Cristiane InokumaEvoluções no Espaço da Arte:
Brevíssimo Panorama da Intervenção na Arte Contemporânea
RESUMO
O artigo de Marisa Florido César, intitulado “O Ateliê do Artista” (revista Arte & Ensaios
– UFRJ –2002), serve como ponto de partida para este projeto. Ao promover a reflexão sobre o
importante papel que o ateliê faz no processo artístico, Marisa Florido abre espaço para
desdobramentos sobre os questionamentos, conceituações e evoluções da Arte Contemporânea.
Além dos artistas citados pela autora, há inúmeros outros artistas e movimentos que podem ser
analisados para uma melhor compreensão dos rumos da Arte Contemporânea.
Através da pesquisa de alguns renomados autores no assunto, este projeto apresenta uma
breve visão panorâmica no que se referem às intervenções, a partir de Duchamp e na década de
60, questionando as convenções do espaço da galeria de arte.
Palavras-chave: Arte Contemporânea, Intervenções, Instalações, Assemblage.
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Brevíssimo Panorama da Intervenção na Arte Contemporânea
INTRODUÇÃO
Arte Contemporânea: total incompreensão para muitos, total repulsa para outros tantos.
Por que ficou tão difícil entender ou mesmo dizer o que é Arte?
A Arte Contemporânea, ao mesmo tempo em que apregoa se aproximar do cotidiano, da
vida, passa a impressão de que está se distanciando do público. Na verdade, dá-se essa impressão
porque as obras da contemporaneidade, além da aproximação do mundo, realizam operações
artísticas intrínsecas à própria Arte e seu entorno, questionando, quebrando e formando novos
conceitos. Por isso a dificuldade em afirmar mesmo até o que é Arte. As obras contemporâneas
são reflexivas e promovem também ao espectador a reflexão.
A partir do artigo de Marisa Florido Cesar surge o tema para este projeto. A autora mostra
como cada artista – Mondrian, Brancusi, Duchamp, Carlos Zílio, Tunga –, ao seu meio, saía dos
limites impostos à obra de arte. O ateliê, que era visto como o “antes” da obra, a fase
preparatória, agora também faz parte da obra final. Marisa coloca que, segundo Mondrian, já
estava evidente na sua teoria evolucionista a finalidade histórica da arte: a liberação progressiva
das características essenciais. E depois com Duchamp, “os limites entre fazer e julgar arte, entre
autor, espectador e juiz foram reduzidos ao quase nada (infra mice) do enunciado ‘isto é arte’.
Limites que a Arte Contemporânea viria problematizar, por exemplo, ao reivindicar a obra de arte
não mais como um objeto autônomo e finalizado, não mais como o arcabouço de uma presença
preexistente, mas como uma incompletude que exige a proximidade do espectador” (CESAR,
2002, pág 23). A partir do “marco histórico” para a Arte Contemporânea, com A Fonte (1917) de
Duchamp, os artistas passam a fazer operações artísticas ousadas, questionadoras, reflexivas, que
ultrapassam os limites da moldura, do pedestal, dos museus e galerias. A Arte volta para a Vida.
A partir daí, pode-se estudar toda uma evolução do processo artístico, desde Duchamp até os dias
atuais.
O projeto objetiva fazer um breve panorama da Arte Contemporânea em relação às
intervenções, a partir de Duchamp, e com ênfase na década de 60, e fazer o debate modernidade/
contemporaneidade: diferenciações, desdobramentos, ressonâncias – o que a contemporaneidade
carrega da modernidade e o que deixa para trás, em relação à problemática do espaço da galeria.
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Justifica-se realizar este projeto, pois é importante discutir sobre o papel da Arte
Contemporânea, haja visto que há mais de 40 anos o assunto desperta muitas dúvidas,
incompreensão e repulsa. Mesmo com o avanço dos meios de informação e divulgação, esses
sentimentos e impressões não se extinguem. O Ensino de Artes em muitos colégios e inclusive
Universidades se restringe a avançar até o Modernismo, ou no máximo aos anos 50 (com muitas
restrições), mantendo assim essa “aura” de mistério em volta da Arte Contemporânea. Por isso,
sempre é importante compartilhar conhecimento sobre o assunto e assim poder formar novos e
consistentes conceitos.
