Eu nunca li Agatha Christie
Christiano de Almeida Scheiner
1
Dona Amanda, Márcia, João Paulo, Dr. Murilo e Augusto
Na penumbra, um corpo estirado no chão e outro manchado em sangue; um indivíduo
enforcado e outro estirado numa cadeira com uma bala na cabeça. Um indivíduo de pé
gemendo e correndo de um lado para o outro do palco. Um zumbido.
Voz (em off): Eu nunca soube qual era o limite. Eu nunca soube qual o limite. Eu
nunca soube qual limite. Eu nunca soube qual era o limite. Eu nunca soube qual o
limite. Eu nunca soube qual limite. Qual limite. Qual limite. Qual limite. Eu nunca
soube o que era o limite. Eu nunca soube do limite. Eu nunca soube... O limite. O
limite. Todo mundo tem seu limite.
As luzes se apagam. Novamente o zumbido. Todos saem do palco restando D. Amanda.
Foco em D. Amanda.
D. Amanda: Não havia ninguém quando eu cheguei. Primeiro eu pensei que era
algum tipo de brincadeira. Primeiro as coisas que a gente pensa não tem valor.
Como eu saberia dizer... como eu poderia.... Eu recebi o convite dizendo que era
aqui. Não poderia imaginar que as coisas, que os pensamentos... eu poderia ter
desconfiado é óbvio, poderia ter fugido... não dava mais para fugir. Eu cheguei
ainda quando o céu estava claro. E comecei a escrever no meu cardeninho.
Estava tudo tão vazio. Desconfiei que fosse uma brincadeira. Uma brincadeira
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infeliz... mas quem iria brincar com uma senhora como eu? Pensei que talvez
fosse algum homem, alguém que me amasse. Imaginei que fosse meu primeiro
amor querendo um encontro as escondidas. Mas eu nunca faria isso. Nunca me
encontraria dessa maneira. E já pensava em lhe dizer que estava errado em
querer se encontrar dessa maneira. Meu marido, eu tinha um marido, eu... eu não
podia traí-lo, não por que o amava, mas por que não era certo traí-lo. Eu já
pensava em ir embora. Esperei quantos minutos? Dez? vinte? Não me lembro.
Mas deu tempo de pensar em um monte de coisas. Imaginei que talvez fosse
algum corretor de imóveis esperto. Ou quem sabe um encontro de amigas,
daquelas que eu já não via há muito tempo. Me deu tempo pra brincar, sim, uma
brincadeira gostosa de imaginar qualquer coisa. Na verdade hesitando acreditar
que fosse um encontro com meu grande amor. Mas me peguei falando sozinha.
Vocês sabem, sempre aprendi que os loucos são os que falam a sós. Então, já
havia se passado minutos. Eu nem percebi que já escurecia. Eu estava indo
embora quando...
Márcia: (entra interrompendo D. Amanda) Hei! Não é aqui o número 15 desta rua?
D. Amanda: Sim. Acho que sim. Você não viu a plaquinha?
Márcia: Não...
D. Amanda: Se bem que estava escondida por trás da árvore.
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Márcia: Deve ser isso, essa árvore, ali fora, tampa toda casa... e... oh! me
desculpe por ir entrando assim. Eu sou Márcia. Lembra? Você que me mandou
aquele convite... ?
D. Amanda: (balbuciante) Não. Eu... também recebi um. Bem, mas pelo menos
não estou só. Estava... sim, a porta estava aberta, eu também fui entrando. Mas
ninguém me atendeu. Pensei que fosse algum tipo de brincadeira. Eu já estava
pra ir.
Márcia: Mas você deve conhecer a pessoa que nos mandou?
D. Amanda: Na verdade, não faço a mínima idéia.
Márcia: E por que a senhora veio, então?
D. Amanda: Como? Eu. Não foi você que mandou?
Márcia: Não.
D. Amanda: E você também não conhecia...?
Márcia: Eu também não. Que estranho... deve ser alguma brincadeira...
D. Amanda: E por que, então?
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Márcia: Por que o quê?
D. Amanda: Você veio?
Márcia: Me lembro de ter perguntado primeiro.
D. Amanda: Ah... sim, eu vim porque...
Dr. Murilo: (da coxia, entrando e interrompendo D. Amanda) Tem alguém em casa?
Tem alguém aí? (deparando-se com as damas) Ah... me desculpem por ir entrando...
é que vi que a porta estava aberta e...
Márcia: E resolveu entrar.
Dr. Murilo: Eu recebi um recado. Eu achei que fosse urgente. Onde está o
paciente?
Márcia: Então também não foi o senhor?
Dr. Murilo: Achei que fosse um caso urgente.
D. Amanda: Não era um convite?
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Dr. Murilo: Eu sou médico.
D. Amanda: Prazer. Eu sou dona de casa.
Dr. Murilo: Que brincadeira é essa?
Márcia: Não sei. Talvez o senhor nos responda.
Dr. Murilo: Escute, mocinha! Eu vim porque achei que havia um doente.
D. Amanda: Mas era o que o recado dizia?
Dr. Murilo: Bem, não literalmente... mas...
D. Amanda: Eu gostaria de saber por que nos convidou pra vir aqui?
Dr. Murilo: Olha, minha senhora. Eu não tenho todo o tempo do mundo pra esse
tipo de brincadeira.
Márcia: E você acha que nós temos?
Dr. Murilo: Como?
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Márcia: Ah, desculpa, e o Senhor acha que nós temos?
Dr. Murilo: Não, não foi isso que quis dizer. Como assim? Vocês não estão
brincando?
Márcia: Pra começar eu nem a conheço.
D. Amanda: Eu muito menos.
Márcia: E, portanto, a brincadeira só pode ter vindo do senhor.
Dr. Murilo: E uma das duas podem estar mentindo... ou as duas.
Augusto: (entra carregando João Paulo nos ombros, este está passando mal) Eu o
encontrei no portão desmaiado. Acho que iria entrar. Vocês não viram? Ah! Me
desculpem se entrei assim. É que vi que havia gente e... na verdade eu fui
convidado pra estar aqui... e....
Dr. Murilo: Eu falei que havia um doente.
D. Amanda: É, ele não está passando muito bem.
Márcia: (indicando João Paulo) Será que é outro convidado?
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Dr. Murilo: (vendo a pulsação de João Paulo) Bem, deve ter sido ele que me chamou.
Só pode.
D. Amanda: É, provavelmente um bêbado. Coitado.
Dr. Murilo: Não, ele não está alcoolizado.
Márcia: Mas tá muito mal?
Dr. Murilo: Parece que só foi um desmaio.
Márcia: Ainda bem que o senhor tá aqui. (olhando para Augusto) E você?
Augusto: Eu estava entrando pelo portão quando vi esse moço caído. Resolvi
entrar já que a porta estava aberta... Você deve ser a dona da casa!
Márcia: Me desculpe. Me desculpe. Mas já não tô entendo nada. Eu, quer dizer,
quem é você?
Augusto: Eu me chamo Augusto. Prazer.
Márcia: Não! Eu quis dizer, o que você faz? O que... bem... você não é dono da
casa?! Não foi você que nos convidou pra estar aqui?!
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Augusto: Que eu saiba, eu fui convidado.
D. Amanda: Bem, é só pensar... só poder ter sido o doente que nos convidou.
Márcia: E por que só pode ter sido ele?
D. Amanda: Hum, se o doutor recebeu o chamado de algum paciente dele...
Dr. Murilo: E quem disse que ele é meu paciente?
D. Amanda: Então o que faz aqui?
Dr. Murilo: Eu recebi... foi a minha secretária que me passou o bilhete... alguém
estava doente e vim, foi só?
Augusto: O senhor costuma atender assim? Isto é, sem saber quem é?
Dr. Murilo: É a minha profissão. Eu fiz um juramento. Eu... eu costumo sim...
D. Amanda: É, não se vê mais médicos assim hoje em dia.
Márcia: Pra mim ainda continua sendo estranho...
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D. Amanda: Mas não percebe que só pode ter sido ele (indica João Paulo) que nos
convidou?
Augusto: É, tem razão. Só pode ter sido...
Márcia: Mas quando ele estiver bom, vou querer saber direitinho dessa história.
Augusto: E você vai esperá-lo ficar bom?
D. Amanda: (sempre anotando tudo no caderninho) Eu é que não vou.
Dr. Murilo: (fala saindo da casa) Bem, assim que ele estiver um pouco melhor, irei
embora. Acho que esta brincadeira está passando dos limites. Vou pegar minha...
