloca responsavelmente como
produto e produtores desse contexto. Eis aí o fundamento humanista e ético da filosofia sartriana.
Buscamos nesta parte desta produção explanar sobre o tratado filosófico de Sartre sobre a
existência, sem a pretensão de considerar nossas colocações um todo fechado que consegue desvelar toda
a riqueza que a obra O Ser e o Nada: tratado ensaio de ontologia fenomenológica, publicada
originalmente no ano de 1943, oferece. Através desta obra, Sartre refuta o psicologismo da época que, ou
nos coloca impotentes frente às forças psíquicas ou ao determinismo social. Parte da concepção
ontológica de uma consciência transcendente, pura exterioridade, que emerge da liberdade do homem
para eleger o mundo2, sem desconsiderar a facticidade deste mundo que habitamos, e a maneira como o
homem irá lidar com as contradições - liberdade e facticidade, consciência e mundo - é que denunciará
sua situação existencial, sua condição humana.
Temos consciência que Sartre não coloca o ponto final de suas reflexões no que nos mostra em O
Ser e o Nada. Após se tornar prisioneiro de guerra, na II Guerra Mundial, em cativeiro, Sartre encontra-se
1 FREITAS, S.M.F. O existencialismo de Jean-Paul Sartre. In: FREITAS, S.M.P; SILVA, L.C.. Existência e projeto: contribuições de Heidegger e Sartre para a psicologia compreender o ser-no-mundo. Relatório Final de Pesquisa Docente [não publicado]. Departamento de Psicologia, Universidade Estadual de Maringá, 2012. 2 Para Sartre “o mundo é o ser-em-si em coordenada com a Consciência. Este ser-em-si é constitucional no conceito de fenômeno de Sartre, ele aparece como o ser do fenômeno que sempre é indicativo de si mesmo” (ABDO, 2011, p. 2).
2
com o materialismo histórico de Karl Marx, amplia o seu pensamento ontológico-fenomenológico-
existencial, incorporando em suas reflexões o homem concreto que age e transforma o mundo. Mesmo
convertendo-se ao marxismo, Sartre recusa a ortodoxia do determinismo econômico e social sobre a
existência, oriunda do marxismo soviético. Inclui o indivíduo na gênese do coletivo, também implicado
com o processo de transformação da história. O homem concreto marxista é compreendido por Sartre
(2002) não a partir das categorias universais, mas da relação dialética entre o indivíduo e o coletivo, o
singular e o universal, com isso, Sartre produz uma nova dialética, como coloca Münster (2006, p. 175)
“uma dialética renovada e vivente”.
Estas reflexões são expostas em sua obra Crítica da Razão Dialética (Tomo I)3, escrita
originalmente em 1960, quando Sartre (2002), já transcendido o solipsismo da subjetividade husserliana,
e do cogito cartesiano, e sem abandonar alguns conceitos do existencialismo, converge seu tratado da
existência para o materialismo histórico, engajando a dimensão existencial e subjetiva no processo de
transformação econômico, político e social (MÜNSTER, 2006).
Destarte, mesmo sem nos debruçarmos nesta pesquisa neste segundo momento sartriano4, não
deixaremos de fazer algumas alusões, quando necessário, a sua compreensão sobre a relação dialética
entre indivíduo e coletivo.
2.1 A ONTOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL: O PRIMEIRO MOMENTO
SARTRIANO
Sartre (1997) inicia seu projeto filosófico sobre a existência, baseando-se na consciência
intencional husserliana e no Ser ontológico heideggeriano. No entanto, Sartre (1997, 2002) não projetou
um futuro para a sua filosofia da existência através de uma síntese passiva dessas teorias. O Eu
transcendental husserliano (1988) como aquele que visa o mundo, não fez sentido para Sartre. Se para
Husserl a consciência é translúcida, o Eu não pode ser seu habitante, a consciência nada contém em si
mesma exceto o seu próprio vazio.
Estando para Sartre a consciência intencional “desprovida de conteúdos formais e materiais”
(CAHET, 2008, p. 04), o Eu (ou Ego) não pode ser transcendental, o que ratificaria a compreensão de
algumas teorias psicológicas tradicionais. Diante desta compreensão, para Sartre, o Eu é transcendido,
está no mundo, como qualquer coisa que é visada pela consciência, e não na consciência como sugeriu
Husserl, como já dissemos.
No tocante ao Ser ontológico heideggeriano, para Sartre (1997) este Ser deve ser compreendido a
partir da relação dialética que o homem estabelece com o mundo, ou seja, o Ser é a síntese entre
3 O Tomo II, Crítica da Razão Dialética: a inteligibilidade da história foi escrito em 1958, mas publicado somente em 1985, após sua morte. 4 Consideramos mais propício dedicarmos uma pesquisa específica para tratarmos sobre este momento social de Sartre, haja vista a dimensão da riqueza de suas reflexões.
3
subjetividade (consciência) e objetividade (mundo). A partir deste entendimento, Sartre (1994, 1997,
2002) coloca o Ser no mundo, evidenciado pela relação dialética entre consciência e mundo.
A partir de sua obra clássica O Ser e o Nada, intentaremos a seguir esclarecer estas regiões
ontológicas distintas, porém implicadas relacionalmente.
2.1.1 O Ser e o Não-Ser e suas relações
Nesta obra acima referida, Sartre (1997) inicia a explicação da busca do Ser mencionando que os
fenômenos são aparências e que não escondem um Ser por detrás do que aparenta, do que aparece à
consciência, haja vista que o Ser do fenômeno se desvelará neste aparecer. Não há então, dicotomia entre
essência e aparência.
Com esta afirmação, o autor quer dizer que potência e ato não são distintos. Em todos os seus atos
o homem se revela como é. A costumeira colocação, por exemplo, de que “uma pessoa agiu de maneira
desumana, mas que no fundo ele é uma boa pessoa” é uma inverdade para Sartre. Ratifica este autor seu
pensamento, ao colocar que: “A aparência não esconde a essência, a revela: ela é a essência. [...] Assim, o
ser fenomênico se manifesta, manifesta tanto sua essência quanto sua aparência e não passa de série bem
interligada dessas manifestações” (1997, p. 16, 17), uma série infinita de manifestações que condiciona o
ser humano a uma totalização-em-curso.
Se tudo está em ato, e os atos requerem a relação consciência-mundo, para Sartre (1997) há a
possibilidade de ocorrer o Fenômeno de Ser como uma condição ontológica, que já indica por si a
evidenciação do Ser do Fenômeno, mesmo sendo instâncias distintas. No entanto, nem o Fenômeno de
Ser tão pouco o Ser do Fenômeno podem se absolutizar finitamente. Ambos são transcendidos pelas
infinitas possibilidades de ações e pelas infinitas maneiras como podem ser desvelados. Enfim, a relação
consciência-mundo é condição para o Fenômeno de Ser, cujo Ser do Fenômeno é objetivado ao ser
colocado em evidência.
A partir deste entendimento, Sartre (1997) supera o dualismo essência e aparência pelo infinito no
finito, pela relação dialética entre Ser e não-Ser. Se o homem num determinado momento age de
determinada maneira, esta será uma entre todas as outras possibilidades de manifestação não presentes
neste ato. Ao mesmo tempo em que a maneira como um outro qualquer capta tal aparição, será uma das
infinitas possibilidades de compreensão do fenômeno. Mas ao ser definido, neste ato reduzido, o
fenômeno encontra sua finitude, reafirmando que não se resume a essa possibilidade somente.
Com isso, tanto o Fenômeno de Ser quanto o Ser do Fenômeno se relativizam por conter em si ao
mesmo tempo o absoluto, o finito (a maneira específica de aparecer em um determinado momento por
uma determinada pessoa e a maneira como foi captado na mesma situação) e o infinito (todas as demais
possibilidades de manifestações e definições sejam pela mesma pessoa ao longo de sua história e no
mesmo momento por diversas outras). Podemos então entender, a partir de Sartre (1997), que o Ser do
fenômeno tanto está fora da substância concreta, da natureza que compõe uma coisa, um Em-si, quanto o
4
fenômeno também não pode conter em si o seu Ser. O fenômeno assim o é compreendido porque na
relação entre o homem e o mundo, este último está fora do homem pronto a ser desvelado. O Ser do
fenômeno não possui características naturais, não surge por uma condição natural, não é essência
embutida no fenômeno, como explicita Sartre (1997, p. 19-20):
O existente é fenômeno [...]. Designa-se a si mesmo, e não seu ser. O ser é simplesmente a condição de todo desvelar, é ser-para-desvelar e não ser desvelado. [...] O fenômeno de ser é ontológico (e) exige a transfenomenalidade do ser.
Logo, o homem ontologicamente não tem um Ser absoluto que o defina, ele é infinitas
possibilidades de Ser para desvelar, apresentando a dimensão de Ser transfenomenal, bem como o mundo
para o homem não é fechado em si. Mesmo que cada objeto no mundo seja um ser-Em-si, ou seja, é em si
mesmo, a consciência não tem um Ser dentro de si.
Como falamos, este Ser-para-desvelar é oportunizado pela relação dialética homem-homem,
homem-mundo, subjetivo-objetivo, e a condição fundamental deste fenômeno é a consciência e não o
conhecimento enquanto Em-si. Sartre (1997) faz uma distinção entre consciência e conhecimento,
distinção esta sobre a qual nos debruçaremos mais adiante.
Apoiando-se no princípio de intencionalidade de Husserl, a consciência será sempre para e de
alguma coisa, sempre posicionará um objeto transcendente, assim toda consciência traduz-se em atos
(pensamento, volição, imaginação, percepção, etc.) direcionados a tudo que não seja ela, já que nada é.
A consciência é posicional do mundo, esgotando-se fora dela, no próprio mundo. Todas as nossas
intenções dirigem-se ao exterior e são absorvidas nos objetos intencionados por cada um de nós. Tal
condição ontológica faz da consciência um Ser cognoscente do seu objeto, por isso Sartre identifica um
cogito pré-reflexivo que antecede ao cogito reflexivo de Descartes (Penso), que torna possível a
consciência transcender da posição de refletida à reflexiva, ou seja, uma consciência não posicional de si
(irreflexiva) à posicional de si (reflexiva, ser-Para-si5).