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A ARTE NO ESPAÇO / O ESPAÇO DA ARTE
Para entender um pouco do que acontece na Arte Contemporânea, é importante retroceder
um pouco, tratar daquele momento em que o Modernismo dá seus primeiros passos rumo à
contemporaneidade. Mas antes também seria preciso entender e destrinchar alguns conceitos.
Vê-se que é preciso compreender primeiramente as transformações internas relativas à
Arte, e nada melhor que observar as evoluções do espaço da galeria, no caso, da galeria
Modernista à Arte Contemporânea.
O CUBO BRANCO
Grande parte da Arte produzida na primeira parte do século XX foi idealizada para ser
exposta num ambiente sacralizado e distanciado da realidade do mundo: o cubo branco - termo
criado por Brian O’Doherty. Junto a isso, existe uma dicotomia na Arte Ocidental, dividindo
discurso e imagem, pensamento como domínio do lógico e arte como domínio do sensível,
“propondo o campo da literatura e da arte como o espaço de convergência e convívio da razão e
da sensibilidade” (VASCONCELOS, 2000, pág. 15).
A Arte Modernista apresentava uma forma da sacralização que os movimentos posteriores
tratariam de questionar e quebrar. O crítico americano Clement Greenberg era um entusiasta da
Arte Moderna, como se vê em seu texto Pintura Modernista, de 1961. Para ele, uma obra
modernista era auto-referencial, totalmente isolada do mundo, seja em aspectos políticos, sociais
ou culturais, promovendo a “pureza” da forma contemplativa estética, resultando apenas uma
contemplação retiniana. A pintura estaria limitada ao campo bidimensional e a escultura ao
tridimensional. Em Greenberg, a obra é isolada de qualquer contexto. Mas ele estava enganado:
há o efeito do contexto demasiadamente orientado da galeria modernista sobre o objeto artístico,
sobre o espectador, e no momento crucial da transição Arte Moderna – Contemporânea, o
contexto se apodera do objeto, tornando-se ele próprio.
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O SAGRADO
Segundo O’Doherty, o espaço da galeria modernista é construído segundo preceitos
rígidos, como o isolamento do mundo exterior – fora da sala da galeria: “o mundo exterior não
deve entrar, de modo que as janelas geralmente são lacradas. As paredes são pintadas de branco.
O teto torna-se fonte de luz (...) A arte é livre, como se dizia, ‘para assumir vida própria’”
(O’DOHERTY, 2002, XV, XVI). A obra de arte surgia então como um objeto sagrado. Assim
como no museu, há a separação entre público e obra por “uma barreira metafísica que está ligada
à função simbólica que nossa sociedade atribuiu à instituição museológica (...) é o receptáculo
cerimonioso de objeto reputados como apresentando a quintessência dos produtos da
humanidade, considerada de um ponto de vista universal e abstrato” (LEENHARDT, 2000, págs.
22 e 23). Eis aí o preceito de eternidade que o cubo branco imprime: a galeria funciona como um
sarcófago, câmara mortuária; projetava a ilusão de vida eterna devendo ser protegida do mundo
exterior, do advento da transformação e do tempo. A boa obra seria aquele objeto de valor, de
mercado, feito para durar. É a restituição mágica da vida material: “esse recinto particularmente
recluso é uma espécie de ‘anti-recinto’, ‘ultra-recinto’ ou ‘recinto ideal’ onde se anula
simbolicamente a matriz circundante espaço-tempo” (O’DOHERTY, 2002, XVII). Com isso, a
galeria promove a eternidade de seus valores artísticos, a posteridade como beleza imortal, como
obra-prima. Mas a partir de Duchamp, e mais evidentemente a partir dos anos 50, passa-se a ver a
perenidade do mundo e da Arte, quebrando-se preceitos seculares. Antes de sequer ser bela, a
obra de arte primeiramente faria pensar. Uma hora o elitizante cubo branco viria a mudar
também.
