Sumário
Estudos de História da Igreja: do ano 0 ao ano 1517
I. Introdução .................................................................................................................................. 5
1. Lições da história. ................................................................................................................. 5
2. A contribuição dos romanos, dos gregos e dos judeus para o advento do cristianismo. ....... 5
II. Jesus Cristo: Historicidade e Ministério Terreno ..................................................................... 7
1. A Historicidade de Jesus Cristo. ........................................................................................... 7
2. A Cronologia da Vida de Jesus Cristo................................................................................... 8
3. A Vida de Jesus Cristo. ......................................................................................................... 9
III. Os Avanços da Igreja até 313 d.C. ........................................................................................ 11
1. O primeiro século. ............................................................................................................... 11
2. Os séculos II e III. ............................................................................................................... 13
IV. As Dificuldades Externas da Igreja até 313: ......................................................................... 15
1. A perseguição. ..................................................................................................................... 15
1.1) A perseguição no Primeiro Século. ......................................................................... 15
1.2) A Perseguição até Meados do Terceiro Século. ...................................................... 16
1.3) A Perseguição até o Edito de Milão. ....................................................................... 19
2. As Acusações. ..................................................................................................................... 20
V. As Dificuldades Internas da Igreja até 313: ........................................................................... 22
1. As Heresias. ......................................................................................................................... 22
1.1) O Ebionismo. ........................................................................................................... 22
1.2) Os Elquesaítas. ........................................................................................................ 22
1.3) O Gnosticismo. ........................................................................................................ 23
1.4) O Montanismo. ........................................................................................................ 24
1.5) O Monarquianismo. ................................................................................................. 24
1.6) O maniqueísmo. ...................................................................................................... 25
2. As Divisões Internas............................................................................................................ 26
VI. As Reações da Igreja: A Literatura dos Séculos II e III ........................................................ 27
1. Introdução. .......................................................................................................................... 27
2. A Literatura dos Pais Apostólicos. ...................................................................................... 27
2.1) Clemente de Roma (30-100 d.C.) ................................................................................ 27
2.2) Inácio de Antioquia ...................................................................................................... 27
2.3) Policarpo (c. 70-155), .................................................................................................. 28
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2.4) Papias, .......................................................................................................................... 28
3. A Literatura dos Apologetas e dos Defensores da Ortodoxia. ............................................ 29
3.1) Os apologetas. .............................................................................................................. 29
3.2) Os Defensores da fé. .................................................................................................... 31
VII. As Reações da Igreja: O Bispo, o Credo e o Cânon ............................................................ 33
1. Introdução. .......................................................................................................................... 33
2. O Bispo Monárquico. .......................................................................................................... 33
3. O Credo dos Apóstolos. ...................................................................................................... 35
3.1) A História do Credo. .................................................................................................... 35
3.2) A importância do Credo. .............................................................................................. 37
3.3) As raízes hebraico-cristãs dos credos e confissões. ..................................................... 37
4. O Cânon do Novo Testamento. ........................................................................................... 38
VIII. Fé Cristã, de Perseguida a Religião Oficial ........................................................................ 41
1. O período compreendido entre 313 e 590. .......................................................................... 41
2. A ascensão de Constantino. ................................................................................................. 41
3. O impacto de Constantino. .................................................................................................. 42
4. A união da Igreja com o Estado. ......................................................................................... 43
IX. Os Concílios e Credos Ecumênicos ...................................................................................... 46
1. A Controvérsia Ariana e o Concílio de Niceia (325). ......................................................... 46
2. O Debate Pneumatológico e o I Concílio de Constantinopla (381). ................................... 49
3. A Dupla Natureza de Cristo, o I Concílio de Éfeso (431) e o Concílio de Calcedônia (451).
................................................................................................................................................. 51
4. As Controvérsias Antropológica e Soteriológica. ............................................................... 54
X. O Surgimento da Vida Monástica .......................................................................................... 59
1. O novo estado da Igreja. ...................................................................................................... 59
2. As razões e a evolução da vida monástica. ......................................................................... 60
3. Uma breve avaliação da vida monástica. ............................................................................ 62
XI. O Fortalecimento do Bispo de Roma .................................................................................... 64
1. Raízes do fortalecimento do Bispo de Roma. ..................................................................... 64
2. Contribuições políticas e teológicas ao fortalecimento do Bispo de Roma. ....................... 65
3. Gregório, o Grande (540-604). ............................................................................................ 66
XII. O Fim da Antiga Igreja Católica .......................................................................................... 69
1. O papado e a supremacia da Igreja de Roma. ..................................................................... 69
2. A importância da tradição. .................................................................................................. 70
3. O desenvolvimento da liturgia. ........................................................................................... 71
4. Veneração a Maria. ............................................................................................................. 71
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XIII. A Ameaça Muçulmana ....................................................................................................... 73
1. Introdução. .......................................................................................................................... 73
2. Maomé (570-632). ............................................................................................................... 73
3. Os sucessores de Maomé, a expansão do Islã e as perdas da Igreja. ................................... 74
4. A doutrina islã. .................................................................................................................... 75
XIV. O Império Romano Redivivo ............................................................................................. 77
1. Introdução. .......................................................................................................................... 77
2. Os reis francos. .................................................................................................................... 77
2.1) A dinastia merovíngia. ................................................................................................. 77
2.2) Os primórdios da dinastia carolíngia e a Doação de Constantino. .............................. 77
2.3) Carlos Magno (742-814). ............................................................................................. 79
3. O feudalismo e uma nova restauração do Império Romano no Ocidente. .......................... 80
XV. O Apogeu do Poder Papal e o Primeiro Grande Cisma do Cristianismo ............................ 82
1. Introdução: a condição da igreja nos séculos X e XI. ......................................................... 82
2. A reforma cluniacense. ........................................................................................................ 83
3. O apogeu do papado. ........................................................................................................... 84
4. O cisma de 1054. ................................................................................................................. 85
XVI. As cruzadas ........................................................................................................................ 88
1. As causas das cruzadas. ....................................................................................................... 88
2. As principais cruzadas. ........................................................................................................ 90
2.1) A Primeira Cruzada. ..................................................................................................... 90
2.2) A Segunda Cruzada. ..................................................................................................... 90
2.3) A Terceira Cruzada. ..................................................................................................... 91
2.4) A Quarta Cruzada. ....................................................................................................... 92
2.5) A Cruzada das Crianças. .............................................................................................. 92
2.6) As demais Cruzadas. .................................................................................................... 92
3. Avaliação das Cruzadas. ..................................................................................................... 93
XVII. Pretensões Reformistas e o Declínio do Papado ............................................................... 94
1. O auge do poder papal: Inocêncio III e o IV Concílio de Latrão. ....................................... 94
2. As pretensões reformistas.................................................................................................... 96
2.1) As ordens monásticas. .................................................................................................. 97
2.2) Os movimentos reformistas leigos. .............................................................................. 98
3. O declínio do papado (1309-1439). ..................................................................................... 98
3.1) O Cativeiro Babilônico. ............................................................................................... 99
3.2) O Grande Cisma. .......................................................................................................... 99
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XVIII. Novos Tempos e Pré-Reformadores .............................................................................. 101
1. O anúncio de novos tempos. ............................................................................................. 101
1.1) O surgimento das nações-estados. ......................................................................... 101
1.2) A ascensão da burguesia. ...................................................................................... 101
1.3) A renascença e o humanismo. ............................................................................... 102
1.4) A expansão geográfica e a imprensa. .................................................................... 102
2. Reformas religiosas. .......................................................................................................... 103
2.1) John Wycliffe (c. 1320-1384). ................................................................................... 103
2.2) John Huss (c. 1369-1415). ......................................................................................... 104
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Estudo de História da Igreja: do ano 0 ao ano 1517
Jesus Cristo, a Igreja Primitiva e a Antiga Igreja Católica
I. Introdução
1. Lições da história.
Diversas e valiosas são as lições auferidas pelo estudo cuidadoso
da história da Igreja. A história, sobretudo, nos dá a percepção clara de que
somos parte de um processo que não iniciou conosco. Isso, por si só, já nos
indicaria que somente a história explica o presente (facilmente observamos as
razões de nossos erros e acertos, à luz da história), que necessitamos
urgentemente reforçar nosso senso de humildade e tolerância (porque a
história revelar-nos-á tão somente como parte de um cristianismo que
transcende nossa igreja e denominação), tanto quanto saberemos que rumos
tomar quanto ao futuro, que erros evitar e que acertos estimular (I Co 10:6, 11).
Ademais, não perderemos de vista, no curso desses estudos, as
lições práticas e aplicáveis à vida cristã pessoal. Nesse quadrante, a história
nos proverá inspiração poderosa para prosseguir, mormente nos momentos de
perseguição e dificuldade (impossível não aprender com os gigantes Inácio de
Antioquia e Policarpo de Esmirna em seu modo de enfrentar o martírio), e ser-
nos-á luz para compreendermos o desenvolvimento do estabelecimento da
teologia cristã ao longo dos séculos (impossível não aprender teologia com as
controvérsias cristológicas e teontológicas que envolveram nomes como
Gregório de Nissa, Basílio e Gregório de Nazianzo).
Não nutrimos quaisquer dúvidas de que “a ignorância da Bíblia e
da história da igreja é a razão principal por que muitos se enveredam por falsas
teologias e por práticas erradas” (Cairns).
2. A contribuição dos romanos, dos gregos e dos judeus para o advento do
cristianismo.
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Nos séculos que antecederam o cristianismo, o Rei das nações
não inspirou profetas nem produziu Escrituras Sagradas, mas usou
soberanamente as nações para preparar o mundo para o advento da primeira
vinda de Cristo. Deus conduziu a história até a “plenitude dos tempos” (Gl 4:4;
cf. Mc 1:15).
Os romanos deram sua contribuição política ao cristianismo,
produzindo um mundo onde a locomoção poderia se dar de modo pacífico e
eficiente (o que muito contribuiu para as viagens missionárias), através de um
sistema viário composto de estradas calçadas que interligava as cidades
estrategicamente.
Os gregos contribuíram, sobretudo, com o aspecto intelectual,
concedendo ao mundo de então uma língua universal (o grego koine, do
homem comum, espalhado poucos séculos antes por Alexandre e seus
soldados) e uma filosofia que tornava obsoletas as religiões antigas.
Entretanto, muito maior foi a contribuição dos judeus para o
cristianismo. Pode-se mesmo dizer que “o judaísmo pode ser considerado
como o botão do qual a rosa do cristianismo abriu-se em flor” (Cairns). Jesus
foi incisivo quando afirmou que a salvação vem dos judeus (Jo 4:22) e Paulo,
que aos judeus foram confiados os oráculos de Deus (Rm 3:2; 9:4, 5). Portanto,
o Antigo Testamento, com o seu monoteísmo e sua ética absolutamente
distintivas no mundo de então, a esperança messiânica e a instituição da
sinagoga, foram pontos de contato com os judeus que o cristianismo não iria
prescindir.
Portanto, Deus densificou os séculos que antecederam o
cristianismo para que tudo convergisse para o mundo que receberia o Messias,
vindo na “plenitude do tempo” (Gl 4:4).
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II. Jesus Cristo: Historicidade e Ministério Terreno
1. A Historicidade de Jesus Cristo.
A historicidade de Cristo não representa qualquer dificuldade para
um historiador desprovido de preconceitos. Além dos vinte e sete livros/cartas
do Novo Testamento e dos escritos dos pais da igreja (escritores cristãos dos
primeiros séculos do cristianismo), diversos inimigos da fé e críticos severos do
cristianismo mencionaram o Senhor em suas obras.
Tácito (c. 54 d.C. - c. 120 d.C.), historiador romano e governador
da Ásia em 112 d.C., ao escrever sobre o reinado de Nero, disse: "... Chistus, o
que deu origem ao nome cristão, foi condenado à morte por Pôncio Pilatos,
durante o reinado de Tibério ...".
Plínio, que foi governador da Bitínia em 112 d.C., escreveu ao
imperador Trajano, solicitando orientações sobre como deveria tratar os
cristãos. Nessa carta, Plínio afirmou que fez os cristãos "amaldiçoarem a
Cristo, o que não se consegue obrigar um cristão verdadeiro a fazer". Em sua
defesa, os cristãos respondiam, segundo Plínio, que sua única culpa era se
reunir antes do amanhecer e cantar hinos responsivos a Cristo, "tratando-o
como Deus".
Luciano (c. 125 d.C - c. 190 d.C.) foi outro escritor satírico do
segundo século. Ele zombou de Cristo e dos cristãos. Referiu-se a Cristo como
"o homem que foi crucificado na Palestina por que introduziu uma nova seita no
mundo" e como o "sofista crucificado", a quem os cristãos adoravam.
Outro historiador romano a mencionar Cristo em sua obra foi
Suetônio (c. 120 d.C.). Ele era um oficial da corte do imperador Adriano e
escritor das crônicas reais. Ele disse: "Como os judeus, por instigação de
Chrestus (Christus), estivessem constantemente provocando distúrbios, ele os
expulsou de Roma".
Josh MacDowell (citando F. F. Bruce) faz menção à carta de um
sírio de nome Mara Bar-Serapião, escrita por volta de 73 d.C., a seu filho
Serapião, na qual estimula este na busca da sabedoria, "ressaltando que os
que perseguiram homens sábios foram alcançados pela desgraça". Depois de
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dar exemplos de Sócrates e Pitágoras, Mara Bar-Separião diz: "Que vantagem
os judeus obtiveram com a execução de seu sábio Rei? Foi logo após esse
acontecimento que o reino dos judeus foi aniquilado".
Outro testemunho valioso da historicidade do Senhor está nos
escritos do historiador judeu Flávio Josefo (37d.C. - 100 d.C.). Josefo faz uma
alusão a Tiago, "o irmão de Jesus, assim chamado Cristo", a quem o então
sumo-sacerdote Anano, após reunir um conselho de juízes, acusou-o e o
entregou para ser apedrejado.
2. A Cronologia da Vida de Jesus Cristo.
O abade cita chamado Dionísio Exiguus (que morreu por volta de
550 d.C.) escolheu a data de 754 da fundação de Roma para o nascimento de
Cristo (ano 0 da era cristã), ao invés do ano 749 (ano 5 a.C. da era cristã, data
mais provável).
Sabe-se por Josefo que ocorreu um eclipse no ano 750 (4 a.C.) da
fundação de Roma, antes da morte de Herodes. Desse modo, na data
escolhida por Dionísio para o nascimento de Cristo, Herodes já estaria morto
há cerca de 4 anos, e não teríamos como encaixar os eventos das crianças em
Belém e a fuga para o Egito (Mt 2). A ordem da matança dos bebês de dois
anos para baixo (Mt 2:16) e a morte de Herodes em torno de abril do ano 4
a.C., portanto, impõem uma data para o nascimento do Senhor entre os anos 6
e 5 a.C.
O início do ministério do Senhor pode também ser razoavelmente
identificado. Tibério César começou a governar com César Augusto por volta
de 11 ou 12 d.C., e governaram juntos por dois anos. O ministério de João
Batista teve início no 15º ano de Tibério César, o que corresponde a 26 ou 27
d.C. (cf. Lc 3:1-3).
Ademais, quando Jesus tinha cerca de 30 anos (Lc 3:23), fez sua
primeira visita a Jerusalém, momento em que os judeus disseram que o templo
levou 46 anos para ser edificado (Jo 2:13, 20). Como sabemos que Herodes
começou a reinar em 37 a.C., e, segundo Josefo, a reforma do templo iniciou
no ano 18 do seu reinado (ou seja, em 19 a.C.), se somarmos 46 anos a partir
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de 19 a.C. teremos o ano 27 d.C. para esta primeira visita do Senhor a
Jerusalém. Ora, se nosso Senhor iniciou Seu ministério e fez a primeira visita a
Jerusalém após o batismo com cerca de 30, e isso se deu em 26 ou 27 d.C., é
óbvio que precisamos retroagir Seu nascimento em pelo menos 4 anos.
A duração do ministério do Senhor é geralmente demarcada a
partir das festas judaicas da páscoa, conforme mencionadas por João. Três
páscoas são expressamente referidas (Jo 2:13; 6:4; 12:1), além da
possibilidade de uma quarta em Jo 5:1, consoante concluem diversos
estudiosos. Destarte, o ministério do Senhor teria começado em 26 d.C., antes
da primeira páscoa, a do ano 27 d.C. (Jo 2:13), e terminado na páscoa do ano
30 d.C. (na quinta-feira da paixão, 7 de abril ou 14 de nisã).
3. A Vida de Jesus Cristo.
Temos quatro evangelhos aceitos desde cedo pela Igreja como
inspirados: Mateus, Marcos, Lucas e João. Mateus concentrou-se em falar aos
judeus que Cristo era o Rei-Messias esperado. Marcos, em apresentar o
aspecto prático do ministério do Senhor aos romanos. Lucas debruçou-se
sobre a humanidade do Senhor, enquanto João o apresentou como o Filho de
Deus, que salva os que creem - aqueles que o Pai Lhe deu, aos quais chamou
de "minhas ovelhas".
Das narrativas evangélicas, depreende-se que além dos fatos da
natividade, nada se falou sobre a infância do Senhor à exceção de Lc 2:41-50,
sendo certo que o Senhor recebeu formação na sinagoga e aprendeu o ofício
de Seu pai legal, José (cf. Mc 6:3). A concentração das narrativas está no
ministério público do Senhor e, sobretudo, na semana da paixão.
O ministério público do Senhor teve início em seu batismo por João
Batista, que precedeu Sua tentação no deserto e a escolha dos primeiros
discípulos que seriam Suas testemunhas e que continuariam Sua obra sob a
liderança do outro Consolador, o Espírito Santo.
Após o primeiro "sinal", em Caná da Galileia, o Senhor fez breve
visita a Jerusalém, momento em que fez a primeira purificação do templo (Jo 2)
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e teve uma audiência noturna com Nicodemus (Jo 3). Partindo para a Galileia
através de Samaria, teve um encontro com a mulher samaritana (Jo 4).
Rejeitado em Nazaré (Lc 4:16ss), o Senhor fez em Cafarnaum o
centro do Seu ministério, que foi sempre orientado pela convicção de que havia
sido enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15:24). De
Cafarnaum, o Senhor fez três viagens: na primeira, fez muitos milagres, dentre
os quais a ressurreição do filho da viúva de Naim, concluiu o chamado dos
discípulos e pregou o sermão do monte; na segunda, decidiu pelo ensino por
parábolas (Mt 13) e fez outros milagres, como a cura do endemoninhado de
Gadara e da filha de Lázaro; na terceira viagem, nosso Senhor deu
continuidade ao ministério de pregação, sempre acompanhado de curas.
Nesse período, fez visitas breves a Jerusalém, nas datas das festas da páscoa.
Após esse grande ministério galileu, o Senhor fez um pequeno
ministério em Jerusalém, ao tempo da Festa dos Tabernáculos, quando a
animosidade dos fariseus e saduceus acirrou-se contra Ele. Com o
recrudescimento da oposição dos líderes judaicos, o Senhor foi à Peréia, onde
fez breve ministério, e retornou para a última semana em Jerusalém, que
culminou com a crucificação.
Ressurreto, o Senhor só apareceu aos Seus discípulos e por
espaço de quarenta dias. Em Sua última aparição, ratificou a promessa quanto
à vinda do Espírito Santo e à Grande Comissão, ambas relacionadas ao
testemunho que deveriam dar a respeito dEle até aos confins da terra.
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III. Os Avanços da Igreja até 313 d.C.
1. O primeiro século.
Os ‘Atos’ de Lucas é a fonte de informação inspirada dos primeiros
anos da Igreja Primitiva. Os sete primeiros capítulos se ocupam com a igreja
em Jerusalém, que manteve-se como principal centro do cristianismo entre os
anos 30 e 45. A chegada do evangelho na Judéia e em Samaria é descrita nos
capítulos 8 a 12. A partir do capítulo 13, Lucas relata como o cristianismo foi
levado a outros povos, concentrando-se nas missões paulinas.
1.1) A Igreja em Jerusalém. Tudo começou no dia de
Pentecostes, quando judeus e prosélitos de todas as partes do mundo
conhecido encontravam-se em Jerusalém. A igreja formava uma pequena
reunião de cento e vinte pessoas na ocasião em que Judas foi substituído (At
1:15), e seu número total não era muito superior a quinhentos cristãos (I Co
15:6).
Após as evidências visíveis da descida do Espírito Santo, Pedro
pregou um “sermão de abertura”, no qual anunciou que Jesus de Nazaré é o
Cristo e conclamou o povo ao arrependimento, momento em que se
converteram três mil pessoas (At 2:41). A partir de então, o crescimento foi
rápido e ininterrupto (At 5:14). O número dos convertidos logo chegou a cinco
mil (At 4:4), incluindo conversões entre judeus helenistas (At 6:1) e até de
“muitos sacerdotes” (At 6:7).
Lucas nos informa que o modelo de vida da igreja em Jerusalém
era impressionantemente comunitário, tanto em seu espírito fraternal quanto na
comunhão de bens (At 2:44-45; 4:32-35).
Não havia templos. As reuniões ocorriam nas casas e a Ceia do
Senhor era partilhada no ambiente de uma refeição comunal. A vida da igreja
conquistou a simpatia do povo, trazendo como resultado evangelização
eficiente (At 2:47b).
Analisando essa "forma primitiva de comunismo", Robinson
Cavalcanti concluiu: que "o modelo de vida da Igreja em Jerusalém não era
normativo [para o mundo] (...)"; que "o modelo era uma opção da igreja", não
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obrigatoriamente seguido pelas demais; que "viver o modelo era uma opção
livre" de cada cristão; que o modelo está baseado em um equívoco
escatológico: "a crença de que o Senhor voltaria logo, não valendo a pena
gastar tempo com outras coisas"; e, que "o modelo fracassou, porque era um
comunismo de bens e consumo, e não de bens e produção". Observando por
outro ângulo, Russell Shedd atribui a comunhão vivida entre os irmãos
primitivos ao poder do Espírito no seio da igreja recém-nascida. Shedd afirmou:
“Um avivamento genuíno transforma esses meros ajuntamentos em comunhão
de verdade, em linguagem do Novo Testamento, ou seja, koinonia”.
1.2) A Igreja na Judeia e Samaria. A visita de Filipe a Samaria (At
8) foi a primeira investida cristã a um povo que não era judeu puro, trabalho
que veio a ser apoiado por Pedro e João. Pedro foi também o primeiro a levar o
Evangelho aos completamente gentios, na ocasião em que, após uma
revelação que pretendia dissipar seus preconceitos raciais e teológicos, pregou
na casa de Cornélio (At 10-11).
Percebe-se que nesses primeiros momentos, os adeptos do
cristianismo se sentiam tão somente uma parte do judaísmo. A maneira como
tentavam conciliar a nova piedade com o templo de Jerusalém demonstra isso
(At 2:46), tanto quanto a resistência em divulgar as boas novas a não judeus
(At 10:9-16; 11:19).
Foi somente em Antioquia que um grupo “mais aberto”, formado
pelos que eram de Chipre e de Cirene, começou a pregar entre os gentios (At
11:20). Lucas deve ter registrado com muito prazer que “a mão do Senhor
estava com eles, e muitos, crendo, se converteram ao Senhor” (At 11:21). Foi
assim que nasceu a igreja que logo se tornaria o novo grande centro do
cristianismo.
Com os resultados do trabalho em Antioquia, a igreja em
Jerusalém enviou Barnabé para reforçá-lo (At 11:22), o homem que integrou
Paulo no ambiente cristão de Jerusalém (At 9:27) e que agora o buscaria para
auxiliá-lo no serviço daquela igreja (At 11:25, 26).
1.3) O cristianismo para todos os povos. Cairns observa que
“como nenhum outro na Igreja Primitiva, Paulo entendeu o caráter universal do
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cristianismo e entregou-se à sua pregação aos confins do Império Romano
(Rm 11:13; 15:16)”.
É para Paulo que se voltarão as atenções de Lucas a partir do
capítulo 13 de Atos, quando, à exceção do capítulo 15, que dedica à
Assembleia de Jerusalém, narra três viagens missionárias (At 13:1-21:16), a
prisão do apóstolo aos gentios em Jerusalém (At 21:17-23:22), em Cesaréia (At
23:23-26:32) e sua viagem a Roma (At 27:1-28:15), onde permaneceu preso
por dois anos (At 28:16-31).
Uma tradição que remonta Clemente de Roma (c. de 95 a.D.)
informa que Paulo fez ministério profícuo após a soltura dessa prisão em
Roma, visitou igrejas, escreveu cartas e voltou a ser preso na onda de
perseguição levantada por Nero, sob quem foi martirizado em cerca de 65 ou
66.
Entretanto, certamente que as missões cristãs do primeiro século
não se resumiam ao ministério paulino. Tiago, o filho de Zebedeu e irmão de
João, o primeiro dentre os apóstolos a sofrer o martírio, foi decapitado em 44,
sob a ordem de Herodes Agripa I. Tiago, meio-irmão do Senhor, tornou-se líder
proeminente da igreja em Jerusalém (Gl 1:19), foi jogado do pináculo do templo
e morto a pauladas.
André, irmão de Pedro, pregou no Oriente Antigo. Judas Tadeu
exerceu ministério na Pérsia, onde foi martirizado. Matias, o substituto de
Judas, pregou na Etiópia, onde sofreu martírio. O nome de Mateus também é
associado à Etiópia e há tradição que relaciona os nomes de Tomé e
Bartolomeu com a Índia.
João, o outro filho de Zebedeu, é associado a Pedro no relato de
Lucas. Longa tradição afirma que após o exílio em Patmos, sob Domiciano,
João exerceu ministério em Éfeso e nas igrejas da Ásia até morrer. Foi,
provavelmente, o único dos doze a não passar pelo martírio.
2. Os séculos II e III.
O cristianismo, que começou com uma maioria esmagadora de
judeus e concentrado na parte oriental do Império Romano, no segundo século
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já era composto predominantemente por gentios, alcançando regiões da Ásia,
Europa e África em torno do mediterrâneo. A carta de Plínio a Trajano (sobre a
qual voltaremos a falar) dá-nos conta de forte presença cristã na Ásia Menor:
"Esta superstição contagiou não apenas as cidades, mas as aldeias e até as
estâncias rurais".