(a porta está trancada) Esta porta está trancada!
Todos correm pra ver.
Augusto: Deixe-me ver. (silêncio) Essa porta não abre por dentro!
D. Amanda: Como assim? Toda porta abre por dentro.
Augusto: Estamos trancados.
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Márcia: Não, não estamos. Não pode ser... como assim? Eu não estou... eu
acho... isto está muito confuso.
Dr. Murilo: Isto só pode ser uma brincadeira! Alguém está fazendo isso com a
gente.
D. Amanda: Mas por que ele faria uma coisa dessas?
Márcia: Eu não estou entendo o que está se passando por aqui...
D. Amanda: Alguém deve conhecer esse rapaz.
Márcia: Eu nunca o vi em minha vida.
Augusto: Eu também... mas o encontrei no portão. Aliás, não conheço nenhum de
vocês.
Dr. Murilo: Isto quer dizer que... somos todos estranhos...
Márcia: Uns com os outros? Sim.
Silêncio.
Márcia: Mas temos as janelas! Podemos pular as janelas.
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D. Amanda: Seria muito engraçado, (um risinho) eu, uma mulher nessa idade,
pulando janelas... mas eu não as vejo.
Augusto: Não há janelas.
Dr. Murilo: Como assim? Deve haver alguma!
Augusto vai até a outra coxia e volta. D. Amanda começa a anotar em seu caderninho.
Augusto: Só existe esse cômodo.
Dr. Murilo: Definitivamente trancados.
D. Amanda: Uma casa sem janelas.
Márcia: Isto não é uma casa. É um inferno.
D. Amanda: Pode alguém ter preparado isso tudo?
Márcia: Pode alguém me explicar o que está acontecendo?
Dr. Murilo: Eu tinha um paciente pra daqui trinta minutos.
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D. Amanda: Meu marido está me esperando em casa.
Augusto: Estamos trancados.
Márcia: Vocês não percebem?! Estamos trancados numa casa sem janelas!!!
Dr. Murilo: A brincadeira já passou dos limites. Um de vocês deve estar fazendo
isso.
Márcia: O senhor esta querendo dizer que um de nós planejou esta brincadeira?
Augusto: Isso não é brincadeira.
Márcia: Que seja! Qualquer jogo estúpido! Isto simplesmente não pode estar a-
con-te-cen-do.
Augusto: Algum maluco deve ter preparado isso tudo.
Dr. Murilo: (para as mulheres) Ou alguma... maluca?!
Márcia: Não, não, não. O senhor não está querendo dizer que pode ter sido uma
de nós?
Dr. Murilo: Não foi o que eu disse.
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D. Amanda: Não literalmente!
Dr. Murilo: Não literalmente.
D. Amanda: Acho que o senhor deveria ter mais consideração... aliás...
Márcia: Aliás, nós somos estranhos.
D. Amanda: Uns com os outros? Sim. Mas...
Márcia: Mas a senhora chegou aqui primeiro.
Augusto: Ou estava...
D. Amanda: Como? Agora não sou eu que estou entendo... vocês não acham que
eu faria uma coisa dessas, não podem achar. Eu sou uma dona de casa.
Augusto: Prazer. Eu sou estudante.
D. Amanda: Um estudante muito ousado, por sinal.
Márcia: Poderiam ser duas.
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Dr. Murilo: Duas mulheres! Claro.
D. Amanda: Ou duas pessoas. (para Augusto e João Paulo) Quem garante que
vocês dois não se conhecem?
Augusto: Não vê que o garoto está mal?
Márcia: Provavelmente porque viu que já não adiantava mais acabar com a
brincadeira.
Augusto: Não! Ele já estava mal quando o encontrei. Eu nem o conhecia. Eu
apenas... eu o trouxe pra cá.
Dr. Murilo: De repente ele nem era convidado e está participando dessa
brincadeira estúpida! Pobre rapaz.
Augusto: Mas ele estava no portão. Ele iria entrar, eu sei que iria.
Márcia: E como pode ter certeza que iria?
Augusto: Sei lá, pela disposição do corpo. Por estar no portão, quase entrando.
Entende?
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D. Amanda: Não pode ter sido você que o trouxe pra cá? Uma das vítimas que
não conseguiu fazer de idiota.
Dr. Murilo: Não fale nessa palavra.
D. Amanda: Qual palavra?
Dr. Murilo: Vítima. Essa palavra. Não fale.
Márcia: ... É como se todos fôssemos... é como se fôssemos vítimas... E sem
janelas, sem janelas, começaremos a sufocar, começaremos a ... eu não vou
pensar... meu ar vai acabar... eu não quero isso... eu...
Dr. Murilo: Se acalme, mocinha.
D. Amanda: É, isso não vai acontecer. Não somos vítimas, somos pessoas. Isso,
pessoas numa circunstância do acaso.
Augusto: Está melhor assim. Basta saber que acaso é este?
Dr. Murilo: Ou quem é este acaso?!
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D. Amanda: Numa brincadeira todos acabam bem, não? Eu me lembro, quando
eu era criança, tudo acabava bem. Brincávamos, brincávamos e nada acontecia.
Tudo voltava ao normal. Voltávamos pra casa. Voltávamos com vontade de mais...
Augusto: A senhora não entende que não somos mais crianças?
D. Amanda: Mas não entende que é uma brincadeira? Que tudo vai acabar bem?
Augusto: Está com medo?
Dr. Murilo: Ou está fingindo?
D. Amanda: Por que eu fingiria? Por quê?
Márcia: Na verdade, pode ser que não tenha sido nenhum de nós. Qual o louco
que se trancaria com quatro estranhos?
Augusto: Talvez (para João Paulo) aquele que estivesse pra morrer.
Dr. Murilo: Está ficando frio aqui.
Augusto: Não é frio.
Dr. Murilo: Como?
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Augusto: É o clima de dentro que está esfriando... não é apenas o frio, é o frio de
dentro... é...
D. Amanda: Será que ele está morto?
Dr. Murilo: (checando João Paulo) Não, não está. Fique calma! Só temos que cuidar
com as palavras. (se recompõe com firmeza) Realmente, não está frio.
D. Amanda: Alguém se lembrará de nós. Alguém tem horas?
Márcia: Eu não uso relógios. Me prendem, sabem? As horas me prendem...
Augusto: Eu também não costumo usar.
D. Amanda: Eu marco minhas horas pelo relógio da sala. (para o médico) Você
deve ter. É médico!
Dr. Murilo: É... uso o relógio do bip, mas quando estou a serviço... eu deixo no
carro, sabe... pra não incomodar ninguém.
D. Amanda: Assim como o celular?
Dr. Murilo: Eu não gosto de celulares.
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Augusto: Estamos sós. Entre estranhos. Trancados onde não há saídas.
D. Amanda: Podemos arrombar a porta!
Márcia: É de madeira maciça. Com duas fechaduras que não abrem por dentro...
Isto tudo só pode ter sido planejado... isto não é uma brincadeira. Não é uma
brincadeira! Vamos ficar aqui pra sempre!
D. Amanda: O pra sempre, minha filha, não existe.
Dr. Murilo: Engano seu.
D. Amanda: Como assim? Não existe, eu sei que não. Eu sei que não.
Dr. Murilo: É, é verdade. Não existe.
Márcia: Claro... o pra sempre... a-caba... quando... quando... chega-mos... vocês
sabem, não sabem? O pra sempre não existe...
Augusto: Quando morremos, você quer dizer.
Márcia: É o que eu penso.
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Augusto: Pra uma simples garota, você pensa em coisas estranhas.
Dr. Murilo: Realmente, não é normal que pense assim.
Márcia: Normal?! Vocês acham que tem como pensar normalmente estando
presa? É o que eu sei, agora é o que eu sei, e pronto! O pra sempre não existe!!
Não existe!
Dr. Murilo: Eu só espero que não esteja fingindo.
Márcia: Como assim, fingindo? Vocês acham que eu convidaria quatro pessoas
estranhas pra se divertirem comigo junto às minhas neuroses?
Augusto: Então você admite que as tem?
Márcia: O quê?
Augusto: As neuroses.
Márcia: Eu só estava falando como exemplo. Eu não tenho neuroses... eu sou
uma pessoa normal. Só estou com medo, só. Isto é normal! Não é? Não é normal
sentir medo? Eu nem sequer conheço vocês! Eu nem sei se vocês se conhecem
ou não! Eu nem sei se isto é acaso ou uma brincadeira idiota!
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Dr. Murilo: Calma. Calma. Não podemos tirar conclusões sobre nós mesmos.