O OLHO E O ESPECTADOR
Quando adentramos o espaço da galeria, tornamo-nos apenas Olho e Espectador
permeados pelas Visualidade e Vitrine. O museu e a galeria de arte possuem dois princípios: a
visualidade e a vitrine. A visualidade é a atividade do espectador, o olho, uma tentativa de
conciliação com a materialidade. Mas esta é separada do corpo do observador, com a vitrine,
impedindo com que a mão substitua o olhar: “Favor não tocar”. “A vitrine radicaliza a abstração
do olhar, materializa a distância que o constitui como tal. A vitrine é um corte epistemológico
entre pensar e sentir” (LEENHARDT, 2000, pág. 24). E quando estamos diante de uma obra de
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arte, nos ausentamos em favor do Olho e do Espectador. O Olho representa a faculdade despojada
do corpo, ligada apenas aos meios visuais formais. Já o Espectador é a vida esmaecida do eu, do
qual desprende-se o Olho e que, nesse ínterim já não tem mais ação. Quando nos deixamos
envolver pelo cubo branco, abandonamos inconscientemente nossas particularidades para nos
tornarmos apenas Olho e Espectador. Ficamos subjugamos ao cubo branco: nele se obedecem
regras de comportamento, nossa presença é considerada apenas espiritual. É um espaço formal,
reflexo da tradição da pintura de cavalete, com também suas formalidades.
DUCHAMP
Foi com Roda de Bicicleta (1913) e Fonte (1917), Marcel Duchamp inventou o termo
ready-made, objetos fabricados em série que ele escolhia, comprava e designava como obras de
arte. Era “a eliminação de Duchamp da qualidade manual e individual da arte” (MINK, 2006,
pág. 63). O artista expôs seu urinol, Fonte, em 1917, na Society for Independent Artists de Nova
Iorque, sob pseudônimo, R. Mutt. A Fonte nunca foi exposta, nem mencionada no catálogo. Seu
urinol é um objeto que se revela pelo seu deslocamento, colocando em questão a sua significação;
porém, ao discutir as relações de uso e hábito, volta novamente ao objeto. Com seus ready-
mades, faz com que a Arte deixe de ser objeto apenas do campo sensível, passando também a ser
empreendimento crítico, “vê devolvido seu estatuto de campo de reflexão, de pensamento”, para
“propor enigmas, fazer pensar com os olhos são maneiras de desembrutecer o olhar saturado de
reproduções e imagens” (LEENHARDT, 2000, pág. 15). A arte começa a dar seus passos para ser
exposta e conscientemente vivida: Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia
a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos: seria alguma
coisa a ser achada na própria obra de arte ou nas atividades do artista ao redor do objeto?
Com Duchamp vem a tradição antiformalista: 1.200 Sacos de Carvão (1938) e Milha de
Fio (1942), quebrando intensamente a moldura do quadro e transformando o espaço da galeria
em matéria-prima a ser modificada pela arte. Duchamp “inventa” o teto da galeria e considera
todo o espaço interior, mostra o que aprendemos a não ver, os “pontos pacíficos”. A consciência
e sua ausência são a dialética fundamental de Duchamp. O modernismo ignorava o teto da
galeria, ele não fazia parte do espaço, servia apenas como espaço para a lâmpada, a fim de
iluminar a obra; bem como o teto, assim como as paredes e o chão da galeria, tudo era feito à
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serviço da neutralização, não poderiam interferir na obra, pois não faziam parte dela. Duchamp
quebra essa neutralização com seus 1.200 sacos de carvão expostos na Galerie de Beuax-Arts:
“acima da sua cabeça, a maior obra da mostra era modesta pelo espaço ocupado, mas totalmente
inoportuna iconologicamente” (O’DOHERTY, 2002, pág. 73). Segundo O’Doherty, foi a
primeira vez que um artista subsumiu uma galeria inteira como intervenção. Na mesma ocasião, o
artista instalou portas giratórias no lugar das tradicionais, confundindo o que está dentro e o que
está fora. É com Duchamp que a inclusão do contexto inicia uma era de intervenções que
trabalham a idéia do espaço da galeria como uma peça única, manipulável: “Ao expor o efeito do
contexto na arte, do continente no conteúdo, Duchamp percebeu uma área da arte que ainda não
havia sido inventada” (O’DOHERTY, 2002, pág. 75). O espaço ao redor passa a também fazer
parte do processo artístico, a literalização da arte cresce enquanto diminui a sua mistificação.