Por volta do ano 200, “os cristãos se encontravam em todas as
partes do Império”. O cristianismo floresceu no norte da África, e Cartago e
Alexandria tiveram igrejas fortes. “Estimativas sobre a população da igreja, por
volta de 250, variam entre 4 e 15 por cento da população do Império, que
girava em torno de 50 a 75 milhões” (Cairns).
Relevante, nesse ponto, é inquirirmos sobre como a igreja primitiva
cresceu de maneira tão perceptível. Justo González afirma que depois do Novo
Testamento são escassos os dados históricos de missionários como Paulo ou
Barnabé. Para ele, a difusão geográfica do cristianismo se deveu,
principalmente, ao trabalho de "cristãos anônimos" que, em viagens "por
diversas zonas", levavam sua fé e faziam conversos.
As reuniões permaneceram concentradas nos lares e, em algumas
ocasiões, com o crescimento das congregações, casas eram utilizadas
exclusivamente para o culto. Os templos cristãos mais antigos, pelo que se tem
notícia, datam de meados do terceiro século.
Por outro lado, o crescimento da igreja nesse período não se deu
sem dificuldades externas (perseguições e acusações) e internas (heresias e
dissensões), conforme veremos.
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IV. As Dificuldades Externas da Igreja até 313:
As Perseguições e as Acusações
1. A perseguição.
1.1) A perseguição no Primeiro Século.
As primeiras perseguições sofridas pelos cristãos foram movidas pelos
judeus, por intermédio do Sinédrio. Os apóstolos sofreram prisões, açoites e
ameaças a fim de pararem de ensinar a nova doutrina que desafiava a
estabilidade da religião judaica institucionalizada. Pedro e João foram os
primeiros a enfrentar a pressão político-religiosa, e o fizeram de modo a não
abrir mão da vocação a que tinham sido incumbidos: “Julgai se é justo diante
de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; pois não podemos deixar
de falar das coisas que vimos e ouvimos” (At 4:19, 20). Em nova prisão, os
apóstolos foram açoitados (At 5:40) e novamente ameaçados, mas reagiram
com alegria por Deus lhes haver concedido a honra de sofrer pelo nome de
Jesus (At 5:41).
Foi a perseguição judaica que deu ao cristianismo seu primeiro
mártir, Estevão (At 7). O apóstolo Paulo, que consentiu na morte de Estevão
(At 8:1) e promoveu perseguição em Jerusalém e cercanias (At 8:3; 9:1; 22:4,
5; 26:9-11), também padeceria tanto nas mãos dos seus compatriotas, pelos
motivos que perseguiu, sobretudo em Tessalônica, Beréia e Jerusalém, quanto
por gentios, insuflados ou não por judeus.
A perseguição assumiu caráter mais político nos dias em que
Herodes Agripa I mandou matar a Tiago e prender a Pedro, que só não morreu
na ocasião em face da intervenção divina (At 12).
O primeiro imperador romano a perseguir a igreja cristã foi Nero.
Os rumores de que o próprio Nero havia sido o responsável pelo grande
incêndio em Roma, em julho de 64, o levou a achar nos cristãos os “culpados
ideais”. A perseguição neroniana se circunscreveu a Roma e arredores, e nela
foram martirizados os apóstolos Paulo e Pedro.
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É o historiador Tácito que nos dá conta da barbárie a que foram os
cristãos submetidos por Nero: "(...) Acrescente-se que, uma vez condenados à
morte, eles [os cristãos] se tornavam objetos de diversão. Alguns, costurados
em peles de animais, expiravam despedaçados por cachorros. Outros morriam
crucificados. Outros ainda eram transformados em tochas vivas para iluminar a
noite. Para esses festejos, Nero abriu de par em par seus jardins, organizando
espetáculos circenses em que ele mesmo aparecia misturado com o populacho
ou, vestido de cocheiro, conduzia sua carruagem" (in Documentos da Igreja
Cristã).
A segunda perseguição movida por um imperador romano eclodiu
em 95 a.D., sob a batuta de Domiciano, provavelmente por causa da recusa
dos judeus em financiar, mediante um imposto imperial, o culto a Capitolinus
Jupiter. Por ainda serem identificados como judeus, os cristãos foram
perseguidos. Nessa perseguição, João foi exilado na ilha de Patmos, onde
registrou suas visões de Apocalipse: “Eu, João, irmão vosso e companheiro na
tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada
Patmos, por causa da Palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Ap 1:9).
1.2) A Perseguição até Meados do Terceiro Século.
Entre os anos 100 e 250 as perseguições foram locais e
esporádicas. Uma delas ocorreu na Bitínia, quando Plínio a administrava. Plínio
Segundo, o Jovem, foi nomeado governador da Bitínia (a costa norte do que
hoje é a Turquia) em 111 d.C. A conversão ao cristianismo estava
empobrecendo o comércio em torno das religiões pagãs, fato que preocupava
Plínio.
Este, por sua vez, escreve ao imperador Trajano (98-117) sobre
como estava lidando com os cristãos, ou acusados de o serem, e pedindo
conselhos a respeito: "Tenho muitas dúvidas a respeito de certas questões, tais
como: estabelecem-se diferenças e distinções de acordo com a idade? Cabe o
mesmo tratamento a enfermos e robustos? Aqueles que se retratam devem ser
perdoados? A quem sempre foi cristão deve gratificá-lo quando deixa de sê-lo?
Há de punir-se o simples fato de alguém ser cristão, mesmo que inocente de
qualquer crime, ou exclusivamente delitos praticados sob esse nome?".
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Plínio também diz a Trajano como estava lidando com a questão
do cristianismo: "eis o procedimento que adotei nos casos que me foram
submetidos sob acusação de cristianismo. Aos incriminados pergunto se são
cristãos. Na afirmativa, repito a pergunta segunda e terceira vez, ameaçando
condená-los à pena capital. Se persistem, condeno-os à morte (...) tratando-se
de cidadãos romanos, separo-os para enviá-los a Roma".
Plínio ainda informa a Trajano que recebeu uma lista anônima com
muitos nomes. Após a pressão do governador, alguns negaram ser cristãos,
mas todos foram unânimes em confessar que sua culpa consistia de que "em
determinados dias, costumavam comer antes da alvorada e rezar
responsivamente hinos a Cristo, como a um deus; obrigavam-se por juramento
não [cometerem] algum crime, mas à abstenção de roubos, rapinas, adultérios,
perjúrios e sonegação de depósitos reclamados pelos donos. Concluído este
rito, costumavam distribuir e comer seu alimento".
O imperador Trajano respondeu a Plínio que os cristãos "não
devem ser perseguidos. Mas, se surgirem denúncias procedentes, aplique-se o
castigo", devendo ser perdoado aquele que se retrata e retorna à adoração dos
deuses (citações extraídas de Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã).
A política de Plínio ocorreu como recomendada pelo imperador, no
sentido de não caçar cristãos, mas se alguém fosse acusado de negar a
adoração aos deuses e se recusasse a negar a fé, deveria ser castigado.
Nessa perseguição, Inácio, o Bispo de Antioquia, por volta de 107, foi
martirizado.
Outra perseguição explodiu no tempo do imperador Antonino, o Pio
(138-161), na cidade de Esmirna em meados do segundo século, ocasião em
que Policarpo foi martirizado. Na presença do procônsul, Policarpo foi
admoestado a "jurar pelo gênio de César", a gritar "abaixo os ateus" e a
"insultar a Cristo". A isso Policarpo respondeu: "Oitenta e seis anos há que
sirvo a Cristo. Cristo nunca me fez mal. Como blasfemaria contra meu Rei e
Salvador?"
As últimas palavras da oração final de Policarpo foram estas:
"Possa eu, hoje, ser recebido na Tua presença como uma oblação preciosa e
aceitável, preparada e formada para ti. Tu és fiel às tuas promessas, Deus fiel
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e verdadeiro. Por esta graça e por todas as coisas, eu te louvo, bendigo e
glorifico, em nome de Jesus Cristo, eterno e sumo sacerdote, teu Filho amado.
Por Ele, que está comigo, e o Espírito Santo, glória te seja dada agora e nos
séculos vindouros. Amém! (in Documentos da Igreja Cristã)". Depois da oração,
os algozes acenderam a fogueira, que não queimava o corpo de Policarpo,
razão pela qual foi morto com a espada.
Digna de nota também foi a perseguição movida pelo imperador
Marco Aurélio (161-180), por creditar as calamidades que ocorreram em seu
reinado (invasões, inundações, epidemias etc.) ao crescimento do cristianismo.
Justo González propõe que, “talvez, como Plínio anos antes, Marco Aurélio
Pensasse que era necessário castigar os cristãos, senão por seus crimes, pelo
menos por sua obstinação”. Nessa perseguição, Justino Mártir e Blandina
foram martirizados.
Ainda nos dias de Marco Aurélio, as igrejas de Viena e Lyon, na
Gália, em carta enviada às Igrejas da Frígia e Ásia Menor, em 177 d.C.,
comunicaram que a perseguição lhes alcançou “como um relâmpago”: "O
adversário caiu sobre nós com todo o ímpeto de suas forças... Não somente
fomos expulsos das casas, das termas e do foro, mas, inclusive, fomos
proibidos de aparecer em público. Mas a glória de Deus pelejou conosco contra
o diabo...". Algumas pessoas não suportaram a tortura e renegaram a fé, mas
os demais suportaram firmemente. “O cárcere estava tão cheio de prisioneiros,
que muitos morreram asfixiados, antes que os verdugos pudessem aplicar-lhes
a pena de morte. Alguns dos que antes haviam negado a sua fé, ao verem
seus irmãos tão valorosos em meio a tantas provas, voltaram à sua antiga
confissão e morreram também como mártires” (González).
Blandina foi a mais destacada desses mártires da Gália. "Depois de
ter suportado açoites, a dilaceração das feras e a cadeira de ferro, ela foi presa
numa rede e atirada a um touro. Depois de ser jogada para o alto por algum
tempo pelo animal, mostrando-se muito superior aos seus sofrimentos pela
influência da esperança, pela visão consciente dos objetos de sua fé e pela sua
associação com Cristo, ela finalmente entregou o seu espírito" (John Foxe).
Nova perseguição ocorreu com o imperador Sétimo Severo (193-
211), sobretudo no Egito e em Cartago, entre 202 e 206. Nesse período, um
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decreto imperial proibia a conversão ao cristianismo e ao judaísmo, e foram
martirizados Irineu de Lyon (202 d.C.), Perpétua e Felicidade (203 d.C.).
1.3) A Perseguição até o Edito de Milão.
Décio (249-251) promulgou um edito em 250 d.C. que exigia oferta
anual de sacrifício aos deuses e ao imperador. Foi esse imperador que
promoveu a primeira perseguição em todo o império romano. Nesse período,
Orígenes sofreu torturas que mais tarde lhe causariam a morte e Fabiano de
Roma foi martirizado (250 d.C.).
Entretanto, a mais dura perseguição oficial aos cristãos ocorreu
sob os reinados de Diocleciano (284-305) e Galério (305-311). Numa série de
editos promulgados a partir de 303, Diocleciano proibiu as reuniões cristãs e
ordenou a destituição dos oficiais da igreja, a perseguição aos que
perseverassem na fé e a destruição das Escrituras. Os cristãos foram punidos
com o confisco de bens, prisões, exílios e execuções à espada ou por animais
ferozes. As prisões ficaram tão cheias de líderes cristãos e crentes comuns que
não havia lugar suficiente para criminosos, segundo Eusébio. Essa feroz
perseguição perdurou até 305 d.C., ano em que Diocleciano abdicou.
Após outros breves períodos de perseguição, o imperador Galério
promulgou um edito, em 311, que estabelecia a tolerância ao cristianismo, sob
a condição de que os cristãos não perturbassem a paz do império. Mas a
perseguição só acabaria totalmente em 313, com o edito de Milão, promulgado
por Constantino e Licínio (312-337), que garantia a liberdade de culto a todas
as religiões.
Por sua importância, vale anotar ao menos um breve extrato do
Edito de Milão: "(...) Pareceu-nos [a Constantino e Licínio] justo que todos,
cristãos inclusive, gozem da liberdade de seguir o culto e a religião de sua
preferência. Desta forma o Deus, que mora no céu, ser-nos-á propício a nós e
a todos os nossos súditos. Decretamos, portanto, que, não obstante a
existência de instruções anteriores relativas aos cristãos, aos que optarem pela
religião de Cristo estão autorizados a abraçá-la sem estorvo ou empecilho, e
que ninguém absolutamente os impeça ou moleste (...)" (com grifo nosso).
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2. As Acusações.
O cristianismo sofreu uma série de acusações por parte do
populacho e de escritores pagãos, dentre os quais Celso (de quem sabemos
pela obra de Orígenes) e Cornélio Fronton (que foi mestre de Marco Aurélio).
A carta das igrejas da Gália dá-nos conta de diversas acusações
lançadas sobre as igrejas de Lyon e Viena: "(...) Também foram presos alguns
de nossos escravos que eram pagãos, porquanto o governador havia
decretado que se nos procurasse a todos. Eles, temendo os tormentos que
viam padecer os santos, impulsionados pelos demônios e instigados pelos
soldados, acusaram-nos de comermos os nossos filhos, de termos relações
sexuais com nossas próprias mães e de outras coisas das quais não é possível
falar ou nelas pensar, pois não podemos acreditar que jamais tenham
acontecido entre os seres humanos. Espalhadas estas coisas entre o vulgo, de
tal modo enfureceram-se contra nós que, se alguns até então guardavam
moderação com respeito a nós por motivos de parentesco, agora se iraram
violentamente contra nós, agitados por grande indignação" (in Documentos da
Igreja Cristã).
O populacho acusava os cristãos de ateísmo (visto que se
recusavam a adorar os deuses e ao imperador), de canibalismo (imaginavam
que os cristãos punham meninos recém-nascidos dentro de um pão e quando
ordenava-se que fosse cortado, lhe devoravam o corpo), de praticar orgias
incestuosas (porque celebravam em secreto uma “festa do amor”, entre
“irmãos” e “irmãs”) e práticas antissociais (porque os cristãos se recusavam a
participar de cerimônias civis que culminavam em sacrifício aos deuses). Outra
opinião corrente era a de que os cristãos adoravam um asno crucificado.
Os pagãos cultos iam além dos boatos espalhados pela plebe e
questionavam o cerne das doutrinas cristãs, acusando o cristianismo de
religião de bárbaros. O Deus dos cristãos era ridículo, segundo a
argumentação pagã, posto que onipotente e ao mesmo tempo imiscuído no
cotidiano dos homens. Jesus era tão somente um malfeitor, crucificado pelas
autoridades romanas. Celso chega a dizer que foi um filho ilegítimo de Maria
com um soldado romano e, finalmente, se era Deus, por que se deixou
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crucificar? Por fim, a crença na ressurreição era um grande escândalo para os
pagãos.
Como veremos, homens cristãos desenvolveram uma farta
literatura em defesa da fé, com base no Novo Testamento, demonstrando que,
ao revés do que se divulgava, o culto e a moral cristãos eram superiores e que
os seguidores de Cristo mereciam melhor tratamento.
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V. As Dificuldades Internas da Igreja até 313:
As heresias e as Divisões
1. As Heresias.
Não sem razão, Louis Berkhof anotou que "por grandes que
fossem essas ameaças vindas de fora [referindo-se às perseguições e às
acusações], havia perigos ainda maiores, que ameaçavam internamente a
Igreja. Essas últimas consistiam de diferentes modalidades de perversão do
evangelho".
1.1) O Ebionismo.
O ebionismo manteve-se aceso até o segundo quartel do segundo
século. Sua doutrina era legalista e sua teontologia, unitariana. Não havia
salvação fora da lei de Moisés e da circuncisão. Seus adeptos não aceitavam o
apostolado de Paulo, a quem tinham como apóstata da lei, exigiam a
circuncisão dos gentios convertidos e negavam a divindade e o nascimento
virginal do Senhor Jesus. Segundo os ebionitas, o homem Jesus tornou-se o
Messias por haver cumprido a lei cabalmente. Jesus "ter-se-ia tornado cônscio
de tal coisa por ocasião de seu batismo, quando recebeu o Espírito, o que o
capacitou a realizar sua tarefa, isto é, a obra de um profeta e mestre" (Louis
Berkhof). Aceitavam o Evangelho de Mateus e rejeitavam as cartas paulinas.
Após a destruição de Jerusalém, em 135, os ebionitas perderam sua influência.
1.2) Os Elquesaítas.
Ensinavam um tipo sincrético de cristianismo, associado com
judaísmo e magia. Quanto à Cristo, rejeitavam seu nascimento virginal,
afirmando que Ele nasceu como quaisquer dos homens, embora O tivessem na
conta de um espírito ou anjo superior, o mais elevado arcanjo ou a encarnação
do Adão ideal. Sua prática era caracterizada pelo estrito ascetismo, por grande
consideração ao sábado e à circuncisão, pelo exercício da magia e da
astrologia e pelas lavagens rituais, às quais atribuíam poderes mágicos.
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Segundo Berkhof, "com toda a probabilidade se referem a essas heresias a
Epístola aos Colossenses e I Tm".
1.3) O Gnosticismo.
Paulo em Colossos, em Éfeso e em Creta, e João na Ásia,
enfrentaram um gnosticismo ainda incipiente, com ênfase em anjos e forte
dualismo, que redundava em ascetismo, por um lado, ou em libertinagem, por
outro, além da espiritualização quanto à ressurreição (cf. Cl 2:18ss; I Tm 1:3-7;
II Tm 2:14-18; Tt 1:10-16).
Em algumas manifestações desse gnosticismo iniciante, fazia-se
distinção entre o Jesus humano e o Cristo. Cristo seria um espírito superior que
havia descido sobre o Jesus humano no batismo e o abandonado antes da
crucificação, como queria Cerinto (cf. Jo 1:14; I Jo 2:22; 4:2, 15; 5:1, 5-6; II Jo
7).
O pensamento gnóstico chegou ao apogeu somente em meados
do segundo século. Era uma espécie de sincretismo de cristianismo e
neoplatonismo, tendo Walther argutamente dito tratar-se de "um furto de alguns
trapos cristãos para cobrir a nudez do paganismo" (citado por Berkhof).
Existem vários sistemas gnósticos, como os de Cerinto (c. 100),
Basílides (130-150) e Valentino (140-160), de modo que só se pode apontar as
principais doutrinas desse movimento pulverizado, quais sejam: (1) separação
entre os mundos material (produto de um deus inferior) e espiritual, estando a
matéria sempre identificada com o mal e o espírito com o bem; (2) a distância
entre Deus e o mundo da matéria era mediada por emanações do bem
supremo do gnosticismo, "seres intermediários, emanações do divino, que em
seu conjunto constituem a 'pleroma', sendo obra de uma divindade
subordinada, talvez hostil" (Berkhof); (3) a salvação era apenas para a alma e
se dava através da fé junto com a aquisição da gnoses (conhecimento) que
Cristo comunicava somente à elite espiritual. Os homens eram divididos em
três classes: os "pneumatikos" (a elite espiritual): os que são capazes de
adquirir um conhecimento superior e uma bem-aventurança mais elevada; os
"psíquicos" (membros comuns da igreja): que podem salvar-se pela fé e pelas
obras, só podendo obter uma bem-aventurança menor; e os "hílicos" (os
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gentios): irremediavelmente perdidos; (4) como a matéria é má, Cristo não
poderia ter se encarnado, daí a cristologia gnóstica conhecida por “docetismo”
(do grego ‘dokeo’, que significa ‘parecer’), segundo a qual o homem Jesus
tinha apenas uma aparência de corpo material.
Um dos gnósticos mais destacados foi Márcion (c. 85-160), que
formou seu próprio cânon - que incluía o Evangelho de Lucas, Atos e dez
cartas paulinas -, e sua própria igreja. Ensinava que havia dois deuses, o Deus
criador do Antigo Testamento, que era mal, e o Deus redentor do Novo
Testamento, que era bom. Não cria na divindade do Cristo humano. Seu
gnosticismo como um todo fomentou o antissemitismo, o orgulho espiritual e
“seu ascetismo foi um dos fatores formativos do movimento ascético medieval
conhecido como monasticismo” (Cairns).
1.4) O Montanismo.
Surgido na Frígia, entre 134 e 177, com Montano, o montanismo foi
uma reação ao formalismo e à excessiva institucionalização da Igreja. Ele e
duas mulheres, Prisca e Maximila, se anunciaram profetas. Montano e seus
colaboradores tinham-se como os últimos profetas e puseram ênfase nas
doutrinas do Espírito Santo e da segunda vinda de Cristo, que consideravam
iminente. Montano era, para a seita, como um profeta através de quem o
Espírito Santo falava à igreja, do modo como havia feito através dos apóstolos.
Berkhof resume os ensinos de Montano da seguinte forma:
salientavam a proximidade do fim do mundo; insistiam no celibato - permitindo,
quando muito, um único casamento -, no jejum e na rígida disciplina moral;
exaltavam indevidamente o martírio e os carismas.
Diversas facetas do anabatismo do século XVI e do
pentecostalismo contemporâneo são reproduções fidedignas do montanismo.
O movimento foi condenado pelo Concílio de Constantinopla, em 381, apesar
de Tertuliano, um dos maiores pais da igreja, haver se tornado montanista.
1.5) O Monarquianismo.
Os monarquianos se concentraram no monoteísmo, mas afirmando
somente a unidade de Deus. No terceiro século, Paulo de Samósata, o mais
notável expoente do monarquianismo, homem inescrupuloso e demagogo que
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chegou ao bispado da Igreja em Antioquia, ensinou que Cristo era apenas
humano, mas que tinha se tornado o salvador por sua justiça e por haver sido
penetrado pelo “Logos” divino, doutrina que ficou conhecida como
“monarquianismo dinâmico”, uma forma primitiva de unitarianismo e alinhada
com o ebionismo. Segundo essa heresia, o homem Jesus foi sendo deificado
na medida em que o Logos penetrava sua humanidade, por isso ele se tornou
digno de honra.
Outra forma de monarquianismo (o “monarquianismo modalista”)
foi proposta por Sabélio, consistente na negação da distinção das Pessoas da
Trindade, com vistas a evitar o triteísmo. Ele ensinou uma trindade de
manifestações e não de pessoas na divindade. Deus teria se manifestado
como Pai no Antigo Testamento, como Filho para redimir o homem e como
Espírito após a ressurreição de Cristo. "As designações Pai, Filho e Espírito
Santo seriam apenas nomes dados a três fases diferentes em que a una
essência divina se manifestaria" (Berkhof). No Oriente, a doutrina de Sabélio foi
chamada de "sabelianismo"; no Ocidente, de "patripassianismo", por afirmar
que Deus o Pai sofrera na cruz.
1.6) O maniqueísmo.
O nome desse movimento herético se deve àquele que foi seu
principal mestre, Mani (216-277). Segundo Mani, Deus havia falado de forma
fragmentada através de Moisés, Buda, Platão e Jesus, mas que a revelação
completa se daria por meio dele. Ele almejava uma religião contendo
elementos do budismo, zoroastrismo e cristianismo e alegava que os apóstolos
haviam corrompido os ensinos de Jesus.
Conforme lição de Flanklin Ferreira, “os maniqueístas defendiam
uma visão dualista da criação, acentuando a tensão entre luz e trevas. Nesse
caso, Cristo seria o representante da luz, procedente de Deus, e Satanás das
trevas, identificado com a matéria. Eram extremamente ascetas e sua
compreensão da salvação era muito parecida com a ensinada pelo
gnosticismo, no que diz respeito à vinculação da salvação ao conhecimento
secreto dos passos necessários para escapar das trevas em direção à luz”.
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2. As Divisões Internas.
Além das perseguições e acusações vindas de fora, a igreja cristã
antiga enfrentou as heresias (a exemplo das destacadas acima) e as divisões
internas. Logo no início, surgiram cismas em torno da disciplina e da liturgia.
No segundo século, em torno de 160, as igrejas no Oriente e no
Ocidente contenderam acerca do dia em a páscoa deveria ser celebrada. A
Igreja Oriental propôs o dia 15 de nisã, independentemente do dia da semana
em que caísse. A Igreja Ocidental, através do Bispo de Roma Aniceto,
defendeu que a data seria o domingo seguinte ao 14 de nisã.
Outra grande controvérsia na igreja ocorreu no início do século
quarto, conhecida como “donatismo”. Em 311, um cristão chamado Donato, do
norte da África, solicitou a deposição do Bispo Ceciliano, por haver sido
consagrado por Félix, que fora “traditor” no tempo da perseguição sob
Diocleciano. Vale lembrar que Diocleciano ordenou a queima de Escrituras.
Nessas torturas, alguns não resistiam e entregavam cópias das Escrituras aos
carrascos, os “traditores” (i.é., os traidores). Portanto, a controvérsia donatista
gerou em tornou de como os “traditores” deveriam ser tratados, passada a
perseguição, e se atos litúrgicos por eles praticados eram válidos.
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VI. As Reações da Igreja: A Literatura dos Séculos II e III
1. Introdução.
A Igreja, para fazer frente às dificuldades que a desafiaram nos
primeiros séculos, desenvolveu uma literatura epistolar, apologética e em
defesa da ortodoxia. Ademais, para resistir às tantas heresias que lhe
assediaram, fez crescer o poder do bispo monárquico, desenvolveu sua
declaração de fé (O Credo dos Apóstolos) e reconheceu oficialmente os livros
divinamente inspirados, que deveriam compor o cânon do Novo Testamento.
Analisemos, nesse passo, a literatura dos Pais Apostólicos e dos
Pais da Igreja dos séculos II e III.