A condição de ser consciência (de)6 si (ser-Para-si) dá à consciência a condição de poder afirmar
sobre a maneira que o fenômeno se apresenta para ela própria, mas para tanto, precisa ser “consciência de
si como sendo este conhecimento” (SARTRE, 1997, p. 23), caso contrário, seria uma consciência que se
auto ignora, o que para Sartre seria um absurdo. Sabendo que sabe, este conhecimento é intencionado pela
própria consciência, e para ser visado, precisa ser posicionado no mundo enquanto objeto intencionado.
Uma vez que a consciência é um nada, tal conhecimento não pode ser de natureza consciente, ele
é objeto visado através do ato reflexivo que nos permite julgar a consciência refletida, logo, a consciência
se transcende. Se julgamos um conhecimento sem ter consciência reflexiva de que é objeto visado por
nós, é porque identificamo-nos com a consciência da qual somos consciência, não há uma relação de
exterioridade a consciência que visa e a visada, ou seja, erroneamente acreditamos que consciência e 5 O Para-si, para Sartre, é o fundamento ontológico da consciência (MORAIS, 2011, p. 71). 6 Sartre (1997) prefere utilizar o de entre parênteses por uma questão gramatical, haja vista que Ser consciência de si “[...] suscita ainda uma idéia de conhecimento” (p. 25).
5
conhecimento são a mesma coisa. No entanto, o segundo é objeto visado pela consciência, caso contrário
seria como se o mundo viesse à nossa consciência, que por sua vez, esta teria um caráter passivo, e não ao
contrário, como Sartre compreende.
Esta consciência (de) si não deve ser considerada uma nova consciência, mas o único modo de existência possível para uma consciência de alguma coisa. [...] O ser da intenção só pode ser consciência, do contrário a intenção seria coisa na consciência. [...] Toda existência consciente existe como consciência de existir [grifos do autor] (SARTRE, 1997, p. 25).
Para este autor, se definirmos algo pela consciência que se tem desse, cairemos em um idealismo.
Sartre exemplifica com o prazer: este não existe antes da consciência de prazer, não é uma representação,
é um acontecimento concreto. “O prazer é o ser da consciência (de) si e a consciência (de) si é a lei de ser
do prazer” (SARTRE, p. 26). Não existe lei da consciência. Para ser consciente de algo, há a necessidade
de se ter consciência de ser consciente, daí a necessidade do cogito pré-reflexivo como condição para a
consciência reflexiva. Por isso que todo conhecimento é consciência, mas nem toda consciência é
conhecimento. E para a condição de ser consciente e da consciência de ser, há a necessidade da
interdependência homem-mundo.
Se por um lado a consciência é um nada, como falamos, tudo que está posto no mundo pode ser
captado, e é ao captar algo que a consciência surge, a consciência do captado. É esta condição que
possibilita designá-la enquanto consciência, pois sempre dirigindo a algo será consciência de alguma
coisa. Por outro lado o captado pela consciência, inclusive seu próprio Ser, ou seja, seu vazio, não são em
si absorvidos pelos conhecimentos que se têm deles, tão pouco captamos suas substâncias concretas.
Não sendo o Ser o fundamento do que captamos, mas sim o que desvelamos, a sustentação do Ser
enquanto fundamento só se dará a partir de uma existência que supere a passividade do Ser e escolha
assim transformá-lo. Em nossa existência, para Sartre (1997) nosso fundamento é o nada, mas podemos
escolher fundamentá-la a partir de qualquer outro Ser, como em Deus, por exemplo, mas se concebemos o
real fundamento de nossa existência passivamente, “tudo desaba no nada” (p. 30), pois sendo a
consciência pura espontaneidade não pode agir sobre nada, somente sobre algo, logo no mundo.
Contudo, paradoxalmente, a evidenciação do Ser do fenômeno é oportunizada pela negatividade
da consciência, haja vista que, ratificando, o Ser não reside no bojo nem da consciência nem da coisa, do
Em-si. Se a consciência surge ao surgir o Ser e, sendo a consciência transcendental puro não-Ser, a
consciência só pode nascer:
tendo por objeto um ser que ela não é. [...] um ser não-consciente e transfenomenal. [...] A consciência é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo. [...] O ser que a consciência implica é o ser [...] do mundo em geral (SARTRE, 1997, p. 34, 35).
6
Se a consciência é pura negatividade, o que não é consciência é coisa, positividade, inclusive o
Ser que ela implica. A abertura ao mundo que a faz ser “revelação-revelada dos existentes” (SARTRE,
1997, p. 35), possibilita a criação das dimensões da existência: “o ser-Em-si (mundo dos objetos); o ser-
Para-si (realidade humana) e o ser-Para-o-outro (que diz respeito às relações sociais)” (SANTANA, 2004,
p. 4).
Contudo, se há também consciência do Ser, em contraste há também a do não-Ser, pois só assim
que os Seres destas dimensões podem ser interrogados sobre seu Ser ou maneira de Ser, havendo a
possibilidade que se revelem como nada. Toda interrogação traz em seu interior a positividade e a
negatividade: Ser ou não-Ser sempre será uma questão possível, que para Sartre (1997) devem ser
considerados como “componentes complementares do real, [...] duas noções rigorosamente
contemporâneas, de tal modo unidas na produção dos existentes que seria inútil considerá-las
isoladamente” (p. 53).
A ambiguidade da consciência leva Sartre a questionar o determinismo causal do Ser. A
consciência por nada Ser insere o nada no mundo; no entanto, não é por nada Ser que será determinada ao
ato interrogativo. Toda interrogação é uma ação sobre o mundo que permite (des)cobri-lo de sua
positividade, mas a consciência não interroga por que se desgarra naturalmente do Ser, se assim o fosse o
assimilaria, ao longo de um processo temporal, a “uma sequencia causal indeterminada continuada”
(SARTRE, 1997, p.69) que a transformaria em plenitude de Ser, como propõe, segundo o autor, o
determinismo psicológico ao buscar se separar do determinismo universal e constituir-se como série a
parte. Se o Ser não reside na consciência, ela não pode se desprender de algo que não faz parte de sua
natureza.
Voltamos a ratificar que, se por um lado temos a consciência (que não é) e do outro o mundo (que
é), será pela relação dialética entre homem e mundo que a evidenciação do Ser do fenômeno será
oportunizada e, se o Ser não está nem no interior da consciência nem no interior das coisas do mundo,
está no mundo. Assim, o Ser surge pela condição ambígua da consciência ser e de não ser. Ao
intencionarmos as coisas que estão no mundo, as captaremos atribuindo-lhes um Ser, uma vez que não
captamos sua concretude substancial, estas são nadificadas quando as transcendemos, passando a ser para
nós o que não são em si, mas como um em-si-Para-si, o que não as tornam finitas diante a infinitude de
possibilidades de ser-a-desvelar pela consciência. Por isso a máxima de Sartre (1997, p. 67): o “homem é
o ser pelo qual o nada vem ao mundo”.
2.1.2 A Liberdade, angústia, temporalidade e responsabilidade
O movimento de levar o nada ao mundo é que caracteriza a liberdade humana. Esta, sendo
condição ontológica da consciência, é uma liberdade de eleição do Ser do mundo. Assim:
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a liberdade humana precede a essência do homem e torna-a possível: a essência do ser humano acha-se suspenso na liberdade. Logo aquilo que chamamos liberdade não pode se diferenciar do ser da “realidade humana”. O homem não é primeiro para ser livre depois: não há diferença entre o ser do homem e ser “ser-livre” [grifos do autor] (SARTRE, 1997, p. 68).
O homem cria o seu Ser e a do mundo porque é livre para elege-lo. Sartre não coloca a questão da
liberdade como uma questão moral e ética, mas como uma condição universal do homem, uma condição
ontológica da consciência que é negação como Ser. No entanto, é na angústia que o homem toma
consciência de sua liberdade, pois
[...] a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesma em questão. [...] A angústia é angústia diante de mim mesmo. [...] é apreensão reflexiva de si (SARTRE, 1997, p. 72, 73).
Para falar em liberdade e angústia temos também que falar de temporalidade, pois a esta última às
primeiras estão relacionadas. Passado, presente e futuro não são instâncias lineares, as dimensões
temporais existem pela consciência. São separadas por um nada que lhes destituem a característica
sequencial determinista. Para SARTRE (1997, p. 158) “o único método possível para estudar a
temporalidade é abordá-la como uma totalidade que domina suas estruturas secundárias e lhes confere
significação”.
Expliquemos melhor: a consciência (Para-si) sendo nada é fuga de si e tem seu Ser fora de si,
adiante e atrás. Ela sendo o que não é e não sendo o que é, só podemos ser algo que não somos. Esta é
uma relação interna que contrasta o Ser e o não-Ser. Tudo que ocorre temporalmente transforma-se em
Em-si, facticidade, pois todo presente, de imediato, torna-se passado. Este passado não possui força, por
si, de determinação, mesmo quando acendido por uma consciência, não se configura mais como aquele
passado em si. Só no passado que podemos ser o que somos, uma vez que Ser é Em-si.
No presente, o passado é o que não sou mais, e transitar ao passado é modificação de Ser, uma
vez que é também pelo Para-si que o presente entra no mundo, colocando o passado à presença de si, mas
não como Em-si, sempre enquanto fuga rumo ao seu Ser. Não sendo o seu Ser passado que se torna
presente ao colocar à sua presença, a consciência, na incessante busca de Ser, transita ao futuro. Este “é a
falta que a arranca, enquanto falta, do Em-si da Presença. [...] O Futuro é o ser determinante que o Para-si
tem-de-ser para-além do ser” (SARTRE, 1997, p. 180). O futuro então é a presença (futura) da
consciência ao Ser e só fará sentido, segundo este mesmo autor, como um outro que serei. O ser-Em-si do
suposto passado que é presente, é arrastado pelo futuro, não mais como “sentido do Em-si co-presente ao
Para-si presente” (p. 181). O Futuro é então, o sentido do Para-si, haja vista que o Ser do Para-si está
para-além do Ser, está porvir.
Eis aí a angústia do existente quando tem consciência que deve ser um projeto de si mesmo rumo
ao Em-si, mas o futuro nunca se realiza, pois “todo Futuro do Para-si presente cai no Passado como
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futuro, juntamente com esse mesmo Para-si” (p. 182). A angústia frente ao futuro ocorre porque esse
último se mostra como a minha possibilidade de estar à presença de meu Ser transcendido. Tenho
consciência do meu Ser sem ainda sê-lo, enquanto devir. Reconheço a gratuidade de minha existência,
pois ela me aparece enquanto possibilidades de Ser.