D. Amanda: Concordo. Somos adultos suficientes para nos tratar com respeito.
Talvez se confiássemos uns nos outros tudo se resolva. Quem sabe o autor dessa
brincadeira não vê que somos pessoas boas, quem sabe não vê que somos
pessoas simples, meros normais e não volte atrás. E, bem... pode ser que se
arrependa. Pode ser que a gente pode ser amigos, não pode?
Augusto: A verdade é que estamos, todos, com medo.
A luz se apaga rapidamente, após alguns segundos de escuridão Dr. Murilo fica no centro
do palco. Foco em Dr. Murilo.
Dr. Murilo: A verdade é que estávamos todos com medo. Um medo que eu
começava a achar que nunca houvesse no mundo. Eu mesmo estava com medo,
um homem na minha idade sentindo medo de uma coisa que poderia ser o acaso.
Estávamos começando a supor coisas, das piores coisas. Eu mesmo já começava
a acreditar que tudo terminaria de uma maneira... senão trágica... absurdamente
inadmissível. Já começávamos a ver um futuro... um futuro? Mas que futuro
veríamos numa hora dessas? O que eu não podia acreditar era como eu tinha
caído nessa... nessa brincadeira... e, estas pessoas, como elas foram parar ali?
Eu não podia imaginar. Talvez, esperavam que fosse um bilhete sorteado, ou
alguma pessoa muito importante pra elas, ou quem sabe, em suas cabeças,
pudesse ser... qualquer coisa... menos isso. Eu? Eu fui por causa do paciente.
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Vocês sabem? Eu não podia imaginar que acabaria trancado numa casa... que
casa? Nesse lugar com quatro estranhos e entre eles um doente, bem, pelo
menos isso. Nesse momento eu ainda não estava pra desesperar, e se a pessoa
que nos convidou estivesse entre nós, talvez fosse justamente isso que quisesse.
Ver pessoas normais tendo ataques de nervos. Ou talvez nos soltasse se
estivéssemos num estágio animalesco. Ou talvez não. Pra mim qualquer um
poderia ser. Talvez fosse realmente o rapaz doente... mas nos voltamos pra ele...
foi um alívio, naquele momento que...
A luz se acende rapidamente.
Márcia: (imediatamente após acenderem a luz) Ele está acordando! Vejam!
Todos correm para o doente.
Dr. Murilo: Parece que sua consciência está voltando. Você está bem?
João Paulo: (recobrando os sentidos) Eu estou. Eu. Eu estou sonhando? (dá passos
para trás). Eu estava vindo... eu estava indo pra uma casa... mas eu perdi os
sentidos, eu... alguém pode me explicar o que está se passando?
Dr. Murilo: Calma. Está tudo bem. Talvez tenha sido só um desmaio.
D. Amanda: Você costuma ter isso sempre?
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João Paulo: Não eu... eu... e então... eu vim parar aqui.
Augusto: E você conhece algum de nós?
João Paulo: Eu quero ir embora daqui!
Márcia: E por que a pressa?
João Paulo: Eu não conheço vocês! Eu não sei o que estou fazendo aqui. Eu
quero ir embora.
Augusto: E tem certeza que não conhece ninguém que está aqui?
João Paulo: Sim, eu tenho certeza. Eu tenho certeza. Eu nem quero saber quem
são. Eu só quero sair daqui.
D. Amanda: A porta está trancada.
Márcia: Foi você, não foi? Diz, foi você que nos convidou pra essa reunião
estúpida! Diz! Foi você! Nós já sabemos. E agora?! Agora tá querendo fugir.
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João Paulo: Olha, eu nem conheço vocês e nem sei do que estão falando, eu só
quero ir embora. Isso nunca me aconteceu. Eu só estava entrando... eu ia pra um
encontro... e de repente apareci aqui.
Augusto: Junte-se a nós.
João Paulo: O quê é? Vocês são malucos?
Dr. Murilo: Não, apenas estamos na mesma situação que você. Com a diferença
de estarmos um pouco mais conformados.
Márcia: E eu estou achando que foi você que nos convidou para este lugar!
Dr. Murilo: Se foi ele, uma hora vai querer sair.
João Paulo: Isto só pode ser uma brincadeira.
Augusto: Todos já dissemos isso.
João Paulo: Me digam, verdadeiramente, o que está se passando.
D. Amanda: Bem, se estou certa, você deve ter recebido um convite para ir a um
local, afastado da cidade, o que seria uma casa, número 15, de uma rua sem
nome, aliás, isso se parece mais com um beco. Certo?
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João Paulo: Foi isso. Eu estava indo pra este local. Estava entrando pelo portão
quando...
D. Amanda: ... Você desmaiou. Este rapaz, que estava vindo para o mesmo local,
o trouxe para dentro, e de repente estávamos, todos nós, que também recebemos
bilhete igual, presos neste cômodo. Foi isso que te aconteceu.
João Paulo: Quer dizer que estamos presos?
Dr. Murilo: Todos nós.
João Paulo: Mas estão tão calmos...
Márcia: Eu disse, agora ele quer nos ver nervosos! Viu? Só pode ser ele.
Confessa! Diz que foi você que armou isso tudo?
João Paulo: Eu não teria por que armar.
Márcia: Não? Aposto que está nas últimas e resolveu convidar algumas pessoas
para fazer companhia para sua morte! Vê o teu estado? Você acha que vai
conseguir me enganar?
João Paulo: Eu nem mesmo conheço vocês.
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Márcia: Parece o plano perfeito. Quer ver como se morrem as pessoas, antes que
tu vá também!
Dr. Murilo: Acalme-se, não podemos tirar essas conclusões. Como teremos
certeza disso que acabas de falar?
D. Amanda: É, não podemos criar pânico entre nós, por mais que sejamos...
estranhos.
Augusto: E por mais que fiquemos aqui, estranhos continuaremos a ser. Este me
parece mais um jogo do que uma simples brincadeira. Nos encontramos de uma
tal maneira que seremos estranhos até sairmos daqui. No fundo, estamos todos
com medo. Estamos procriando neuras.
Dr. Murilo: Você fala de um jeito estranho.
João Paulo: Temos que arranjar uma maneira de sair daqui, isso sim.
Dr. Murilo: Você tem força para arrombar uma porta?
João Paulo: Na verdade sou muito fraco. O que essa garota falou, em parte é
verdade, eu já não sei quantos dias tenho pra viver.
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Márcia: Ah! Eu sabia! E o resto? Também é, não é? Você está querendo levar a
gente junto!
João Paulo: Eu já disse que não teria por quê! Eu já disse que mal conheço
vocês! Eu já disse, eu já disse! É tudo isso uma alucinação repentina, ou estamos
mesmo entre estranhos trancados num local sem saída? (pausa) Eu só quero ir
embora.
D. Amanda: Todos queremos.
Dr. Murilo: Mas se não podemos. Deveremos esperar.
Márcia: E esperar que eu morra dessa maneira?
D. Amanda: Acalme-se, querida, não morreremos dessa maneira. Tenha fé (tenta
abraçar Márcia, que sai de perto amedrontada).
Augusto: Bem, se não podemos confiar uns nos outros... se não podemos sair
daqui, talvez devêssemos tentar entender realmente o que está se passando.
Dr. Murilo: Se realmente alguém nos quer aqui dentro, deve haver pelo menos
um motivo. Ou talvez não sejamos tão estranhos assim...
João Paulo: (assustado) Como assim?
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Dr. Murilo: Talvez... talvez tenhamos algo em comum, é isso que eu quero dizer.
D. Amanda: Sim, somos pessoas normais.
Márcia: Vocês não têm mesmo noção! O que pessoas normais estariam fazendo
aqui? Eu não me sinto normal ao lado de vocês, trancafiada neste lugar! Alguém
aqui se sente? E só imbecis como eu teria a estupidez de acreditar num bilhete
como o que eu recebi. Um bilhete anônimo, estranho e misterioso. Imbecis, como
nós, eu quero dizer!
Augusto: É, acho que encontramos o ponto em comum.
D. Amanda: Pensando bem, ela não está de toda errada. Algo nos levou a estar
aqui. Uma esperança, algum sentimento nobre, talvez, mas algo nos trouxe até
aqui.
João Paulo: Quem nos mandou o bilhete, deveria saber bem (começa a tossir) que
viríamos.
Augusto: Esperança e sentimentos nobres? Quem de nós os tem?
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D. Amanda: Eu. Eu tenho. Eu achei que pudesse ser ele... que talvez o fosse.