2. A Literatura dos Pais Apostólicos.
Os Pais Apostólicos foram os primeiros líderes da Igreja cristã, que
mantiveram algum contato com os apóstolos, a desenvolverem uma literatura
cristã pós-apostólica. Eles escreveram apenas para cristãos durante o período
compreendido entre 95 e 150 d.C. e sua preocupação era tão somente edificar
as igrejas. Os principais nomes deste período são Clemente de Roma, Inácio,
Policarpo e Papias.
2.1) Clemente de Roma (30-100 d.C.)
Escreveu aos coríntios em cerca de 95 d.C., carta que tem recebido
atenção especial por ser o escrito cristão mais antigo após o Novo Testamento.
A carta foi motivada por problemas entre os cristãos coríntios, revoltosos contra
seus líderes, razão dos capítulos 42 a 44 da epístola, nos quais Clemente pede
obediência aos líderes. Nos capítulos 24 a 26, o pai apostólico trata da
ressurreição dos corpos, ilustrando-a com a lenda de Fênix. Em 5:5-7,
Clemente mencionou o ministério de Paulo, de onde exsurge a tese de duas
prisões de Paulo e uma frutífera obra missionária entre elas.
2.2) Inácio de Antioquia
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Foi preso pelo seu testemunho cristão e levado a Roma para ser
devorado pelas feras. Ao longo da viagem, foi-lhe permitido ser visitado pelas
igrejas, às quais escrevia como forma de gratidão e para dar-lhes instrução. O
bispo de Antioquia escreveu suas sete cartas (às igrejas de Éfeso, Magnésia,
Trália, Roma, Filadélfia, Esmirna e a seu amigo Policarpo) por volta de 110
d.C., sendo ele o primeiro a hierarquizar as funções de bispo, presbítero e
diácono no âmbito da igreja local. Nesse sentido, escreveu aos filadelfos:
"Apegai-vos ao Bispo, ao Presbítero e aos diáconos".
Escrevendo aos romanos, Inácio suplicou que não intervissem com
a finalidade de livrá-lo do martírio: "Suplico-vos, não vos transformeis em
benevolência inoportuna para mim. Deixai-me ser comida para as feras, pelas
quais me é possível encontrar Deus. Sou trigo de Deus e sou moído pelos
dentes das feras, para encontrar-me como pão puro de Cristo. Acariciai antes
as feras, para que se tornem meu túmulo e não deixem sobrar nada de meu
corpo, para que na minha morte não me torne peso para ninguém".
2.3) Policarpo (c. 70-155),
O bispo de Esmirna, foi discípulo do apóstolo João. Em 110 d.C.,
escreveu uma epístola aos filipenses com o propósito de fortalecer a vida cristã
dos irmãos de Filipos. Nessa epístola, fez 60 citações do Novo Testamento,
sendo 34 paulinas, demonstrando profundo conhecimento das epístolas de
Paulo. Sobre a carta que Paulo escreveu aos filipenses, ele afirmou: "Ele
[Paulo], estando entre vocês, comunicou com exatidão e força a palavra da
verdade na presença daqueles que estão vivos ainda. E quando vos deixou,
escreveu-lhes uma carta, que, se a estudarem com cuidado, encontrarão o
sentido de terem sido erguidos na fé que lhes foi dada, e que, sendo seguida
da esperança e precedida pelo amor para com Deus e Cristo, assim como para
nosso próximo, é mãe de todos nós" (tradução de Luiz Fernando Karps
Pasquoto).
2.4) Papias,
Bispo de Hierápolis, na Frígia, pode ter sido discípulo do apóstolo
João. Em meados do segundo século, escreveu "As Interpretações dos Ditos
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do Senhor", cujos fragmentos foram preservados nos escritos de Irineu e
Eusébio. Segundo Eusébio, Papias afirmou que Marcos foi o intérprete de
Pedro e que o evangelho de Mateus foi escrito em hebraico. Segundo Irineu,
Papias defendia ideias pré-milenistas.
3. A Literatura dos Apologetas e dos Defensores da Ortodoxia.
Nos séculos II e III da era cristã, surgiu uma literatura cristã voltada
para resistir a desafios vindos de fora, tanto quanto para enfrentar os surgidos
no seio da própria igreja. Earle E. Cairns percebeu que "os apologistas,
recentemente convertidos do paganismo, estiveram preocupados com a
ameaça à segurança da Igreja, especialmente com a perseguição; os
polemistas que tinham uma formação cultural cristã, preocuparam-se com a
heresia, a ameaça interna à paz e à pureza da Igreja".
3.1) Os apologetas.
A literatura voltada aos inimigos da fé e ao império romano pretendia
refutar as falsas acusações e demonstrar que a razão e o bom senso
pertenciam aos cristãos, que eram superiores aos seus vizinhos pagãos.
Defensivamente, os apologetas demonstravam que as acusações feitas contra
os cristãos eram incoerentes tanto com a mensagem do evangelho quanto com
o caráter dos professantes da fé cristã. Positivamente, teciam argumentos no
sentido de demonstrar o absurdo da religião pagã, com seu panteão de deuses
devassos.
A seguir, transcrevemos algumas linhas do "Discurso a Diagneto",
uma das mais antigas apologias, de autor anônimo: "Os cristãos não se
diferenciam dos demais por sua nacionalidade, por sua linhagem nem por seus
costumes... Vivem em seus próprios lugares, mas como transeuntes,
peregrinos. Cumprem todos os seus deveres de cidadãos, mas sofrem como
estrangeiros. Onde quer que estejam encontram sua pátria, mas sua pátria não
está em nenhum lugar... Se encontram na carne, mas não vivem segundo a
carne. Vivem na terra, mas são cidadãos dos céus. Obedecem todas as leis,
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mas vivem acima daquilo que as leis requerem. Amam a todos, mas todos os
perseguem" (5:1-11, citado por Justo L. González).
No Oriente, os grandes nomes que se destacaram na defesa da fé
cristã foram Aristides (c. 140), Justino Mártir (100-165), Taciano (século II),
Antenágoras (escreveu em 177 a "Súplica pelos Cristãos") e Teófilo de
Antioquia (escreveu em c. de 180 a "Apologia a Autólico"). No Ocidente,
destacaram-se Minúcio Félix (escreveu "Otávio" em c. de 200) e,
principalmente, Tertuliano (c.160 a c. 230).
É verdade que nem todos os apologistas defenderam o cristianismo
sob a mesma perspectiva, sobretudo quanto à relação da fé cristã com a
cultura grega. Justino Mártir dedicou-se em demonstrar as relações entre o
cristianismo e a filosofia clássica, abordando os vários pontos de contato e
explicando-os em termos da influência do "Logos". Para Justino, o "Logos", que
para os gregos era a fonte de todo o saber, se fez carne através do homem
Jesus, sendo Jesus Cristo a fonte de todo o conhecimento verdadeiro.
Portanto, em certo sentido, os sábios da antiguidade clássica (Sócrates,
Platão), ainda que só conhecessem o verbo parcialmente, eram cristãos.
Em outro extremo, estava Taciano, o mais famoso discípulo de
Justino, para quem havia uma oposição radical entre a fé cristã e a cultura
pagã. Para Taciano, se há alguma coincidência entre a cultura grega e a
religião cristã, deve-se ao fato de que os gregos aprenderam sua sabedoria
dos "bárbaros" (cristãos). Sobre os deuses gregos, Taciano questiona o direito
que exigem dos cristãos que sejam tais deuses honrados, vez que Homero e
os demais poetas gregos contam coisas a seu respeito que são dignas de
vergonha, tais como adultério, incesto e infanticídio.
Em geral, a grande dificuldade que se tem contra os apologetas
deste período é a sua apresentação do cristianismo em termos de filosofia, o
que se pode observar, sobretudo, na doutrina do "Logos". Sua doutrina incluía
a ressurreição dos corpos, sendo inconsistentes em sua soteriologia que, às
vezes, punham ênfase demasiada no livre-arbítrio, e, em outras, faziam a
salvação depender inteiramente da livre-graça.
Mais problemática era a doutrina dos apologetas quanto ao "Logos".
Para eles, o "Logos" existia em Deus, eternamente, sem existência pessoal, ao
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que Deus concedeu existência separada e pessoal. Embora essencialmente
igual a Deus, o "Logos" nem sempre existiu como autonomamente existente,
pelo que se poderia dizer ser Ele uma criatura.
3.2) Os Defensores da fé.
Outros escritores cristãos dos séculos II e III, por sua vez,
desenvolveram uma literatura para combater as heresias que desafiavam a
pureza doutrinária da Igreja. Irineu é o maior pai anti-gnóstico do Oriente. No
Ocidente, destacaram-se em Alexandria Clemente (155-225) e Orígenes (185-
254) e, em Cartago, Tertuliano e Cipriano.
Irineu (130-200) nasceu no Oriente, onde tornou-se discípulo de
Policarpo. Mai tarde tornou-se presbítero em Lyon. De cristologia ortodoxa,
afirmava contra os gnósticos que o "Logos" existiu desde toda a eternidade,
tornou-se o Jesus histórico na encarnação, sendo, daí em diante, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem. Negava peremptoriamente a heresia gnóstica de
que o Jesus humano se separou do Cristo divino, quando dos seus sofrimentos
e morte.
Tertuliano, o mais famoso pai anti-gnóstico, foi advogado e
presbítero da Igreja em Cartago. Escreveu tanto em defesa da fé, em sua obra
"Apologeticum", quanto como teólogo, na obra "Adversus Praxeas". Foi o
primeiro a ensinar a tripersonalidade de Deus usando o termo "Trindade". Em
Tertuliano também se vê um indício da doutrina do pecado original.
Louis Berkhof analisa que nem Irineu nem Tertuliano chegaram a
uma plena declaração da Trindade, porque em ambos estava presente a ideia
de subordinação do Filho em relação ao Pai. Em ambos, também percebe-se a
relação entre o batismo e a regeneração. O homem seria regenerado pelo
batismo, segundo Irineu. Para Tertuliano, o pecador, pelo arrependimento,
obtém salvação mediante o batismo, e os pecados cometidos após o batismo
requerem satisfação mediante penitência.
Irineu e Tertuliano também não compreenderam a doutrina paulina
da justificação pela fé. Segundo Irineu, "A fé necessariamente levaria à
observância dos mandamentos de Cristo, sendo ela suficiente para tornar o
homem justo diante de Deus" (Berkhof). Sua escatologia era pré-milenista. Os
seis primeiros mil anos seriam sucedidos pelo milênio literal, o milênio sabático,
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inaugurado pela reaparição de Cristo, quando os crentes gozarão as riquezas
da terra na Palestina. Após o milênio, surgirão os novos céus e a nova terra.
Clemente e seu discípulo, Orígenes, foram os grandes
representantes da escola alexandrina, ainda menos ortodoxos que Irineu e
Tertuliano. Eram extremamente alegóricos na interpretação da Bíblia e
favoreciam a uma espécie extravagante de síntese entre neoplatonismo e
cristianismo. Ambos mantiveram a ideia de subordinação do Filho em relação
ao Pai e, sobre o Espírito Santo, Orígenes afirmou que é uma criatura criada
pelo Pai através do Filho, tendo o Espírito uma relação menos íntima com o Pai
do que o Filho.
Ambos defendiam a ideia de livre-arbítrio, que o batismo é o começo
da nova vida na igreja e que fora da igreja - a congregação dos crentes -, não
há salvação. Para ambos, o processo de purificação continua após a morte.
Segundo Clemente, os pagãos teriam oportunidade de arrepender-se no
hades. Para Orígenes, a obra redentora não estaria terminada enquanto todas
as coisas não fossem restauradas à sua beleza original, incluindo Satanás e
seus demônios. Ambos, Clemente e Orígenes, rejeitaram o milenarismo.
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VII. As Reações da Igreja: O Bispo, o Credo e o Cânon
1. Introdução.
Como dissemos em ocasiões anteriores, a Igreja, para combater as
dificuldades que a desafiaram nos primeiros séculos, desenvolveu uma
literatura epistolar, apologética e em defesa da ortodoxia (temas sobre os quais
já nos debruçamos brevemente). Mas, não só. Nesse ponto de nossos estudos,
voltar-nos-emos ao bispo monárquico, ao Credo e ao cânon. Se não, vejamos.
2. O Bispo Monárquico.
Em um primeiro momento, líderes cristãos como Inácio de Antioquia
reconheceram a proeminência (não encontrada no Novo Testamento) do Bispo
sobre o Presbítero e o Diácono no âmbito da igreja local, ao argumento de ser
esta uma forma de proteção da unidade. Outra razão invocada para a projeção
do poder do bispo monárquico foi a necessidade de uma liderança para lidar
com a perseguição e com a heresia.
Em um segundo momento, conforme Nichols observou, no "2º
século o bispo era o pastor de uma igreja numa cidade. À proporção que
crescia o número de crentes outros grupos se formavam na mesma cidade e
adjacências. Todos esses grupos ficavam sob o governo do bispo da igreja-
mãe (=matriz). Cada uma das outras igrejas era dirigida por um presbítero, e o
bispo exercia superintendência sobre todo o distrito ou diocese" (Robert
Hasting Nichols).
Posteriormente, tendeu-se à conclusão de que bispos de
determinadas igrejas, como os de Roma, Jerusalém, Éfeso, Antioquia e
Alexandria, eram superiores aos de outras e não demorou até que o bispo de
Roma viesse a ser objeto de uma honra especial, pelas seguintes razões: a
uma, Roma era a capital do império e talvez possuísse a igreja mais rica e
influente; a duas, uma forte tradição ligava Roma aos apóstolos Paulo e Pedro,
considerados os principais líderes da igreja primitiva; a três, acreditou-se que
Pedro teria sido o primeiro Bispo de Roma e que Cristo havia dado a ele a
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primazia dentre os apóstolos, com base em Mt 16:18, 19 e Jo 21:15-19; a
quatro, a doutrina da sucessão apostólica pretendia fazer todos os bispos
retornarem aos apóstolos e o bispo de Roma, a Pedro. Como, a partir dessa
reflexão, Pedro teria a primazia no colégio apostólico, todos os bispos estariam
para o bispo de Roma como os apóstolos para Pedro.
Deve-se anotar, todavia, quanto à alegada primazia de Pedro dentre
os apóstolos e sua suposta liderança em Roma, as seguintes considerações:
Primeiro, a prerrogativa do "poder das chaves", dada a Pedro em Mt
16:19, foi igualmente concedida aos demais apóstolos em Jo 20:23 e a toda a
igreja em Mt 18:15-18. Isso se dá por que tal poder não está adstrito a
quaisquer dos apóstolos, mas ao evangelho de Cristo.
Segundo, por mais de uma vez houve debate entre os apóstolos
com vistas a uma primazia entre eles, como se pode verificar em Lc 9:46 e
22:24-30, e na presença de Cristo. Se uma espécie de primado já houvesse
sido conferida a Pedro em Mt 16:18, 19, não se teria travado tal discussão na
época da prisão do Senhor Jesus ou nosso Senhor teria uma base sólida para
corrigir o desvio. Muito ao contrário, o ensino de nosso Senhor foi no sentido de
não haver domínio hierárquico entre os apóstolos, como se pode verificar em
passagens como Mt 19:28 e Ap 20:14.
Terceiro, Paulo não se via como inferior a Pedro nem em nada
dependente dele, como se pode deduzir de Gl 1:15-19, tampouco se conteve
quando a necessidade exigiu que lhe resistisse "face a face" (Gl 2:11-14).
Quarto, Pedro é visto nas páginas do Novo Testamento como mais
um entre seus pares (Gl 2:9). Em At 8:14, ele é um delegado, juntamente com
João, da igreja em Jerusalém para supervisionar o trabalho em Samaria. Em At
15, naquela grande Assembleia em Jerusalém, não vemos Pedro exercer o
primado alegado pelos romanistas. Com efeito, o decreto desta Assembleia foi
promulgado pela ampla participação dos "apóstolos", "presbíteros" e por "toda
a igreja" (15:22, 23). Mais ainda, ele mesmo, pelo que lemos dos seus
pronunciamentos e das suas epístolas, não reconhecia-se portador de
nenhuma primazia, como se há de concluir pelo modo como tratou da
substituição de Judas, em At 1:25, 26.
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Quinto, tampouco pode prosperar a interpretação de Mt 16:18 que
faz de Pedro o fundamento sobre o qual Cristo iria construir Sua Igreja. Há
divergência sobre a interpretação de quem ou do que seria a "rocha" no texto
em comento, se o próprio Cristo, se a confissão de Pedro, como parte da
doutrina apostólica ou mesmo se Pedro, referido por Jesus como aquele que
abriria as portas do reino com a pregação aos judeus, em At 2, e aos gentios,
em At 10. Entretanto, o Novo Testamento é tão claro sobre quem é a rocha
fundamental da Igreja que a única interpretação inaceitável é a que dá a Pedro
o lugar de ser o fundamento sustentáculo dela, como se pode conferir nas
palavras de Cristo mesmo (Mt 7:24-27; 21:42), do próprio Pedro (At 4:11, 12, I
Pe 2:4-6) e de Paulo (I Co 3:11; 10:4; Ef 2:19-22).
Pois bem, como afirmou E. Carlos Pereira, em sua obra "O
Problema Religioso da América Latina", por ele prefaciada em 1920, "diremos
com distincto escriptor: - a ausencia do sol ao meio-dia não é mais notável do
que a ausencia da supremacia official de S. Pedro nas paginas do Novo
Testamento" (mantemos a ortografia da época).
Nada obstante, o fato é que esse período da história da igreja já
encerra com uma forte doutrina da sucessão apostólica, com um bispo em
cada igreja elevado a posição hirarquicamente superior ao presbítero e com
uma certa proeminência reconhecida, sobretudo na obra de Cipriano, do bispo
de Roma sobre os demais.
3. O Credo dos Apóstolos.
Aliado ao papel do bispo como elemento unificador da igreja,
desenvolveu-se uma declaração de fé que ficou amplamente conhecida como
'Credo dos Apóstolos', além de ter sido chamada também de 'a regra de fé', 'a
regra da verdade', 'a tradição apostólica' e, mais tarde, 'o símbolo de fé'.
3.1) A História do Credo.
Diz-se que no exército romano, quando havia necessidade de dois
comandantes se separarem, eles quebravam um artefato de barro e cada um
ficava com um pedaço. Quando, no campo de batalha, um emissário de um
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dos comandantes precisasse levar uma mensagem para outro, ele deveria
levar também o pedaço do artefato que pertencia ao seu comandante. O
comandante destinatário da mensagem, então, para verificar a autenticidade da
mensagem, veria se o pedaço de barro do emissário se encaixava
perfeitamente ao seu. Tais pedaços eram chamados “simbolum”. Destarte, 'a
regra dos apóstolos' foi chamada de 'simbolum' porque serviu como forma de
autenticar um cristão genuíno. Cristão era o que aceitava o “símbolo de fé”.
Até metade do século XVII, era corrente a crença de que o Credo
havia sido composto pelos apóstolos em Jerusalém, pela época do
Pentecostes, antes de se separarem, havendo cada um contribuído com uma
cláusula. Essa lenda é vista pela primeira vez na Exposição do Credo
(Expositio Symboli) de Rufino de Aquiléia, no fim do século IV, no que foi
seguido, com modificações, por Ambrósio de Milão (c. 400), João Cassiano (c.
424) e por toda a tradição católica romana. Entre os protestantes, a lenda
encontrou defensores, foi questionada por Calvino e em seguida desmentida
definitivamente por diversos estudiosos.
Portanto, do Credo se pode afirmar que não foi escrito pelos
apóstolos, mas que trata-se da mais antiga declaração de fé da igreja cristã
que chegou até nós, cuja origem, segundo Justo L. González, "se acha nas
lutas contra as heresias que tiveram lugar nos meados do segundo século".
Earle E. Cairns afirma que "Irineu e Tertuliano desenvolveram Regras de Fé
para serem usadas na distinção entre Cristianismo e Gnosticismo" e
funcionavam como sumários das principais doutrinas da Bíblia. Portanto, no
segundo século, homens como Irineu, Tertuliano e Hipólito já ofereciam
confissões de fé semelhantes ao Credo.
Todavia, a formulação original parece ter surgido em Roma por volta
de 340 d.C. e Ambrósio foi o primeiro a dar ao documento o título de Credo dos
Apóstolos. Nos séculos VII e VIII, o Credo já era usado amplamente pelas
igrejas da Gália (atual França) e Espanha, de onde advém-nos a versão final.
Abaixo, transcreveremos a declaração usada no batismo por Rufino
de Aquiléia, em c. de 400 d.C., e a versão recebida. Se não, veja-se:
"Creio em Deus Pai onipotente e em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que nasceu do Espírito Santo e da virgem Maria, que foi crucificado sob o poder de Pôncio Pilatos e sepultado, e ao terceiro dia ressurgiu da morte, que subiu ao céu e assentou à direita
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do Pai, de onde há de vir para julgar os vivos e os mortos. E no Espírito Santo, na santa Igreja, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna [omitido por Rufino]" (in Documentos da Igreja Cristã, H. Bettenson). "Eu creio em Deus Pai todo-poderoso, Criador dos céus e da terra; E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria, padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado, desceu ao inferno e ao terceiro dia levantou-se dos mortos, ascendeu aos céus e sentou à mão direita de Deus Pai todo-poderoso, de onde virá para julgar os vivos e os mortos; E no Espírito Santo, na Santa Igreja católica, na comunhão dos santos, no perdão dos pecados, na ressurreição do corpo e na vida eterna".
3.2) A importância do Credo.
Trata-se, como se pode verificar, de uma confissão essencial. É uma
declaração que todos precisamos conhecer e aceitar para sermos cristãos.
Os reformadores deram grande valor ao Credo dos Apóstolos.
Calvino o comentou, afirmando que cada uma de suas cláusulas se origina nas
Escrituras, e Lutero o fez parte dos seus Catecismos, aduzindo que o Credo
"apresenta tudo o que devemos esperar e receber de Deus, e nos ensina, em
suma, a conhecê-lo por completo".
Assiste razão a Franklin Ferreira, quando em sua exposição do
Credo dos Apóstolos no Congresso para Pastores e Líderes da Editora Fiel, em
2012, afirmou ser a Regra uma espécie de "credo essencial", que "esta
exposição do Credo dos Apóstolos é uma apresentação do ensino bíblico,
ortodoxo e consensual, 'que foi crido em todo o lugar, em todo o tempo e por
todos' (Vicente de Lérins) os cristãos".
Segundo Phillip Schaff, o Credo dos Apóstolos "é de longe o melhor
resumo popular da fé cristã jamais feita em tão pouco espaço (...)", ao mesmo
tempo em que deve ser admitido "que a grande simplicidade e brevidade deste
Credo, que tão admiravelmente o adapta para todas as classes de cristãos e
adoração pública, o faz insuficiente como um regulador de doutrina bíblica para
um estágio mais avançado do conhecimento teológico".
3.3) As raízes hebraico-cristãs dos credos e confissões.
A tradição religiosa hebraico-cristã é puramente confessional. A fé
dos hebreus e dos cristãos é uma fé professante, por assim dizer. Isso se dá
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porque a revelação divina é proposicional. Deus revela-se proposicionalmente,
isto é, comunicando máximas, assertivas, através de expressões verbais, que
devem ser conhecidas e cridas. As confissões são, lado outro, respostas de fé
da igreja, destinatária por excelência da Revelação. Deus revela-se através das
Escrituras e a Igreja responde com uma afirmação de fé, com uma confissão,
com um “eu creio”.
No Antigo Testamento, já encontramos diversas confissões de fé do
povo hebreu, nas quais se professa que há um só Deus, que Ele é singular,
além da confissão quanto aos Seus poderosos feitos (Ex 15:1-18; Dt 6:20-24;
26:5-9; Js 24:2-13) e dos Seus atributos (Sl 136; Sl 40:9-10; 96:1-10; 147:1-7).
No Novo Testamento, a palavra "homologia" (confissão) ocorre seis
vezes (II Co 9:13; I Tm 6:12, 13; Hb 3:1; 4:14; 10:23) e os verbos correlatos
outras tantas, com o mesmo sentido. Às vezes, essa confissão dá-se de forma
pública (Tt 1:16; Mt 10:32, 33; Rm 10:9, 10) e, às vezes, de forma comunitária
(II Co 9:13), sem olvidar para o fato de que há um preço na confissão (Jo 9:22;
12:42).
Diversas são as confissões encontradas nas páginas do Novo
Testamento. Algumas põem ênfase em Cristo (I Co 15:3, 4; Fp 2:5-11; I Tm
3:16; II Tm 2:8; I Pe 3:18-22; I Jo 4:2, 15); outras, no Pai e no Filho (I Co 8:6; Gl
1:1-5; I Tm 2:5, 6; 6:13-16; II Tm 4:1); e outras ainda enfatizam a Trindade (Mt
28:19; Rm 9:1-4; II Co 1:21, 22; 13:13; I Pe 1:2; Jd 20, 21).
4. O Cânon do Novo Testamento.
Além da força do bispo monárquico e do desenvolvimento de uma
declaração de fé, a Igreja foi gradativamente sendo levada pelas circunstâncias
providenciais a reconhecer oficialmente os livros inspirados que comporiam o
Novo Testamento – o Cânon.
Diversos fatores conduziram a igreja ao reconhecimento dos seus
livros inspirados, dos quais destacaremos dois: hereges como Márcion
estavam formando seu próprio cânon e as perseguições levaram os cristãos a
desejarem saber quais os livros pelos quais valeria a pena morrer.
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Deve-se pontuar com Flanklin Ferreira que os desafios das seitas e
a perseguição apenas aguçaram o interesse da igreja em fixar oficialmente o
número exato de livros do Novo Testamento. “O primeiro Pai da Igreja a falar
de forma inequívoca de um ‘Novo’ Testamento em paralelo com o Antigo
Testamento foi Irineu de Lião. Entretanto, Clemente, Inácio, Policarpo, Justino,
Tertuliano, Orígenes, entre outros, já usavam o Novo Testamento, tratando-o
como inspirado do mesmo modo que o Antigo Testamento” (Flanklin Ferreira).