Mas a angústia frente ao futuro, sendo consciência de liberdade, não advém por uma escolha
abstrata que tenho que fazer por ser no futuro, uma vez que este último é somente “a contínua
possibilização [...] dos Possíveis como sentido do Para-si presente” (SARTRE, 1997, p. 183), senão
recairíamos no idealismo filosófico. A angústia aparece porque a consciência surge em situação, quando
temos consciência singular de nós numa determinada situação que nos encontramos em que temos que
nos escolher. Com isso, vivencio a liberdade pela consciência da angústia, tornando a angústia o Ser da
liberdade.
Ser e consciência constituem então numa díade. Para Ser tenho que agir sobre o mundo, me
engajar com o Ser da minha escolha e responsabilizar-me pelas consequências dessa escolha. Escolhendo
dentro dos meus possíveis de maneira reflexiva, “capto-me como origem primeira de meu possível” (p.
186). E o meu próprio limite é a minha liberdade.
A liberdade é impregnada pelo valor enquanto totalidade faltada da consciência, o valor supremo,
o Ser absoluto de si, fundamento de si, da própria nadificação. Este valor não tem Ser, “Seu ser é ser
valor, quer dizer, não ser ser. [...] (e) é pela realidade humana que o valor aparece no mundo” (SARTRE,
1997, p. 144).
O valor enquanto o faltado da consciência não pode ser posicionado no mundo pela consciência
irreflexiva (consciência não tética (de) si), pois nesta condição original não é conhecimento. Ele é
desvelado quando transcendido enquanto faltado e projetado no mundo enquanto faltante, surgindo
enquanto Ser, o possível do Para-si, o Para-si que sou.
Sartre (1997) concebe o possível como “propriedade concreta de realidades já existentes” (p.
150), não o reduz a uma realidade subjetiva, as potencias. O possível é uma realidade humana, pois é:
opção sobre o ser e só pode vir ao mundo por um ser que é a sua própria possibilidade, isso exige que a realidade humana tenha necessidade de ser o seu ser sob a forma de opção sobre seu ser. Existe possibilidade quando, em vez de ser simplesmente o que sou, eu sou como Direito de ser o que sou (p. 151).
O direito de Ser somente aparece diante a consciência alheia que afirma ou contesta o Ser de
direito, o que faz com que a propriedade afirmada ou constatada pelo outro deixe de ser minha, caso
contrario, não seria um direito de Ser, mas um fato. O Em-si sendo o que é não possui possíveis, pois este
último é também um novo aspecto de nadificação do Em-si em Para-si [...]. O Para-si não é si mesmo,
não pode ser presença a si, e ao tentar sê-lo deparar-se-á com a presença que lhe falta. É a falta da
presença a si que o constitui. O faltado do Para-si é o possível que se possibiliza diante as escolhas que
fazemos que nos fazem Ser.
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Segundo Sartre (1997), os possíveis infestados no mundo pela consciência emprestam-lhe o
sentido e sua unidade, e a consciência que terei de cada um desses possíveis diz respeito aos meus
possíveis. Portanto, o Eu (ou Ego) é um também um Em-si, que está no mundo, e como tal é uma
possibilidade a ser escolhida. Como já dissemos, o Eu não é fundamento da consciência, esta nunca se
esgotará do Eu, haja vista que ele é o signo da personalidade que se faz pessoal não pela consciência ter a
posse de um Eu, mas por ela se identificar com ele, tornando-o reflexo-refletido.
Voltamos a lembrar que toda consciência, seja reflexiva ou não, é posicional do Em-si, sempre
será consciência de alguma coisa. A consciência irreflexiva simplesmente posiciona as coisas no mundo
enquanto transcendentes à consciência, através da percepção do mundo natural ou pela imaginação
(mundo mágico), estabelecendo uma relação imediata com o objeto, o revela sem precisar da reflexão, e
nada aprendemos com esta consciência pré-reflexiva. Ela é impessoal, não posicional de si, mas é
imprescindível que exista para promover a consciência reflexiva crítica, ou seja, aquela que revela, que
posiciona no mundo o meu Ser consciente do que posiciono, quando posiciona o Eu (MORRIS, 2009).
Quanto a consciência reflexiva, Sartre (1997) define duas formas de reflexão do fenômeno: a
reflexão espontânea ou cúmplice e a reflexão crítica. Na primeira tenho consciência que percebo ou
imagino algo (mundo racional). Como esclarece Schneider (2002, p. 78):
[...] sou consciência que percebo a teia, que penso na sujeira, que imagino outra casa. Não significa aqui que a consciência conheça a si mesma. Essa situação não é da ordem do conhecimento. Por isso, o “de” está entre parênteses. Significa, sim, a transparência da consciência para si mesma. Se chega alguém e me pergunta o que estou fazendo, digo logo, sem pensar, “estou vendo uma teia de aranha no teto” [grifos da autora].
Apesar de ter consciência (de) si, o posicionamento do Eu no mundo aparece como uma
consciência reflexiva impura. Para Morris (2009, p. 97-98):
a maior parte das reflexões é impura. As reflexões impuras contêm mais do que uma semelhança de passagem com o que chamamos na vida ordinária de introspecção. Elas “procuram determinar o ente que sou”. Minha reflexão é impura quando pergunto a mim mesmo acerca de quais “defeitos, virtudes, gostos, talentos, tendências, instintos, etc”. Eu posso – eu sou ciumento, diligente, irascível, habilidoso com minhas mãos? – ou quando eu atribuo estados a mim mesmo – eu odeio Pedro, eu amo meu emprego, etc. Ela constitui “objetos psíquicos” dentro de mim, “interiorizados” e “objetivados”, os quais eu suponho engajar em relações quase-causais uns com os outros (eu gosto do meu trabalho porque sou diligente; eu odeio Pedro porque sou uma pessoa ciumenta [grifo da autora].
Morris também coloca que na reflexão impura, mesmo aparecendo o Eu, transcendemos a
consciência refletida com pretensões futuras, buscando justificá-las em qualquer outra coisa que não seja
a consciência de nossa escolha, ao contrário da consciência reflexiva crítica ou pura, em que o dado é
tomado sem pretensões para o futuro, sem justificativas a não ser que foi o que escolhi. Assim, somente
através da consciência reflexiva crítica ou pura é que podemos ter consciência do Eu que escolhemos.
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Sartre (1997), como falamos no início, questiona o cogito reflexivo “Penso” de Descarte,
afirmando que para pensarmos em algo precisa existir o pensado e este está no mundo e não dentro de
nós. Diante tal afirmativa Sartre recusa a compreensão desta ação reflexiva da consciência como um
autoconhecimento, como explica Morais (2011, p. 73):
uma consciência que fosse cognoscente de si enquanto objeto, necessitaria para se fundamentar enquanto autoconhecimento de um outro cognoscente para o qual fosse o conhecido. Cairíamos assim em uma espécie de redução ao infinito que não daria conta de explicar ontologicamente o conhecimento, pois este necessitaria ser fundamentado novamente de modo epistemológico [grifos do autor].
Segundo Schneider (2002), Sartre pontua que ontologicamente a consciência é uma região
constitutiva da realidade, nesta questão ela é compreendida como uma região separada do Em-si, do
mundo, mas epistemologicamente constrói o conhecimento na relação que estabelece com o mundo. “A
consciência é totalmente irredutível ao conhecimento que dela se tenha, é, portanto, transfenomenal, ela
escapa ao conhecimento e o fundamenta. A consciência acaba por ser aquilo para a qual todas as coisas
aparecem, é a condição de todo conhecer” (p. 79), inclusive o Eu.
Com isso, a consciência reflexiva, ao posicionar o Eu no mundo, o faz para si, como fora de si.
Não havendo habitante algum dentro dela, a consciência quando volta-se para si, depara-se com seu nada,
através da angústia enquanto Ser, logo com sua liberdade para se lançar através de seus possíveis, numa
existência sem justificativas e que não tem em si a razão de Ser, ou seja, uma existência gratuita.
Pela consciência reflexiva crítica ou pura, o valor enquanto o faltado passa a ser compreendido
não como entidade, coisas Em-si, mas como construído na relação dialética entre liberdade e realidade.
Capto a angústia como Ser de minha liberdade (SCHNEIDER, 2002), e diante tal responsabilidade pela
minha existência, a angústia nasce como infortúnio e busco fugir da mesma na conduta de Má-fé
(MORAIS, 2011).
2.1.3 A Má-fé
Anteriormente falamos da consciência reflexiva impura, aquela que mesmo posicionando o Eu, o
faz visando um futuro que o justifique além e apesar da própria liberdade de escolha. A consciência como
insere a negatividade no mundo, também pode negar sua negatividade, e assim negar-se enquanto um ser
de possíveis, como transcendência futura. Alguns “por trazerem o Não na própria subjetividade,
igualmente se constituem, enquanto pessoa como negação perpétua” (SARTRE, 1997, p. 92). A esta
atitude Sartre denomina de Má-fé e “é a ameaça da má-fé que carrega aquilo que Sartre chama de
(consciência reflexiva) ‘impuras’” (MORRIS, 2009, p. 95).
A Má-fé é uma atitude pela qual ignoro minha liberdade, minha condição de não ser o que sou e
de ser o que não sou. É uma atitude de fuga da angústia enquanto o Ser da liberdade. Ela se dá diferente
da mentira. A mentira recai sobre o transcendente, o que está no mundo e não “na intra-estrutura da
11
consciência presente” (SARTRE, 1997, p. 93). Apesar de ser uma atitude negativa, é conduta
transcendente. Mentimos ao negar para o outro, em palavras, a verdade que não negamos para nós
mesmos. Já na Má-fé escondo a verdade de mim mesmo, sou ao mesmo tempo o enganador e o enganado.
Enquanto a mentira recai num transcendente, a Má-fé é um projeto de infectar a própria consciência, pois
lança a mão da dupla propriedade do ser humano: a facticidade e a transcendência, como coloca Morris
(2009, p. 102): “a condição para a possibilidade da má-fé é que a realidade humana é o que não é e não é
o que é. [...] é a consciência de nossa liberdade ambígua” [grifos da autora].