A intervenção incita questionamentos, é até certo ponto didática, apresenta-nos um novo
olhar, quebra o cânone da história, de um só golpe. Para ela ter efeito, depende do contexto de
idéias que tenta modificar e no qual se insere. Ela volta sempre que o contexto imita aquele que a
estimulou, tornando-a relevante novamente: “A intervenção tem uma ocorrência histórica
esporádica” (O’DOHERTY, 2002, pág. 76).
Quatro anos mais tarde, Duchamp realiza sua Milha de Fio para a mostra Primeiros
Documentos do Surrealismo, na Madison, Nova Iorque. Suas intervenções tinham alvo incerto,
destinavam-se ao mesmo tempo ao espectador, à história, à crítica de arte, a outros artistas. Os
fios de Milha de Fio afastavam o espectador da obra, fazendo-o ser uma lembrança que vivia a
ter da exposição: era agora o espaço como todo, como obra de arte; em vez de ser uma
interferência entre o espectador e a arte, Milha de Fio tornou-se também um tipo de arte.
Duchamp adora estratagemas, um exímio jogador de xadrez, mantém o espectador, cuja presença
é sempre voluntária, preso a sua etiqueta, evitando assim que ele condene o próprio tormento.
DEMOCRACIA ARTÍSTICA
É difícil depois de tanto tempo a obra de arte sair dos domínios do cubo branco, mas um
dos meios de transpor convenções é pela hostilidade característica da vanguarda: entre suas
estratégias está a remoção das constantes de percepção, no caso o recinto da galeria, usando
transgressões da lógica, dissociação dos sentidos e o tédio. A vanguarda transforma então o cubo
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branco em metáfora de consciência e revolução: aqui, o ato de aproximação do espectador volta-
se contra si mesmo. A hostilidade é necessária, pois o espaço da galeria é agressivo, subjugador,
legitimador, elitista: um esnobismo social, financeiro e intelectual que molda o público, segundo
O’Doherty.
Com o pós-modernismo, a relação artista-obra-público fica mais próxima. Com Duchamp
temos uma série de rupturas, mas é nos anos 60 que passam a se intensificar as operações em
relação as estruturas intrínsecas à arte, entre a principal o espaço do cubo branco, com projetos e
intervenções, com didatismo moderno e sistematização de alternativas. A arte nessa época não é
formada por absolutos; e seus gêneros, como Minimalismo, Pós-Minimalismo, Arte Conceitual,
Realismo, Perfomance, Vídeo Arte, entre outros, não são gêneros hierárquicos, mas sim
completam-se em muitos pontos: têm-se uma democracia artística, a figura do artista, bem como
a imagem da obra de arte é desmistificada, a Arte tolera ambigüidades.
O cubo branco vai deixando de ser o único lugar como material fundamental e modo de
expressão da Arte: ela não mais se completa somente dentro dele. Na verdade, com isso passa-se
também a pensar o espaço ao redor da obra, ela não é mais hermeticamente fechada; tudo além
também conta, como o espaço, o suporte (ou ausência dele), registro, tempo, tempo de vida,
processo, contexto. Desse modo, segundo O’Doherty, essa transição seria o Modernismo pondo
um “ponto final em sua mania inabalável de se autodefinir, pois definir-se seria desconsiderar
tudo o que está ao seu redor” (O’DOHERTY, 2002, XXI). O contexto agora supre uma grande
parte do conteúdo da Arte do fim do modernismo e pós-moderna. O recinto da galeria deixa de
ser transcendental, pois o transcendental refere-se a um outro mundo que não é o nosso: era o
mundo que Platão um dia concebeu, onde existiria a forma pura, totalmente desligada da vida da
experiência humana. O princípio de tudo (segundo Platão, um conjunto de elementos surgidos a
partir do vazio: ponto, linha, superfície, sólido, simulacro) imaginado sem conteúdo, a não ser em
sua própria natureza, é a principal bagagem da arte moderna.