O processo de reconhecimento do cânon, todavia, não se deu de
uma vez nem sem disputas. Norman Geisler e William Nix observam que
"havendo tão grande diversidade geográfica de origens e destinatários, é
compreensível que nem todas as igrejas haveriam de possuir, de imediato,
cópias de todos os livros inspirados do Novo Testamento. Acrescentem-se os
problemas de comunicação e de transporte, e fica mais fácil ver que seria
preciso algum tempo até que houvesse um reconhecimento geral de todos os
27 livros do cânon do Novo Testamento".
No processo de reconhecimento, por outro lado, os testes de
canonicidade utilizados foram os da apostolicidade, pelo qual se buscava a
autenticidade da autoria e se tinha sido escrito por apóstolo ou sob sua
influência, e da concordância doutrinária com a regra de fé já consolidada.
De plano, deve ser anotado que enquanto viviam os apóstolos, já
havia circulando entre as igrejas escritos espúrios, o que se pode depreender
dos seguintes textos: Lc 1:1-4; II Ts 2:2; 3:17; Jo 21:23, 24. Lado outro, pode-
se verificar igualmente a prática da leitura pública nas reuniões das igrejas das
cartas apostólicas (I Ts 5:27; Cl 4:16; Ap 1:3).
Do exposto, no mínimo, se pode argumentar em favor de uma
seletividade já em processo no período neo-testamentário, vez que somente as
cartas autorizadas deveriam ter força cogente aos cristãos, em matéria de
religião, e ouvidas no culto público como a Palavra autoritativa de Deus.
Ademais, é mesmo possível que Pedro já tivesse uma coleção das cartas de
Paulo (cf. II Pe 3:15, 16), do modo como Paulo conhecia o evangelho de Lucas
(cf. I Tm 5:18; Lc 10:7).
Já no começo do segundo século, circulavam juntos os quatro
evangelhos, Atos e as epístolas de Paulo. Tiago, II Pedro, II e III João, Judas,
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Hebreus e Apocalipse tiveram sua inclusão no cânon discutida por mais tempo,
sobretudo pela incerteza quanto à autoria.
Foi em 367 d.C. que Atanásio, então Bispo de Alexandria, escreve
uma carta às igrejas sob sua supervisão (“Carta de Páscoa”) incluindo uma
lista dos 27 livros do Novo Testamento, tal qual o conhecemos. Jerônimo e
Agostinho, para citar outras vozes individuais, confirmaram essa lista e, ainda
no século IV, os concílios de Hipona (em 393 d.C.), Cartago (em 397 d.C.) e
Calcedônia (em 451 d.C.) fizeram o mesmo. Na prática, “apenas aprovaram e
deram expressão uniforme àquilo que já era aceito como fato pelas igrejas
havia um bom tempo”.
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A Antiga Igreja Católica: Continuação
VIII. Fé Cristã, de Perseguida a Religião Oficial
1. O período compreendido entre 313 e 590.
Nesse período, a Igreja viveu a transição de deixar de ser uma
religião perseguida a ser a religião oficial do império romano e passou do que
tem sido chamada de Antiga Igreja Católica para o que conhecemos como
Igreja Católica Romana.
A união com o Estado foi avaliada pela Igreja de diferentes modos.
Uma das maneiras de ver a nova situação foi com entusiasmo, entendendo que
a Igreja estava sendo abençoada por Deus em receber tamanho privilégio.
Mas, por outro lado, a nova posição trouxe reações contrárias, que, dentre
elas, contribuíram ao surgimento da vida monástica.
O período foi também de efervescência intelectual e debates
teológicos. Homens como Eusébio de Cesaréia, Atanásio e João Crisóstomo,
dentre os gregos, os capadócios Basílio de Cesaréia, Gregório de Nissa e
Gregório de Nazianzo, e, dentre os latinos, Ambrósio, Agostinho e Jerônimo,
produziram, em consequência das disputas doutrinárias, escritos que
influenciam toda a cristandade até hoje.
2. A ascensão de Constantino.
O império vivia um quadro de instabilidade decorrente de crise
econômica e da ameaça de invasões bárbaras, quando Diocleciano (244-311)
o assumiu e o reorganizou, dividindo-o em dois imperadores (ele, no Oriente, e
Maximiano, no Ocidente) e quatro partes: Diocleciano reinou a parte da
Nicomédia, na Bitínia; Maximiano, de Milão, na Itália; Galério (sob Diocleciano),
de Sirmio, na Panônia; e Constâncio Cloro (sob Maximiano) teve sede em
Trier, na Gália.
Com a morte de Constâncio, seu filho Constantino (c. 274-337) foi
proclamado césar por suas tropas. De modo surpreendente, Constantino
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reorganizou o império após vencer seus rivais, um a um, até derrotar Maxêncio
(278-312), filho de Maximiano, na batalha da Ponte Mílvia sobre o rio Tibre, em
312.
Antes, porém, dessa batalha, teve uma visão (segundo Eusébio) ou
um sonho (segundo Lactâncio), em que viu uma cruz e uma inscrição no céu
(“vence nisto”), ocasião em que entendeu que se se convertesse ao
cristianismo derrotaria seu inimigo Maxêncio. No dia seguinte, ordenou que
seus estandartes fossem marcados com a superposição das duas primeiras
letras do nome Cristo (o), “”e“” (o ‘labarum’).
Com a vitória sobre Maxêncio, Constantino tornou-se o único dono
do império ocidental, enquanto o Oriente ainda estava dividido entre Licínio e
Maximino Daza.
Em Milão, fez um acordo com Licínio e, juntos, proclamaram o
“edito de Milão”, em 313, e decidiram que Licínio investiria, somente com seus
próprios recursos, contra as tropas de Maximino. O resultado foi o confronto
que promoveu a derrota deste, que não mais conseguiu reorganizar seu
exército. Com a nova situação política, Constantino continuou a governar o
Ocidente, enquanto Licínio, a leste da Itália.
Como ambos, Constantino e Licínio, ambicionavam o domínio
exclusivo de todo o império, uma série de intrigas pessoais redundou em dois
confrontos, em 314, seguidos por uma trégua que perdurou até 322, ano em
que a guerra civil foi retomada. Constantino venceu Licínio em três batalhas
(Andrianópolis, Helesponto e Crisópolis) e, em 324, o império já estava
reunificado e sobre o qual reinou até sua morte, em 337.
3. O impacto de Constantino.
Muito se discute sobre os motivos do envolvimento de Constantino
com o cristianismo. Para alguns historiadores, ele teria sido um político
habilidoso que soube usar a religião cristã a serviço de sua ambição pelo
império; para outros, ele foi realmente um supersticioso sincero, que acreditava
no poder de Jesus Cristo e que seria ajudado pelo Deus dos cristãos se
beneficiasse a estes.
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A princípio, Constantino garantiu que a Igreja tivesse paz e lhe
devolveu as propriedades confiscadas durante a perseguição. Em um segundo
momento, passou a subsidiá-la mais abertamente, construindo templos e
isentando o clero dos serviços públicos e das tarifas nos transportes do
império.
Em 324, um edito ordenou que todos os soldados adorassem o
Deus dos cristãos no primeiro dia da semana, dia em que estes celebravam a
ressurreição de Cristo. Também se envolveu em controvérsias teológicas e, em
325, convocou e presidiu o Concílio de Nicéia, permitindo que os bispos
viajassem às custas dos cofres públicos.
O impacto do envolvimento de Constantino sobre a Igreja cristã foi
incalculável. A consequência imediata foi o fim da perseguição. Mas, não parou
por aí. O culto cristão sofreu uma influência alarmante. A princípio, as reuniões
dos cristãos ocorriam em casas particulares e eram marcadas pela
simplicidade e participação. Após a “conversão” de Constantino, “o culto cristão
começou a sentir a influência do protocolo imperial” (Justo L. Gonzalez). O
incenso, usado no culto ao imperador, adentrou à prática da Igreja; os ministros
começaram a usar vestimentas ornamentadas; começou-se a iniciar os cultos
com uma procissão; templos suntuosos foram construídos em vários lugares.
Gonzalez observa ainda que para dar maior destaque às procissões, “surgiram
coros, com o resultado a longo prazo de que a congregação participava cada
vez menos do culto”.
Além do impacto sobre o culto, observa Bruce L. Shelley,
“Constantino submeteu os bispos cristãos enquanto eram seus funcionários
civis e exigiu obediência incondicional aos pronunciamentos oficiais, mesmo
quando eles interferiam nas questões puramente religiosas”. Ademais, Shelley
continua, “Havia também as massas que então afluíam para a igreja
oficialmente favorecida. Antes da conversão de Constantino, a igreja consistia
de crentes convictos. Depois, chegaram aqueles que eram politicamente
ambiciosos, sem interesse religioso e ainda meio enraizados no paganismo”.
4. A união da Igreja com o Estado.
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Essa atitude para com a Igreja permaneceu com os sucessores de
Constantino, e templos pomposos continuaram a ser construídos, financiados
pelos cofres imperiais, até que houve uma reação pagã com o imperador
Juliano, em 361.
Juliano, o Apóstata (331-363), sobrinho de Constantino, se tornou
seguidor do neoplatonismo, a partir dos estudos que fez em Atenas. Ele
restaurou a liberdade de culto e retirou os privilégios da Igreja cristã. Sob seu
governo, as facilidades estavam agora a serviço da filosofia e da religião pagã.
Mas, o processo de retorno ao paganismo foi interrompido por sua morte, na
batalha contra os persas sassânidas.
Os sucessores de Juliano reverteram a sua política, até que
Teodósio I (347-395) e Graciano (359-383) proclamaram um edito, em 380, que
tornou o cristianismo a religião exclusiva do Estado e estabeleceu uma punição
para seguidores de quaisquer outros cultos. Dada à importância do edito,
transcrevemos infra à apreciação do leitor.
“Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo Pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De conformidade com a doutrina apostólica e o ensino dos Evangelhos, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual majestade e em Trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Referentemente aos outros, que julgamos loucos e cheios de tolice, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes” (Bettenson, in Documentos da Igreja Cristã).
Em 392, o Edito de Constantinopla proibiu o paganismo e, em 529,
o imperador Justiniano determinou o fechamento da escola de filosofia de
Atenas.
As consequências da promoção da fé cristã à religião imperial
foram inúmeras: a riqueza passou a ser sinal do favor divino, e a Igreja se
tornou dos ricos e poderosos; com uma aristocracia próxima à do império,
surgiu a divisão entre o clero e laicato; a igreja começou a imitar os costumes
do império tanto em liturgia quanto em forma de governo, tornando-se cada vez
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mais episcopal e monárquica; a igreja relegou o retorno de Cristo e do reino a
segundo plano. Para Eusébio, representante de um pensamento difundido e
amplamente aceito nessa época, embora não o diga “explicitamente”, segundo
salienta Gonzalez, “ao lermos as suas obras temos a impressão de que com
Constantino e seus sucessores o plano de Deus se cumpriu”.
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IX. Os Concílios e Credos Ecumênicos
Nos séculos IV e V da era cristã, surgiram, a partir dos chamados
concílios ecumênicos, os credos aceitos por praticamente todos os ramos do
cristianismo. Foram ao todo sete grandes concílios ecumênicos, quais sejam: I
Concílio de Niceia (325), I Concílio de Constantinopla (381), I Concílio de Éfeso
(431), Concílio de Calcedônia (451), II Concílio de Constantinopla (553), III
Concílio de Constantinopla (680) e II Concílio de Niceia (787).
Quando se pergunta por que os debates teológicos ocorreram tão
tardiamente, Cairns responde que “nos tempos de perseguição, a submissão a
Cristo e à Bíblia era mais importante do que o significado de certas doutrinas”.
A partir de Constantino, um homem ávido pela reunificação do império, era
preciso que na nova conjuntura a Igreja se unisse em torno de uma única
doutrina, afinal, “um cristianismo em discórdia e dividido não podia unir o
Império fragmentado” (Shelley).
Mas, isso não responde toda a questão. Principalmente no Oriente,
surgiu uma intensa inquietação por parte dos cristãos quanto às crenças
afirmadas há séculos. Desejava-se entender e formular com mais clareza
principalmente acerca a Trindade e do relacionamento entre o Pai e o Filho,
sobretudo em um período em que heresias propunham soluções ao mistério
trinitário.
Trataremos, nesse passo, das principais controvérsias que
culminaram nos concílios mais importantes.
1. A Controvérsia Ariana e o Concílio de Niceia (325).
Um dos protagonistas dos debates teológicos que redundaram no
Concílio em apreço foi Ário, presbítero da igreja em Alexandria, no Egito. Foi
Ário que discutiu com o seu bispo, Alexandre, quando este tencionou ensinar
sobre a “Unidade da Trindade”. Para Ário, havia apenas um Deus eterno em
uma única pessoa, o Pai. Cristo, embora tendo sido criado fora do tempo e ser
a primeira criatura, não era Deus eterno e onipotente, mas um ser menor,
intermediário, que se situava entre Deus e a criação.
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Ário retirou suas conclusões cristológicas a partir de seu raciocínio
sobre a unidade indivisível de Deus. Para ele, se Deus era portador de uma
unidade indivisível, a crença na Trindade de pessoas, na prática, acabaria por
dividi-lO em partes. Em consequência, o Filho, embora sendo uma criatura
exaltada, era apenas uma criatura. Os títulos divinos dados a Cristo pelas
Escrituras eram, para Ário, “metafóricos, na melhor da hipótese: honras
apontando para a sua maravilhosa posição como a criação mais alta de Deus,
mas tudo mal interpretado, se tomado literalmente”. Como Ário expressou, o
Filho ‘é chamado Deus não verdadeiramente, mas somente no nome’”
(Chistopher A. Hall).
Para sustentar sua posição, Ário demonstrou que Jesus Cristo
sentiu angústia e medo (Mt 26:38), não conhecia todas as coisas (Mt 15:34;
27:46; Mc 13:4, 32) e argumentou que “Se o Filho fosse, de acordo com sua
interpretação, eternamente existente com Deus, Ele não teria sido ignorante do
Dia, mas o teria conhecido como [sendo a] Palavra; nem teria Ele sido
abandonado, se coexistente [com o Pai]... nem teria orado de modo algum. ...
Sendo a Palavra, Ele nada teria necessitado” (citado por Chistopher A. Hall).
A desavença foi tal que Constantino precisou intervir, e o fez
convocando, em 325, o Concílio de Niceia. Bruce L. Shelley pinta-nos uma
cena quase inacreditável:
“Mais de trezentos bispos ainda se lembravam bem dos dias de perseguição. Muitos podiam mostrar as cicatrizes do sofrimento e da prisão. Um deles tinha perdido um olho durante a perseguição. Outro, sob tortura, perdera os movimentos das mãos. Mas os dias de sofrimento pareciam distantes naquele momento. Os bispos não partiram secretamente para Nicéia, como costumavam fazer, temendo ser detidos. Eles não viajaram todas aquelas milhas penosamente como o fizeram antes. Partiram para o concílio tranquilamente, com todas as despesas pagas, convidados do imperador”.
Três teses foram levadas ao debate em Niceia. Além da posição
ariana, que via Cristo como criado do nada, subordinado ao Pai e de natureza
essencial diferente do Pai, Eusébio de Nicomédia (que não pode ser
confundindo com Eusébio de Cesaréia) postulou uma posição intermediária, no
sentido de que Cristo pode ser considerado divino por Sua obediência à
vontade de Deus.
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Entretanto, o principal defensor da posição que viria a ser aceita
por toda a cristandade como ortodoxa foi Atanásio. Ele chegou ao Concílio sem
direito a voto, como secretário do bispo Alexandre, com vinte e oito anos, e
surpreendeu a todos “pelo talento nas discussões teológicas e por seu
conhecimento profundo da Escritura” (Flanklin Ferreira). Chistopher Hall afirma
que “Seus amigos teriam desejado dar prontamente sua vida por ele. Seus
inimigos anelavam vê-lo e sua lembrança alijados da terra. Alguns zombavam
dele, tratando-o como ‘anão negro’”.
Sua defesa da divindade de Cristo repousou numa base dupla:
primeiro, que somente Deus pode salvar e, se o Novo Testamento chama
Jesus Cristo de Salvador, Ele deve ser Deus. É dizer, considerando que a obra
da salvação não é menor que a obra da criação, somente aquele que pode
criar pode salvar. Daí que, como somente Deus pode criar, somente Deus pode
salvar.
Em segundo lugar, Atanásio defendeu que os cristãos adoram a
Jesus e oram a Ele. Portanto, se Jesus Cristo não é Deus, os cristãos de todos
os tempos são idólatras e blasfemos. “Em resumo, as duas razões
fundamentais pelas quais Atanásio rejeitou o pensamento ariano foram, em
primeiro lugar, porque uma implicação do arianismo era que a salvação
provinha de uma criatura; e, em segundo, porque se aproximava do politeísmo”
(Flanklin Ferreira).
Em resposta a Ário, Atanásio desejava que as Escrituras fossem
acreditadas em tudo quanto afirmam a respeito do Filho de Deus e insistia em
que elas contêm “um duplo relato do Salvador”. Assim, todas as “propriedades
da carne” são verdadeiramente atributos do Filho, em decorrência da
encarnação, assim como são Seus todos os atributos da divindade. Alertou que
o equívoco ariano foi que “olhando para o lado humano do Salvador, julgaram-
no uma criatura”.
O Credo resultante do Concílio de Niceia consiste da seguinte
redação:
“Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância (homo ousion) do Pai, Deus de Deus, Luz e Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão
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na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou no terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo” (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).
2. O Debate Pneumatológico e o I Concílio de Constantinopla (381).
Não obstante, a heresia ariana não foi erradicada em 325, com
Niceia. As décadas seguintes viram o recrudescimento do arianismo, sobretudo
face ao apoio de imperadores arianos. Assim, nos próximos cinquenta anos o
debate continuou acirrado. Atanásio foi exilado cinco vezes, saindo de
Alexandria e retornando a ela a depender da mudança no governo do império.
Um grupo semiariano apartou-se do arianismo radical defendendo
a relação de Cristo com o Pai a partir do termo “homoiousios”, expressão que
quer dizer “similar” ou “semelhante”. Enquanto o grupo liderado por Atanásio
insistia no uso do vocábulo “homoousios”, para asseverar que Cristo é da
substância do Pai.
Shelley observa que “embora apenas um ‘i’ dividisse os grupos
após o encontro de Nicéia, as questões envolvidas representavam duas
interpretações diametralmente diferentes da fé cristã. Estavam em jogo a
divindade de Jesus Cristo e a essência da doutrina da Trindade”. Esse autor
vaticina, em conclusão: “Na luta ariana, a precisão era tudo”.
Atanásio faleceu em 2 de maio de 373, sem ver o triunfo de sua
causa. Entretanto, outros homens importantes entraram em cena, sobretudo os
chamados “pais capadócios”: Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa e
Basílio, o Grande.
Gregório de Nazianzo envolveu-se na controvérsia ariana e
pneumatológica do período, sobretudo quando assumiu o bispado de
Constantinopla por dois curtos e intensos anos, até 381. Em resposta aos
“eunomianos”, um grupo ariano radical que reduziu o estudo teológico a um
exercício puramente racional, Gregório persistia em afirmar o mistério da fé
cristã, “e deleitava-se ao colocar lado a lado os maravilhosos paradoxos da
indescritível união da deidade e humanidade de Cristo” (Christopher A. Hall):
Ele foi batizado como homem – mas remiu os pecados como Deus. ... Ele foi tentado como homem, mas venceu como Deus. ... Ele teve fome – mas alimentou milhares. ... Ele estava fatigado, mas é o
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descanso daqueles que estão cansados e oprimidos. Ele teve um sono pesado, mas caminhou levemente sobre o mar. ... Ele pagou tributo, mas foi tirado de um peixe; sim, Ele é o rei daqueles que o requereram dele. ... Ele ora, mas também ouve orações. Ele chorou, mas faz as lágrimas secarem. Ele perguntou onde puseram Lázaro, porque era homem; mas o ressuscitou porque era Deus. Ele foi vendido, e muito barato, pois foram somente trina peças de prata; mas redimiu o mundo, pagando alto preço, pois o preço foi seu sangue. Como ovelha foi levado ao matadouro, mas Ele é o pastor de Israel e agora também de todo o mundo. ... Ele foi traspassado e moído, mas cura toda enfermidade. Ele foi levantado e pregado no madeiro, mas, pela árvore da vida, Ele nos restaura. Ele morre, mas dá vida, e por sua morte destrói a morte (citado por Hall).
Devemos lembrar, por oportuno, que o Concílio de Nicéia não
tratou sobre a natureza do Espírito Santo, limitando-se a tão somente afirmar a
fé “no Espírito Santo”. Nesse vácuo, surge Macedônio, bispo de Constantinopla
entre 341 e 360, de confissão semiariana, ensinando que o Espírito Santo era
subordinado ao Pai e ao Filho e que era um ser do mesmo nível dos anjos.
O teólogo que principalmente tomou a si a responsabilidade de
responder aos “pneumatômacos” (opositores do Espírito) foi o capadócio
Basílio de Cesaréia. Em seu “Tratado sobre o Espírito Santo”, escrito em 374,
afirmou que o Espírito Santo deve receber a mesma glória e louvor que o Pai e
o Filho: “O Senhor nos entregou como doutrina necessária e salvífica que o
Espírito Santo deve ser colocado na mesma categoria com o Pai. [(...) Nós]
glorificamos o Espírito Santo com o Pai e o Filho porque cremos que ele não é
estranho à natureza divina” (citado por Flanklin Ferreira).
Basílio defendeu a divindade do Espírito Santo, demonstrando com
base nas Escrituras que a Ele pertence a mesma glória do Pai e do Filho.
Também argumentou a partir da experiência cristã da salvação, afirmando que
o Espírito só pode operar a nossa salvação porque é uma pessoa divina.
Basílio trabalhou arduamente para que um novo Concílio fosse
convocado a fim de ratificar o Credo de Nicéia, por fim à controvérsia ariana e
solucionar a questão pneumatológica. Como Atanásio, também não viveu para
ver a vitória da ortodoxia, porque faleceu em 1 de janeiro de 379, pouco antes
do imperador Teodósio I convocar o I Concílio de Constantinopla, em 381.
Nesse Concílio, onde a igreja cristã foi representada por cento e
cinquenta bispos, condenou-se o arianismo, ratificou-se e revisou-se o Credo
de Niceia, afirmando a divindade do Espírito Santo. O Credo de
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Constantinopla, também chamado “niceno” e “niceno-constantinoplano” (por
ser também uma ratificação de Nicéia), tem a seguinte dicção:
“Cremos em um Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, gerado pelo pai antes de todos os séculos, Luz de Luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual todas as coisas foram feitas; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu dos céus, foi feito carne do Espírito Santo e da Virgem Maria, e tornou-se homem, e foi crucificado por nós sob o poder de Pôncio Pilatos, e padeceu, e foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as Escrituras, e subiu aos céus, assentou-se à direita do Pai, e de novo há de vir com glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim; e no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai, que com o Pai e o Filho conjuntamente é adorado e glorificado, que falou através dos profetas, e na Igreja uma, santa, católica e apostólica; confessamos um só batismo para remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos mortos e a vida do século vindouro” (grifo nosso).
3. A Dupla Natureza de Cristo, o I Concílio de Éfeso (431) e o Concílio de
Calcedônia (451).
Com as questões ariana e pneumatológica resolvidas, os debates
teológicos voltaram-se à compreensão da dupla natureza de Cristo. Na
tentativa de definição do tema, a ortodoxia enfrentou três heresias que se
originaram das ideias de Apolinário, Nestório e Êutiques.
Nestório, bispo de Constantinopla entre 428 e 431, foi acusado de
ensinar que as duas naturezas de Cristo, a divina e a humana, coexistiam não
em uma verdadeira “união”, mas tão só em uma “conjunção” (“sunápheia”).
Bettenson anotou que “aparentemente, Nestório aprendeu sua doutrina com
Teodoro de Mopsuéstia [lugar próximo de Antioquia], que ilustrava a união das
duas naturezas em Cristo com a união conjugal de marido e mulher, tornados
uma só carne sem deixarem de ser duas pessoas e duas naturezas”.
Por essa razão, segundo Nestório, não seria adequado chamar
Maria de “mãe de Deus”, visto ter ela gerado apenas a natureza humana de
Jesus. Entretanto, “theotókos” (“mãe de Deus”) é termo que realça mais a
divindade do Filho que o privilégio da mãe, razão pela qual os reformadores
entenderam, segundo González, “que o que foi discutido no século quinto não
era que lugar a devoção a Maria deveria ter na vida cristã, mas a relação entre
a humanidade e a divindade de Jesus Cristo”.
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O opositor de Nestório foi Cirilo, o patriarca de Alexandria (412-
444), que em 428 disparou contra aquele uma série de doze anátemas. No
segundo anátema, proclamou: “Se alguém não confessar que o Verbo de Deus
Pai estava unido pessoalmente [kath’hypóstasin] à carne, sendo com ela
propriamente um só Cristo, ou seja, um só e mesmo Deus e homem ao mesmo
tempo, seja anátema” (in Documentos da Igreja Cristã, Bettenson).
Na segunda carta a Nestório, escrita em 430, que foi aprovada nos
Concílios de Éfeso e Calcedônia, Cirilo asseverou:
“(...) As duas naturezas, que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade, eram diferentes, mas de ambas houve um só Cristo e um só Filho. Não professamos que a diferença das naturezas foi destruída em virtude da união, mas que, integrados inconcebivelmente na unidade, divindade e humanidade produziram para nós um único Senhor e Filho, Jesus Cristo”.
No I Concílio de Éfeso, convocado pelo imperador Teodósio II e
realizado em 431, com uma presença em torno de duzentos a duzentos e
cinquenta bispos, Nestório foi deposto do bispado, o nestorianismo foi
condenado e a expressão “theotókos” (mãe de Deus), mantida, para revelar-se
inadequada somente nos séculos seguintes.