Facticidade e transcendência são dois conceitos contraditórios, mas na má-fé conserva-se a
identidade de ambos, ou seja mantém suas diferenças sem buscar superá-los em uma síntese. A
materialidade, o corpo, a temporalidade e o outro compõem a unidade da realidade humana, mas também
contêm em si dualidades, conforme coloca Morris (2009): (1) no tocante a materialidade, quando
nascemos somos lançado em um mundo já construído, fazendo parte de uma família, de uma sociedade
com valores já construídos, com uma cultura, em um país com um tipo específico de economia, política,
ou seja, uma história, mas que pode ser transcendida; (2) nosso corpo enquanto objeto inerte e passivo
encontra-se num mundo onde também têm outros corpos inertes e objetos na mesma situação (ser-no-
meio-do-mundo), mas este mundo está a nossa presença (ser-no-mundo), não somos somente inertes e
podemos nos projetar para “[...] além do mundo, em direção às nossas possibilidade” (p. 105); (3) mesmo
havendo histórias construídas, o que nos remete ao passado, temos um futuro a construir e; (4) como o
outro que me vê (ser-para-o-outro) e como que me vejo (ser-para-si).
Nos quatro contextos acima temos a realidade humana enquanto facticidade (é o que é) e por
outro a possibilidade de transcende-la (ela podendo ser o que não é), os quais estão intimamente
relacionados entre si. Na má-fé o indivíduo motiva-se a negar a ambiguidade da realidade humana, pela
angústia de Ser livre. Diferente do medo que surge pela “apreensão de mim como um objeto destrutível
no meio de objetos, [...] a angústia manifesta-se na vertigem, a qual é o reconhecimento de que ‘nada me
impede de precipitar-me no abismo’. Isto é ‘a angústia em face do futuro’” (MORRIS, 2009, p. 108), ou
seja, cabe a nós decidirmos sobre nosso futuro diante e nos responsabilizarmos pela saída que daremos, e
nesta condição encontramo-nos sozinhos (PÓVOAS, 2005).
Diante a confrontação com essas ambiguidades da realidade humana podemos ignorar um dos
lados que constrói o paradoxo. Posso ignorar o meu passado, pensando somente no futuro, ignoro a mim
diante do outro, desconsidero a materialidade que me circunda, enfim posso ter consciência de um Eu,
mas não tenho consciência de que este Eu o constituí por uma concepção reducionista e que justifica meu
Ser, ao invés de uma escolha que implique a facticidade e transcendência enquanto paradoxais.
Para Sartre (1997) a má-fé não é uma mentira cínica nem evidência, ela é uma fé, a isso ratifica
Schneider (2002, p. 108):
12
A má-fé é, portanto, uma crença. Ela não é, assim, uma decisão reflexiva do sujeito (do tipo ‘quero me enganar’), mas uma experiência espontânea de nosso ser, na qual estamos inteiramente mergulhados. Enquanto a vivenciamos, estamos “grudados” a ela, sem distância para poder questioná-la. A má-fé não é, portanto, um estado de ser, mas sim um processo através do qual a consciência se afeta a si mesma de má-fé. Através dela o sujeito busca fugir do que não pode fugir, ou seja fugir do que é [grifos da autora].
O projeto da má-fé já é de má-fé, pois “[...] é uma decisão de má-fé sobre a natureza da fé”
(SARTRE, 1997, p. 116), espontaneamente fazemo-nos de má-fé, porque há, em sua origem, uma “fé que
queira estar mal convencida” (p. 116). Se somos o que não somos e não somos o que somos, refletir sobre
a fé é também ter de considerar a não-fé, assim a má-fé é a escolha por não considerar este paradoxo, pois
uma vez refletido, a fé fica vulnerável em ser transformada em não-fé, ou seja, em mera opinião
(MORRIS, 2009). Logo, o projeto da má-fé, como coloca esta mesma autora (p. 112-113):
[...] explora a natureza da fé: a má-fé “está conformada por antecipação a não ser satisfeita por essa evidência [...]”. A intenção em questão, portanto, não é exatamente a decisão de enganar a si mesmo, mas a intenção de colocar baixos os padrões de evidência, com um olho no fato de que a fé não admite em nenhum caso evidência persuasiva [...] [grifos da autora].
A má-fé é mantida enquanto não refletimos puramente sobre o projeto de não querer ter
consciência de que nossa crença é também não-crença. Costa (2012, p.47) esclarece bem esta questão:
Para bem se compreender o fenômeno da má-fé, é preciso se ter em mente o seu triplo e simultâneo eixo: a má-fé é a um só tempo mentira, crença e conduta. É mentira na medida em que vela a verdade da realidade humana, sua liberdade e seu caráter eminente de atividade e movimento, substituindo essa verdade por algum esquema a partir do qual o ser humano compreenda-se sob o signo da positividade. É crença porque essa mentira é sustentada pela consciência sob a forma de convicção que falsificam a realidade humana e, conseqüentemente, a compreensão correta do que seja uma crença. E a má-fé é também conduta porque não se trata de um erro epistemológico que se resolva pela via da correção do conhecimento, mas é mentira e crença vivida na conduta, o que faz com que sua correção exija uma revisão das próprias atitudes no plano da existência.
Tanto a boa-fé como a má-fé são vulneráveis a reflexão, mas para Sartre (1997), a boa-fé busca
examinar a evidência criticamente, engajando-se em uma reflexão pura que elimina os estados
cristalizados que justificam nossas ações. A este projeto de boa-fé Sartre denomina de autenticidade, mas
também assume ser um projeto difícil de atingir e sustentar, pois para tal, Sartre indica que é preciso
ocorrer uma descristalização dos estados, ou seja, desagrega-los de valores. Mas quanto a esta orientação
de Sartre, Morris (2009, p.117) a questiona, suspeitando que “uma recristalização em torno de um
significado diferente seria mais efetiva do que uma descristalização total” [grifo da autora].
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Até aqui, no tocante aos quatro contextos paradoxais formadores da unidade sintética da realidade
humana, demos um foco na temporalidade. A seguir, nos debruçaremos nos três demais, tão importantes
quanto a questão temporal para a compreensão da nossa existência.
2.2 O CORPO
Observamos na tradição histórica das produções filosófica e científica uma tendência a
dicotomizar corpo e consciência, objetivo e subjetivo, o que ainda dificulta na atualidade uma
compreensão que supera esta dicotomia (MORRIS, 2009).
Esta autora pontua que, apesar de Sartre ter deixado um pouco fora de vista o capítulo sobre o
corpo, na obra aqui refletida (1997), ele deve ser considerado como o aspecto central da realidade
humana. Sobre isso comenta a autora (2009, p. 121) que:
[...] o tratamento de Sartre do corpo em O ser e o nada tendeu a ficar invisível para aqueles admiradores de Merleau-Ponty que consideram que ele descobriu o corpo vivido e para aqueles admiradores de Foucault que fracassam em ver as observações de Sartre sobre o corpo como o pano de fundo para o renomado “corpo dócil” de Foucault [grifos da autora].
Esta afirmativa é também ratificada por Santos (2011, p. 88):
Antes dos “corpos dóceis” de Foucault, e mesmo antes do papel decisivo que Merleau-Ponty conferiria ao “corpo próprio” na Fenomenologia da percepção, coube a Sartre o mérito de ter desenvolvido, em O ser e o nada […], uma teoria sistêmica acerca do estatuto da corporeidade que, em alguma medida, balizou as discussões subsequentes sobre o tema [grifos do autor].
A atenção que Morris (2009) chama para o corpo é porque ele não deve ser entendido como um
objeto anatômico/fisiológico, mas como um corpo com sentido, expressivo, logo um corpo vivido. Tanto
nosso corpo como o do outro, os experienciamos e podemos descrever as experiências que temos com
eles, mas o corpo enquanto consciência geralmente sugere ser o corpo do outro. É muita mais fácil capta-
lo do que o nosso, mas ao experiencia-lo ou descreve-lo, o corpo do outro não me aparece como o é para
o outro.
Existem partes de nosso corpo, como nosso cérebro, nossas glândulas, que nunca o veremos,
como exemplifica Sartre (1997), mas imaginamos que sejam iguais ao que já vimos de outros, seja em
foto, vídeo, ou mesmo ao vivo. Este mesmo autor pontua que importa saber a ordem de conhecimento que
damos ao nosso corpo. Se ele é tal qual é para mim como o vi de fora, estando no meio do mundo, coisa
entre coisas, como numa radiografia, numa fotografia, por exemplos, o capto como minha propriedade e
não enquanto meu ser. Para este autor “ou bem corpo é coisa entre coisas, ou bem é aquilo pelo qual as
coisas a mim se revelam. [...] não pode ser ambas ao mesmo tempo” (p. 386).
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Descobrir nosso corpo enquanto coisa, como objeto, é revelar o seu Ser, mas o ser-Para-outro.
Sartre (1997) alerta que para refletirmos sobre a natureza do corpo devemos fazê-lo à ordem do Ser,
enquanto ser-Para-si e enquanto ser-Para-outro, dois níveis distintos e incomunicáveis. Enquanto ser-
Para-si,
o corpo deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência: não poderia ser unido a um corpo. Similarmente, o ser-Para-outro é todo inteiro corpo; não há aqui “fenômenos psíquicos”: a serem unidos a um corpo; nada há detrás do corpo [grifos do autor] (p. 388).
Complementa Schneider (2002, p. 184) que:
Sartre demonstra que há duas ordens diferentes de conhecimento sobre o corpo, que são incompatíveis e que levam a concepções diversas: uma é partir da experiência daquilo que os médicos ou que os outros fazem do meu corpo. É o que nosso já conhecido VAN DEN BERG (1981) chamaria de “o corpo que tenho”. É o corpo tomado em abstrato, reflexivamente, fora de seu contexto, de sua vivência; um corpo composto por diversos órgãos, revestido por uma pele. Outra coisa é descrever a experiência do corpo para mim, corpo que vivencio todo o dia, que é meu instrumento no mundo. É o “corpo que sou” [grifos da autora].
Veremos a seguir as três dimensões ontológicas do corpo.
2.2.1 O corpo como ser-Para-si: a facticidade (Existo, vivencio meu corpo, mas não o
conheço)
Para Sartre (1997) o Ser é o Ser-aí, que está ali, lá, naquele lugar e o corpo é o aspecto central da
facticidade do Para-si. Não existe consciência sem corpo, mas o problema é que mesmo o corpo sendo o
centro do campo da percepção e da ação, ele é pouco ou não percebido quanto não-utilizável. Sendo a
percepção orientada, os objetos aparecem contra um fundo e em perspectiva particular, mostrando uma de
suas facetas. Os objetos também aparecem a nós em um campo de ação, organizados num complexo
instrumental. “Essas orientações, esse ordenamento, essa perspectividade refere-se ao centro do campo, e
aquele centro é meu corpo” (MORRIS, 2009, p. 126), mas nosso corpo sugere estar invisível enquanto
aquele que percebe e torna a instrumentalização possível.