Não sei, uma vez, há muito tempo a gente se encontrou num bairro afastado da
cidade. A gente...
Dr. Murilo: Quem? Você e quem?
D. Amanda: Foi por isso que vim. Mas não é ele, não, não é ele que está aqui.
(começa a se desesperar) E estou presa! E não é ele que está aqui! (se recompondo)
Aquele era o homem que mais amei.
Augusto: Então foi isso que lhe trouxe aqui? (começa a rir).
Márcia: Pare de rir, não vê que ela foi enganada?
Dr. Murilo: Isso! Enganada por quem?
Augusto: (irônico) Por quem mais? Por si mesma!
Márcia: Pare, eu já disse!
D. Amanda: Não. É verdade. Eu me enganei com esse maldito bilhete. Eu me
enganei...
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João Paulo: (para Márcia) Você está nervosa por que deve ter acontecido a
mesma coisa.
Márcia: (para Augusto e João Paulo) Por um acaso vocês dois estão juntos nessa
brincadeira? (D. Amanda anota algo em seu caderninho). E esse caderninho aí que a
senhora vive anotando coisas, pra que serve?
João Paulo: Isso não é coisa de gente normal.
Augusto: Pode ser uma dessas donas de casa que não tem nada pra fazer e
resolveu dar uma festa à parte, não?
D. Amanda: (nervosa) Parem! É que eu anoto tudo o que me acontece aqui. Sabe,
coisas que eu passo, é a minha identidade. Eu achei que um dia pudesse, quem
sabe... ele saberia de tudo pelo que passei, principalmente das coisas que passei
por ele, ou pensando nele. Se vocês quiserem podem ler. (entrega o caderno para
Márcia, esta fica lendo as anotações de D. Amanda).
Dr. Murilo: Apesar de toda a sinceridade com que a senhora parece falar, isso
ainda me parece muito estranho.
Augusto: Vejo que a palavra de ordem aqui é estranho. Realmente como já
haviam dito, não há como sermos normais numa situação dessas. Estamos
desesperados e não queremos admitir.
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Márcia: Eu não vejo nada que possa ser suspeito nesse caderno, a não ser muita
tristeza e muita esperança. A senhora acreditava mesmo que ele, esta pessoa que
ama tanto, estaria aqui?
D. Amanda: Pode ser ingenuidade da minha parte, mas sim.
Augusto: Você está querendo dizer que tem um amante e esperava por ele, é
isso?
D. Amanda: Sim, um amante que não me sai da cabeça desde que eu era
solteira.
Dr. Murilo: E por que não se casou com ele ao invés de ter se casado com seu,
então, marido?
Márcia: Vocês não estão entendendo, ela ama este homem que não se casou
com ele, mas é um amor muito maior do que a gente pode sentir.
D. Amanda: Começamos a namorar e de repente não o vi mais. Não tive notícias
suas, não sabia mais nada dele. Passado um tempo me casei com alguém que
pudesse compreender se não minha dor, meu silêncio. Quando eu recebi o bilhete
eu não pude deixar de pensar que fosse ele. A última vez que nos vimos ele me
disse que me amava e amava para sempre.
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Augusto: Me desculpa, mas a senhora foi muito ingênua mesmo.
D. Amanda: (com raiva) Algo que você jamais entenderia!
Dr. Murilo: Bem, eu não tenho muito a dizer a esse respeito.
Márcia: Ela o amava, ele a amava, eu estou certa disso. Não é possível que
alguém ame assim outra pessoa, sem nunca mais ter visto essa pessoa por tanto
tempo e ainda continuar e continuar. Acho que isso só pode ser um grande amor.
Desses que acontecem muito raramente.
João Paulo: (tossindo) Ao meu ver o amor não passa de uma grande tolice! Vocês
mulheres com suas idéias românticas. Não adianta que exista o feminismo e a
independência, parece que sempre vão lhes restar esse discurso sobre o amor,
parecem sempre persistir nessa mesma ladainha. Basta aparecer alguém para
dizer: “Eu te amo!”. Então, toda a independência desbota, aliás, minto, é uma
independência que nunca foi pintada.
Márcia: Para um doente você fala demais.
João Paulo: Para uma garota moderna você é bem...
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Dr. Murilo: Não termine a frase. Vocês não vêem que não é hora para esse tipo
de discussão.
Augusto: Concordo com o senhor. Devemos pensar em outras coisa muito mais
importantes do que nos agarrar a sonhos passados.
D. Amanda: Não é sonho passado! Estou aqui por causa disso. Sim, eu me
enganei, me enganei, me enganei, e me enganarei até meus últimos dias! Não
morrerei até que não reencontre este homem que amei e que amo e que sei que
me ama também!
Augusto: A senhora está dizendo que nesse tempo todo foi só amor?
Márcia: O que você está tentando dizer?
Augusto: Não vejo nesse amor todo se não uma raiva constante, um desejo muito
sutil de vingança. Pensa em anotar tudo o que lhe passa na mente e mostrar a
este suposto homem – sim, pois ninguém aqui sabe realmente se ele existiu ou
não a não ser a senhora mesma. Mas quem somos nós para duvidar da senhora?
Não é mesmo? Pois eu lhe digo o que todos já dizemos somos estranhos. Então,
com essas anotações, pensa jogar na cara do infeliz todo o seu sofrimento?
Márcia: Pare de falar dessa maneira.
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João Paulo: Eu não tenho como discordar de ele.
D. Amanda: Já estou começando a achar que vocês dois estão juntos nisso!
Dr. Murilo: Não leve essas rixas pessoais para o que nos ocorreu. Qual deles
saberiam da tua história? (pausa) Se ela é realmente verídica, é claro.
D. Amanda: Você também duvida?
Dr. Murilo: Não quis dizer isso, apenas...
Augusto: Sempre vi por trás de um romantismo belo um lago sulfúrico de ódio e
vingança.
Márcia: Você está indo longe demais.
Augusto: Então, por que achas que ele dará valor ao que escreveste se até hoje
nem mesmo apareceu para lhe dizer que está vivo? Acha mesmo que ele se
importa contigo? E se importar? Se te ama mesmo? Não vê que mais o deixará
triste e inconsolado caso lhe escarre na cara todo o TEU sofrimento?
D. Amanda: (desesperada) Pára! Pára! Eu não quero mais ouvir. (pega o caderno da
mão de Márcia e coloca no peito) Eu não quero mais ouvir. (começa a chorar) Não
quero mais. Não quero... não quero... (senta-se na única cadeira e fica, olho aberto em
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lágrimas, caderno no peito, um balançar de canção de ninar. Ainda sussurra baixinho)
Você não tem esse direito (repete essa última frase várias vezes enquanto a conversa
continua).
Márcia: Viu o que você fez?
Augusto: Eu apenas lhe disse a verdade.
Márcia: Verdade? Você chama isso de verdade? Você a destruiu!
João Paulo: Ou eu estou muito enganado, ou, pelo estado em que ela se
encontra agora, ela já está destruída há muito tempo.
Márcia: (triste) Tem razão. Eu... talvez, esteja enganada...
Dr. Murilo: Nessa circunstância em que nos encontramos, não seria de se
espantar que um de nós ficasse nesse estado.
Augusto: Vê o que ela tem.
Dr. Murilo: Eu?
Márcia: O senhor é o único médico por aqui.
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Dr. Murilo: (agitado e sem chegar perto de D. Amanda) Não vejo nada patológico.
Márcia: O que o senhor está dizendo? Não vê que ela está mal?
João Paulo: Estou com sede.
Dr. Murilo: (olhando em cima da mesa) Não tem água. (e observa os objetos que estão
ali embrulhados num saco de papel de pão) bem, é improvável que nestes sacos haja
água. (começa a tirar do saco objeto por objeto observando cada um) Mas temos uma
corda. (pega outro) um estojo; (abre o estojo) com giletes?! (mais tenso, abre outro
saco, vê que há um frasco sem rótulo e cheira o conteúdo do frasco) isso não me é
estranho, esse cheiro... mas não pode ser!
João Paulo: É água?!
Augusto: Líquido eu sei que é.