A heresia de Apolinário, bispo de Laodicéia (falecido em 392), por
sua vez, consistia em afirmar que o Logos divino substituía a alma humana no
corpo humano de Jesus, criando uma espécie de “unidade de natureza” entre o
Logos e seu corpo. Na prática, Jesus não seria completamente humano, visto
que da humanidade Ele só teria o corpo.
Finalmente, Êutiques, sucessor de Cirilo no bispado de Roma,
começou a ensinar que a natureza divina de Cristo absorveu a natureza
humana, e que após a encarnação, Cristo teria somente natureza divina
revestida de carne humana. Em reação ao ensino de Êutiques, Flaviano, o
bispo de Constantinopla, baniu aquele da cidade de Roma.
Em apoio a Êutiques, Dióscoro organizou um Concílio em Éfeso,
em 449 (mais tarde chamado por Leão de “Sínodo dos Ladrões”), e tomou
providências para depor Flaviano, que, por sua vez, pediu socorro a Leão, o
então bispo de Roma.
A Carta XXVIII, conhecida como Tomo a Flaviano e escrita em 13
de junho de 449, foi uma resposta de Leão ao citado “Sínodo dos Ladrões”, e
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apresentava a doutrina ortodoxa da encarnação e da dupla natureza de Cristo.
Berkhof resume os cinco pontos mencionados no Tomo a Flaviano da seguinte
forma:
“1. Existem duas naturezas em Cristo, que são permanentemente distintas. 2. Essas duas naturezas são unidas em uma só Pessoa, cada uma das quais realizou sua própria função apropriada na vida encarnada. 3. Da unidade da Pessoa segue-se a comunicação de atributos (communicatio idiomatum). O Senhor é, portanto, “visível” e “invisível”, “compreensível” e “incompreensível”, “passível” e “impassível”. 4. A obra da redenção requeria um Mediador ao mesmo tempo humano e divino, temporal e intertemporal, mortal e imortal. (...). 5. A humanidade de Cristo é permanente, e sua negação implica a negação docética da realidade dos sofrimentos de Cristo” (citado por Flanklin Ferreira).
O Concílio de Calcedônia reuniu-se a partir de 8 de outubro de 451,
convocado pelo imperador Marciano, com a presença de mais de quinhentos
bispos. Nele, Êutiques e Dióscoro foram condenados e depostos, os Credos de
Niceia e Constantinopla foram ratificados e as Cartas de Cirilo e o Tomo a
Flaviano foram aprovados.
Segundo J. N. D. Kelly, “a maioria dos bispos presentes objetava à
formulação de um novo credo; eles consideravam suficiente confirmar a fé
nicena e reconhecer o valor obrigatório das Cartas Dogmáticas de Cirilo e o
Tomo de Leão. No entanto, os comissários imperiais sabiam que, para que o
concílio tivesse resultados, era necessário elaborar uma fórmula assinada por
todos, e eles deixaram claras suas intenções”. Assim, uma confissão formal de
fé foi apresentada - a definição de Calcedônia – cujo teor é o que segue:
“Fieis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial [homoousios] ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; ‘em todas as coisas semelhante a nós, excetuando o pecado’, gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelos Pai e, segundo a humanidade, por nós e para nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus [theotókos]. Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de natureza de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência (hipóstasis); não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu”.
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Em síntese, “lado a lado com a unidade, a definição declara que,
enquanto encarnada, a Palavra existe ‘em duas naturezas’, cada uma completa
e cada uma retendo intatas, na união, suas propriedades e operações
distintivas” (J. N. D. Kelly).
O eutiquianismo, mais tarde conhecido como monofisismo, apesar
de condenado em Calcedônia (em 451) e no II Concílio de Constantinopla (em
553), permaneceu exercendo grande influência sobre os cristãos do Egito,
Etiópia, Síria, Armênia e em outras partes, e travando batalha renhida contra a
definição.
Bruce L. Shelley resume bem os debates teológicos e as
formulações ortodoxas que deles exsurgiram: “Portanto, contra Ário, a igreja
afirmou que Jesus era verdadeiramente Deus, e contra Apolinário afirmou que
era verdadeiramente homem. Contra Êutiques, professou que a humanidade e
divindade de Jesus não podiam se transformar em qualquer outra coisa, e
contra Nestório, a igreja professou que Jesus não era dividido, mas sim uma só
pessoa”.
4. As Controvérsias Antropológica e Soteriológica.
No século quinto todos os debates acerca da Trindade e da dupla
natureza do Redentor ocorreram principalmente no Oriente. No Ocidente, as
controvérsias se concentraram em questões tão práticas quanto os efeitos da
Queda e o modo como os homens são salvos. Como Earle E. Cairns observa,
a “mente grega deixou sua contribuição no campo do pensamento; a mente
prática romana, por sua vez, preocupou-se mais com assuntos da vida prática
da Igreja”. Nessa última esfera de debates, os principais pensadores
envolvidos nas contendas doutrinários foram Agostinho (354-430), Pelágio (c.
360-420) e João Cassiano (c. 360-435).
Pelágio foi um monge britânico que se tornou um popular professor
em Roma. Ele e seu discípulo Celéstio deixaram a capital ocidental em 409,
face à invasão de Alarico, e rumaram à África. Celéstio se estabeleceu em
Cartago e foi com ele que os debates ficaram acalorados. Agostinho, por sua
vez, era natural de Tagaste (hoje Souk-Ahras, na Argélia, no norte da África),
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nasceu em 13 de novembro de 354, converteu-se em 15 de agosto de 386 e se
tornou bispo de Hipona em 396, aos 42 anos.
Pelágio e Agostinho tinham pensamentos diametralmente opostos
e que foram construídos independentemente. Quando o encontro de ambos
ocorreu na África, em 410, o choque de ideias foi inevitável. Pelágio se sentiu
especialmente ofendido com as seguintes palavras de Agostinho: “Não tenho a
mínima esperança, a não ser em tua misericórdia. Concedes o que exiges e
mandas o que for do teu agrado...” (Confissões, citado por Bettenson).
Para Pelágio, o homem não foi criado portador de santidade
positiva, mas neutro, com capacidade para fazer o bem e o mal. Adão foi criado
mortal, de modo que quer tivesse pecado quer não, morreria de qualquer
modo. Quando Adão livremente escolheu pecar, tal decisão não afetou sua
natureza em nada, tampouco sua descendência. Portanto, cada filho de Adão
nasce como o pai da raça foi criado, sem culpa e sem natureza depravada, isto
é, sem tal coisa conhecida como “pecado original”, e sem a inevitabilidade de
pecar. Na prática, a única diferença entre Adão e seus descendentes - e, para
Pelágio, é isso que explica a universalidade do pecado -, é que contra todos os
filhos de Adão pesam a educação errada, o mau exemplo e o hábito de pecar.
Entretanto, os homens, como Adão, estão inteiramente livres para escolher, a
qualquer momento, o bem e o mal.
Assim, o homem não depende da graça de Deus para fazer a Sua
vontade, se isso significa algum tipo de operação prévia divina que capacita a
criatura racional a obedecer-Lhe. Conforme lição de J. N. D. Kelly, a palavra
graça para Pelágio compreende:
“(a) o próprio livre-arbítrio ou a possibilidade de não pecar com que Deus nos dotou no momento de nossa criação; (b) a revelação da lei de Deus, por intermédio da razão, que nos instrui naquilo que devemos fazer e nos apresenta as sanções eternas; e (c) desde que isso ficou obscurecido devido a costumes errados, a lei de Moisés e o ensino e exemplo de Cristo”.
As consequências inevitáveis de todo esse raciocínio foi defendida
por Pelágio: que o homem pode observar todos os mandamentos de Deus,
sem pecar; que a “graça” é oferecida a todos, indistintamente; e, que a
predestinação é realizada na medida em que Deus prevê a obediência das
pessoas.
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Agostinho, a seu turno, nutria compreensão oposta, e bem antes
do surgimento da controvérsia. Para ele, Adão foi dotado de retidão e
perfeições positivas e com acesso permanente à imortalidade pelo alimentar-se
da árvore da vida. Adão possuía liberdade no sentido de posse non peccare
(capacidade para não pecar). Mas, quando caiu, de tão grave seu pecado, toda
a raça foi atingida, tornando-se ela mesma pecadora (massa damnata).
O elo entre o pecado de Adão e a atual condição da humanidade,
para o bispo de Hipona, está em sua doutrina do “pecado original”, que
consiste em que todos os homens participaram da decisão de Adão realmente
e, por isso, são corresponsáveis por ela. Em razão dessa solidariedade, a
consequência da Queda é que toda a raça humana está escravizada à
ignorância, concupiscência e morte, e não desfruta mais do posse non peccare.
Após a Queda, o homem permanece portador de livre-arbítrio
(liberum arbitrium), no sentido de poder escolher o caminho pelo qual andará.
Entretanto, como a vontade não opera independentemente de motivos, e esses
estejam infectados pela natureza corrompida, “ainda que teoricamente esteja
livre, o homem caído, respirando a atmosfera da concupiscência, na verdade
só escolhe objetivos pecaminosos” (J. N. D. Kelly). Eis a razão pela qual sem a
graça de Deus, que para Agostinho é “um poder interno e secreto, maravilhoso
e inefável”, o livre-arbítrio serve apenas para conduzir ao pecado. Assim, a
graça é o poder – na realidade, a presença do Espírito Santo - que opera no
coração dos homens e que os ajuda em sua fraqueza.
Como decorrência necessária, para Agostinho, a graça eficiente
(adiuntorium quo) é irresistível e concedida somente àqueles que foram livre e
incondicionalmente predestinados à salvação. Presciência é Deus conhecer
previamente aquilo que Ele mesmo fará, como escreveu em sua De Dono
Perseverantiae:
“Ousará alguém afirmar que Deus não conheceu antecipadamente aqueles a quem concederia a fé? Se antecipadamente os conheceu, também previu certamente sua própria benevolência mediante a qual se digna a nos resgatar. Isso, e não outra coisa, é predestinação dos santos, a presciência de Deus e a determinação de sua condescendência através da qual certamente são salvos todos os predestinados” (citado por Bettenson).
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Assim, aos que conheceu de antemão e os predestinou
soberanamente à salvação, Deus concede a graça da perseverança para que
verdadeira e certamente sejam salvos:
“No caso dos santos predestinados ao Reino de Deus pela graça divina, a ajuda concedida para que perseverassem não foi aquela dada a Adão, mas uma ajuda especial, comportando forçosamente a perseverança de fato, (...) sendo de tal maneira forte e eficaz que os santos não podiam fazer outra coisa senão perseverar de fato” (citação de Flanklin Ferreira).
Para Agostinho, a salvação é uma operação de Deus, do início ao
fim, da eternidade passada à eternidade futura.
Apesar de o pelagianismo ter sido condenado no Concílio
ecumênico de Éfeso, em 431 (o mesmo que condenou o nestorianismo), e no
Concílio local em Cartago, em 418, as ideias agostinianas sofreram oposição
de um pensamento que mais tarde veio a ser conhecido como
“semipalagianismo”.
O pensador mais destacado do semipalagianismo foi João
Cassiano, o famoso monge de Marselha. Contra a posição de Agostinho, João
Cassiano cria que os efeitos da Queda não foram tão graves a ponto de
podermos dizer que a vontade humana está morta; ela está apenas doente, e a
função da graça é restaurá-la, cooperando com ela. Portanto, “a natureza
humana caída retém certo elemento de liberdade, em virtude do que pode
cooperar com a graça divina” (Berkhof). Para o monge de Marselha, Deus
deseja que todos os homens sejam salvos. Em consequência, a predestinação
ocorre a partir do conhecimento prévio que Deus possui quanto à qualidade do
comportamento dos homens.
Louis Berkhof avalia o semipelagianismo da seguinte forma:
“Para dizer a verdade, essa posição intermediária serviu para frisar claramente – como nenhuma outra coisa poderia ter feito – que somente um sistema como o de Agostinho, com sua forte coerência lógica, poderia manter-se firme contra os assaltos de Pelágio. O semi-pelagianismo fez a fútil tentativa de evitar todas as dificuldades dando lugar tanto à graça divina quanto ao livre-arbítrio humano como fatores coordenados da renovação do homem, e alicerçando a predestinação sobre a fé e obediência previstas”.
O semipelagianismo foi condenado no Concílio de Orange, em 529,
que também não adotou inteiramente as ideias de Agostinho. A posição de
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Orange foi chamada por Berkhof de “agostinianismo moderado”, cujas
proposições estabelecidas foram as seguintes:
“(a) como resultado da transgressão de Adão, tanto a morte como o pecado passaram a todos seus descendentes; (b) por conseguinte, o livre-arbítrio do homem ficou tão distorcido e enfraquecido que ele é incapaz de crer em Deus e muito menos de amá-lO, a menos que para isso seja despertado e ajudado pela graça; (c) os santos do Antigo Testamento deviam seus méritos exclusivamente à graça e não à posse de algum bem natural; (d) a graça do batismo capacita todos os cristãos a cumprir, com a ajuda e a cooperação de Cristo, os deveres necessários para a salvação, contanto que façam os devidos esforços; (e) deve-se anatemizar com repulsa a predestinação para o mal; e (f) em toda boa ação, o primeiro impulso provém de Deus, e é esse impulso que nos instiga a buscar o batismo e, ainda com a ajuda dEle, a cumprir nossos deveres” (J. N. D. Kelly).
Apesar de condenados o pelagianismo e o semipelagianismo, “a
doutrina [agostiniana] da graça irresistível da predestinação foi suplantada pela
ideia da graça sacramental do batismo... Gradualmente, o declínio geral que
houve na igreja católica romana a conduziu na direção descendente do
semipelagianismo, que desde há muito garantira base segura no Oriente”
(Berkhof).
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X. O Surgimento da Vida Monástica
1. O novo estado da Igreja.
O período em comento é caracterizado pela migração de povos
bárbaros. Os vândalos, sob a liderança de Genserico, em 349, tomaram
Cartago, no Norte da África. Genserico era ariano, razão pela qual perseguiu
os cristãos das tradições católica e donatista. Seu sucessor, Unerico (falecido
em 484), recrudesceu ainda mais a perseguição, proibindo o culto católico e
torturando e cortando a língua daqueles que não obedecessem a essas
ordens. O reino vândalo foi destruído em 533, pelo General Belisário, enviado
pelo imperador Justiniano.
O reino visigodo, no início do século VI, se estabeleceu na
Espanha, tendo Toledo como capital, e existiu até 711, ocasião em que for
derrotado pelos árabes.
Os francos, a seu turno, já detinham a Gália (atual França), antes
do ano 400, embora sob domínio romano. Somente em 486, o rei franco Clóvis
derrotou o último governador romano, Syagrius. Convertido ao cristianismo,
Clóvis foi batizado em 498, momento em que foram batizados três mil soldados
do seu exército. Nesse período, Martin N. Dreher nos informa que “a Igreja
enriqueceu sob o domínio franco, a tal ponto que os reis tentaram, algumas
vezes, apossar-se de seus bens”.
Os povos bárbaros, entretanto, eram um a um conduzidos ao
cristianismo através de uma forte movimentação missionária, impulsionada
pelo monasticismo. Patrício (c. 387-c. 460) foi o “apóstolo da Irlanda”; Columba
(521-597) evangelizou a Escócia. Agostinho de Cantuária (falecido em 604) foi
enviado por Gregório, o Grande, em 597, para converter a Inglaterra; e
Bonifácio (680-754) foi o “apóstolo aos germanos”.
Para muitos cristãos, a ascensão e suposta conversão de
Constantino foram grandes bênçãos. Eruditos cristãos - como Eusébio de
Cesaréia, talvez representante da maioria dos crentes -, realmente acreditaram
que Deus estava levando a termo Seus planos através da viravolta histórica
que fez a crença perseguida do império tornar-se sua religião oficial.
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Por outro lado, a facilidade de se tornar cristão conduziu para
dentro da Igreja uma multidão bárbara semi-paganizada, que adentrou
formalmente ao cristianismo sem abandonar as antigas práticas de suas
religiões de origem. Cains comenta que “massas de pagãos que tenham sido
convertidos à religião cristã entraram logo para a Igreja sem serem doutrinados
e sem passarem por um período de prova. Muitos deles trouxeram para a
Igreja os seus velhos padrões de vida e de costumes. O antigo culto aos heróis
foi substituído pelo culto dos santos. Muitas práticas ritualistas retiradas do
paganismo encontraram uma porta aberta na Igreja Cristã...”.
Dreher, por sua vez, narra que a “fé do povo estava baseada, em
grande parte, no culto de relíquias, através das quais se julgava que o próprio
Cristo estava agindo. A pregação era realizada em língua latina, impedindo
assim que o povo tivesse participação real nos ensinamentos do evangelho”. A
cristandade formal crescia enormemente, enquanto a piedade cristã e a pureza
doutrinária se esvaíam.
2. As razões e a evolução da vida monástica.
Frente a esse estado de coisas, muitos cristãos não quiseram
romper com a Igreja, mas decidiram separar-se da vida comum e se retiraram
para o deserto. Surge o monasticismo oriental, no século IV, caracterizado pela
vida solitária.
Nos primórdios, o movimento foi motivado pelo anseio por uma
vida mais santa possível. Homens como Tertuliano, Orígenes, Cipriano e
Jerônimo já argumentavam acerca da superioridade da vida celibatária,
apelando para textos bíblicos e para a necessidade da imitação da vida simples
de Cristo.
Paralelamente a essa ideia, não devemos esquecer que os tempos
de perseguição ficaram para trás, e muitos que viram a necessidade de uma fé
heroica como encontrada nos mártires desaparecer, perceberam na vida dos
eremitas um substituto equivalente.
Antônio (c. 250-356) é considerado o fundador do monasticismo.
Motivado pelas palavras de Jesus (“Vai, vende tudo que tens, dá-o aos pobres,
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e terás um tesouro no céu”), aos 20 anos, distribuiu seus bens e passou a
habitar em uma sepultura. Sua vida atraiu muitos seguidores, que passaram a
viver próximo a ele, em cavernas.
Tipos mais excêntricos de eremitas surgiram às centenas. Simeão
Estilita (c. 390-459), depois de viver enterrado até o pescoço por vários meses,
passou mais de trinta anos morando em uma casa construída sobre um pilar de
dezoito metros. Segundo Cairns, “um certo Amon conseguiu alguma fama de
santidade por jamais se ter despido ou tomado banho depois que se tornou
eremita”. Esse historiador ainda nos conta de “um outro”, que “andou nu nas
proximidades do Monte Sinais por 50 anos”.
No Egito, com Pacômio (290-346), foi estabelecida uma
comunidade monástica em Tabennisi, à margem do Nilo (“monasticismo
cenobítico”, das palavras gregas koinos e bios, “vida comunitária”), na qual os
monges mantinham uma vida simples e regada a trabalho e devoção. Pacômio
chegou a ter sete mil monges no Egito e na Síria.
Basílio de Cesaréia, o autor do Tratado sobre o Espírito Santo,
escreveu duas obras para a regulamentação da vida no mosteiro, de onde
deriva toda a legislação da Igreja Oriental para a vida monástica, razão pela
qual tem sido considerado o fundador do monasticismo oriental.
Diz-se que no Ocidente, Atanásio, com o livro Vida e Obra de
Santo Antônio, introduziu a vida monástica, que foi posteriormente
popularizada por homens como Jerônimo, Ambrósio e Agostinho. Entretanto, o
líder mais influente do movimento nesta banda do mundo foi sem dúvida Bento
de Núrsia (c. 480-542).
Núrsia (atual Nórcia), localidade italiana, foi a terra natal de Bento.
Ele chegou a estudar em Roma, mas desistiu dos estudos para dedicar-se à
vida monástica. Passou três anos morando sozinho em uma caverna nas
proximidades de uma localidade chamada Subiaco, momento após o qual
dedicou-se à evangelização entre os pastores da região. Convidado a ser
abade do convento de Vicovaro, Bento impôs orientações tão severas aos
monges que estes chegaram a tentar envenená-lo, o que provocou seu retorno
à antiga caverna em Subiaco.
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Nesse período, foi procurado por jovens que desejavam ser
iniciados na vida monástica e, saindo da caverna, fundou doze conventos, nos
quais residiam doze monges, na região do vale do rio Anio. A vida conventual
dirigida por Bento centrava-se na devoção e no trabalho.
O pároco da localidade, movido por inveja, introduziu prostitutas
nos conventos de Bento e, este, sem polemizar, dirigiu-se ao Monte Cassino
(230 km a sudeste de Roma), onde fundou com seus discípulos, em 529, uma
comunidade monástica. O monastério do Monte Cassino é o mais famoso da
Europa e a sede da ordem beneditina, onde também Bento escreveu sua
influente Regra – a base de todo o monasticismo ocidental.
3. Uma breve avaliação da vida monástica.
Foi nos mosteiros que grande parte da cultura antiga foi preservada
na idade média, após a tomada do império romano pelos bárbaros. De lá
provinha a única possibilidade de educação e foi nesse ambiente que os
monges se ocuparam em copiar importantes manuscritos cristãos e do velho
mundo.
Também, a partir dos mosteiros, o cristianismo viu revigorada sua
força missionária. A obra de monges como Columba se deu a partir dos
conventos por eles fundados. Ademais, os mosteiros eram lugares onde
doentes e viajantes cansados encontravam cuidados e repouso.
Entretanto, por outro lado, a vida monástica equivoca-se a partir
dos seus pilares, uma vez que está enraizada na ideia dualística da separação
entre o corpo e a alma. Para um monge, o corpo é a prisão da alma e o
ascetismo é a forma de libertá-la, a única maneira de viver acima da
mediocridade que é própria da vida comum.
Por isso, a vida monástica, com seus rigores e apego ao celibato,
passou a ser vista como o caminho para quem queria uma vida em comunhão
com Deus, e criou, em consequência, um suposto tipo superior de cristianismo
e duas classes de cristãos (os monges e os comuns).
O resultado prático é que o mundo perdeu os melhores homens e
mulheres da igreja para a clausura dos mosteiros, tanto quanto a possibilidade
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de sofrer a influência positiva de famílias modelos e filhos cristãos criados em
um ambiente piedoso.
Finalmente, o monasticismo e o celibato demonstraram cabalmente
que a maneira de santificar-se não é deixando a vida comum. Com o passar do
tempo, o aumento da riqueza do monastério conduzia ao afrouxamento do rigor
inicial e a extravagantes excessos, e o homem enclausurado logo se revelava
em mais um horrendo pecador enclausurado.
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XI. O Fortalecimento do Bispo de Roma
1. Raízes do fortalecimento do Bispo de Roma.
A liderança das igrejas neotestamentárias era composta por
presbíteros (ou bispos ou pastores) e diáconos. No início do segundo século,
um bispo é destacado como tendo autoridade superior à dos presbíteros, no
âmbito da igreja local, como se pode observar nas cartas de Inácio de
Antioquia.
Nos embates doutrinários contra o gnosticismo, surgiu a doutrina
da “sucessão apostólica”, segundo a qual uma igreja só era realmente
apostólica se sua liderança pudesse estar comprovadamente na linha de
sucessão histórica que remontava aos apóstolos.
A palavra “sucessão” ocorre como termo técnico pela primeira vez
em Hegésipo (c. 175), conforme nos informa Eusébio, mas foi Irineu de Lyon o
primeiro a enfatizar a sucessão apostólica como argumento contra o
gnosticismo. Ele escreveu:
“Mas quando, contra eles, apelamos para esta mesma tradição vinda dos apóstolos e conservada nas igrejas mediante a sucessão de presbíteros, eles se tornam adversários dela pretendendo serem não somente mais sábios do que os presbíteros, mas ainda mais do que os próprios apóstolos, e serem os descobridores da verdade inviolada... (...) Quem quiser discernir a verdade, observe a tradição apostólica conservada em todas as igrejas do mundo. É-nos possível enumerar aqueles que os apóstolos deixaram como bispos nas igrejas e seus sucessores até hoje: eles nunca acreditaram nem ensinaram coisas absurdas como as imaginadas por essa gente. Se os apóstolos tivessem conhecido mistérios ocultos que, privada e secretamente, quisessem confiar aos perfeitos, eles os teriam transmitido preferencialmente àqueles que deixaram no governo das igrejas (...)”.
Nesse mesmo sentido, Tertuliano argumentou:
“Mas se, porventura, alguma heresia ousar inserir-se na idade apostólica para se beneficiar da tradição apostólica podemos dizer: Mostrem-nos as origens de suas igrejas; apresentem a lista de seus bispos, provando sua sucessão a partir do princípio, estabelecendo uma sucessão ininterrupta desde o princípio, de modo que o primeiro bispo tenha como precursor a fonte de autoridade algum dos apóstolos ou, pelo menos, algum dos homens apostólicos que tenham convivido com os apóstolos. Este é o modo como as igrejas apostólicas apresentam suas origens...”.
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Cipriano de Cartago tanto falou a favor da unidade da Igreja como
defendeu que todas deveriam estar submissas à Sé romana. Seu raciocínio
partiu da ideia do primado de Pedro sobre os demais apóstolos, como se pode
observar nesse excerto da sua Epístola XXXIII:
“Nosso Senhor, cujos preceitos e exortações nos cumpre observar, estabeleceu o excelso ministério episcopal e toda a ordem de sua Igreja quando, no Evangelho, disse a Pedro: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’ etc. (Mt 16:18s)... Daí em diante, gerações sucederam a gerações, bispos a bispos, e o ministério episcopal com toda a ordem eclesiástica transmitiu-se de tal modo que a Igreja está edificada sobre os bispos e todo ato da Igreja é dirigida por estes ministros que a presidem...”.
No I Concílio de Niceia (325), três bispados receberam a
preeminência, quais sejam, os de Alexandria, Antioquia e Roma. No Concilio
de Calcedônia (451), o cânone 28 conferiu ao patriarca de Constantinopla
primazia frente aos demais bispados. Mas, em face do esfacelamento do
império no Ocidente, sobretudo devido às invasões bárbaras, os bispos de
Roma vieram a gozar de uma crescente autoridade.