Mas a incorporação de instrumentos, ferramentas no cotidiano, como a caneta, a chave, por
exemplos, podem passar a ser parte do corpo e com isso o corpo-Para-si. Quando escrevemos geralmente
não percebemos nossa mão que faz a caneta derramar a tinta sobe o papel e vamos mais além, pela caneta
e o papel serem extensões de nosso corpo, também ficam invisíveis e tendemos a perceber somente o
conteúdo da escrita.
Nossa consciência tende a não posicionar o centro do campo perceptual e de ação que é nosso
corpo. No dia-a-dia por muitas das vezes agimos automaticamente, e se fossemos posicionar nosso corpo-
Para-si, muitas das ações não poderíamos fazer espontaneamente, como, por exemplo, dirigir. Se formos
15
posicionar de maneira consciente todos os nossos movimentos corporais enquanto dirigimos, bem
provável que provocaríamos um acidente.
Sartre (1997) coloca que a invisibilidade do corpo é também invisível, uma vez que nossas ações
cotidianas tornam-se familiares e seguras para nós, bem como requerem que o corpo permaneça invisível
para que aconteçam. Infelizmente tendemos a posicionar conscientemente o nosso corpo enquanto campo
central da percepção e da ação em situações de contrates, ou seja, quando perdemos alguma de nossas
capacidades ou membros. No entanto, independente desta necessidade de contraste para tornarmos nosso
corpo visível para nós, estamos aí no mundo, comprometidos com o lugar que nos situamos nele. Sendo
assim, mesmo que o corpo apresente um status ambíguo: se por um lado ele é sujeito, também é objeto,
ou seja, somos um corpo e temos um corpo, “o corpo-para-si está totalmente entrelaçado com o corpo
considerado como uma coisa, e o limite entre o centro dos campos de percepção e ação e os objetos
dentro desses campos é um pouco fluido” (MORRIS, 2009, p. 132).
Tomemos agora como ponto de reflexão o corpo-Para-outro. Sartre (1997) adverte que tanto faz
compreender como meu corpo aparece para o outro quanto o corpo do outro aparece para mim, haja vista
que as estruturas do meu ser-Para-outro são as mesmas que as do Ser do outro para mim, mas por
questões de comodidade, como afirma este autor, suas reflexões debruçam-se na natureza do corpo do
outro.
2.2.2 O corpo-Para-outro: transcendência-transcendida.
Esta é a segunda dimensão ontológica do corpo: o outro utiliza e conhece meu corpo. A relação
fundamental entre meu Ser e o Ser do outro é por uma negação interna e não pelo corpo. Para captar o
outro preciso negar-me enquanto negatividade, primeiramente capto o outro como para o qual existo
enquanto objetividade, positividade, somente num segundo momento que capto o corpo do outro, sendo
uma estrutura secundária. O outro aparece-me como transcendência-transcendida, o capto como um
centro de referencia secundário, que está no meio do mundo e que não sou eu. Assim, o outro está aí para
ser transcendido, haja vista que rumo às minhas possibilidades (SARTRE, 1997).
No entanto, se o corpo do outro apresenta-se para mim como uma facticidade, um ser-aí, o
mesmo acontece com meu corpo para o outro, pois a ausência é também estrutura do Ser-aí. O corpo do
outro mesmo estando ausente, está presente em algum lugar do meu mundo quando vinculado a alguma
situação concreta. Sartre (1997) exemplifica com a relação da sala e seu proprietário, se estou em uma
sala cujo proprietário está ausente, esta sala me revelará o corpo de seu proprietário, uma vez que ela é
constituída por objetos-utensílios que seu proprietário usa, a cadeira que ele senta, a mesa que ele escreve.
Independente de estar presente ou ausente, o corpo do outro é um Em-si em meu mundo. Neste há
um outro, ou melhor, há outros que não devem ser captados somente como carne, mas como corpos em
situação (espaço-temporal), como “totalidade das relações significantes com o mundo. [...] o corpo do
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outro, com efeito, aparece ‘ao meu corpo’. Captamos o outro como vida” (SARTRE, 1997, p. 433), o que
difere minha percepção do corpo do outro da percepção que tenho das coisas.
Desde a primeira vez que nos encontramos com alguém, este nos é dado de imediato e por inteiro,
naquilo que é, sem nada a esconder. Captamo-lo como liberdade, capaz de modificar as situações,
fazendo-a existir, mas esta liberdade do outro é transcendência- transcendida, uma liberdade objetiva,
haja vista, como propõe Sartre (1997, p. 440):
O outro aparece como aquele que deve ser compreendido a partir de uma situação perpetuamente modificada. [...] O corpo do outro é sempre “corpo-mais-do-que-corpo”, porque o outro é dado a mim sem intermediário e totalmente no perpétuo transcender da facticidade [grifo do autor].
O corpo do outro não é objetividade. Assim o será para aquele que transcende sua corporeidade,
posicionando-a no mundo, exteriorizando-a. E posso transcender sua transcendência porque o corpo do
outro é facticidade desta última. Veremos a seguir o terceiro modo de Ser do corpo.
2.2.3 Ser-para-outro (a objetivação do meu corpo para o outro)
Nesta dimensão sou objeto para o outro, porque existo para mim como corpo conhecido pelo
outro. Agora minha transcendência que é transcendida, meu Ser é arrancado e colocado no mundo, um
Em-si para o outro. Concomitantemente, transcendo a transcendência do outro e este transcende a minha,
ambos em rumos de suas respectivas possibilidades.
O olhar do outro propicia a minha experiência enquanto ser-objeto. Experiencio minha alienação,
ou seja, minha consciência de como meu corpo é para o outro “[...] em e por estruturas afetivas, como a
timidez” [grifo do autor] (SARTRE, 1997, p. 443) e a vergonha. O corpo-alienado é um corpo-para-nós,
pois é através dos conceitos dos outros sobre meu corpo transcendido que posso ver como sou, vejo-me
pelos olhos do outro enquanto fuga do corpo que eu existo. Esta maneira que tomo consciência de meu
corpo, dá-se pela consciência espontânea ou cúmplice. Posiciono meu corpo no mundo, no entanto o faço
como se eu fosse o outro em relação a ele, inclusive algumas psicopatologias, como o “Transtorno
Corporal Disfórmico” (MORRIS, 2009, p. 133), a “Ereutofobia” (SARTRE, 1997, p. 443), transtornos
alimentares como a Anorexia e Bulimia, as dores do corpo, enfim, a preocupação constante com a própria
aparência,
[...] por principio, provém de conhecimentos que adquiri dos Outros ou de conhecimentos que os Outros têm de mim. [...] É então que aparece um novo estrato da existência: havíamos transcendido a dor vivida rumo ao mal padecido; agora, transcendemos o mal rumo à Enfermidade. Enquanto psíquica, a Enfermidade é decerto bem diferente da enfermidade conhecida e descrita pelo medico: é um estado. Não se trata aqui de micróbios ou lesões teciduais, mas sim de uma forma sintética de destruição [grifo do autor] (SARTRE, 1997, p. 446).
17
O que Sartre pontua é que na própria Enfermidade o corpo é dado. Antes enquanto suporte do
mal, transcende à substância de enfermidade, como uma forma de existência pelo modo destrutivo.
Enfim, pelo outro, o corpo que existo é transcendido como um ser-objeto-Para-outro. O outro capta minha
liberdade enquanto carne e captamos nosso corpo não enquanto aquele que “age e percebe, mas sim
enquanto é agido e percebido” (SARTRE, 1997, p. 449), haja vista que adotamos sobre nosso corpo o
ponto de vista do outro, em sua maioria, pontos de vistas construídos na relação dialética entre indivíduo
e sociedade.
Enquanto Sartre tende a ilustrar a experiência do corpo-vivido-Para-outro como desagradável,
Morris (2009) lembra que muitos têm no olhar do outro uma experiência inversa a que Sartre pontua.
Aqueles que buscam exibir seu corpo para o outro, vê nesta uma experiência agradável. Vemos assim,
segundo Sartre (1997), a ambiguidade e complexidade do corpo, ao mesmo tempo que é na sua essência
completamente natural também é completamente cultural.
2.3 O ESPAÇO VITAL E A MATERIALIDADE
O homem ao nascer já se depara com um mundo já construído por outros. A família a que
pertence, sua história e cultura, a cultura social de seu povo, o sistema financeiro e político vigente, todas
as verdades e valores já construídos, todas as coisas, enfim, um mundo construído por outros, um mundo
que É, que está aí. Este homem organizará este mundo material do local que ocupa, com seu corpo vivido,
que é o centro dos campos de suas percepções e ações como já comentamos, e assim desvelará o seu
espaço vital.
Segundo Morris (2009), Sartre denomina o espaço vital como o espaço real do mundo. Nem
sempre este espaço vital é visível para mim. Podemos nos referir a ele como pura exterioridade e não
como aquele que percebemos e agimos, ou seja, com o qual nos identificamos, mesmo sendo nossas
experiências as que centralizam nosso espaço vital. Afirma a autora (2009, p. 142) que “Embora os fins
que estruturam os espaços vitais sejam escolhidos, nós não estamos, de modo geral, plenamente
conscientes de ter escolhido nossos fins” [grifo da autora].
O que constitui a materialidade que nos circunda possui valências, pois citando Guillaume7,
Morris (2009, p. 143) coloca um excerto deste autor em que ele diz que “existe reciprocidade entre os
sentimentos do sujeito e certas propriedades afetivas dos objetos no campo fenomenal” [grifo da autora],
haja vista que nos afetamos com os objetos de acordo com nossos projetos. Acrescenta a autora também,
que este entendimento é que faz Sartre sustentar que este campo é mantido pelo desejo. As valências
atribuídas para este campo fenomenal nem sempre podem ter passado pelo nosso crivo, com isso
podemos interioriza-las a partir do Outro, escolhendo como nossos os valores alheios.
Escolher de maneira cumplice os mesmos valores do outro, também faz parte do projeto de Ser,
assim como para Sartre (2006), quando sentimo-nos impotentes diante as adversidades encontradas na
7 Foi o primeiro psicólogo francês da Gestalt (MORRIS, 2009).
18
relação com o mundo, podemos dar uma saída mágica, através de uma conduta emocional, que coloca fim
no conflito.