Assim como cubo branco isola o seu conteúdo do mundo exterior, ele afasta o artista da
sociedade à qual a galeria também dá acesso, a vitrine aparece com grande força. Com isso, o
público que contempla a Arte não a está contemplando, apenas a idéia de Arte que se tem
mentalizada. Além disso, para forçar esse distanciamento, a relação do artista modernista se dava
primeiramente com seu marchand. O modernismo havia criado o artista que pensava a estrutura
social poderia ser modificada pela Arte; na verdade, a arte precisaria ser modificada primeiro,
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pois seria muito utópico e ingênuo pensar que se poderia modificar o social através de uma
estrutura tão elitizante:
“O artista que aceita o espaço da galeria estaria se submetendo à ordem social?
O desalento com a galeria seria um desalento com a função debilitada da arte, sua
cooptação e condição de errante um refúgio de fantasias desenraizadas e formalismos
narcisistas? Durante o modernismo, o recinto da galeria não foi visto como um
problema. Mas, por outro lado, é difícil aprender os contextos estando neles”
(O’DOHERTY, 2002, pág. 92).
Em 1926, Mondrian fez um esboço para uma instalação, Salon de Madame B. à Dresden,
materializado apenas em 1970, em Nova Iorque. A sala de Mondrian respira através das paredes,
todo o entorno da galeria é ocupado, como se o espectador se encontrasse dentro de um quadro
cubista. Esta obra era uma alternativa ao cubo branco, ainda que dentro dele, ignorada pelo
modernismo. Segundo Mondrian:
“Pela associação da arquitetura, da escultura e da pintura, será criada uma nova
realidade plástica. Pintura e escultura não se manifestarão como objetos separados,
nem como ‘arte mural’, que arruína a própria arquitetura, nem como ‘arte aplicada’,
mas por serem meramente construtivas ajudarão a criar um entorno são
simplesmente utilitário ou racional, mas também puro e perfeito por sua beleza”
(O’DOHERTY, 2002, pág. 98).
Enquanto as salas modificadas por Duchamp ainda aceitavam a galeria como um lugar de
diálogo, a sala imaculada de Mondrian recria um novo espaço que poderia tornar a galeria
dispensável, sua obra poderia ser montada em qualquer outro lugar. A moldura saiu, a colagem
desprendeu-se do quadro, o pedestal da obra de arte desmorona, deixando o espectador de parede
a parede. O cubo branco então passa também a ser a própria arte em potencial, passando a ser o
que se coloca lá dentro. Por meio de intervenções, o conteúdo implícito da galeria aparece
quando a utilizávamos por inteiro; a galeria torna-se consciente, a arte contida nela agora também
é crítica.
O ESPAÇO CONTEMPORÂNEO
A contemporaneidade mostra-nos uma obra que cumpre-se na sua externalidade. Rompe
com a tradição moderna da visão estática ligada ao ilusionismo, do objeto isolado que por si só
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apresentaria significado. Essa externalidade se dá a partir da tríade Obra, Espaço-Tempo e
Espectador. A obra contemporânea na experiência espacio-temporal do observador, que participa
de uma mutação de significados e sentidos. A obra vive com a incorporação ao seu redor e com a
participação do espectador. Alguns entendem isso como uma característica teatral, como o crítico
Thomas Hess, em 1963: “A presença de uma grande platéia é essencial para completar uma
transformação teatral. É impossível conceber a produção de pintura pop sem que se tracem alguns
planos para sua exposição. Sem a reação de seu público, o objeto artístico permanece um
fragmento” (ARCHER, 2001, pág. 61).
Antes de se discutir sobre novas intervenções é preciso analisar alguns conceitos. Uma
das maneiras, exposta aqui, de explorar e entender a arte contemporânea é através do espaço.
Alberto Tassinari apresenta três noções de espaço: o Espaço da Obra, o Espaço do Mundo
Comum e o Espaço em Obra.
O Espaço da Obra é a obra isolada de seu contexto: pintura e escultura existindo por elas
mesmas, um espaço naturalista, que imita o espaço do mundo ao seu redor, porque difere
completamente dele: um quadro, antes de ser uma obra, é uma superfície plana coberta por cores.
O Espaço do Mundo Comum é o espaço fora (“fora” é uma maneira muito
Greenbergniana de conceituação) da obra, onde existem todas as coisas, o espaço da vida, o
espaço ambiental.