2. Contribuições políticas e teológicas ao fortalecimento do Bispo de Roma.
Um dos nomes mais importantes ao surgimento do papado
universal foi Leão Magno, o Leão I (bispo de Roma em 440-461). Referimo-nos
a ele quando tratamos do Concílio de Calcedônia (451), e ao seu famoso Tomo
a Flaviano, que estabeleceu a ortodoxia no tocante à dupla natureza de Cristo.
Leão foi contundente em afirmar a primazia de Pedro na liderança
da Igreja e em ensinar que aos sucessores de Pedro cabia o cuidado por toda
a Igreja. Com base na autoridade petrina, ele manteve-se contrário ao cânone
28 do Concílio de Calcedônia e o declarou nulo, por razões mais do que
óbvias. Com efeito, Leão escreveu:
“Assim como perdura aquilo que Pedro acreditou haver em Cristo, mantém-se igualmente o que Cristo instituiu em Pedro (...). São Pedro, mantendo a fortaleza recebida, não larga o leme da Igreja, o qual lhe foi entregue. Instituído antes dos demais, é denominado Pedra, declarado fundamento, constituído porteiro do reino dos céus, preposto como árbitro do que há de ser ligado e desligado por meio de juízos e decisões que hão de permanecer até mesmo nos céus, para que, pelos próprios mistérios destas denominações, cheguemos a conhecer qual é a sua união com Cristo”.
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Além dos debates envolvendo o poder eclesiástico, os feitos de
Leão em salvar Roma das mãos de Átila (em 452) e de atenuar o que poderia
ter sido uma tragédia muito maior sob o comando do vândalo Genserico (em
455), demonstraram a completa decadência do poder civil e fizeram do bispo
de Roma uma espécie de protetor da população.
Hilário (461-468), Simplício (468-483) e Felix II (483-492)
sucederam Leão. No bispado de Simplício, Rômulo Augústulo foi deposto (em
476). Gelásio I (492-496) sucedeu Felix, manifestou-se contrariamente ao
primado do patriarca de Constantinopla e deu início à teoria dos dois poderes,
amplamente usada e desenvolvida na Idade Média.
Segundo Gelásio, tanto o poder temporal quanto o espiritual
provém de Deus, mas o poder espiritual goza de certa primazia, uma vez que
este tem a responsabilidade pela salvação das almas. Gelásio escreveu que
“destes ministérios o dos sacerdotes é de tanto maior importância, porque eles
também terão que prestar contas pelos reis dos seres humanos no juízo
divino”.
3. Gregório, o Grande (540-604).
Não obstante, o personagem mais marcante para o
estabelecimento do papado universal de Roma foi, sem dúvida, Gregório, o
Grande (590-604). Gregório era filho de família nobre e em 573, aos 33 anos,
foi nomeado prefeito de Roma pelo imperador Justino.
Logo depois, utilizou a herança deixada pelo pai na construção de
sete mosteiros e tornou-se monge. Entre os anos 579 e 585, foi embaixador do
bispo de Roma em Constantinopla e, de volta a Roma, tornou-se abade em um
dos monastérios construídos por ele, o de Santo André. Em 590, com a morte
do bispo de Roma Pelágio, Gregório foi escolhido para substituí-lo.
Seu maior feito foi ampliar o poder do bispado de Roma. Quando
João, o Jejuador, reivindicou o título de bispo “universal”, Gregório disparou
contra ele, acusando o título de “absurdo, arrogante, profano, perverso,
pernicioso, blasfemo e usurpação diabólica, e comparou as pessoas que o
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usavam a Lúcifer” (Shelley). Preferia tomar para si o título “servo dos servos de
Deus”.
Entretanto, enquanto lutava contra a pretensão do patriarca
oriental e usava título humilde, administrou a Igreja usando os poderes e as
prerrogativas dos papas posteriores. Cairns observou que Gregório “fez isso
para afirmar a superioridade espiritual do bispo de Roma” e que “cuidou
episcopalmente das igrejas da Gália, Espanha, Bretanha, África e Itália”.
Em 602, uma revolução elevou Focas ao trono de Constantinopla.
Embora este fosse homem iníquo, tendo inclusive assassinado a família do
antigo imperador, Gregório fez as pazes com ele. Em contrapartida, Focas
reconheceu o bispo de Roma como “chefe de todas as igrejas”. Gregório não
quis o título, mas exerceu de fato o papado.
Apesar de nos séculos seguintes haver sido contado entre os
doutores da igreja ocidental, ao lado de Agostinho, Jerônimo e Ambrósio,
Gregório não era homem de grande erudição e sua crença incluía as
superstições do homem comum de sua época. Entretanto, sua teologia foi
normativa para a Igreja medieval e perdura influente nos círculos católicos
romanos.
Para ele, o pecado de Adão afetou sua descendência, mas o
homem permanece livre em sua vontade e não herda a culpa, somente a
doença do pecado. Por isso, o homem pode cooperar com a graça e conquistar
méritos por suas boas obras.
Através do batismo, Deus concede a graça independentemente
de méritos e os pecados cometidos após o batismo podem ser reparados por
meio de penitências. Os pecadores também podem ser ajudados pelos santos,
face à influência que estes têm junto a Cristo, e pelo poder das relíquias
sagradas. Caso a penitência, a ajuda dos santos e o poder das relíquias não
fossem suficientes, os pecados ainda poderiam ser reparados no purgatório, o
lugar de purificação para aqueles que possuem pecados intermediários.
Mas, para Gregório, nada se compara ao sacrifício da missa. A
eucaristia consiste em um verdadeiro sacrifício oferecido pelos sacerdotes para
os pecados dos participantes. A eucaristia tem o mesmo sentido da penitência,
visto que toma o lugar de uma certa quantidade de sofrimento merecida por
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pecados mais leves, e pode beneficiar tanto os vivos quanto os mortos do
purgatório (e não do inferno), caso em que o tempo do purgatório poderá ser
abreviado. Para Cairns, Gregório “sistematizou a doutrina e fez a igreja uma
potência na área política”.
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XII. O Fim da Antiga Igreja Católica
Uma das verdades históricas que desejamos salientar é que nem
sempre a Igreja Católica Romana, como a conhecemos hoje, existiu. Como tal,
ela é produto de desenvolvimentos doutrinários, cúlticos e litúrgicos e de
costumes, que se deram através dos séculos. De fato, uma simples e
superficial leitura da história já provaria que o sistema romano era
desconhecido da Antiga Igreja Católica e, muito mais, do cristianismo
apostólico, conforme pretendemos narrar brevemente.
1. O papado e a supremacia da Igreja de Roma.
O Primeiro Concílio do vaticano (1870) afirmou que Jesus Cristo
estabeleceu o papado ao determinar o primado de Pedro sobre os demais
apóstolos e, consequentemente, a supremacia do bispo de Roma, sucessor de
Pedro, sobre os demais. Entretanto, como observou Shelley, “a história indica
que o conceito de reinado papal foi estabelecido em estágios penosos e lentos.
Nesse processo, Leão é a figura principal por fornecer pela primeira vez as
bases bíblicas e teológicas da reivindicação papal. Por isso, é um engano falar
de papado antes dessa época”.
Shelley relembra ainda que nem a palavra “papa” surgiu vinculada
à ideia de primazia papal. Sobre isso, ele assevera: “Originalmente, o título
‘papa’ expressava o cuidado paternal de todos os bispos do rebanho. Começou
a ser reservado para o bispo de Roma apenas no século VI, muito depois da
reivindicação de primazia”.
A honra especial conferida à Igreja de Roma e o exercício de sua
jurisdição sobre outras Igrejas também ocorreram como resultado de um lento
desenvolvimento histórico, fatos relacionados à junção da Igreja cristã com o
império. À medida que a Igreja se imiscuía aos interesses do Estado, ela foi
adotando a estrutura político-administrativa do império. Daí que o bispo da
capital passou a ser para os bispos das cidades menores aquilo que a
metrópole representava à província.
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Paralelamente, os concílios gerais, surgidos a partir da conversão
de Constantino (312), foram prestigiando a influência de certos bispados,
dando azo à ascensão em importância do bispo de Roma. Em 325, por
exemplo, o Concílio de Nicéia reconheceu os bispos de Alexandria, Antioquia e
Roma como autoridades em sua própria área.
2. A importância da tradição.
Na época que estamos a analisar, já está sendo enfatizado que
contra os hereges se invoca tanto as Escrituras quanto o peso da tradição e
das decisões conciliares.
Na obra de Vicente de Lérins (em 434), a ortodoxia é definida a
partir da regra ubique, semper, ab omnibus (“em toda a parte, sempre e por
todos”). Conforme Jaroslav Pelikan, a regra de Vicente “afirmava de fato o
entendimento da ortodoxia que os teólogos e os concílios da igreja dos séculos
V e VI iriam canonizar para os séculos que se seguiram”.
Boécio (falecido em 524) afirmou em sua obra Sobre a Fé
Católica: “Então essa igreja católica espalhada por todo o mundo é conhecida
por três marcas particulares: tudo que é crido e ensinado nela tem a autoridade
das Escrituras, da tradição universal ou pelo menos de sua própria e
apropriada convenção”.
A universalidade da igreja repousava sua marca distintiva também
nos concílios ecumênicos. O II Concílio de Constantinopla (em 553)
reconheceu a autoridade dos quatro concílios ecumênicos (Niceia, I
Constantinopla, Éfeso e Calcedônia), razão pela qual jurou obediência “às
coisas que recebemos da santa Escritura, do ensino dos santos pais e das
definições da uma e mesma fé por meio dos quatro concílios sagrados”.
Gregório, o Grande, fez um paralelo entre os quatro concílios e os
quatro evangelhos: “Recebemos os quatro sínodos da santa igreja universal da
mesma maneira como recebemos os quatros livros dos santos evangelhos”.
Para Pelikan,
“Embora esse paralelo possa ser interpretado como nada mais que uma sugestão agradável, há fundamento para ler nele a convicção de Gregório de que a única e a mesma verdade da revelação divina, concedida à igreja universal, estava presente tanto nos quatro
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evangelhos quanto nos quatro concílios, da mesma maneira que a arca da aliança no Antigo Testamento simbolizava a santa igreja, ‘sendo estendida às quatro partes do mundo, é declarada estar equipada com os quatro livros do evangelho’”.
3. O desenvolvimento da liturgia.
A união com o Estado e a entrada indiscriminada dos pagãos na
Igreja conduziram-na a adaptar sua liturgia à nova realidade. Os bárbaros,
acostumados à adoração de imagens, careciam de uma materialização da fé,
necessidade com a qual muitos líderes cristãos transigiram. O resultado foi a
veneração de anjos, santos, relíquias e imagens.
A festa do Natal tornou-se prática regular em meados do século
IV, época em que se adotou a data usualmente empregada na adoração de
Mitra. Os dias santos foram entrando às dezenas no calendário religioso e o
número de cerimônias com valor sacramental aumentou.
Segundo Loraine Boettner, por volta do ano 300, começou-se a
fazer orações pelos mortos e a incluir o uso de velas. A veneração de anjos e
santos falecidos e o uso de imagem iniciou por volta de 375 e a missa como
celebração diária, em torno de 394. Em cerca de 550 os sacerdotes
começaram a se vestir de maneira diferente e o uso do latim em orações e na
celebração da Missa foi imposto por Gregório por volta do ano 600. Cairns
anota que “ações de graças ou procissões de penitência tornaram-se parte do
culto a partir de 313. Peregrinações, primeiro à Palestina e depois às tumbas
de santos famosos, tornaram-se comuns”.
4. Veneração a Maria.
A Igreja não fez qualquer menção à honra especial a Maria por
pelo menos 150 anos, até que uma série de lendas atribuídas a ela nos
evangelhos apócrifos e a interpretação equivocada da Bíblia foi-lhe
concedendo importância crescente.
Irineu “diz que a desobediência da ‘virgem Eva’ foi expiada pela
obediência da ‘virgem Maria’” (Loraine Boettner). Segundo Cairns, Clemente,
Jerônimo e Tertuliano creditaram virgindade eterna a Maria e Agostinho cria
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que ela nunca cometeu pecado. Entretanto, Boettner afirma que Tertuliano
“levantou a sua voz contra a lenda sobre o nascimento de Maria. Ele também
defendia que, após o nascimento de Jesus, Maria e José viveram um
relacionamento conjugal normal”.
O surgimento do monasticismo, com forte ênfase no celibato e na
virgindade, fortaleceu a veneração a Maria. Ao mesmo tempo, os milhares de
pagãos que adentraram à Igreja trouxeram consigo as antigas devoções que
dedicavam a Ísis, Diana, Afrodite, Atenas e outras, achando apenas natural o
culto a Maria.
Destarte, Cairns salienta que “aquilo que de início era apenas um
reconhecimento de sua posição elevada como mãe de Cristo logo transformou-
se numa crença em seus poderes intercessórios, por se pensar que o Filho
ficaria alegre por ouvir os pedidos de Sua mãe”.
Paulatinamente, o culto a Maria foi se generalizando, até que no
quinto século tornou-se comum. “O famoso pregador Crisóstomo, que morreu
em 407, resistiu ao movimento com toda sinceridade, mas sua oposição foi de
pouco efeito para estancá-lo” (Boettner).
Cairns sumaria o processo de estabelecimento da mariolatria
com as seguintes palavras:
“A oração de Efraim Sírio (c. 306-c. 373) é o primeiro momento de uma invocação formal a Maria. Em meados do século V, ela foi colocada como a principal de todos os santos. Festas ligadas ao seu nome brotaram no século V. As principais eram a Festa da Anunciação (em 25 de março), que comemorava o anúncio dos anjos ao nascimento de um filho a ela; a Candelária (2 de fevereiro), que celebrava a sua purificação após o nascimento de Cristo, e a Assunção (15 de agosto), que a assumia como tendo ascendido aos céus sem morrer. No século VI, Justiniano pediu sua intercessão em favor do seu império. Em 590, ocupava ela uma posição singular no culto da Igreja Romana”.
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A Igreja Medieval
XIII. A Ameaça Muçulmana
1. Introdução.
Quando a Igreja parecia cristianizar os povos bárbaros que
invadiam o império e o período de migração parecia ter chegado ao fim, uma
nova realidade despontou, desta vez religiosa, propulsora de movimentos
migratórios dentre os árabes e extremamente desafiadora a cristandade: o
islamismo, a última das três grandes religiões monoteístas do mundo.
2. Maomé (570-632).
O islamismo originou-se na península árabe, numa época em que
“tribos beduínas semitas peregrinavam de oásis a oásis com seus camelos e
seus rebanhos, para comerciar com os moradores de Meca e Medina” (Cairns).
Um desses árabes chamava-se Maomé, que nasceu em Meca por
volta de 570. Como ficou órfão em tenra idade, foi criado por um tio chamado
Abu Talib, pai de Ali, por quem sempre nutriu grande afeição.
Maomé passou por grandes privações, até casar-se com uma viúva
rica de nome Kadidja, em 595, passando a ocupar-se com questões de ordem
religiosa. Em viagem a Síria como mercador, entrou em contato com o
cristianismo e com o judaísmo, tendo sido influenciado pelo monoteísmo de
ambas.
Em 610, Maomé alegou ter tido visões e revelações nas quais
ouviu a voz de Deus e viu o arcanjo Miguel, ocasião em que se sentiu
vocacionado por Deus para ser um profeta ao seu povo e proclamador do
monoteísmo. Martin N. Dreher escreveu: “Convicto de ter sido vocacionado
para ser o profeta de seu povo, Maomé conclamava seus compatriotas a
abandonarem a vida ‘sem Deus’ e descrevia-lhes em cores vivas o fim do
mundo, os castigos do inferno e as alegrias do paraíso”.
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Ao fim de três anos, Maomé conseguiu fazer apenas 12
convertidos, dentre eles Kadidja, Ali e seu ex-escravo Zaid, segundo Cairns.
Por essa época, Abu Bequer e Omar, que mais arde tornaram-se califas,
também aderiram à sua pregação.
Em 24 de setembro de 622, Maomé teve que fugir de Meca para
Medina, por conflitos de ordem econômica, segundo Dreher, e por se opor à
pregação da idolatria, conforme Cairns. Essa é a data conhecida como Hégira,
que dá início ao calendário muçulmano.
Maomé considerava-se o renovador da religião de Abraão e o
aperfeiçoador do cristianismo e do judaísmo, julgando corrigir as distorções de
ambas. Para ele, Abraão e Cristo eram seus precursores. Com isso em mente,
adotou como centro de sua religião a Caaba, em Meca, local para onde as
orações deveriam ser dirigidas, instituiu a sexta-feira como feriado e o Ramadã
como mês de jejum.
Em Medina, Maomé alcançou um sucesso inesperado, fez mais
aliados e em 630 conquistou Meca. Quando o profeta do islã morreu, em 632,
foi sepultado em Medina, deixando sua doutrina infiltrada em boa parte da
Arábia.
3. Os sucessores de Maomé, a expansão do Islã e as perdas da Igreja.
Com a morte de Maomé, o islamismo passou a ser liderado pelos
“califas”, que quer dizer sucessores. O primeiro deles foi Abu Bequer, falecido
em 634, seguido por Omar (634-644), Otoman (644-656) e Ali ibn Abi Talib
(656-661). Dreher informa-nos que “o período desses quatros califas é tido
como a época áurea na tradição islâmica”.
O período compreendido entre 632 e 732 é de grandes avanços à
fé muçulmana. Damasco é conquistada em 635 pelo exército árabe; o Egito,
entre 639 e 641; a Pérsia, em 640 a 644. Nesse período, a Síria e a Palestina
já haviam tornado-se muçulmana e Omar construiu sua mesquita em
Jerusalém. Cartago foi tomada em 695. Quase toda a Espanha, a exceção da
Astúria e da Gasconha, sucumbiu sob o domínio árabe.
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A expansão no Oriente sofreu a oposição de Leão, o Isáurico, em
717 e 718, e, no Ocidente, o avanço muçulmano foi contido por Carlos Martelo
em Tours, em 732. Segundo Cairns, “em 750, a era da conquista acabou e os
muçulmanos, influenciados pela cultura grega, puseram-se a construir uma
esplêndida civilização centralizada em Bagdá”.
O resultado da expansão árabe à Igreja foi catastrófico. Dreher
narra a nova situação com as seguintes palavras: “O Egito e o norte da África
perderam-se para a fé cristã. Monofisistas, nestorianos e coptas foram
protegidos; muitos deles tornaram-se secretários e conselheiros dos califas e
transmissores da cultura grega. Muitos desses cristãos passaram para o islã, o
que raras vezes aconteceu com os ortodoxos. Judeus jamais passaram para o
islã. Especialmente os lugares de peregrinação foram atingidos. Eles agora se
encontravam nas mãos dos ‘infieis’, como eram denominados os árabes”.
4. A doutrina islã.
O Corão, o livro do conjunto de leis islâmicas, começou a ser
escrito no governo de Otoman (644-656). Cairns o descreve da seguinte forma:
“Esta obra, dois terços maior que o Novo Testamento, tem 114 capítulos, dos
quais o maior fica no começo; os capítulos vão diminuindo em extensão até o
último que tem apenas três versículos. O livro é repetitivo e desorganizado”.
A alegação de Maomé quanto a ter recebido revelações através de
anjo merecem questionamento. Flanklin Ferreira e Alan Myatt anotaram: “ele
recebeu as revelações num estado de consciência alterada, semelhante a um
episódio de epilepsia. Nenhuma testemunha pode confirmar a presença de um
anjo que lhe deu o conteúdo do Alcorão”. De todo modo, ainda que tenha
havido presença angélica nas experiências místicas de Maomé, certamente
seria uma aparição de demônios, “porque um anjo eleito nunca daria um
evangelho diferente daquele que a Bíblia ensina” (dos mesmos autores; cf. Gl
1:8).
Alá é o único Deus, que revela sua vontade através de vários
profetas, dentre os quais Abraão, Moisés e Cristo, sendo Maomé o último e
maior de todos eles. Como Alá é o único Deus, todos os homens lhe devem
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submissão (o significado da palavra “islã”), razão pela qual todos os seguidores
de Alá devem foçar todos os homens, inclusive com o auxílio da espada, a se
submeterem-lhe.
O islã prega um monoteísmo não trinitário, como no judaísmo.
Assim, Deus, segundo essa perspectiva, não experimenta como parte de sua
essência a realidade de relacionamentos e de reciprocidade de amor. A
consequência disso é ampla, que passo a destacar: (1) nem o amor nem os
relacionamentos teriam raízes no ser eterno da divindade; (2) Deus só se
realiza como pessoa quando cria outros seres com quem pode se relacionar;
(3) antes da criação, não houve qualquer expressão de comunicação e
reciprocidade e o amor em Deus seria apenas latente; (4) a salvação seria uma
impossibilidade, visto que Deus não poderia castigar a si mesmo em favor do
perdão ao pecador.
Os atributos de Deus sofreram muitíssimo no ensino islâmico. Deus
ficou reduzido a um ser vingativo e estranho, que nada sente por sua criação e
que não inspira completa confiança e dependência em seu amor. “Deve ficar
claro que tal divindade não é adequada para suprir as necessidades de
homens e mulheres que habitam este mundo” (Ferreira e Myatt).
À doutrina muçulmana, Jesus não foi o que o Novo Testamento
afirmou que Ele era. Essa parte das Escrituras teria sido corrompida e Jesus
jamais alegou que Ele e o Pai são um (cf. Jo 10:30). Isso porque para os
seguidores de Maomé Jesus era apenas um do profetas, mas subordinado a
Maomé, a quem julgam ser o final e maior.
Para o islã haverá um julgamento, após o qual os homens irão ou
ao Paraíso sensual ou ao inferno. Os homens mais piedosos irão ao Paraíso,
onde serão servidos por virgens com quem poderão se casar e com quantas
quiserem. Os mártires – os que morrem matando os infiéis na jihad -, vão ao
Paraíso tão logo morrem. A grande parte passa algum tempo no inferno antes
de ir ao Paraíso e outros sofrem no inferno para sempre.
O bom muçulmano ora cinco vezes ao dia, recita seu credo voltado
para Meca, faz jejum e obras de caridade e deve fazer uma peregrinação a
Meca pelo menos uma vez na vida.
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XIV. O Império Romano Redivivo
1. Introdução.
Séculos depois do desmantelamento do império romano sob os
ataques bárbaros, a ideia de um império mundial unificado permanecia nas
aspirações dos homens medievais. “Os bárbaros tinham muitos reinos e
estavam constantemente em guerra. Mas as pessoas ainda sonhavam com a
unidade que um dia foi a marca do Império, e esperavam pelo dia em que o
Império Romano ressurgisse” (B. L. Shelley). Por outro lado, o papa precisava
de um aliado frente às reivindicações dos imperadores de Constantinopla e aos
ataques dos arianos lombardos.
Nesse quadro, os reis francos surgiram como aqueles que fariam
alianças importantes com o papado, cujas influências foram formativas na vida
política e eclesiástica medieval, tanto quanto pareceram estar destinados a
restaurar o imperialismo romano. É o que analisaremos em nosso presente
estudo.
2. Os reis francos.
2.1) A dinastia merovíngia.
O primeiro rei a unificar os francos foi Clovis (c. 466-511). Ele
aceitou o cristianismo e batizou-se em 486, juntamente com três mil soldados
do seu exército. Como os filhos de Clovis eram inábeis à administração estatal,
as funções administrativas passaram a funcionários conhecidos como “prefeito
do palácio”, homens vindos dentre poderosos proprietários de terras. Foram
estes prefeitos do palácio que puseram fim à dinastia merovíngia e
inauguraram a dinastia carolíngia.
2.2) Os primórdios da dinastia carolíngia e a Doação de Constantino.
Pepino de Heristal fez a façanha de reunir as posses de Clovis,
então divididas, conduzir os negócios para os incapazes descendentes de
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Clovis, entre os anos 687 a 714, e tornar o cargo de prefeito do palácio
hereditário, repassado aos descendentes.
Em 714, Carlos Martel (689-741), filho ilegítimo de Pepino, ocupou
as funções de prefeito do palácio e em 732 derrotou os muçulmanos, na
famosa batalha de Tours. Essa batalha representa o fim da ameaça islã à
Europa central e o obstáculo aos avanços muçulmanos no Ocidente.
Carlos Martel foi sucedido por Pepino, o Breve (714-758), o
primeiro da dinastia carolíngia a tomar para si o título de rei (em 751), além de
continuar exercendo as funções de prefeito do palácio.
Quando, em 751, os lombardos conquistaram o território de
Ravenna e a sede do império bizantino na Itália e exigiram tributos, sob a
ameaça de invadir Roma, surgiu a oportunidade para a expansão do poder de
Pepino, o Breve. O papa Zacarias pediu ajuda contra a ameaça invasora e
Pepino enviou expedições contra os lombardos em 754 e 756. Além disso, em
754, prometeu também terras ao papa na região central da Itália, de Roma e
Ravenna. Esta concessão ficou conhecida como Doação de Pepino. Em 751, o
papa Bonifácio, o missionário inglês entre os germânicos, coroou Pepino rei
dos francos.
Bruce L. Shelley percebeu a importância dessa aliança entre os
reis francos e o papado, afirmando que ela afetou o curso da política europeia
e do cristianismo durante séculos. Esse historiador sumaria o ponto da
seguinte forma:
“Ela acelerou a separação entre a igreja latina e a grega ao prover o papado de um aliado ocidental digno de confiança no lugar dos bizantinos, até então seus únicos protetores contra os lombardos; criou os Estados papais, que desempenharam um importante papel na política italiana até o final do século XIX; e, pelo ritual da sagração, deu à realeza ocidental uma sanção religiosa que, à época, contribuiria para a rivalidade entre papa e imperador”.
Ao tempo da Doação de Pepino, circulava um documento
conhecido como Doação de Constantino. Tratava-se de um relato forjado,
dando conta que Constantino havia sido curado de lepra e batizado por
Silvestre, o bispo de Roma, e, por gratidão, dava a Igreja vastas porções de
terra, o Palácio de Latrão, a vestimenta e a dignidade imperiais a Silvestre e
afirmava que a Igreja de Roma deveria ter proeminência sobre todas as outras,
sendo o seu bispo o bispo supremo da Igreja. Segundo esse relato espúrio,
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Constantino teria se mudado para Constantinopla com o propósito de não
interferir nos direitos imperiais do papa.