Também as dimensões espaciais (profundidade, altura e comprimento) são definidas por Sartre
(1997) a partir do corpo enquanto campo central da percepção, bem como a partir da qualificação destas
dimensões espaciais - longe, perto, no alto, abaixo, ao lado - , estas podem ou não ser percebidas como
obstáculos às ações, mais ou menos adequadas para nossa ação.
Ratifica Morris (2009):
O que Sartre denomina de eixos de referencia prática são, portanto, intrinsicamente hodológicos. Se as dimensões “para cima” e “para baixo”, às valências do espaço vital do mundo, então, a explicação hodológica de Sartre sobre o lugar dos objetos em relação a esses eixos faz todo o sentido. Ao mesmo tempo, ficamos aptos a ver mais claramente o que significa dizer que o corpo é o centro do espaço vital (MORRIS, 2009, p. 148).
A percepção não é ação, mas o percebido somente assim o é porque, como uma promessa, remete
a um futuro de ações potenciais, o que faz com que “a percepção de modo algum se distingue da
organização prática dos existentes em mundo” [grifos do autor] (SARTRE, 1997, p. 406). Como o outro
também tem propriedade do percebido, o espaço vital, ou ambiente8, também é organizado a presença do
outro, com isso a intersubjetividade é problematizada quando compartilha-se a mesma materialidade sob
espaços reais distintos no mundo.
Veremos a seguir a quarta temática que compõe a realidade humana.
2.4 OS OUTROS
Como já dissemos, antes de perceber o outro enquanto corpo e este o meu, as relações
interpessoais originam-se no reconhecimento da humanidade no outro. No entanto, pela facticidade do
nosso corpo estar no mundo, a história nos mostra projetos filosóficos e científicos que necessitaram
diferenciar os homens pela natureza neurofisiológica do corpo, objetivando-os e distanciando-os da
condição ontológica que os tornam iguais, que é a liberdade.
Além do Para-si relacionar-se com o Em-si, também relaciona-se com o Outro (Para-si-Para-
outro) “em presença do outro” [grifo do autor] (SARTRE, 1997, p. 451), assim é pelo corpo enquanto
facticidade que as relações são significadas e delimitadas. O Para-si, enquanto nada, ruma ao futuro num
duplo movimento: ao mesmo tempo em que busca o Ser, foge deste Ser, relaciona-se com o corpo do
outro enquanto transcendência-transcendida, pois visa esta facticidade superando-a. Pela consciência não
ser, mas ser ao ser consciência de e para, cujo Ser que é consciente sempre é um Ser a ser transcendido, é
que para Sartre não podemos tratar o corpo enquanto puro instrumento que nos relacionamos com o outro,
8 Tradução do termo Unwelt de Heidegger.
19
tão pouco dissociado da consciência, haja vista que “o Para-si é fundamento de toda negatividade e toda
relação; ele é a relação” [grifos do autor] (p. 452).
Sabemos que o outro está no mundo pela facticidade de seu corpo, mas nossa compreensão do
outro não se dá somente pelo seu corpo como sabemos que as coisas estão no mundo enquanto Em-si, tal
qual se dá a compreensão do nosso corpo que transcende a facticidade dele e capta a transcendência que o
outro faz dele. Nesta condição de transcendência-transcendida, encontramos o outro através de dois
modos básicos: “como objetos e como sujeitos; como ‘olhados’ ou como ‘olhando’ ” (MORRIS, 2009, p.
156).
Segundo Jacoby e Carlos (2005), para Sartre o ato de olhar estabelece a relação original, e “é no
encontro entre os seres que ocorre a identidade e o sentido do Ser. O olhar é o eixo central sobre a
essência da pessoa e sobre o universo” (p. 49).
2.4.1 O outro-como-objeto
O outro-como-objeto é desvelado pela maneira como eu o significo situado em um espaço que é
organizado a partir dele, ele enquanto o próprio centro de percepção e ação, assim ele é um objeto-situado
pelo meu olhar no espaço que habita, que é seu espaço vital. Neste caso, apareço no espaço vital do outro,
que até então estava organizado a partir dele somente, e se sou percebido por ele neste espaço, posso
aparecer-lhe roubando-lhe a cena. O sentido inverso também prevalece, se o outro aparece no meu
espaço vital, assim sendo porque as coisas deste espaço são organizadas a partir mim, este espaço aparece
a mim como sendo-me roubado pelo outro (MORRIS, 2009, p. 158).
Os objetos não têm esta propriedade perigosa, perturbadora, mas esse outro-como-objeto que
rouba-me meu mundo, é assim significado, passando a ter característica para mim de um competidor, pela
valência que atribuo às coisas e também por considerar que aquele mundo é somente meu.
Se encararmos o corpo do outro dissociado de sua consciência, poderemos esperar a ação do
outro pelo que de fisiológico o corpo expressa, como se concluísse que o outro está irado porque vejo
expressões de seu corpo que aprendi ser de ira, tendo até como ponto de referência o meu corpo. Para a
Morris (2009), perceber o outro-como-objeto empobrece nossa experiência perceptual, é um tipo de
reconhecimento cego que só nos faz inferir em comportamentos, como se o corpo fosse um instrumento
predizível. Desconsiderando o todo, nego a consciência enquanto liberdade de escolha e a separo do
corpo percebendo somente este último enquanto coisa. Este olhar coisificante do homem é alertado nas
palavras de Sartre (1997, p. 435):
Jamais percebo um braço erguendo-se em um corpo imóvel: percebo Pedro-que-levanta-a-mão. E não se deve entender por isso que, por ato de juízo, eu relacione o movimento da mão a uma “consciência” que a provocasse, e sim que não posso captar o movimento da mão ou do braço salvo como estrutura temporal do corpo inteiro. Aqui o todo é que determina a ordem e os movimentos da parte. [...] o corpo aparece a partir da situação como totalidade sintética da vida e da ação [grifo do autor].
20
Morris (2009) também alerta que tendemos compreender o outro a partir da descrição da
experiência do outro-enquanto-objeto, tal qual as ciências humanas tradicionais herdaram das ciências
naturais que lidam com coisas. A autora coloca que para Sartre começamos do lugar errado, pois a certeza
de que o outro existe, só encontraremos quando começarmos a entender o outro a partir do outro-como-
sujeito.
2.4.2 O outro-como-sujeito
Para Sartre (1997) o outro-como-objeto nos revela uma relação de Ser-para-outro pautada no
conflito, pois se dá na relação de posse. O outro me têm como objeto, e assim faz-me Ser, me possui.
Tendo consciência de minha objetividade para o outro, experiencio minha consciência detida por ele.
Meu Ser foi roubado por ele. Ele faz existir um Ser que é meu. Mas se desvelo para a mim a minha
responsabilidade pelo meu Ser, quero recuperá-lo, haja vista que pode ser insuportável para mim saber
que o outro tem posse de meu Ser. Para Sartre, o projeto de recuperação do meu Ser só poderá ocorrer se
eu assimilar a liberdade do outro, reconhecendo-o como outro-como-sujeito.
Através do reconhecimento do que sou-Para-o-outro, e esta condição de ser-visto só é possível
pela liberdade do outro, compreendo que minhas possibilidades estão solidificadas e alienadas pelo outro
através de uma liberdade que não é a minha, ou seja, meu ser-Para-outro é inapreensível. E é esta,
segundo Sartre (1997), a própria condição do meu Ser. Contudo, meu ser-Para-outro dependerá dos
projetos e valores do outro, quer dizer, de sua liberdade sobre minhas ações e de como me movo no
mundo. O outro não me capta como capta um objeto qualquer. O desvelamento de mim pelo outro,
depende da maneira como existo no mundo, que poderá contrastar ou não com seus projetos e valores.
Morris (2009) alerta que devemos nos acautelar ao compreender o que Sartre coloca como a
alienação do meu Ser pelo outro. O que está no mundo é uma possibilidade de meu ser-Para-si através do
meu ser-Para-outro ser, pois “o outro não me constitui como um objeto para mim, mas para ele”
(SARTRE, p. 353). Este ser-Para-outro pode não ser uma escolha que eu faria sobre meu Ser, pois “[...]
sou consciente de ser um objeto para um sujeito, mas não um objeto para mim” [grifos da autora]
(MORRIS, 2009, p. 166). Destarte, para reconhecer como uma negativa minha, tenho que reconhecer
meu ser-Para-outro como uma positividade do outro para mim, o que implica numa possibilidade que
supera meu Ser passado. Mesmo que não me reconheça no outro, reconheço o meu ser-Para-outro
enquanto possibilidade.
Também posso conhecer meu ser-Para-outro se ele me disser, podendo ser agradável para mim,
me reconhecendo neste Ser ou mesmo enquanto possibilidade de Ser. Em qualquer situação, meu ser-
Para-outro me será agradável ou não de acordo com meu projeto de Ser. Com isso, o nosso inferno são os
outros quando nós consentirmos que sejam, pois esses sempre estarão imbricados com o meu projeto de
Ser.
21
Ratificando o colocado anteriormente, Morris (2009) também menciona que a assimetria da
primeira e da segunda pessoas não nos favorece a certeza sobre mim através do que sou para o outro, mas
sim o conhecimento que o outro tem de mim, o que mostra uma relação externa entre mim e o Outro. Só
atingiria a certeza sobre mim se pudesse ser o outro para mim, o que é impossível, mas a existência do
outro é certeza quando a vivencio através de minha objetividade. Contudo,
[...] o ser-Para-outro não é uma estrutura ontológica do Para-si: com efeito, não podemos pensar em derivar o ser-Para-outro do ser-Para-si como podemos derivar uma consequência de um princípio, nem, reciprocamente, o ser-Para-si do ser-Para-outro. Sem dúvida, nossa realidade-humana exige ser simultaneamente Para-si e Para-outro [...] (SARTRE, 1997, p. 361).
Por isso que para perceber o outro com sentido tem que haver antes a certeza do outro-como-
sujeito, como afirma Sartre (1997). Eu e o outro somos separados por um nada, por uma negação interna e
não externa como se me separasse do outro como uma substância. É a ambiguidade da consciência que
me permite negar que não sou o que sou para o outro e de afirmar que sou o que não sou para o outro, que
também nos faz assentir primeiro a existência do outro-como-sujeito. Sem ele eu não seria, pois “é o olhar
do outro que me transforma, em meu próprio ser [...]” [grifo da autora] (MORRIS, 2009, p. 170).