Márcia: Vamos, diz logo o que é isso. Não me deixa mais assustada. Isso tá
ficando muito mais perigoso do que eu imaginava ou melhor, eu não imaginava
nada. Eu estava vindo pra cá e de repente vocês, e D. Amanda foi a que vi
primeiro. Eu não estou não posso estar ficando louca. Eu simplesmente acho que
vou desmaiar, não sei, talvez... (black-out, luz em Márcia) Naquele momento eu
achei realmente que iria desmaiar. Eu não podia compreender aquilo. Ninguém
que estivesse comigo poderia. Quando D. Murilo tirou aquela corda eu não tinha
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por que me assustar, mas logo em seguida as giletes. Me perguntei rapidamente o
que a corda teria a ver com as giletes, mas não queria ouvir de D. Murilo o que
continha naquele frasco. Agora tudo parecia se encaixar muito rápido na minha
cabeça. Eu tinha a impressão de que não faltaria muitas horas para que todos
estivéssemos mortos. Mas como? Eu tinha ainda muito pra viver! Eu tinha que
reconquistar meu namorado! Passar no vestibular! Eu tinha uma vida e tinha de ter
um amor como D. Amanda teve! Eu não tinha que me apegar as idéias negativas!
Mas tudo estava tão claro! Uma corda, giletes, um lugar trancafiado! Um cubículo!
Uma doida com seu caderno romântico! Um doente! E se ele me passasse algum
vírus! Mesmo saindo viva dali eu já estaria infectada! Sim, já não havia saídas em
minha mente para que eu tivesse no estômago a palavra esperança. Mesmo que
não pegasse uma doença, eu estaria enfraquecida, nunca mais iria a uma casa de
estranhos. Não, eu ficaria em casa, mas teria medo de ficar trancada por dentro.
Eu teria de viver acompanhada! E não ficaria com nenhum homem num lugar
abandonado ou mesmo num quarto de hotel! Eu estaria presa, minha vida inteira
presa, num distúrbio! Eterna tempestade! Eterna tempestade! Eu não teria saída!
Vê! (grita mais alto) Vê!!! Mas desmaiei mesmo quando Dr. Murilo disse: Veneno.
Dr. Murilo: (imediatamente as luzes voltam ao normal) Veneno!
D. Amanda: (grita) Vocês não têm o direito!
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D. Amanda sai da cadeira e puxa o estojo com gilete. Cai um monte no chão, ela pega uma
gilete e, como se fosse se cortar, começa freneticamente a rasgar as folhas do seu caderno.
Nesta hora, antes mesmo de acender a luz, Márcia está desmaiada.
Dr. Murilo: (alucinado com o gesto de D. Amanda) Ela está louca! Ela está louca!
João Paulo: Só me tirem daqui! Está tudo louco neste lugar! Eu quero sair! (corre
para a porta).
Augusto: Parem os dois! (pega João Paulo pelos braços) Não adianta gritar, não
adianta...
João Paulo: Ela está louca, vai acabar matando a gente. Tudo culpa sua! Se não
tivesse dito aquilo tudo. Vê agora como ela está?! Ela está louca. (para Dr. Murilo)
Você que é o médico, faça alguma coisa! Não vê como ela está?
Dr. Murilo: Ela está... eu não cuido desse tipo de doença. Eu bem que já quis
uma vez, mas não consigo. Essa brincadeira está passando dos limites. Quero
saber quem é o responsável por isso!
Augusto: E a garota?
Dr. Murilo: Eu quero saber agora. Olha, se é um de vocês, fale agora, acaba com
isso. Ninguém vê o que está acontecendo aqui? Estamos ficando loucos, com
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sede, com fome.... com falta de ar... eu só quero sair daqui. Talvez quem está
fazendo isso, nem seja um de nós, mas seja lá quem for, com certeza não vai
querer perder essa cena toda ou escutá-la! (falando para o invisível) Então, escute
aqui, seja lá quem você for, não vai sair barato essa sua brincadeira! Escuta o que
lhe digo! É melhor nos tirar desse lugar agora ou se não...! Ah, eu te pego nem
que seja depois de morto!
Augusto: Não adianta gritar, quem está fazendo isso talvez nem esteja ouvindo e
se estiver é isso mesmo que quer ouvir. (pausa) A garota desmaiou.
João Paulo: Eu só quero sair. Eu só quero sair. Não vou agüentar muito tempo...
me deixem sair daqui.
D. Amanda acaba de rasgar o caderno e fica olhando, olhando pro ato que acabara de
cometer, está mais calma, mas o ar de demência perpetua... Ela não diz nada, fica olhando
para o resto do caderno.
Dr. Murilo: Veja, está tudo errado aqui. Um doente, uma louca, uma garota
desmaiada, quem será o próximo a definhar?
Augusto: Já estamos todos definhando. É só esperar e você vai ver em ti mesmo
os mesmos sinais de doença.
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Dr. Murilo: E como você tem tanta certeza disso? Pode ter sido você, sim, com
suas insinuações, o seu jeito, sempre calmo, sempre irônico. É você, não é? (em
direção de Augusto) Me diz! (pega pelos braços e o sacode) Me diz alguma coisa!
Augusto: (tenso, nervoso) O que você quer que eu diga? Que fui eu? Só por que
sou o único que tenta não se deixar levar pela demência? Não, eu vou sair vivo
daqui sim! Vou sim! Você quer que eu grite que fui eu que armei essa babaquice
toda? Eu digo, eu minto! Eu falo o que quiser! Mas não me atormente mais do que
já estou?! Você acha que também não estou confuso, que não estou assim (mostra
os outros personagens). Olha pra mim! (mais alto) Olha pra mim!!! (começa a tremer
todo e Dr. Murilo o solta).
João Paulo: Já não vejo pior companhia do que a de vocês.
Augusto: (volta ao estado de normalidade, irônico) Por quê? Por que vê em nós o
espelho da tua própria loucura?
João Paulo: Eu preferia o quarto do hospital.
Dr. Murilo: (mais calmo) Eu preferiria também...
João Paulo: Olhando pra vocês eu não sei o que é pior, a doença, esta que está
na carne, no corpo, antecipando a vida, ou esta outra que explode na mente feita
implosão. E agora, agora eu tenho as duas doenças em mim! (chora) Eu não
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queria... eu não queria... agora? Agora eu sou duplamente doente. Será o duplo
de um corpo doente a sua alma podre também? Qual o duplo da alma?
Augusto: Realmente você está sucumbindo sem nem sequer notar.
Dr. Murilo: Esse jogo está mais perigoso do que parece.
João Paulo: No entanto continuo aqui.
Augusto: Talvez o melhor fosse a morte.
D. Amanda se levanta da cadeira e começa a pegar os papéis que estão no chão guardando-
os sobre o peito.
Dr. Murilo: (espantado) O que você me diz?
Augusto: Eu apenas disse que o melhor seria morrer do que continuar nesse
estado. Seria a morte pior do que isso?
João Paulo: Já ouvi dizer que quando nos matamos, vamos para um lugar onde
ficamos presos... eu não quero mais. Eu só não queria... eu só não queria.
Dr. Murilo: Vocês estão pensando em se matar? É isso? Onde já se viu? Não.
Não. Eu não permitiria.
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D. Amanda: (completamente apática) Então, tem cura para o que eu sinto?
Dr. Murilo: (um sorriso nervoso) Você está melhor, viu?
D. Amanda: (ainda apática) Melhor? Melhor seria se não tivesse amado ninguém.
Melhor seria se nunca tivesse existido. (pausa) Então tem uma cura que se chama
morte?
João Paulo: Eu não queria morrer, mas...
Augusto: Mas está morto desde que nasceu.
João Paulo: Você não tem o direito de falar isso.
Dr. Murilo: Não comece com tuas verdades macabras.
Augusto: Mas é tão verdade, que você mesmo admite, senhor apaziguador de
conflitos.
João Paulo: É uma verdade, sim! Mas ninguém tem esse direito de revelá-la a
não ser eu mesmo. Que minha vida tenha sido uma bosta sempre! E daí? E daí?
(ainda chorando e gritando) E daí! que só eu tenho o direito de chamá-la de bosta!!!
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Augusto: Não se preocupe, nem eu nem você passaremos de hoje. Daqui a
poucas horas e você já escolheu o jeito certo para não continuar nessa bosta.
João Paulo se atira em Augusto esmurrando-o com sua pouca força, chorando, chorando.
D. Amanda: Então se eu me matasse eu continuaria presa?
João Paulo: (para D. Amanda) Cala a boca! Cala a boca! (se atira para D. Amanda,
mas Augusto o agarra).
Augusto: Pára! Pára com isso. (João Paulo tenta se soltar, mas é fraco demais).
Dr. Murilo: (vê que ainda falta um pacote a ser aberto. Irônico) Está faltando um
pacote, ninguém se atreve em abri-lo?
Augusto larga João Paulo e ambos olham para a mesa.