O Espaço em Obra seria a união dos dois espaços anteriores, ou seja, o espaço da obra e
suas vizinhanças, da obra e tudo o que ao seu redor imanta:
“A comunicação promovida por um espaço em obra, entre o espaço do mundo
em comum e o espaço da obra é algo inteiramente novo na história da arte ocidental.
Tanto para uma pintura quanto para uma escultura contemporânea, o espaço do
mundo em comum passa a assumir funções que antes, na arte naturalista, e mesmo
na fase de formação da arte moderna, se cumpriam no próprio espaço da obra.
(...)Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas ao contrário,
solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte”
(TASSINARI, 2001, pág. 75).
Os readymades de Duchamp então mostram o espaço do mundo em comum se revelando
como obra, como espaço em obra; diretamente, sem imediações. No readymade, o espaço da obra
permeia com o espaço do mundo em comum e é no seu deslocamento, na formação de um
contexto próprio que se constituirá como espaço em obra, que vai diferencia-lo de um objeto
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cotidiano e fazer dele um objeto de arte. Se a obra na contemporaneidade se cumpre no campo
espaço-tempo/objetos/indivíduos, a moldura espacial da obra então se dissolve no mundo
cotidiano, de tal forma que esse mundo é reconhecido como espaço em obra.
OS ANOS 60
É a partir dos anos 50, e mais intensamente 60, que a Arte vai tendo suas fronteiras
quebradas. Uma constatação importante é que a pintura e a escultura estavam se distanciando de
suas origens e características primordiais, convergindo para um mesmo alvo; essas categorias não
morreram, mas se transformaram. Elimina-se a massa, base e o peso da escultura, e a moldura da
pintura; e então os limites entre elas se dissolvem: segundo Ferreira Gullar em sua Teoria do
Não-Objeto, tornam-se objetos especiais – não-objetos. Um exemplo é a Assemblage aplicada
por Robert Rauschenberg e Jasper Johns. Inicialmente classificados como Neodadá, devido ao
uso de forma peculiar de temas e objetos do mundo cotidiano, foram depois classificados como
Pop. A Assemblage possui dois preceitos, segundo Michael Archer: 1. Por mais que a união de
certas imagens e objetos possa produzir arte, tais imagens e objetos jamais perdem totalmente
suas identificação com o mundo comum, cotidiano, de onde foram tirados. 2. Essa conexão com
o cotidiano, desde que não nos envergonhemos dela, deixa o caminho livre para o uso de vasta
gama de materiais e técnicas até agora não associados ao fazer artístico. Rauschenberg trabalhava
na “lacuna” entre arte e vida, como pronunciava. A Assemblage também pode ser vista como um
movimento à parte, paralelo ao Pop: neste há o desenho simplificado, estilizado, vindo dos meios
de comunicações, privilegiando os meios expressivos bidimensionais, como gravura e pintura. Já
na Assemblage havia a maior aproximação com o tridimensional da escultura, na verdade,
gravura, pintura e escultura fundiam-se gerando uma nova natureza, a própria Assemblage.
E quando um Vazio é um espaço Pleno? Em 1957, Yves Klein esvazia uma sala de
galeria: sua obra chama-se “O Vazio”, com o título agregado “O Isolamento da sensibilidade num
estado de matéria-prima estabilizado pela sensibilidade pictórica”. Segundo Klein, essa
intervenção serviria para atestar a presença de uma sensibilidade pictórica em estado de matéria-
prima. A presença dessa sensibilidade pictórica seria a galeria vazia, e a fachada da frente pintada
de azul (o Azul Klein Internacional – azur). Por dentro, além de estar vazia, todas as paredes
foram pintadas de branco aqui a galeria funciona como um lugar de transformação, ocorre uma
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transformação interna na galeria, Klein separa os objetos artísticos das relíquias de um culto: “Ao
ser inserida na galeria ou na vitrine, a Arte é colocado entre ‘aspas’. Transformando a arte num
artificialismo dentro do artificial, insinua-se que a Arte de galeria é um quinquilharia, um produto
de boutique” (O’DOHERTY, 2002, pág. 105). A intervenção mostra um pouco dos pactos sociais
e estéticos que preservam a galeria. Utiliza uma única obra para revelar os limites da galeria, ou
abrange-a em uma única idéia.