Esse documento (forjado séculos depois de Constantino, talvez em
meados do século VIII), foi sobejamente usado pelos papas medievais para
legitimar as posses e o poder exercidos por eles, o que fez Cairns afirmar que
“poucos documentos espúrios têm exercido tanta influência sobre a história
como este”.
2.3) Carlos Magno (742-814).
Pepino o Breve foi sucedido por Carlos Magno. Ele ascendeu ao
trono em 768. Em 774, derrotou os lombardos. Numa primeira incursão pela
Itália, fortaleceu a aliança com a Igreja de Roma, ao ratificar a Doação de
Pepino. Carlos desejava a sanção divina; o papa, proteção. Suas vitórias
militares na Saxônia, ao norte e a leste, na Península Ibérica, a oeste, e na
Lombardia, ao sul, deram-lhe um domínio sobre um território tão vasto
comparado somente a Teodósio, no final do quarto século.
No natal do ano 800, Carlos Magno foi coroado na basílica de São
Pedro pelo papa Leão III (c. 750-816) como Imperator Romanorum (Imperador
dos Romanos), coroação que inaugurou uma luta - que perduraria por toda a
idade média - pela supremacia entre o poder temporal (o império redivido) e o
poder espiritual (o papado). Foi, na prática, nessa ocasião que o antigo império
romano reviveu uma espécie de nova Roma, desta vez governada por um
teutão.
Carlos Magno foi um cristão nominal, dedicado à religião, aos
esportes e à cultura. Em 789, decretou que todos os monastérios deveriam ser
uma escola para a educação formal em “canto, aritmética e gramática”. Como
estadista, criou uma forma de administração eficiente, dividindo os territórios
em condados, dirigidos por duques. As contas eram inspecionadas e a
administração dos condados verificada pelos missi dominici (enviados do rei).
“Nem mesmo o papa podia escapar dos olhos vigilantes de Carlos Magno”
(Shelley).
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Foi assim, portanto, que um novo mundo teve surgimento, através
de uma lenta fusão do mundo romano com o mundo bárbaro, dando corpo à
Idade Média no Ocidente.
3. O feudalismo e uma nova restauração do Império Romano no Ocidente.
Os fracos sucessores de Carlos Magno e suas disputas entre si
foram a causa principal da desintegração do império e da consequente
formação do feudalismo, sistema que perdurou na Idade Média até que
surgissem as nações-Estados da era moderna.
O feudalismo foi um sistema econômico e político baseado na
posse da terra, cujo poder era exercido localmente. Nesse sistema, um nobre
mais forte (o suserano) exercia o senhorio sobre um nobre mais fraco (o
vassalo). O vassalo recebia o feudo (a terra) de seu senhor, diante de quem se
obrigava na administração, enquanto o suserano se obrigava a dar proteção e
tratamento justo ao vassalo. “A principal obrigação dos nobres feudais era
fornecer certo número de cavaleiros que constituiriam o exército real, quando
houvesse necessidade. Esses cavaleiros, que desde cedo aprendiam a
cavalgar e a manejar escudo, lança, espada e arco e flecha, juravam lealdade
e obediência aos seus senhores feudais e ao rei” (Flanklin Ferreira).
O clero não escapou da influência do feudalismo. Face às invasões
dos vikings do norte e dos magiares da Ásia, bispos e abades se tornaram
vassalos, em contratos nos quais se comprometiam a executar obrigações
feudais, em troca de proteção dos suseranos. As terras eclesiásticas também
entraram nas relações feudais. Cairns pontuou que a “feudalização da
propriedade eclesiástica acabou por secularizar a Igreja e por desviar sua
atenção de interesses espirituais para mundanos”. Nessa época, homens
mundanos disputavam cargos na Igreja e o ofício eclesiástico entrou em
declínio, porque passou a ser uma espécie de prêmio buscado por nobres nada
interessados em assuntos espirituais.
Apesar do desaparecimento do império comandado pela dinastia
carolíngia, permaneceu o ideal de um império político unificado na Europa, o
que voltou a concretizar-se não mais através dos francos, mas dos germanos.
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Os duques tribais da Germânia uniram-se na defesa contra os
húngaros e elegeram como seu rei Henrique o Passarinheiro, em 919, então
duque da Saxônia. Foi ele que conseguiu fazer retroceder os invasores
eslavos. No entanto, foi seu filho Otto (912-973) - coroado imperador do Sacro
Império Romano-Germânico pelo papa João XII (955-964), um dos piores
papas a história - que tornou os duques seus vassalos e assumiu a supervisão
dos negócios da Igreja. Sua coroação, em 962, ocorreu quando foi à Itália lutar
contra um rei que desafiava o poder papal.
O surgimento do novo império fez reviver a antiga rivalidade entre
Igreja e Estado. Os papas dos séculos VIII a XI eram fracos e em geral
controlados pelos senhores feudais. Isso forneceu o pano de fundo para um
movimento de reforma surgido a partir do mosteiro de Cluny, na França, que,
por sua vez, proveu as bases para o apogeu do papado, temas que serão
objeto do nosso próximo estudo.
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XV. O Apogeu do Poder Papal e o Primeiro Grande Cisma do
Cristianismo
1. Introdução: a condição da igreja nos séculos X e XI.
Entre os papas do período de 800 a 1054, quase todos eram
incompetentes e corruptos. O único que escapou à regra foi o papa Nicolau I
(858-867), cuja obra dedicou-se a demonstrar que ao sucessor de Pedro os
poderes espiritual e temporal deviam submissão.
Roma, nessa época, era uma cidade de vícios e crimes. Na Itália,
reinava a anarquia. A Igreja passava por crises. O papa João VIII (872-882) foi
assassinado com o crânio esfacelado a marteladas, porque não morreu
imediatamente com o veneno que lhe deram. “Dos noves papas que
governaram nos dozes anos seguintes quase nenhum morreu de morte natural”
(Martin N. Dreher).
Dreher narra ainda, como exemplo da condição deplorável do alto
clero da época, o “caso macabro” envolvendo Estêvão VI e seu antecessor
Formoso (891-896). Após a morte de Formoso, desejando ainda vingar-se do
morto, o papa Estêvão mandou que o cadáver de Formoso fosse desenterrado,
vestido de vestes pontificais e colocado na cadeira da Igreja de São Pedro.
Deixarei que Dreher nos conte a história:
“O corpo de Formoso, que já estava em franca decomposição, foi processado e, após três dias, condenado. Por haver jurado não mais ser clérigo e por haver jurado nunca mais pôr os pés em Roma, assim argumentaram seus adversários, teve amputado o dedo indicador. Seu cadáver foi despido e jogado no Tibre. Logo os adeptos de Formoso se vingaram. Estêvão foi deposto, enfiado em um convento e ali estrangulado”.
Quando o rei germânico Otto I (936-973) governou, tudo fez para
submeter o episcopado ao poder imperial. Otávio (denominado João XII) foi
eleito aos 18 anos e, como precisou do auxílio de Otto I face às hostilidades
que enfrentava, este atendeu a solicitação, contanto que fosse coroado em
Roma, o que realmente ocorreu em 2 de fevereiro de 962. Em Roma, Otto I
renovou as antigas alianças com a Igreja, mas impôs que todo papa eleito
deveria jurar fidelidade ao imperador, o que, na prática, transformaria o papa
em seu vassalo.
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Foi nessa época que surgiu o costume dos papas mudarem de
nome ao serem eleitos. Também por esse tempo, por ocasião da coroação de
Otto I, se inaugurou a prática a ser seguida doravante na Idade Média: a
coroação de imperadores por papas. Ainda no século X, a Boêmia, a Polônia e
a Hungria se cristianizaram, seguindo a tradição romana, e, a Rússia, ligando-
se à Igreja Oriental.
A Igreja estava totalmente sob o controle do império. “A igreja
germana era, na essência, uma igreja estatal” (Bruce L. Shelley). O neto de
Otto I, Otto III (falecido em 1002), fixou residência em Roma, tentando
submeter os reis da Polônia, Hungria e Boêmia.
Sob as ordens de Henrique III, no Sínodo de Sutri (1046), foram
depostos três papas que governavam simultaneamente. Bento IX era um papa
terrível. Ele foi expulso de Roma e Silvestre III assumiu o papado. Bento voltou
a Roma e vendeu a cadeira de São Pedro por uma grande soma de dinheiro,
em 1045, a um homem que se tornou Gregório VI. Como Bento recusou-se a
renunciar o papado, houve três papas alegando o poder ao mesmo tempo,
Bento, Silvestre e Gregório. Henrique III depôs Bento e Silvestre e obrigou
Gregório a renunciar. O imperador, em seguida, indicou seu primo, Bruno, que
veio a chamar-se Leão IX. “O sínodo de Sutri marcou, então, o momento mais
baixo do poder do papado na Idade Média” (Cairns)
Foi nesse estado de coisas que eclodiu uma reforma nos
conventos que ensejaria a escalada do poder papal ao seu apogeu.
2. A reforma cluniacense.
Nessa época, a quase total inexistência de piedade tinha
alcançado os conventos. Segundo Cairns, “No século X, os mosteiros tinham
se tornado ricos e corruptos e necessitavam urgente de Reforma”.
Tal reforma foi iniciada entre os beneditinos de Cluny, mosteiro
fundado em 910, em Borgonha, na região oriental da França. O programa
ansiava por libertar a Igreja da interferência imperial e submetê-la ao controle
do papa, mas reconhecia que, para tanto, havia necessidade de uma reforma
interna.
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A partir do competente trabalho dos abades Berno (910-927),
fundador de Cluny, e Odo (927-942), diversos mosteiros foram reorganizados à
semelhança do de Cluny, inclusive o de Monte Cassino. O governo cluniacense
inovou, no sentido de indicar os abades para os mosteiros criados a partir do
governo central e mantê-los sob a chefia do abade de Cluny. “Em meados do
século X, havia perto de 70 mosteiros sob a liderança do abade de Cluny”
(Cairns).
Dentre as propostas de reforma dos líderes cluniacenses, dever-
se-ia exterminar com a simonia (venda e compra de cargos eclesiásticos) e
com o nepotismo (indicação de parentes para cargos eclesiásticos) e o
celibato, imposto a todos os clérigos. Foi o movimento cluniacense que deu à
Sé Romana líderes capazes que batalharam ao fortalecimento do poder papal
e pavimentou as Cruzadas contra os infiéis muçulmanos.
3. O apogeu do papado.
O movimento reformista de Cluny chegou ao alto clero romano
através do papa Leão IX (1048-1054), comprometido em atacar a simonia e o
matrimônio dos sacerdotes.
Em 1059, com o papa Nicolau II e através dos esforços dos líderes
reformistas Humberto e Hildebrando (1021-1085) - este veio a tornar-se o papa
Gregório VII -, a eleição do papa libertou-se da interferência secular e tornou-se
da competência do Colégio de Cardeais, que desde então passou a eleger os
papas.
Entretanto, o homem que faria o poder papal alçar o seu mais alto
voo foi sem dúvida Hildebrando. Ele simpatizava com o programa de Cluny,
opunha-se a simonia e ao casamento dos sacerdotes. Foi o papa Leão IX que
deu as primeiras oportunidades administrativas na cúria romana a Hildebrando,
que, por sua vez, influenciou a política papal de cinco papas, até que ele
mesmo se tornou um deles.
Hildebrando foi eleito papa em 1073, passando a chamar-se
Gregório VII. Em 1074, Gregório impôs a obrigatoriedade do celibato clerical.
Cairns informa-nos que foi Hildebrando
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“que fez as reivindicações mais radicais de supremacia de que se tem notícia. Para ele, a Igreja Romana devia seus fundamentos a ‘Deus somente’, só seu pontífice ‘seria chamado universal’, o papa tinha plena autoridade sobre todos os bispos, somente seus pés seriam beijados por ‘todos os príncipes, ele poderia ‘depor imperadores’ e poderia livrar pessoas de ‘obediência’ aos governantes temporais ruins. O máximo de pretensão papal de supremacia se alcança no artigo 22 do Dictatus em que se afirma que jamais houve erro na Igreja Romana e que, segundo a Bíblia, ela jamais erraria”.
O auge do poder exercido por Gregório VII ocorreu em sua luta
contra Henrique IV (1056-1106). Porque o imperador teve cinco dos seus
conselheiros excomungados por Gregório, por simonia, em 1075, aquele
convocou um concílio para Worms em 1076. Nesse concílio, Gregório foi
excomungado, ao argumento de que o papa eleito pelos cardeais só pode ser
consagrado com autorização imperial.
Em retaliação, na quaresma daquele mesmo ano, Gregório
excomungou Henrique, liberou todos os súditos de obedecê-lo e o proibiu de
governar, por haver se voltado contra a Igreja. “Estava ocorrendo algo nunca
visto! O papa havia demitido o rei” (Dreher).
Como os saxões e outros inimigos de Henrique declararam que
realmente o deporiam se ele não se livrasse da excomunhão do papa, o
imperador, acompanhado da esposa Bertha e de um filho de dois anos, foi ao
encontro de Gregório em janeiro de 1077, em Canossa, um castelo situado nas
montanhas da Itália. Sobre o episódio, Cairns escreveu:
“Foi difícil a jornada e quando chegou a Canossa, Gregório obrigou a Henrique a ficar descalço na neve fora dos portões do palácio durante três dias sucessivos antes de ser admitido à sua presença. Só assim se livrou da sentença de excomunhão”.
Bruce L. Shelley faz anotações importantes nesse ponto:
“(...) Essa humilhação dramática do imperador não resolveu a pendência, nem as considerações modernas agregam muita importância ao incidente – naquela época, a penitência pública não era incomum nem mesmo para os reis. Mesmo assim, o papa fizera progressos quanto a libertar a igreja da interferência dos leigos e a aumentar o poder e o prestígio do papado”.
4. O cisma de 1054.
Em meados do segundo século, um conflito envolvendo a data da
celebração da páscoa prejudicou a relação entre as Igrejas no Ocidente e no
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Oriente. No entanto, o primeiro fato histórico que ensejou a separação da Igreja
em duas porções foi a transferência, por Constantino, da sua capital para
Constantinopla. Em seguida, Teodósio também deu sua contribuição ao dar a
diferentes chefes a liderança das porções ocidental e oriental do império.
Com o fim do império romano no Ocidente, em fins do século V, a
Igreja Oriental permaneceu sob a jurisdição do imperador, enquanto em Roma
o bispo assumiu a liderança dos poderes espirituais e temporais nos tempos de
crise.
Nos séculos VIII e IX, ocorreu a controvérsia iconoclasta,
provocando sentimentos hostis entre as Igrejas Oriental e Ocidental. O
imperador do Oriente, Leão III, em 726, proibiu a genuflexão diante das
imagens e, em 739, ordenou que elas fossem removidas dos templos. No
Ocidente, tanto o papa quanto o imperador Carlos Magno apoiaram o uso de
símbolos visíveis da divindade. Assim, enquanto a Igreja no ocidente continuou
a usar imagens e esculturas no culto, a Igreja no Oriente eliminou as
esculturas, mas conservou os ícones, geralmente gravuras de Cristo, que
poderiam ser reverenciadas, mas não cultuadas, atitude que se deve somente
a Deus.
No século IX, um incidente envolvendo o papa Nicolau I (858-867)
e o patriarca Fócio recrudesceu a animosidade das relações. Nicolau desejava
submeter à sua autoridade tanto o patriarca quando o imperador oriental,
Miguel. Miguel depôs o patriarca Inácio, por este haver se recusado a ministrar
a Ceia a Bardas, tio do imperador, e em seu lugar indicou Fócio.
Inácio, a seu turno, pediu socorro a Nicolau e este declarou Fócio
deposto. Entretanto, um sínodo dirigido por Fócio acusou Nicolau e a Igreja
Ocidental de heresia pelo acréscimo ao credo niceno-constantinoplano (de
381) da cláusula “filioque” (e do Filho), que implica dizer que o Espírito procede
tanto do Pai quanto do Filho.
No século XI, todas essas diferenças afloraram e apenas uma gota
d’água fez dividir o cristianismo em duas grandes porções. Miguel Cerulário, o
patriarca de Constantinopla (1043-1058), condenou a Igreja do Ocidente pelo
uso do pão não-levedado na Eucaristia, prática usual a partir do século IX.
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O papa Leão IX, na tentativa de pôs fim à polêmica, enviou
Humberto e dois outros legados ao Oriente. O resultado dos debates é que no
dia 16 de julho de 1054, os legados do papa, na Catedral de Santa Sofia,
excomungaram o patriarca e seus seguidores. Em resposta, no dia 21 de julho,
Miguel Cerulário excomungou o papa e seus seguidores. Estava consumado o
primeiro grande cisma da cristandade. Ainda hoje persiste o cisma, embora a
mútua excomunhão tenha sido removida em 7 de dezembro de 1965, por
acordo entre o papa Paulo VI e o patriarca Atenágoras.
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XVI. As cruzadas
A palavra “cruzada” significa “tomar a cruz”. Entretanto, não nos
enganemos, entre os séculos XI a XIII, época das cruzadas, isso nada tinha a
ver com os termos da ordem do Senhor Jesus de tomar a cruz a segui-lO (Lc
9:23; 14:27). Na verdade, em nome de Cristo, os cruzados cometeram as
barbaridades mais inimagináveis, conforme poderemos verificar em nosso
estudo.
1. As causas das cruzadas.
Desde meados do séc. XI, os turcos seljúcidas ameaçavam
marchar contra o Ocidente. Foram eles que devastaram o Oriente e tomaram
Jerusalém dos seus companheiros muçulmanos árabes, menos fanáticos que
eles.
Em 1071, o exército grego foi derrotado pelo exército seljúcida na
batalha de Manzikert. Nesse confronto, o imperador do império Romano
Oriental foi capturado e o seu exército, disperso. Foi nessa ocasião que a
Armênia foi perdida. Nos anos seguintes, os seljúcidas conquistaram Damasco,
Antioquia, Jerusalém e Egito.
O imperador do Oriente, Alexius Comnenus, veio ao encontro do
papa Urbano II (1088-1099) pedir auxílio para fazer frente à ameaça seljúcida
ao seu reino. Em resposta, o papa reuniu um Sínodo em Clemont, na França,
em 1095, onde descreveu os sofrimentos a que estavam submetidos os
cristãos orientais sob o jugo turco e convocou entusiasticamente uma cruzada.
Em seu empolgante discurso, Urbano II motivou os ouvintes com
recompensas materiais e espirituais. Acerca das primeiras, disse:
“Pois esta terra em que vivem (...) é muito pequena para sua grande população; nem é abundante em riquezas; e mal consegue fornecer alimento suficiente para quem o cultiva. Portanto, vocês vão se matar e se devorar (...) peguem a estrada para o Santo Sepulcro, arrebatem a terra daquela raça perversa e dominem-na” (citado por Bruce L. Shelley).
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Além das recompensas materiais, as espirituais consistiam sem
dúvida em forte motivo para o homem medieval. Segundo o papa Urbano II,
conta-nos Martin N. Dreher,
“Todos deveriam deixar de lado suas rixas e contendas e lutar na guerra justa. Quem perdesse a vida nesta guerra receberia a salvação e o perdão de pecados. As alegrias da vida eterna estariam esperando por ele. Nas palavras de Urbano II temos a prefiguração das indulgências (...). Na situação religiosa da época, a promessa de perdão e de admissão imediata ao reino dos céus era, sem dúvida, muito atraente (...)”.
A repercussão do discurso do papa foi impressionante. Em
resposta, a multidão gritava “Deus volt” (Deus o quer), e não demorou até
aparecer os primeiros voluntários e ter início à desastrosa Cruzada dos
Mendigos (em 1096). Essa cruzada foi uma marcha espontânea, também
motivada pela pregação de Pedro o Eremita (c. 1050-1115) e Walter O-Sem-
Dinheiro (f. em 1096), na qual cerca de 20.000 homens e mulheres fanáticos,
vindos da França, rumaram a Jerusalém. Com muitas dificuldades chegaram
até Constantinopla e de lá, encaminhados pelo imperador Alexius, chegaram a
Ásia Menor, onde foram dizimados pelos turcos.
Um segundo grupo desse tipo sequer chegou a Constantinopla. Em
viagem, porém, perpetrou verdadeiro massacre contra as comunidades
judaicas de Colônia, Mogúncia, Tréveres, Worms e Espira. Somente em
Mogúncia foram mortos mais de mil judeus. Em resposta, a posição dos líderes
cristãos nada teve a recomendar. O arcebispo de Tréveres respondeu o
seguinte aos judeus que pediram auxílio: “(...) agora vos sobrevêm vossos
pecados, (...) convertei-vos e assim vos darei paz, (...) se permanecerdes
empedernidos, então vossa alma perecerá com vosso corpo” (citado por
Dreher). Em Worms, ainda relata Dreher, o bispo admitiu os judeus
perseguidos em seu palácio, mas, quando pressionado pelos fanáticos, os
aconselhou a se deixarem batizar, obtendo como resposta o suicídio de todos
os judeus. “Apenas o bispo João de Espira protegeu os judeus e acossou seus
perseguidores”.
Percebe-se, portanto, um emaranhado de motivos subjacentes aos
esforços das cruzadas, podendo ser destacados pelo menos três deles: (1)
razão religiosa: retomar as terras cristãs sob o domínio dos turcos seljúcidas e
proteger os peregrinos europeus em suas jornadas à Terra Santa; (2) razão
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política: proteger o Império Romano Oriental, sob constante ameaça dos
seljúcidas; (3) razão econômica: ampliar o comércio italiano com o Oriente.
2. As principais cruzadas.
2.1) A Primeira Cruzada.
A desastrosa Cruzada dos Mendigos foi, segundo Cairns, um
prelúdio ao esforço organizado da Primeira Cruzada (1096-1099), dirigida por
nobres franceses, belgas e italianos.
A Primeira Cruzada, com seus trinta e cinco mil cavaleiros, obteve
êxito surpreendente. Em 1097, Niceia foi tomada; em 1098, Antioquia foi
conquistada após longo cerco; em 14 de julho de 1099, foi a vez de Jerusalém
ser dominada, não sem severa violência da parte dos cruzados contra
muçulmanos e judeus. Estes, refugiados em sua sinagoga, foram incendiados.
Estima-se que cerca de trinta mil pessoas, dentre muçulmanos e judeus, foram
assassinadas na tomada de Jerusalém. Assim foi estabelecido o Reino Latino
de Jerusalém.
Sobre a entrada dos cristãos em Jerusalém, Shelley transcreve o
seguinte relato da época:
“Alguns dos nossos homens (...) cortavam a cabeça de seus inimigos; outros os matavam com flechas para que caíssem das torres; outros os torturavam por muito tempo lançando-os às chamas (...). Era necessário avançar com cuidado sobre os corpos dos homens e cavalos. Mas essas são pequenas questões se comparadas com o que aconteceu no Templo de Salomão (onde) (...) homens completamente ensanguentados montavam os cavalos. Na verdade, era julgamento justo e esplêndido de Deus que esse lugar se enchesse com o sangue dos descrentes, já que ele sofreu tanto tempo por suas blasfêmias”.
2.2) A Segunda Cruzada.
A Segunda Cruzada (1147-1149) foi convocada pelo papa Eugênio
III (1110-1153) e contou com o apoio de Bernardo de Claraval, em face da
perda de Edessa para os turcos liderados por Zengi, em 1145, e da ameaça
destes ao Reino de Jerusalém.
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A retomada de Edessa deu aos muçulmanos a noção de
possibilidade de vitória da “Jihad”. Dois anos depois, Zengi foi assassinado
enquanto dormia, por um dos seus soldados, a quem tinha prometido matar na
manhã seguinte por causa de uma ofensa tola que este havia lhe feito.
Os cruzados deixaram Damasco fortemente abalada, razão pela
qual esta resolveu pedir apoio ao filho de Zengi, Nur al-Din, o que fez o exército
cruzado, liderado pelo Rei Luís da França, sabendo que seria derrotado, decidir
recuar. Em 1154, Nur-al-Din foi aclamado pela população damascena.
Portanto, a Segunda Cruzada deu em nada, além de fortalecer as convicções
dos muçulmanos, e em dois anos desvaneceu.
Após dominar a Síria, Nur al-Din resolveu dominar o Egito e o
Cairo. O Cairo não iria oferecer maiores resistências aos cruzados, mas
quando souberam que estes produziram um massacre aos muçulmanos xiitas,
seus príncipes decidiram pedir auxílio a Nur al-Din. Em resposta, este enviou
um jovem general do seu exército, chamado Saladino.
No Egito, a primeira medida tomada por Saladino foi tomar o país
dos xiitas. Por volta de 1169, ele já era o governante incontestável do Egito e
pronto para o seu próximo passo, tomar Alepo, fortaleza dominada por Nur al-
Din e, depois da morte deste, por seu filho Al Salim, o que de fato veio a
ocorrer.
2.3) A Terceira Cruzada.
Em 1183, a situação dos cristãos de Jerusalém estava em declínio.
Seu rei, o jovem Balduíno IV, era portador de lepra. Em 1187, Saladino viu
ocasião de retomar Jerusalém dos cristãos, na “Jihad”. A batalha sangrenta de
Hattin derrotou o exército cruzado em 4 de julho daquele ano. Ao final do
mesmo ano, Saladino já era o sultão do Egito e da Síria, e já havia habilmente
unificado os muçulmanos e reconquistado Jerusalém.
Em resposta às conquistas de Saladino, os cristãos responderam
com a Terceira Cruzada, em 1189, conclamada pelo papa Gregório VIII e
liderada por Frederico Barba Ruiva da Alemanha, Ricardo Coração de Leão, da
Inglaterra, e Felipe da França. Frederico afogou-se na Ásia Menor e Felipe, por
conflitos com Ricardo, retornou à França. Ricardo assumiu a empreitada
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sozinho e conseguir dar aos cristãos a cidade de Acre e alguma possibilidade
de retomar Jerusalém.