Augusto: Talvez tenha sido o senhor, não doutor? O que é isso, uma pesquisa
para operações futuras, ou resolveu se juntar a loucos de uma hora para outra?
Quem está tão calmo agora?
D. Amanda: Eu quero saber se há uma cura para isso!!! Há uma cura para um
amor tão monstruoso como esse que eu sinto? Alguém me ajuda. (desesperada):
Alguém me ajuda...
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João Paulo: Não seria melhor ajudar a garota?
Augusto: Para quê? Para que ela veja o próximo show de loucura? Com certeza
onde ela está agora é muito mais agradável do que aqui. O desmaio tem essa
vantagem de apenas não-estar...
João Paulo: E quando ela acordar talvez estejamos todos mortos...
Dr. Murilo: Pois bem, eu abrirei este pacote.
João Paulo: Acho que perdi a sede.
Augusto: É verdade, o desmaio tem a grande desvantagem de não ser a própria
morte.
João Paulo: Eu não quero mais ouvir as tuas coisas. Pára, por favor, pára (tampa
os ouvidos com as mãos).
D. Amanda: (olha para todos como se estivesse recobrando os sentidos, olha para mesa
e pega o pacote a ser aberto) Eu abro.
Augusto: É melhor deixar para lá (pega o pacote da mão de D. Amanda).
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D. Amanda: E se aí estiver a cura?
Dr. Murilo: Não quero parecer pessimista, mas... (pausa) não vejo cura nenhuma...
pelo menos agora.
D. Amanda: E quem disse que viver o presente e unicamente o presente é a
melhor coisa a fazer?! Quem foi o ignorante hedônico que nunca esteve trancado
como estou agora para vivenciar este presente que vivo!? (para Augusto) Sim, em
tuas mãos eu sinto a cura. Me dê o pacote.
Augusto: A senhora não vê que sempre esteve trancada?
D. Amanda: Eu só quero o pacote.
Dr. Murilo: Dê o pacote para ela.
Augusto: (entregando o pacote para D. Amanda) Toma. Mas não vejo cura alguma
para a tua doença.
D. Amanda abre o pacote com calma e retira de dentro uma arma.
D. Amanda: Vê! Aqui está a cura! (aponta para todos)
João Paulo: Foi a senhora, então?
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Dr. Murilo: Abaixe esta arma, senhora. Não vê que não adiantará nada se nos
matar?
D. Amanda: Eu não disse que atiraria em ninguém. Estou apenas apontando,
para a porta. Quem sabe podemos destruí-la? E não, não fui eu quem organizou
esta festinha. Porém... (mira para a porta)
Augusto: Não! Não desperdice nenhuma bala! Se é que a arma está carregada. A
senhora está louca. Nunca conseguiríamos arrombar esta porta com tiros. Deixe-
me ver a arma.
D. Amanda: Pra quê? Talvez você queira nos matar. Como vou confiar em um de
vocês? (aponta para Augusto).
Augusto: Pelo menos vê se está carregada.
D. Amanda: (abre o gatilho) Só há uma bala.
Augusto: Pode ser de festim.
D. Amanda: Acredito que não.
Dr. Murilo: E como a senhora entende tão bem de armas?
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D. Amanda: Meu marido foi da polícia.
João Paulo: Essa história está ficando cada vez pior. Já não vou agüentar muito
tempo. Me tirem daqui. Por favor, me tirem daqui. A sede volta.
D. Amanda: Não se preocupe, após a loucura a paz te abraçará. Vê como estou
calma?
Dr. Murilo: Mas não deixa de estar louca! Coloque a arma na mesa!
D. Amanda: Não. Vocês podem me matar. Quem vai garantir que isso tudo não é
um complô contra mim?
João Paulo: E quem, na tua tão fértil imaginação, poderia pensar em fazer um
complô contra ti? E por quê?
D. Amanda: (abaixa a arma) Tem razão. (pausa) Ninguém.
Augusto: Então me entregue a arma.
Dr. Murilo: (olhando com suspeita para Augusto) Ou coloque em cima da mesa. Caso
não tenha sido a senhora mesma a ... (hesita).
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D. Amanda: (aponta a arma para Dr. Murilo) Então, ainda desconfiam de mim?! Pois
eu digo e afirmo, sou inocente nesse jogo todo, mas bem que eu poderia ter
armado isso tudo caso tivesse “imaginação fértil” para tal! Sim, seria um
espetáculo saber possuidora de um domínio onde todos – exceto eu, pois já
estaria completamente louca – começariam por assim estar.
Augusto: E de repente a senhora percebe que não foi tão boa quanto a senhora
pensa ser.
D. Amanda: E quem pensará em bondade numa hora dessas? Me diz!
Augusto: Pelo que sei a bondade é um estado constante e não provisório.
João Paulo: Pare com isso. Não vê que só piora a situação com suas
provocações?
Augusto: Parar?! Como você quer que eu pare?! Por acaso estou louco ou esta
megera realmente quer nos matar?
D. Amanda: Chame-me do que quiser! Estou salva! Sempre fui boa sim, abdiquei
meu sonhos em troca de uma vida dedicada. Eu! Curei as feridas do meu marido.
Eu, criei quatro filhos com saúde e moral! E agora vem me dizer que nunca fui
boa! Guardei no peito a mágoa de uma amor perdido, sim! Mas nem por isso
deixei de orar por aquele que me abandonou. Poderia ter ido junto com ele? Sim!
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Uma vez ele me fez a proposta, mas era tão boa garota a ponto de partir, porque
pensei antes de tudo nos meus pais!
Augusto: E agora, percebendo que a bondade nunca te salvou da miséria
humana, resolveu expor teus delírios a quatro estranhos, que certamente não
sairão vivos para espalhar a teu cuidadoso mundo de bonecas que na verdade és
uma amargurada!
D. Amanda: Cala a boca! (aponta e puxa o gatilho).
Dr. Murilo: Agora você foi longe demais, moleque! Quem pensa ser para dizer tais
coisas a uma mulher honrada?
João Paulo: Estou com sede (tosse).
D. Amanda: É, é uma pena que não tenha sido egoísta a minha vida inteira. Mas
agora, eu posso não posso? Posso aniquilar um por um de vocês! Posso me
deliciar nos braços da maldade!
Augusto: Provando a si mesma que de fato nunca foste boa!
D. Amanda: (desiludida) Já não sei de mais nada. Agora, por alguns instantes, tive
mesmo a vontade de matar a todos. Eu acabaria de fato com tudo aquilo que
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acreditei. (para João Paulo) Você? Você tem idade para ser meu filho... (começa a
chorar) Eu só quero voltar ao meu mundo.
Dr. Murilo: Acalme-se. (tenta se aproximar e tirar a arma de D. Amanda).
D. Amanda: (afasta-se de Murilo e mira a arma mais uma vez) Talvez eu nunca tenha
sido tão boa assim.
Augusto: Então admite que já lhe passou pelas idéias a vontade de jogar tudo pro
alto, de quem sabe...
D. Amanda: Matar meu próprio marido? Sim. Já me passou a idéia de jogar tudo
no lixo. De por fogo na minha casa, de acabar com meus pais. Já os desejei
mortos. Quando doentes me telefonavam dia-a-dia, pois eu era a única filha que
podiam contar. E ao invés de minha ira voltar-se aos meus irmãos, voltava-se
contra eles, pobre inocentes!
Augusto: Inocentes, mas que por eles não vivera a vida que sempre sonhara.
João Paulo: E são culpados por isso?
Dr. Murilo: Vamos acabar com essa conversa.
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D. Amanda: Por acaso te incomoda saber que nunca fui tão honrada? Que meus
pensamentos me traíram a cada instante de caridade. É a máscara que cai agora,
não estou me fazendo de vítima. Não, pela primeira vez eu posso dizer que fui má!
Sim, vocês não vão sair daqui vivos e nem eu mesma, já acredito, para contar ao
mundo o quão pervertida eu já fui. Quantas vezes e quantas vezes eu mesma
sonhei, de olhos abertos, com a luxúria, já que tanto o amor e a vida doméstica
me foram em vão. Eu, lasciva. Sobre a cama?! Homens e homens e até mesmo
mulheres, por que não? Eram meus os pensamentos. (grita) Meus! Meus! Meus! E
o senhor? O que me diz? Assusta ouvir essas palavras de uma senhora como eu?
Imagina se meus filhos ouvissem tais confissões (começa a rir). Mas não! Eu os
protejo do meu mal. Meu mal, sim, a maldade, eu tentei fugir. Sim, passei muito
tempo indo a igreja.
Silêncio.