Sartre (1997) não somente nos coloca a relação com os outros como objetos e como sujeitos, nas
primeira e segunda pessoas, como também nos fala da experiência do nós. Para o autor o nós não existe
como concretude, ele surge quando nos sentimos identificados com o outro através de alguma experiência
em comum, quando nos sentimos em comunidade com o outro. Destaca que o nós-objeto é quando as
pessoas experienciam a si mesmas apreendidas por um terceiro, como, por exemplo, quando nos sentimos
olhados de fora por uma outra pessoa.
Já o nós-sujeito ocorre quando, ao contrário, eu e outros visamos um objeto fora, por exemplo, os
alunos de uma sala de aula que visam o professor, os primeiros podem experienciar o nós-alunos que
estamos escutando o professor. Outra experiência do nós-sujeito é quando nos tornamos impessoais,
indiferenciados, através de um projeto imposto por outro, como nós usuários de um mesmo banco, nós
consumidores de uma mesma marca. Assim, para a experiência do nós existir, ou seja, para sermos nós,
também precisamos o outro.
2.4.3 Relações concretas com os outros
Quando na simultaneidade Para-si e Para-outro nosso ser-Para-outro é percebido como um
impeditivo na concretização de nosso projeto de ser, revelando uma relação interna entre mim e o Outro,
estaremos possivelmente diante de um conflito.
Quiçá é esta possibilidade de transcendência tempo-espacial de nosso Ser através do outro que
nos desconforta, pois o outro me olha contextualizado em um mundo, e num mundo que também sou
olhado, um olhar que foge ao nosso controle, pois mesmo buscando melhorar os defeitos que o outro vê
22
em mim, ele pode persistir em continuar vendo. Assim, esta condição que o outro me coloca para ele,
pode impedir ou dificultar a realização de meu projeto de Ser.
Nesta situação Sartre (1997) menciona que tendemos superar este conflito através de duas
atitudes primitivas, por serem tentativas de nos apossarmos da liberdade alheia: (1) apodero-me da
liberdade do outro, assimilando a visão que o outro tem de mim. Nesta caso incorporo a transcendência
em mim, sem tirar seu caráter de transcendência (MORRIS, 2009, p. 172), ou; (1) contra-ataco o olhar do
outro, transcendendo a transcendência do outro. A exemplos do primeiro, Sartre (1997) cita o amor, a
linguagem e o masoquismo e do segundo, a indiferença, o desejo, o ódio e o sadismo.
Sobre estes exemplos Morris (2009) resume a longa explanação de Sartre:
Amor, nos é dito, é “um esforço contraditório”, e nosso reconhecimento disso pode levar-nos ao masoquismo – que “é e tem de ser ele mesmo um fracasso”. Indiferença – de cuja “inadequação” tem-se de estar consciente – pode levar ao desejo sexual, que se “encontra na origem de seu próprio fracasso”, e é “essa situação que está na origem do sadismo”, que também “carrega dentro de si a causa de seu próprio fracasso”. Esse movimento circular de uma atitude à outra “com sua conversão abrupta de direção constitui nossa relação com o Outro. [...]” [grifos da autora] (p. 172).
A autora pontua que estas relações são de má-fé pelo não reconhecimento da ambiguidade delas,
logo há a possibilidade de ser-Para-outro o que não sou e por isso tentar, equivocada e fracassadamente,
recuperar meu ser que o outro roubou. Para Sartre (1997) a superação do conflito se dá nas relações de
fraternidade9 com os outros, quando há reciprocidade positiva, em que pessoas comungam de um projeto,
por exemplo, ações de um grupo que se apresenta com um movimento de contra-cultura.
Com isso, devemos compreender que o mundo “é um mundo intersubjetivo, e, embora cada um
de nós tenha uma perspectiva diferente dele, essas perspectivas ‘engrenam’ uma nas outras” [grifo da
autora] (MORRIS, 2009, p. 158).
2.5 TER, FAZER E SER
Estas são três categorias que Sartre (1997) considera como as principais da realidade humana e
que também são independentes nas condutas do homem. Se a cada ato o Ser do homem é superado, não
deve haver conexões mútuas entre estas categorias. Se assim houvesse, teríamos que atribuir valências
diferenciadas entre elas em que uma prevaleceria sobre a outra.
Pautando-se na consciência intencional que para ser consciência precisa transcender o nada ao
visar algo, Sartre (1997, p. 536-537) afirma que “uma ação é por princípio intencional [...]. (e) implica
necessariamente como sua condição o reconhecimento de um ‘desideratum’, ou seja, de uma falta
objetiva, ou uma negatividade” [grifos do autor].
9 Sartre se dedica a refletir exaustivamente sobre essa conversão radical em sua obra Crítica da Razão Dialética (2002).
23
Assim, toda ação procede “um possível desejável não realizado” [grifo do autor] (p. 537) e isso
nos mostra a superação do Ser pela busca de um não-Ser, um nada ideal, a priori, por nós valorado. Mas
nem sempre apreendemos a história como aquela a ser superada por novas possibilidades de escrevê-la,
podemos apreendê-la em sua plenitude, sem imaginarmos que possa ser diferente. Diante disso, Sartre
(1997) coloca que não é a rigidez de uma situação que nos faz concebê-la como insuportável, mas sim a
possibilidade de concebermos outro estado de coisas, ou seja, enquanto não intencionarmos um nada
ideal, continuaremos a intencionar o ser pleno, não agindo.
Será este nada ideal projetado no futuro que retornará à situação presente e, em contraste,
iluminará nesta, a falta deste nada ideal, bem como paradoxalmente, negará a situação presente enquanto
possibilidade de ser situação futura. O nada ideal é iluminado como ausência na situação presente (o não-
ser é contrastado com o ser) e a situação presente é negada enquanto situação futura (o ser é contrastado
com o não-ser).
Por isso que Sartre (1997) afirma que, mesmo que as ações sejam causadas, não será por algum
estado de fato presente, por si, mas por um fim, que relaciona-se intimamente com a intenção, uma causa
compreendida em termos de uma razão e de um motivo projetados no futuro. Devido a isso que a causa
enquanto estado de fato presente não pode motivar qualquer ato, “pois um ato é uma projeção do Para-si
rumo a algo que não é, e aquilo que é não pode absolutamente, por si mesmo, determinar o que não é” (p.
539), e também a consciência não pode ser determinada por este estado de fato por si, ao captá-lo como
negatividade ou falta. Enfim, é a capacidade de desprendermos de si e do mundo, de rompermos com
nosso passado, ao considera-lo como um não-ser a partir do que ele não é em função do que poderá ser,
que poderemos construir um futuro diferente. E isso ocorre pelo poder da consciência inserir o nada no
mundo e à si mesmo.
É a consciência do nada, da liberdade, que ilumina a negação da liberdade no causalismo
determinista, o qual se orienta pela “organização complexa ‘motivo-intenção-ato-fim’” (SARTRE, 1997,
p. 540). Para este autor, o motivo deve ser compreendido pelo fim posicionado idealmente, pelo não
existente, o que faz do motivo uma negatividade, um devir. Por meu projeto retornar ao presente e ao
passado para iluminá-los, confiro-lhes valor de motivo pelo que lhes falta. Assim, motivo, ato e fim
constituem-se em um único surgimento quando o projeto já é resolvido rumo à mudança, ou seja, “é o ato
que decide seus fins e móbeis, e o ato é expressão de liberdade” (p. 541).
É esta vontade ilimitada que faz Sartre afirmar que o projeto original do homem é ser Deus. Por
esta percepção que Sartre critica a contradição de Descartes. Ao reconhecer a infinitude da vontade e da
escolha, Descartes faz de nossos atos finitos por derivarem de nossa essência, como Morris (2009, p. 176)
melhor explicita:
24
É a concepção de Descartes da liberdade – que “a vontade ou liberdade de escolha (...) não é restrita de nenhuma maneira” (Meditações metafísicas, IV), ou que a vontade “pode ser chamada, em certo sentido, de infinita” (Princípios de filosofia, I.35) – que Sartre vê como a chave para a totalidade da filosofia de Descartes e como seu maior insight. O único problema de Descartes foi que lhe faltou coragem no último momento possível. Tendo reconhecido que é em virtude de sua vontade ilimitada que o homem mais se assemelha a Deus, Descartes não obstante coloca a escolha e a definição do fim último para o homem nas mãos de Deus, em vez de nas mãos do próprio homem, que é onde ela deve estar. [grifos da autora]
Prossegue esta autora colocando que podemos supor que Sartre concebe o homem como
onipotente tal qual Deus é concebido. Ledo engano, pois para haver liberdade tem que existir um mundo
resistente, assim o homem somente pode ser livre por ser uma consciência encarnada e situada num
mundo, o que também desfaz a relação da liberdade com a obtenção de êxito. Não é o sucesso que
importa, isso não será garantido ao homem sartriano por este ser livre, haja vista que esta liberdade não é
compreendida como sinônimo de onipotência, como já falamos.
Outro ponto é que o ato para Sartre não é concebido como um ato sem razão. Mesmo sendo a
liberdade ontológica uma característica que define os seres humanos, assumir esta condição isenta de má-
fé, ou seja, negando-a, se dará em uma situação concreta, como coloca Morris (2009, p. 177):
Dizer que a palavra “liberdade” é ambígua no uso de Sartre não é, em minha opinião,
totalmente correto. A ambiguidade importante em questão é a existencial, e não semântica, e reside na ambiguidade da própria realidade humana, a qual “é o que não é e não é o que é”, ou seja, é tanto facticidade quanto transcêndencia em uma relação interna inextricável. Assim como se pode dizer que o corpo é a facticidade da consciência, a liberdade é a sua transcendencia; porém, da mesma maneira que o corpo como facticidade está internamente relacionado à transcendencia do para-si, a liberdade como transcendencia está internamente relacionada à facticidade [grifos da autora].
O ato sartriano transcende o determinismo e o liberalismo. A má-fé ordinária, como coloca
Morris (2009), coloca o passado, o corpo, o outro e as circunstâncias como opressoras e, ao contrário, o
liberalismo as nega totalmente, tirando-as de cena ao conceberem uma liberdade mágica, por não ser
situada. Então, o ato sartriano só se dá como ato de liberdade, um ato livre cuja consciência reconhece e
transcende a situação que a determina ou, pela má-fé, que nega sua liberdade para escolher-se
determinada. Como Sartre (1997) coloca: a única escolha que não podemos fazer é a de não escolher, por
isso Ser é agir!.