Na mesma galeria em que Klein realizou sua intervenção (Íris Clert), o Vazio de Klein é
invadido pelo O Pleno (1960) de Armand P. Arman. Agora o espaço da galeria era totalmente
preenchido por lixo e sucata: não havia espaço para entrar, a obra só poderia ser observada pelo
lado de fora da sala, através da vitrine. É a primeira vez na história das intervenções em que o
espectador fica de fora da obra. Na verdade, a vitrine fica mais que evidente aqui, e o conteúdo e
a galeria são inseparáveis.
Em 1961, na Addi Kopcke Gallery, Estocolmo, questionava-se a comercialização da Arte
e a posição do marchand nesse comércio, através da obra de Daniel Spoerri. Este preparou seu
marchand para vender produtos comprados na mercearia pelo preço de mercado, sendo que cada
um possuísse o rótulo: “CUIDADO: OBRAS DE ARTE”, com a “assinatura de garantia” de
Spoerri: “será que o marchand percebeu essa paródia de comércio?” (O´DOHERTY, 2002, pág.
109). No mesmo ano, Claes Oldenburg transformou seu estúdio, que antes foi um loja,
novamente em loja, enchendo de modelos de itens de alimentação e vestuários. Estes eram feitos
de musselina embebida em gesso sobre estruturas de arame, pintados de esmalte de modo
irregular. Os objetos eram então colocados à venda: “os itens individuais à venda no armazém de
Oldenburg tornaram-se esculturas para ele devido à maneira como eram tratados. As pessoas
compravam-nos, levavam-nos para casa e se comportavam diante deles como se fossem peças de
escultura” (ARCHER, 2001, pág. 14).
Em 1964, Tom Wesselman liga os happenings aos objetos artísticos, com sua série
“Grandes Nus americanos” unindo cenário, técnicas mistas e novos elementos. Em seu Grande
Nu Americano n.º 54, um telefone de parede chamava intermitentemente. Em outro trabalho seu,
Caixa Teta Quarto, de 1968-70 havia a presença do busto nu de uma modelo. Essa característica
teatral também poderia ser observada nas obras de Ed Kienholz, de forma cruel como em A Casa
de Roxy (1961), uma cena de um bordel com um manequim robótico montado com sucatas.
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Em 1960, na Castelli Gallery, Nova Iorque, Ivan Karp pastoreava com um cajado os
travesseiros prateados feitos por Andy Warhol: “cada pedaço do recinto era dinâmico, do teto –
contra o qual os travesseiros se chocavam – ao chão, onde eles pousavam vez ou outra e eram
impulsionados de novo” (O’DOHERTY, 2002, pág.109). A vanguarda americana, para
O’Doherty nunca criticou exatamente a idéia de galeria, ao contrário da vanguarda européia. A
Pop Arte americana seria um misto de tolerância e crítica, refletindo a burguesia ansiosa por
espiritualidade: a crítica ao sucesso na sociedade americana é vista como um tipo de inveja. Já na
obra de Arman o público é obrigado a partilhar de sua raiva: sendo obrigado a observar do lado
de fora, o espectador torna-se um tema.
Em 1968, na Galleria Apollinaire, em Milão, Daniel Buren lacrou a galeria durante toda a
exposição: colou faixas verdes e brancas sobre a porta. O artista aqui é o catalizador, símbolo da
neutralização da arte e da eliminação do conteúdo: “Aqui houve Arte” (O’DOHERTY, 2002,
pág. 111). As faixas de Buren são uma metáfora da vanguarda européia, politicamente refinada,
“julgando o pacto social que deixa a arte ser feita e mesmo assim o deprecia” (O’DOHERTY,
2002, pág. 112). O uso das faixas também pode ser comparado ao lacre que os funcionários da
saúde fazem em estabelecimentos infectados: a galeria é um corpo social (e ideológico) doente. O
que Buren lacra não é a Arte contida na galeria, mas sim um sistema político econômico, um
sistema de credo e comércio. Segundo Daniel Buren: “como o artista pode contestar a sociedade,
quando sua Arte, toda a Arte, ‘pertence’ objetivamente a essa sociedade?” (O’DOHERTY, 2002,
pág. 113).