Dr. Murilo: A senhora não está passando bem. É melhor não falar mais nada.
D. Amanda: Por quê? Te agride?
Dr. Murilo: Não, é que...
D. Amanda: Sim, estou percebendo o quanto te agride. Pois eu digo que poderia
ficar nua agora. Falar com vocês, estar aqui, é como se eu estivesse em meu
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próprio lar. Melhor que isso, pois eu não poderia ficar nua assim como eu quero
agora (começa a rasgar a roupa).
Augusto: Não vê que nada adianta? Por que reprimir o que já não tem jeito?
Estamos todos no nosso final e o senhor ainda insiste na hipocrisia? Quem o
senhor pensa que vai convencer agora?
Dr. Murilo: Vocês são um bando de demônios, isso é o que são! Me metem num
lugar como esse para quê? Para que eu me entregue como esta mulher infeliz?
Não! Ninguém vai fazer isso comigo! Ninguém!
João Paulo: (tosse) Morrerá com a língua presa então?
Dr. Murilo: E o senhor morrerá com sede!
Augusto: Calma! Agora estamos falando do senhor.
Dr. Murilo: Pois eu não quero ouvir nada. Nem me conhecem! Não sabem de
nada!
D. Amanda vai até Márcia e a acorda.
D. Amanda: Acorda garota! O sono acabou! Acorda!
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Márcia: (acorda atordoada e corre de um lado para o outro louca) Eu não quero morrer!
Eu não quero morrer! Me tirem daqui! Me tirem daqui!
Augusto: Melhor seria se ela estivesse dormindo.
D. Amanda: Quero que ela ouça tudo também.
Dr. Murilo: Com que direito a senhora acha que pode fazê-la ouvir o que tens a
dizer? Não pode poupá-la de suas paranóias?
João Paulo: Me desculpe, doutor, mas não vejo espaço nesse momento para a
palavra direito. E paranóias? Para mim, isso está mais divertido do que nunca.
Dr. Murilo: Pra quem teve uma vida como a sua, eu imagino.
João Paulo: O senhor não tem o direito de falar assim da minha vida.
Augusto: Achei que você tivesse dito que nesse momento não há lugar para tal
palavra.
João Paulo: Mas minha vida não tem nada a ver com vocês. Que importa se
passei dezoito anos em hospitais e transfusões! Vocês tiveram uma vida boa, eu
não! Eu sou o único a ter o direito de ser apenas um observador.
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Márcia: (já cansada de tanto correr) Então observe bem quando eu te cortar todo
com essas giletes! (começa a catar um monte de giletes no chão).
D. Amanda: (aponta a arma para Márcia) Calma, não estamos aqui para nos matar
uns aos outros.
Augusto: E você acha que essa garota desmiolada teria mesmo a coragem de
matar alguém? (começa a rir).
D. Amanda: Estou ficando cansada do teu cinismo.
Augusto: Basta atirar.
Márcia: Não! Talvez seja isso que ele queira. Talvez tenha sido ele que armou
tudo isso, só pra que a gente pudesse matá-lo. Não foi? Sei. Ou foi mesmo esse
doente filho da puta que nunca teve uma vida decente e resolveu se vingar da
humanidade com esse joguinho barato.
D. Amanda: Ou foi você!
Dr. Murilo: Não importa saber quem foi o quê, já que não sairemos daqui.
Silêncio.
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Dr. Murilo: Todos tentamos nos controlar.
Márcia: Começaremos a sufocar.
João Paulo: Olharemos pros cantos procurando saída.
Márcia: Meu Deus! Alguém vai morrer! Eu tenho certeza. Alguém vai morrer!
Alguém vai morrer! Eu tenho certeza!
Augusto: E quando já não tivermos mais comida?
Dr. Murilo: Não temos comida!
João Paulo: Do que adianta antecipar a fome?
Augusto: Só estou falando.
D. Amanda: (rindo) Nós nem se quer nos conhecemos.
Dr. Murilo: Isto é loucura.
D. Amanda: Alguém irá nos encontrar.
Augusto: Dentro de nós?
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Márcia: O quê?
Augusto: Dentro de nós, apenas isso.
Márcia: Alguém para nos encontrar.
João Paulo: Pra matar minha sede?
D. Amanda: Dentro de mim só encontro amargura (caminha até a mesa, destrava a
arma e a deixa em cima da mesa, sem que a platéia e os personagens a percebam pega o
frasco de veneno).
João Paulo: Eu não quero olhar pra mim.
Márcia: Eu também tive um amor.
João Paulo: Vai começar aquelas estórias...
Márcia: É verdade, é verdade e ele me amava eu tenho certeza!
D. Amanda: (amável) Quem?
Márcia: O Luís, o Luís me amava, e agora...
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Augusto: Ele também te deixou, quem sabe?
Márcia: Não! Agora estou aqui! Agora estou aqui!
Dr. Murilo: Se acalme.
Márcia: Estou calma. Mas sim, ele me deixou, ele me trocou por outra. Aquela
garota não tinha nada que se meter com a gente.
Augusto: E por que você acha que ele te deixou então?!
Márcia: Eu não sei, eu não sei. Eu tenho certeza de que ele me ama. Eu sempre
fui boa. Sempre fui dedicada. Eu comprava sua comida preferida... (risinhos) é que
eu nunca fui boa cozinheira. Eu alugava seus filmes prediletos. Pintei o cabelo da
cor que ele queria. Eu cuidei dele quando estava doente e quando sua mãe
morreu eu fui a única que o deixou chorar. Vocês entendem?
D. Amanda: Diz a verdade! Depois que ele te largou... você queria matá-lo, não
queria?
Márcia: Não!
Augusto: Mas a vagabunda sim!
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Márcia: Ela não é vagabunda. Não diz isso dela. Eu não iria gosta que digam isso
de mim...
João Paulo: Você ainda a defende?
Augusto: Diz a verdade. Você poderia matá-la, não poderia?
Márcia: Não, não poderia...
Augusto: Eu sei que poderia!
Dr. Murilo: Que história é essa!
Augusto: Nunca teve vontade? Nem um pouquinho? Você é muito boazinha.
Márcia: Sei que sou. É por isso que eu me ferro sempre.
D. Amanda: Eu também sofro disso. (sem que os personagens percebam, ela toma o
conteúdo do frasco).
Dr. Murilo: É... eu também.
Márcia: Nossa! Então temos aqui uma reunião de pessoas boas...
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Augusto: Mas você não respondeu a pergunta.
Márcia: (irada) Que pergunta?
Augusto: Se você pudesse... se fosse por ele, pelo Rodrigo... você mataria...
Márcia: Você está indo longe demais com isso.
Dr. Murilo: Deixa a moça em paz. Já estamos todos loucos, não é preciso atiçar
mais nossos nervos.
Augusto: Os teus também?
Dr. Murilo: Não vou responder a tua pergunta.
Augusto: (voltando-se para Márcia) Mas você não respondeu a minha. (com raiva)
Você mataria não mataria? Admite! Admite!
Márcia grita ao ver D. Amanda se contorcendo com o frasco de veneno nas mãos. Todos
olham. Black-out. Márcia grita histérica!
Augusto: (ainda em black-out ele continua a perguntar) Você mataria? Você mataria?
(e afirma) Você mataria!
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Imediatamente foco em João Paulo.
João Paulo: Eu também havia pensado em me matar. A sede começava a me
sufocar. Todo aquele ambiente parecia inacreditável e mórbido, mas eu estava
mais perto da vida do que nunca estive. O susto, eu tentava mantê-lo vivo. Era a
única oportunidade de presenciar uma loucura que jamais se repetiria... para
qualquer um de nós... De certa maneira eu me sentia vivo. Mais vivo do que nunca
mas sem querer tossir. Eu me esquecia da tosse como se não fosse mais um
doente. Eu estava entre a doença. A própria, encarnada nos quatro cantos
daquele cômodo trancado. Um monte de estranhos que ao mesmo tempo parecia
um só. Sim, uma só pessoa éramos todos. Todos igualados ao excremento e ao
ápice. O paradoxo do sono era o de não desmaiar. Eu já chegara desmaiado. O
paradoxo de estar acordado era o de querer o sono profundo. De certa forma,
ninguém ali conseguiria agüentar por mais tempo. Entraríamos inevitavelmente
numa síncope coletiva. Oh! Me desculpem, nela já estávamos. Mas onde eu
estava mesmo? Eu só ouvia os gritos de Márcia envolvidos no sono da senhora.
Eu já havia ouvido muitos gritos, de agonizantes, para estar salvo de seu impacto.