2.6 A ÉTICA DO EXISTENCIALISMO SARTRIANO
É reconhecendo a relação interna entre liberdade e facticidade que Sartre (1970) insere a ética na
existência humana. O homem ao escolher, se inventa e ao se inventar escolhe valores que repousam em
valores intersubjetivos, valores que independente da escolha são bons. Todos os valores são bons, pois
são escolhas. A virtude destas escolhas é a autenticidade, por esta ser uma atitude livre da má-fé enquanto
25
um erro que dissimula a liberdade, tal como o homem ao escolher o faz de maneira irrefletida,
vivenciando sua escolha como se esta não fosse sua. A má-fé sartriana não é tomada através de um
julgamento moral, mas sua ausência, em uma atitude autêntica, é uma virtude.
Se é pelo homem que os valores existem, a liberdade é um valor existencial e a pessoa autêntica,
pela angústia, tomará a liberdade como fonte de todo valor, logo, escolhas de má-fé desvalorizam a
liberdade. No entanto, ser livre é reconhecer também a liberdade do outro, sendo esta máxima a que
transcende uma moral baseada em ditames que estabelecem direitos e deveres (MORRIS, 2009).
O homem ao escolher a si mesmo cria uma concepção ideal ética do homem universal. Se me
escolho como vítima não posso desvalorizar o algoz, pois estaria rejeitando no outro a imagem da qual
dependo internamente para me fazer vítima. Através desta concepção de homem sou tão responsável por
uma humanidade constituída de homens vítimas quanto algozes. A má-fé, ou a atitude inautêntica, reside
quando não reconheço a ambiguidade em minha escolha: a relação interna entre ser e não ser da
consciência, neste caso a vítima e o algoz.
Para reconhecer-me livre é porque reconheço que posso transcender o que tá posto no mundo. O
que crio com minha ação será algo posto no mundo também. Se acredito que somente eu posso
transcender, nego a liberdade alheia que pode também desejar transcender minha objetividade. Eis uma
concepção de má-fé que concebe o mundo dicotomizado entre o determinismo e o liberalismo, onde meus
atos livres determinariam os atos alheios. Esta não é uma concepção autêntica de liberdade.
Sabemos o quão difícil é viver em sociedade através de uma conversão radical da má-fé através
de existência autêntica, mas o existencialismo sartriano, longe de ser um projeto acabado com intenções
de ditar verdades absolutas, vê no binômio liberdade-responsabilidade a sua moral. Alertamos também
que quando Sartre escreveu O Ser e o Nada, a partir de 1939, sendo publicado em 1943, acreditava nos
esforços individuais e subjetivos, mas, mais tarde, após exilado durante a II Guerra Mundial e em contato
com a teoria marxista, reconhece a dificuldade das ações individuais autênticas isoladas produzirem
transformações no coletivo. Transcende esta sua compreensão, mas não abandona o indivíduo, o insere no
coletivo marxista. Indivíduo e coletivo, singular e universal passam a ser compreendidos dialeticamente
enquanto construtores e construções, e sendo qualquer salvação individual somente possível através de
uma batalha coletiva (BEAUVOIR, 2010).
Assim, finalizamos esta parte com uma citação de Schneider (2002), em que mostra como
podemos compreender do projeto de ser no contexto do coletivo:
O projeto é circunscrito pelo "campo dos possíveis", quer dizer, pelas condições materiais, sociais, históricas que definem a existência concreta de um homem, bem como pela direção à qual o indivíduo transcende em sua situação objetiva (devir), perfazendo as possibilidades concretas do sujeito. Os possíveis sociais são, assim, apropriados pelos sujeitos, definindo os contornos das escolhas individuais. Por isso é o homem um sujeito social [grifos da autora] (p. 120).
26
CONTRIBUIÇÕES DO EXISTENCIALISMO SARTRIANO PARA A PSICOLOGIA:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os projetos de desvelar o fenômeno humano foram demarcados por diversos fins dada sua
complexidade. Percebemos na história um caminho que parte do complexo ao complexo. Desde os
tempos mais remotos, o conjunto das empreitadas desse desvelar nos mostra um caminhar tal qual
caminha o homem, num totalizar-se em curso. Através de transcendências transcendidas, a Filosofia e a
Psicologia inscreveram suas histórias.
Quiçá, o fenômeno da consciência acabou por se tornar ao mesmo tempo um fascínio e um
obstáculo. Não sendo um Em-si, possibilita ser compreendida das mais diversas maneiras: alma, espírito,
razão são algumas correlações para a consciência. A própria denominação Psicologia é derivada da
Mitologia Grega (Psyché = Alma).
A consciência metafísica imperou desde a Antiguidade até a Idade Média. Dissociada do sujeito,
compreendia-se que “cada ser, cada indivíduo é do jeito que é porque, ao existir, ele está realizando uma
essência, uma natureza que lhe define suas características específicas, ou seja, características pelas quais
ele pertence a uma determina espécie de seres” (SEVERINO, 1992, p. 77).
Saindo da Idade Média e entrando no Renascimento, René Descartes transcende o pensamento
metafísico e insere o cogito, delegando à consciência sua soberania pelo pensamento. Com o sujeito
pensante dicotomizado de seu corpo, inaugura-se a Idade Moderna (XVII e XVIII), favorecendo as ideias
psicológicas se apropriarem do status científico, mas conservando ainda o modo cartesiano de se pensar o
homem.
Mesmo tendo que vestir a roupagem de uma ciência naturalizante, a Psicologia iniciou sua
caminhada científica apresentando dispersões do pensamento psicológico, como coloca Barreto e Morato
(2008, p. 148):
Por conseqüência a Psicologia já foi constituída abarcando duas perspectivas: uma, experimental com foco no estudo dos processos elementares da consciência, e outra, coletiva enfocando o estudo das produções da mente coletiva. Nessa direção, já apresentava dois enfoques metodológicos. O enfoque experimental utilizava o método experimental, característico das ciências naturais, com viés empírico e independente da metafísica. Já a “Psicologia dos Povos” que pertencia ao domínio das Ciências Humanas, recorria aos métodos descritivos das Ciências Sociais, baseados na observação das produções culturais [grifos das autoras].
Entre as ciências da natureza e as ciências culturais/sociais a Psicologia vem construindo sua
história até hoje, focando tanto “nos fenômenos vitais e de suas leis vinculadas a perspectivas
cientificistas, quanto à ordem dos fenômenos expressivos e dos seus significados vinculados a
perspectivas compreensivas” (p. 149).
Das concepções naturalizantes como o estruturalismo que fragmenta a consciência para estudar
seus elementos constitutivos, criou-se também a corrente funcionalista, que busca entender os fenômenos
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psicológicos e para que servem, transcendida pelo condutivismo ou behaviorismo que estuda os
comportamentos no processo adaptativo ao meio ambiente, a fim de predize-los e controla-los
(BARRETO e MORATO, 2008).
Segundo estas mesmas autoras, com a contribuição do funcionalismo, inaugura-se a Psicologia
Aplicada, grande utilitária enquanto ciência aplicativa a ambientes de Guerra, de trabalho, de
aprendizagem, na clínica, e que favoreceu, a partir dos anos 40, o surgimento de especialistas, que
infestaram vários contextos com a psicometria e o método clínico. Com o condutivismo ou behaviorismo,
começa a ciência objetiva, a Psicologia como ciência do comportamento, mas todas com fins de
normatização e adaptação do homem.
Rejeitando a idéia da decomposição da consciência e do pragmatismo tecnológico americano,
surge a Psicologia da Gestalt apoiando-se na fenomenologia husserliana para a compreensão dos
fenômenos a partir da experiência imediata. No entanto, os teóricos gestaltistas ainda continuavam a
explicar os fenômenos através de leis gerais. “Por meio da tese do isomorfismo, sustentavam a
equivalência entre processos psicológicos e processos fisiológicos” (BARRETO e MORATO, 2008, p.
155).
Vemos também nesta história da Psicologia, o desenvolvimento paralelo da Psicanálise enquanto
uma ciência independente que intencionou o inconsciente e a patologia como seus fins. Segundo estas
autoras (p. 157):
O reconhecimento do inconsciente derrubou a idéia de um “eu” consciente como centro da subjetividade humana. Tal entendimento não deixa de reconhecer a importância da “vivência” na experiência imediata, mas se abre para a necessidade de ultrapassar o sentido aparente em busca de outra possível compreensão mediata do sentido [grifo das autoras].
Pela síntese da fenomenologia de Husserl, da teoria do Ser de Heidegger e do Materialismo
histórico de Marx, o considerado expoente do existencialismo da modernidade, Jean-Paul Sartre, nos
brindou com sua filosofia que coloca nas mãos do homem a responsabilidade pela sua existência.
Na busca da integralização do homem consigo, com o mundo, com outros, com a temporalidade e
com a materialidade, surge o homem histórico, dialético, social. Na relação dialética de interiorização do
mundo e exteriorizando-se através das ações, o homem constrói a sua história e a transcende num
movimento singular/universal, individual/coletivo.
Reconhecendo-se através do outro, posiciona seu Eu no mundo. Inventa-se a cada escolha, e não
escolher é única opção ao homem negada. Sua existência passa a ser entendida pelo vislumbre da
superação do que é pelo que ainda não é, e assim o futuro torna-se imperativo sobre seu passado.
Transcendência transcendida cria suas possibilidades. O foco a ser desvelado será seu projeto-de-ser,
partindo do futuro ao presente.
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Pelo método progressivo-regressivo desenvolvido por Sartre, grande contribuição à Psicologia, o
homem é estudado em situação, nas experiências concretas de seu cotidiano, com as pessoas, com as
coisas, com o tempo, com a cultura que se dá através da relação dialética com seu mundo.
Sartre busca devolver a humanidade ao homem com uma lufada de liberdade para lidar com sua
facticidade. Reconhece a ineficácia dos projetos determinista e libertário, posicionando o homem num
contexto concreto que o exige lidar diariamente com as contradições e limitações. Destarte, acreditamos
que a riqueza maior de suas contribuições para a Psicologia reside em compreender, como o homem
compreende sua história e busca superá-la, podendo reescreve-la através de novas possibilidades de Ser,
sempre numa totalização-em-curso, e só a morte o retirará deste curso.
Enfim, sua epistemologia não restringe ao âmbito individual, os grupos também podem ser
compreendidos partindo da experiência do nós e de ações coletivas. Tão pouco se restringe ao contexto
clínico, pois em qualquer lugar onde o homem está, ele tem que se inventar e assim inventa o mundo, na
criação dos contextos social, cultural, político, econômico e da saúde que o implicam, inclusive cria a
história da Psicologia, que muito tem a ser transcendida.
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29
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