Em 1969, na Eugenia Butler Gallery, Robert Barry manteve fechada a galeria por três
semanas (de 1º a 21 de dezembro). No Art & Project Bulletin # 17, Barry havia escrito
“DURANTE A EXPOSIÇÃO A GALERIA ESTARÁ FECHADA”; a mesma frase fora colocada
no lado de fora da galeria. Seu projeto usava poucos recursos a fim de projetar a mente além do
invisível: “na galeria fechada, o espaço invisível (escuro? deserto?), desprovido do espectador ou
do olho, só pode ser penetrado pela mente” (O’DOHERTY, 2002, pág. 115). Vêm á mente os
conceitos de moldura e suporte, aqui a noção de arte é do espectador. É a destruição daquele que
se percebe e o que é percebido, o objeto e o olho, a visão está livre das convenções rígidas e
tradicionais.
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ARTE INSTINTIVA
A partir das intervenções, encontram-se alternativas para desviar a Arte da assimilação da
galeria: arte em local específico, temporária, sem comercialização, fora do museu, dirigida a um
público fora do meio artístico, passando do objeto para o corpo e para a idéia, até para a
invisibilidade; ainda que a arte dificilmente consiga escapar dos limites do cubo branco, pois ela
sempre retorna, seja em forma de retrospectiva do artista ou em mostras sobre a época: o cubo
branco também abrange a documentação. O que acontece é que a parede do cubo branco, antes
pintada de branco, impermeável, passa a ser transparente, de vidro, vislumbrando o mundo
exterior: “a ‘arte’ obriga o vazio atrás da porta fechada a se manifestar. Do lado de fora, a arte é
preservada e se recusa a entrar” (O’DOHERTY, 2002, pág. 114). A intervenção é a mais
instintiva das obras de arte, é, antes de tudo, um desejo de conhecimento; vê a galeria de arte
como um grande vazio cheio de conteúdos do que fora da arte, um espaço primeiramente
altamente idealizado.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção das operações artísticas nos procedimentos observados é libertar a obra para
que ela não seja apenas um objeto enclausurado do mundo apenas com a função de representar
algo. O pedestal teve de ser retirado para que a obra pudesse ser verdadeiramente inserida no
mundo real, como objeto-especial. A Arte também é Vida.
Segundo Theodor Adorno em sua Teoria da Estética, em 1961, início de uma época de
profundas transformações na Arte, afirma: “Hoje aceitamos sem discussão que, em arte, nada
pode ser entendido sem discutir e, muito menos, sem pensar” (ARCHER, 2001, IX). Uma
pesquisa sobre o tema então, é apropriada para discutir, questionar, pensar e refletir.
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BIBLIOGRAFIA
ARCHER, Michael. Arte Contemporânea: uma história concisa. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. – (Coleção “a”)
CESAR, Marisa Florido. O Ateliê do Artista. in Arte & Ensaios n.9 – Programa de Pós-
Graduação em Artes Visuais/ Escola de Belas Artes. UFRJ. Rio de Janeiro. 2002.
LEENHARDT; VASCONCELOS; MARTINS, Maria Helena. Rumos da Crítica. São
Paulo: Senac, 2000.
McCARTHY, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. – (coleção
“movimentos da arte moderna”).
MINK, Janis. Duchamp: a arte como contra-ataque. Lisboa: Taschen, 2006.
O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco: a ideologia do espaço da arte. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
TASSINARI, Alberto. O Espaço Moderno. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
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ANEXOS
Marcel Duchamp. Fonte. 1917. Readymade Marcel Duchamp. Milha de Fio. 1942.
Robert Rauschenberg. Cama. 1955. Técnica mista: óleo e lápis sobre travesseiro, colcha e lençol sobre suportes de madeira, 191,1x80x20,3cm.
Jasper Johns. Bandeira. 1954-55. Encáustica, óleo e colagem sobre tecido montado sobre compensado, 107,3x153,8.
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Tom Wesselman. Grande Nu Americano nº 54. 1964 Ed Kienholz. A Casa de Roxy. 1961
Claes Oldenburg. O Armazém. 107 East Second Street, Nova York, dezembro de 1961 (vista interna).
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