E os outros? O Dr. Murilo apenas calou-se, como se o mundo desmoronasse sem
que precisasse expressar nada. Seus segredos morreriam com ele. Ou ele não
teria culpa nenhuma para roçar a gilete? Ninguém poderia responder. Não até ali.
Eu mesmo já não respondia nada, era mero observador. Só temia apreciar a
minha própria morte, e beberia o veneno de D. Amanda para saciar a minha sede.
Ela me traiu! Eu pensei! Ela me traiu! Eu poderia ter morrido sem a sede na
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garganta! Pensei que talvez fosse agüentar até ver o último morto estirado no
chão. Mas não me mataria enforcado porque a sede seria maior.
Márcia: (grita imediatamente após a última frase de João Paulo) Eu mataria! Mataria!
Mataria! Mataria! Mataria! Mataria. Mataria... Alguém vai morrer.
A luz volta ao normal. Márcia está toda ensangüentada pelos cortes da gilete, começa a
andar de um lado pro outro do palco até cair no chão, desmaiada, já mortos os sentidos.
Dr. Murilo: (assim que Márcia cai, vai ao seu encontro para medir-lhe as pulsações e fala
friamente) Ela ainda vive. Ouço sua respiração. Veja, eu não posso fazer nada.
(pausa) Ou talvez não queira.
João Paulo: O que faremos?
Augusto: Nada.
Dr. Murilo: Está satisfeito com tuas palavras? Elas estão mortas.
João Paulo: Márcia ainda vive.
Dr. Murilo: Mas vai morrer já-já. Mais rápido do que nós.
João Paulo: Quem será o próximo?
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Augusto: A morrer ou a se matar?
João Paulo: Tanto faz.
Augusto: Mas alguém ainda pode aparecer, não é?
Dr. Murilo: Que importa agora. Eu já nem sei de mais nada.
João Paulo: Minha sede passou. (para Dr. Murilo) Sangue mata a sede?
Dr. Murilo: (mais uma vez mede a pulsação de Márcia) Ela ainda esta viva.
Augusto: E a outra?
Dr. Murilo: Já deve estar no mundo dos mortos.
Augusto: Mas dizem que os suicidas continuam presos.
João Paulo: Ela morreu sem ser amada.
João Paulo caminha até D. Amanda e a beija na boca, um beijo longo, prolongado.
João Paulo: Eu nunca beijei ninguém assim.
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Augusto: Também nunca fez nada de errado.
João Paulo: Meu único erro foi nascer doente. E mesmo assim me sinto culpado.
Dr. Murilo: Ninguém tem a culpa de nascer doente.
João Paulo: Mas tenho a culpa de nunca ter dado paz aos meus pais. Você acha
que eu não vejo em seus olhos a lástima de ter um filho como eu? E acha que
eles lastimam simplesmente por mim?
Augusto: A tua vida é escrota.
João Paulo: Já não me fere esse tipo de ofensa. Não sou mais doente do que
todos aqui.
Dr. Murilo: Eu sempre achei que existiria cura para todas elas. (caminha para a
mesa e pega a corda, olha pra cima, pega a cadeira e faz sua forca).
Augusto: Vai matar sem confidenciar teus erros?
Dr. Murilo: Não devo nada pra ninguém. Eu nunca errei.
Augusto: E mentir não é um erro?
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Dr. Murilo: Desde que incomode quem mente.
Augusto: E se existir a cura? Você não tem esperança?
Dr. Murilo: Agora já não mais.
Augusto: Me diz! Eu preciso saber! Que erros cometeste em vida?! O que te faz
querer a morte?
Dr. Murilo: Agora percebo tudo. Foi você, não foi? Sim. Mas não importa que
tenha sido mesmo você. Já ganhou o queria, mas de mim não ouvirá nenhuma
palavra. Nenhuma culpa. Eu sou inocente!
Augusto: (com ódio) Me diz! Anda! Me diz! Ou não te deixarei morrer!
Dr. Murilo: Eu sou inocente!
João Paulo pega a arma em cima da mesa e aponta para Augusto.
João Paulo: Foi você? Foi você mesmo?!
Augusto: Cala a boca. Deixa o doutor de merda me contar tudo. Me conta!
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João Paulo: Por quê?
Augusto: Me diz!
Dr. Murilo: Eu sou inocente!
Augusto: Não, não é verdade. Alguma coisa se passa em tua cabeça. Alguma
culpa, alguma frustração. Algum lamento. Me diz! Eu preciso saber! (antes que Dr.
Murilo suba na cadeira Augusto a chuta com ódio) Tu não vais morrer até que eu saiba!
(tem um ataque de loucura) Eu quero saber! Eu exijo! Você tem que me dizer! Me
diz! Me diz!
João Paulo: Por quê? Por que disso tudo? Por quê?
Dr. Murilo: Morrerei de qualquer jeito e ainda sorrirei do teu pesar. Não lhe darei
esse prazer. Pensa que não vi, enquanto as pobres mulheres se entregavam ao
teu veneno, teu sorriso de satisfação?
Márcia começa a sacudir-se.
João Paulo: Ela ainda vive!
Augusto: (chuta Márcia) Morre vagabunda! Morre!
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João Paulo: O que ela te fez? Eu vou atirar! Pára com isso.
Augusto: (voltando-se para Dr. Murilo) Me diz logo!
Dr. Murilo: Está sem força rapaz? Agora quem está dominando o jogo?
Augusto: Cala a boca!
João Paulo: (sempre com a arma apontada para Augusto) Por quê? Me responde!
Dr. Murilo: De nada adiantou tanto trabalho, não acha? O que você conseguiu
afinal?
João Paulo: Mas se foi ele, deve saber como sair daqui.
Augusto: Eu só queria saber qual era o limite.
Dr. Murilo: O limite da dor?
João Paulo: (encosta a arma na cabeça de Augusto que desvia-se de Dr. Murilo por uns
instantes) Me responde!
Enquanto João Paulo e Augusto discutem, Dr. Murilo prepara sua forca.
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Augusto: Abaixe a arma. (começa a rir) Você nem sabe atirar!
João Paulo: Foi você mesmo?
Augusto: Você não está com sede?
João Paulo: Não!
Augusto: E você? Não vai me dizer que nunca havia pensado em se matar? Em
acabar com o tormento que causa aos teus pais! Me diz você.
João Paulo: Você é mais doente do que eu! Eu não vou entrar no teu jogo
também.
Augusto: Você não precisa, já ouvi de ti tudo o que quis ouvir.
João Paulo: E isso te dá prazer?
Augusto: Que prazer maior haverá em ouvir dos doentes suas lástimas?
João Paulo: Você é louco.
Augusto: E admito a loucura toda vez que rio. Vocês é que não são nada!
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João Paulo: Você vai morrer como a gente.
Augusto: Mas vou morrer rindo de todos vocês. Sentindo prazer. Eu domino a
vida! Eu domino o jogo!
João Paulo: E o doutor?
Augusto se vira assustado para o Doutor. João Paulo puxa o gatilho, nessa hora Dr. Murilo
despenca. As luzes se apagam. Ouve-se um tiro.
Pausa.
Uma luz em Augusto que, vivo, começa a gemer pelos cantos do cômodo. Angustiado ele
sofre se contorcendo entre os mortos.
Voz (em off) de Augusto: O limite da loucura é uma casa onde todos gritam, mas
onde o grito não ultrapassa as paredes, nem mesmo janela para entrar luz.
Pausa. A luz acende e apaga rapidamente, todos estão em cena.
Voz (em off) de Augusto: O limite do amor é o veneno.
Pausa. A luz acende e apaga rapidamente, D. Amanda não está em cena.
Voz (em off) de Augusto: O limite do sangue a gilete.
Pausa. A luz acende e apaga rapidamente, Márcia não está em cena.
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Voz (em off) de Augusto: O limite da asfixia é a corda.
Pausa. A luz acende e apaga rapidamente, Dr. Murilo não está em cena.
Voz (em off) de Augusto: O limite da dor é o tiro.
Pausa. A luz acende e apaga rapidamente, João Paulo não está em cena.
Voz (em off) de Augusto: O limite. E já me disseram que o limite do grito é a
garganta.
Pausa. A luz acende a apaga rapidamente, apenas Augusto em cena.
Voz (em off) de Augusto: O limite. Eu nunca soube qual o limite. O limite da
história é o fim.
Pausa. Black-out. Pausa maior.
Voz (em off) de Augusto: Dizem que o limite dos mortos é a eternidade.
Fim.
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