Chegada a hora de reconquistar Jerusalém, Ricardo partiu de Acre,
mas não sem intenso ataque militar do exército de Saladino, heroicamente
resistido por Ricardo, que chegou ileso em Jafa e um mês depois partiu para
Jerusalém. Entretanto, a meio caminho da cidade santa, o rei cruzado ordenou
que seu exército recuasse.
Batalhas constantes levaram os arqui-inimigos a um acordo, em
1192, no qual Tiro, Acre, Cesaréia e Jafa ficariam com Ricardo e Jerusalém,
com Saladino. Saladino ainda permitiria que os cristãos peregrinos tivessem
acesso a Jerusalém.
2.4) A Quarta Cruzada.
A Quarta Cruzada (1202-1204) foi estimulada pelo papa Inocêncio
III (1198-1216). Nessa cruzada, tropas europeias que, em 1203, deveriam ir ao
Egito, foram para Constantinopla, a saquearam violentamente e fundaram o
Reino Latino daquela cidade, em 1204, que perdurou até 1261. A conquista
tanto aumentou a cisão entre as Igrejas Oriental e Ocidental quanto facilitou a
queda da cidade em 1453, sob os turcos.
2.5) A Cruzada das Crianças.
Em 1212 ocorreu a Cruzada as Crianças, certamente o episódio
mais desolador envolvendo as cruzadas. Dois meninos, Estêvão e Nicolau,
dirigiram crianças da França e Alemanha numa marcha pelo sul da Europa até
a Itália, motivados pela ideia de que a sua pureza lhes daria o sucesso que o
pecado dos seus pais impediu. As crianças que não morreram no caminho
foram vendidas como escravos no Egito.
2.6) As demais Cruzadas.
Outras cruzadas ocorreram em 1217-1221 (a Quinta Cruzada), em
1228-1229 (a Sexta Cruzada), em 1248-1250 (a Sétima Cruzada), em 1270 (a
Oitava Cruzada) e em 1271-1272 (a Nona Cruzada). Finalmente, a era das
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Cruzadas terminou quando, em 1291, Acre, o último território sob o domínio
cristão na Terra Santa, foi tomado pelos turcos.
3. Avaliação das Cruzadas.
O equívoco básico que deu suporte às Cruzadas foi, segundo
Shelley, a dificuldade dos papas em considerar duas verdades: “as mais altas
satisfações do cristianismo não são garantidas pela posse de lugares
especiais, e a espada nunca foi a maneira que Deus usou para ampliar a igreja
de Cristo”.
Por isso, embora nesse período o poder papal tenha sido ampliado,
as Cruzadas nada conseguiram além de enfraquecer o feudalismo medieval e
ensejar a centralização de poder nas mãos dos reis, agora apoiados pela
burguesia emergente.
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XVII. Pretensões Reformistas e o Declínio do Papado
1. O auge do poder papal: Inocêncio III e o IV Concílio de Latrão.
O auge do poder do papado ocorreu com o papa Inocêncio III
(1198-1216). Inocêncio afirmava-se “Vigário de Cristo” e asseverava que Deus
dera ao sucessor de Pedro domínio sobre o mundo e sobre a Igreja e que o
papa estava acima dos homens e abaixo de Deus. No campo político, ele
enfrentou os soberanos da França, Inglaterra e do Santo Império Romano. No
religioso, instigou a Quarta Cruzada, que acabou por subjugar não os
muçulmanos, mas capturar Constantinopla, em 1204, ocasião em que o
império oriental permaneceu sob o controle da Igreja no Ocidente, até 1261.
Foi Inocêncio III que convocou o IV Concílio de Latrão, em 1215,
aberto dia 1 de novembro daquele ano. Além de decisões na área política, o
Concílio tomou decisões que influenciariam a Igreja romana doravante, que
passo a destacar:
1.1) A confissão auricular anual tornou-se obrigatória, cuja
finalidade era detectar, corrigir e punir concepções tidas como heréticas pela
Igreja romana. Os hereges passariam a ser punidos com o confisco de suas
propriedades. Ademais, por um lado, a excomunhão seria a recompensa para
aqueles que não agissem contra os hereges e, por outro, perdão completo de
pecados era dado àqueles que cooperassem com a Igreja na caça aos
hereges. Isso representava um avanço da famigerada Santa Inquisição.
A Inquisição teve início com o papa Lúcio III, quando este, em
1184, convocou os “bispos” para inquiri-los sobre suas concepções
doutrinárias. Esta “inquisição”, ou “inquérito”, pretendia detectar os hereges e
condená-los com a excomunhão.
As políticas inquisitoriais foram sistematizadas no Concílio de
Toulouse, em 1229, que, na prática, despiam os “hereges” de todos os direitos.
Determinou-se que o inquisidor só estava sujeito ao papa e nele se confundiam
as figuras de promotor e juiz. O julgamento era secreto e o acusado que
deveria provar, sem direito a advogado, sua inocência.
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Entretanto, foi o papa Inocêncio IV que, em 1252, conferiu à
Inquisição a sua faceta mais cruel, autorizando a tortura como meio de se
conseguir informações e confissões dos “hereges”. O clero só não podia
proceder com a execução, mas tinha a liberdade de conduzir o inquérito
usando os métodos que desejasse. Após a declaração condenatória, o
sentenciado era devolvido às autoridades civis, que geralmente executavam
com morte na fogueira.
1.2) Outra decisão importante tomada no IV Concílio de Latrão diz
respeito à doutrina romana da eucaristia. Martin N. Dreher fala a respeito:
“criou-se a base mágico-sacramental que permitiria a separação de cristãos ligados à Igreja dos que eram denominados de hereges. Quem negasse essa doutrina não só se encontrava em engano, mas tinha que ser visto como anarquista e tratado como tal...”.
O termo “missa” passou a ser utilizado exclusivamente no
Ocidente, e a partir do final do século IV. Há quem afirme que o termo deriva
das palavras finais do culto usadas para despedir a congregação: “ecclesia
dimissa est” (a igreja está demitida, enviada). Gregório o Grande ajudou nos
primórdios da formulação da doutrina da eucaristia, chegando a ensinar que o
sacrifício de Cristo na missa confere os méritos de Cristo tanto aos
comungantes quanto aos mortos do purgatório, nela mencionados.
No século IX, Pascásio Radbertus (c. 830) e Radramno (c. 845)
contribuíram ao debate do dogma eucarístico. O primeiro defendeu que Deus
opera um milagre, transformando a substância do pão e do vinho nos
verdadeiros corpo e sangue de Cristo. O segundo, a seu turno, acentuou o
elemento espiritual, afirmando que os comungantes comem o corpo e bebem o
sangue de Cristo apenas espiritualmente, não a carne que esteve na cruz nem
o sangue que foi ali derramado.
No século XI, o debate deu-se entre Berengário (f. em 1088) e
Lafranco (f. em 1089). Berengário negava a transformação da substância,
afirmando um comer meramente espiritual. Lafranco se insurgiu contra ele,
afirmando que em cada partícula da “hóstia” (palavra que significa “vítima”,
usada para referir-se aos animais sacrificados nos sacrifícios hebreus) “todo o
Cristo indiviso estava realmente presente” (Dreher). Parece-nos que
Berengário realmente nunca abriu mão de suas convicções, embora tenha sido
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obrigado a negá-las pelo papa Nicolau II (1058-1061), em 1059, e pelo papa
Gregório VII (1073-1085), em 1079.
Ainda no século XII, havia três possíveis compreensões quanto à
eucaristia, segundo Pedro Lombardo (f. em 1160): (1) a doutrina da
transformação, segundo a qual somente durante o ato sacramental surge do
pão o corpo de Cristo; (2) a doutrina da consubstanciação, para a qual a
substância do pão e do vinho permanece intactas, mas que após as palavras
de consagração tem agregada a si a presença de Cristo; (3) a doutrina da
transubstanciação, através da qual se ensina que a substância do pão e do
vinho é realmente transformada no corpo e no sangue de Cristo. Pedro
Lombardo negou a primeira possibilidade, doutrina aceita pela Igreja Ortodoxa,
mas não se definiu entre a consubstanciação e a transubstanciação.
A definição doutrinária de Latrão (1215) seguiu a confissão da
transubstanciação de Berengário - confissão que este fez por imposição do
papa Gregório VII -, e negou a tradição de Radramno (em 1215), ficando com o
seguinte teor:
“Há apenas uma Igreja universal dos fieis, fora da qual ninguém é salvo. Nela Jesus Cristo é, como sacerdote, também o sacrifício. Seu corpo e seu sangue estão verazmente contidos sob as espécies de pão e vinho no sacramento do altar, depois que o pão foi transubstanciado no corpo e o vinho no sangue pelo poder divino: a fim de que nós, para a perfeição do mistério da unidade, recebamos do seu o que ele recebeu do nosso. E este sacramento ninguém pode executar a não ser o sacerdote que foi regularmente ordenado, segundo o poder das chaves da Igreja, as quais o próprio Jesus Cristo concedeu aos apóstolos e a seus sucessores” (citado por Dreher).
A festa de “Corpus Christi” foi a consequência dessa decisão. Ela
foi iniciada em 1264, confirmada no Concílio de Vienne, em 1311, e em 1330
surgiu a procissão de “Corpus Christi”. Uma vez que concebeu-se que o corpo
e o sangue de Cristo não estavam presentes somente durante a comunhão do
fiel, mas que permaneciam constante e realmente no pão visível até que este
desaparecesse, seria fácil concluir que o próprio Cristo poderia ser levado
pelas ruas e cidades. Foi por conter todo o Cristo, segundo a definição de
Latrão, que o pão passou a ser designado de “hóstia”.
2. As pretensões reformistas.
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A Igreja realizava grandes façanhas. Liderava e inspirava as
cruzadas contra muçulmanos e hereges, construía grandes catedrais góticas e
dava impulso às universidades, representantes do vigor intelectual da época.
Grandes doutores da Igreja, homens como Pedro Abelardo (1079-1142) e
Tomás de Aquino (1124-1274), deram vida ao “escolasticismo” ou ao método
“escolástico”, uma tentativa de aplicar a razão e a filosofia às verdades da
revelação e ao conteúdo da fé.
Mas, por outro lado, não obstante a grandeza de sua força política
e intelectual, o ardor do movimento cluniacense do século X havia arrefecido e
a Igreja dava claros sinais de evaporação dos valores espirituais. Shelley cita o
bispo de Lincoln, Robert Grosseteste (1235-1253), que “censurou a cobiça, a
ganância e a imoralidade do clero”. O bispo inglês afirmou que “Como a vida
dos pastores é o livro da laicidade, está claro que eles são pregadores do erro
e da maldade”. A responsável de tudo isso é a corte romana, que, segundo
Grosseteste, “não nomeia homens, mas destruidores de homens”.
Em resposta a esse estado caótico, surgiram as ordens monásticas
franciscana e dominicana, dentre outras, e os movimentos reformistas leigos
dos valdenses e cátaros. Senão, vejamos:
2.1) As ordens monásticas.
Em Assis, a 140 km ao norte de Roma, Giovanni Bernardone, o
São Francisco de Assis (1182-1226), deu origem à ordem dos franciscanos.
Filho de comerciante rico que desejava que ele se tornasse um cavaleiro
cruzado, Francisco se converteu durante uma enfermidade e deixou a casa
paterna para dedicar-se ao serviço de Deus através da pobreza.
Após reunir alguns jovens com o mesmo ideal, deu à fraternidade
uma regra que exigia pobreza, castidade e obediência, sobretudo ao papa. A
ordem foi aprovada em 1210 por Inocêncio III, empreendeu movimentos
missionários eficazes e produziu grandes eruditos, tais como Duns Scotus e
Guilherme de Occam.
Outra importante ordem monástica surgiu com o espanhol Dominic
Guzman (1170-1221), os dominicanos. Eram mais dedicados à educação que
os franciscanos e pretendiam levar os hereges à conversão através da
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persuasão da pregação aliada ao exemplo da pobreza. A ordem foi aprovada
pelo papa em 1216 e dela saíram Alberto Magno e seu aluno Tomás de
Aquino.
2.2) Os movimentos reformistas leigos.
A par dos movimentos monásticos, produto de uma reação interna
à corrupção do alto clero, nasceram seitas que tentaram reformar a Igreja de
fora para dentro. Dentre elas, se destacam os valdenses e os cátaros ou
albigenses.
Pedro Valdo (c. 1140-1218) era um rico comerciante de Lyon, na
França. Impressionado com as palavras de Jesus ao jovem rico (cf. Mt 19:21),
Valdo decidiu abrir mão de sua fortuna, colocou sua família em segurança e
decidiu organizar um movimento de disseminação do ensino de Jesus através
de pregadores leigos. A seita logo recebeu a oposição do bispo de Lyon e, em
1184, Valdo foi excomungado da Igreja romana pelo papa Lúcio III.
Sobre a divergência entre os valdenses e Roma, Shelley disse o
seguinte:
“O conflito é compreensível. Os valdenses queriam purificar a igreja pelo retorno à vida simples dos apóstolos. Isso significava o abandono do poder do mundo... [por outro lado] O papado não podia renunciar a seus sacramentos ou sacerdócio, nem admitir que a fé em Deus poderia ser algo diferente dos mandatos de Roma. Os valdenses, por seu turno, sentiam cada vez mais que nenhum ensinamento, exceto o de Cristo, era gratificante. As Escrituras deviam governar...”.
Claramente, os valdenses se opuseram ao governo romano
centralizado no papa, em prol de um movimento de retorno à Bíblia. Isso
realmente soa como um movimento na linha dos reformadores, embora eles
não tivessem descoberto as doutrinas evangélicas da graça.
Os cátaros (“puros”), também chamados albigenses por terem sido
numerosos na cidade francesa de Albi, reavivaram a antiga heresia dualista
gnóstica, reafirmando a antiga cisão permanente entre matéria e espírito e
entre o Deus mal do Antigo Testamento e o Deus bom do Novo Testamento. A
concorrência da Inquisição e da cruzada contra os hereges, apoiada por
Inocêncio III, em 1208, causou a dizimação dos albigenses.
3. O declínio do papado (1309-1439).
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Após os papas Inocêncio III e Inocêncio IV, a Sé romana padeceu
sob o comando de papas de baixíssima envergadura política e teológica. A par
desse fato, a exigência de celibato, a luxúria, a ambição e a secularização do
clero levou a Igreja romana, entre 1309 e 1439, ao nível mais baixo. O próprio
papado foi atingido nos episódios que envolveram o Cativeiro Babilônico e o
Grande Cisma.
3.1) O Cativeiro Babilônico.
Bonifácio VIII (1294-1303) não teve suficiente influência e
habilidade para impor-se perante os soberanos da Inglaterra e da França.
Felipe IV, o Belo, rei da França, ignorando sua bula Unam Sanctam, o
aprisionou em Anagni, com o propósito de levá-lo a julgamento, o que só não
ocorreu porque Bonifácio conseguiu fugir e morreu um ano depois.
Clemente V (1305-1314) foi eleito pelo Colégio de Cardeais em
1305 e, influenciado por Felipe, em 1309, transferiu o papado de Roma para
Avignon. Com exceção do período compreendido entre 1367 e 1370, a
residência papal permaneceu em Avignon até 1377, razão pela qual esse
período é chamado de Cativeiro Babilônico. Foi o clamor popular que levou os
papas Urbano V (1362-1370) e Gregório XI (1370-1378) a retornarem a Roma.
3.2) O Grande Cisma.
Em 1378 houve o Grande Cisma, que não deve ser confundido
com o primeiro grande Cisma da cristandade, de 1054.
Com a morte de Gregório XI, os cardeais elegeram Urbano VI.
Como este teve pouca habilidade em lidar com os cardeais, estes indicaram
como papa Clemente VI e, ambos, Urbano e Clemente, passaram a reivindicar
a sucessão de Pedro para si, cisma que perdurou até que o Concílio de
Constança o resolvesse, conforme veremos.
O Colégio de Cardeais convocou um concílio para a cidade de
Pisa, em 1409. Nele, participaram Bento XIII, eleito em Avignon, e Gregório XII,
do partido romano. O Concílio depôs Bento e Gregório e elegeu Alexandre V
como o papa legítimo. Como os dois primeiros se recusaram a renunciar, ao
invés de dois, passou-se a ter três papas.
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Face à pressão do imperador do Santo Império Romano,
Sigismundo, o papa João XXIII (o Baltasar Cossa) convocou novo Concílio
para Constança (1414-1418), a fim de por fim ao Cisma. Nele, Gregório XII
abdicou, foram depostos Alexandre V e Bento XIII, e eleito o papa Martinho V.
Foi esse Concílio que, além de resolver o Grande Cisma, condenou as ideias
de John Wycliffe e conduziu John Huss à fogueira.
A era conciliar muito fez para retirar o poder absoluto do papado e
transferi-lo aos concílios. Caso essa situação tivesse sido mantida, o papado
teria se tornado uma espécie de monarquia constitucional. Entretanto, o
despotismo eclesiástico voltou a imperar, sobretudo com o Concílio de
Florença, que se reuniu até 1449.
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XVIII. Novos Tempos e Pré-Reformadores
1. O anúncio de novos tempos.
Após o período dos grandes concílios (1409-1449), o despotismo
papal foi retomado, mas não para alçar as alturas do poder experimentado por
Inocêncio III. Novos movimentos políticos, econômicos e sociais anunciavam o
surgimento da era moderna, conforme abaixo resumiremos, de modo que
podemos testemunhar o fim da Idade Média entre os anos 1300 e 1500.
1.1) O surgimento das nações-estados.
Durante a Idade Média, permaneceu dominante o conceito de
unidade política sob um único soberano, ideal que remontava as glórias do
império romano e que veio a se materializar no Santo Império Romano, embora
na prática fosse o sistema feudal a garantia da segurança e o elemento que
ditava os modelos econômico-sociais.
Entretanto, nos século XIV e XV, a Guerra dos Cem Anos (1337-
1453), travada entre a Inglaterra e a França, serviu para fomentar o orgulho
nacional dessas nações, de modo que as pessoas começaram a verem-se
como inglesas e francesas e a pensar em termos de interesses nacionais. Os
ingleses se orgulhavam dos seus arqueiros e a França se unificou em torno do
seu inimigo comum. Essa guerra deu à França uma heroína nacional, Joana
D’Arc (c. 1412-1431). A outra nação a logo formar-se enquanto nação-estado
foi a Espanha, sobretudo com o casamento de Fernando de Aragão com Isabel
de Castela, em 1479.
Enquanto a Inglaterra tem uma longa história de monarquia
constitucional, em que a soberania do rei é dividida com o Parlamento, na
França e na Espanha desenvolveram-se monarquias absolutistas, nas quais o
soberano governava absoluto, concentrando todas as esferas do poder nas
mãos. Sobretudo na Espanha, o absolutismo político encontrou paralelo no
absolutismo católico romano, expresso na bárbara Inquisição Espanhola,
liderada por Torquemada e Ximenes.
1.2) A ascensão da burguesia.
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Na sociedade feudal, a economia baseava-se na agricultura e o
nobre feudal constituía numa classe social proeminente. No entanto, ao fim da
Idade Média, a retomada do crescimento urbano e a ascensão do comércio
deu azo ao surgimento de uma nova classe social poderosa, a burguesia. A
posse da terra tendeu a perder valor e o mundo começou a monetarizar-se.
Portanto, é fácil perceber que um governo direto do papa sobre os
negócios internos das nações nem interessava aos soberanos das nações, que
opuseram-se a um governo religioso universal, nem à emergente burguesia.
Ambos se mostraram insatisfeitos com o envio de riquezas ao tesouro papal
em Roma.
1.3) A renascença e o humanismo.
A renascença foi um movimento intelectual que floresceu na Itália,
no século XV, como uma oposição vigorosa aos séculos anteriores, período
que passou a ser chamado de “idade média”, por ser considerado um “período
intermediário” entre a antiguidade clássica e novo impulso das artes, então em
surgimento. A renascença buscou opor-se ao “período intermediário”
redescobrindo as obras da antiguidade. Enfatizou o ser humano, sua
autonomia e liberdade.
No final do século XV, a renascença italiana foi experimentada pela
França, Inglaterra, Países Baixos e Alemanha, onde o movimento, dotado de
novas características, foi denominado de “humanismo”. No humanismo, “o
principal acento esteve na alegria com a qual se fazem descobertas de ordem
filológica. Surgiu todo um estudo em torno dos livros dos antigos autores”
(Dreher).
A renascença e o humanismo contribuíram basicamente de duas
formas para o advento da Reforma Protestante: primeiro, sua ênfase no
indivíduo ensejou o pano de fundo do ensino protestante da salvação como
questão pessoal; segundo, o interesse nas obras da antiguidade fez os
humanistas cristãos devotarem-se ao estudo da Bíblia nas línguas originais, de
modo que as divergências entre a Igreja neo-testamentária e a Católica
Romana tornaram-se óbvias.
1.4) A expansão geográfica e a imprensa.
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Outros dois acontecimentos selariam definitivamente o rompimento
com o mundo homogêneo criado pelo ideal de um único governo, fomentado
no período medieval: a expansão geográfica do mundo europeu, sobretudo a
partir da Península Ibérica, e a invenção da imprensa, por volta de 1450, por
João Gutenberg. “Chegava ao fim a possibilidade do controle e da
homogeneidade” (Dreher).
2. Reformas religiosas.
Paralelamente à ascensão dos movimentos revolucionários nos
campos político, social, econômico, intelectual e geográfico, homens
começaram a divulgar ideias religiosas que se insurgiam contra os dogmas
católico-romanos. Dois deles merecem atenção especial, ante o alcance de sua
mensagem e à extensão de suas propostas reformistas, são eles: John Wycliffe
e John Huss.
2.1) John Wycliffe (c. 1320-1384).
Wycliffe viveu durante grande parte do Cativeiro Babilônico e do
Grande Cisma. Pouco se sabe sobre sua infância, salvo que nasceu por volta
de 1320, numa família rica, na vila de Hipswell, no condado de Yorkshire,
Inglaterra. Em Oxford, onde estudou e ensinou a maior parte da sua vida,
obteve o diploma de doutor em 1372. Sob a proteção de João de Gaunt, o
duque de Lancester, Wycliffe defendeu a coroa inglesa quando esta contendia
com o papado em questões de impostos. Em 1377, o papa Gregório XI
condenou Wycliffe por seus ensinamentos e pediu sua demissão de Oxford,
onde foi condenado em 1380.
A partir de 1378, ano do Grande Cisma do papado, Wycliffe tornou-
se mais contundente em suas acusações contra a Igreja romana. Segundo ele,
o papa deveria ser um pregador simples, sem envolvimentos com embates
políticos, mundanismo e luxúria. Em 1382, retirou-se para a igreja paroquial em
Lutterworth, onde completou a tradução da Bíblia, feita a partir da Vulgata de
Jerônimo, juntamente com alguns amigos. Nesse mesmo ano, escreveu que
Cristo e não o papa é o chefe da Igreja, afirmou que a Bíblia e não a Igreja era
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a autoridade única da Igreja e que a Igreja romana deveria voltar aos padrões
do Novo Testamento. Chegou mesmo a acreditar que o papa é o anticristo.
Apesar de manter sua crença no purgatório e não se opor à
extrema-unção, Wycliffe se insurgiu contra a confissão obrigatória e,
principalmente, contra o dogma da transubstanciação. Para Ele, Cristo estava
espiritualmente na Ceia e não havia qualquer transformação na substância dos
elementos. Somente o fato da ênfase posta por Wycliffe na autoridade das
Escrituras já poderia lhe render o título de “Estrela da Manhã da Reforma
Protestante”.
Finalmente, organizou os “pregadores pobres” para a difusão do
ensino do Novo Testamento na língua vernácula e os enviou aos campos e às
mais diversas regiões. Esses vieram a ser chamados de “lolardos”
(resmungões). Segundo a mensagem dos lolardos, a Escritura deveria ser
colocada à disposição do povo, a distinção entre clero e leigo é contrária à
Bíblia, o celibato dos sacerdotes eram uma abominação e o culto às imagens,
as peregrinações, a oração pelos mortos e a transubstanciação não passavam
de superstições.
Wycliffe continuou escrevendo até sofrer derrame cerebral em 28
de dezembro de 1384, enquanto conduzia o culto. Seus ensinos foram
condenados no Concílio de Constança (1414-1418) e destruídos. Nesse
mesmo Concílio, se ordenou que seus restos mortais fossem exumados,
queimados e lançados no rio Swift.
2.2) John Huss (c. 1369-1415).
Huss nasceu por volta de 1369, membro de uma família de
camponeses que vivia na aldeia de Husinec, ao sul da Boêmia, parte da atual
República Tcheca. Estudou na Universidade Carolina de Praga, onde colou
grau de bacharelado em artes em 1393 e de mestre, em 1396.
Huss tornou-se sacerdote em 1400 e em 1402 foi nomeado
pregador da Capela dos Santos Inocentes de Belém e empossado reitor da
Universidade Carolina, em Praga. Nesse tempo, passou por uma conversão
evangélica e iniciou severo ataque aos abusos, à luxúria e ao mundanismo do
clero. Nas paredes da Capela de Huss havia pinturas que contrastavam o
comportamento dos papas com o de Cristo. O papa montava em cavalo e
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Jesus andava descalço; o papa queria seus pés beijados, enquanto Jesus
lavava os pés dos discípulos.
Huss não pretendia ser um reformador em questões de doutrina,
como Wycliffe. Seu interesse era uma reforma na vida prática da Igreja.
Também não se pode dizer que houvesse se tornado um discípulo de Wycliffe,
mas defendia o direito à leitura das obras do reformador inglês.
Um golpe duro contra Huss foi dado pelo papa Alexandre V, que, a
pedido do arcebispo de Praga, Zbynek Zajic, proibiu pregações fora das
catedrais, dos mosteiros e das igrejas paroquiais. Isso equivalia a proibir a
pregação Huss, uma vez que a Capela dos Santos Inocentes de Belém não se
enquadrava nos limites estabelecidos pelo papa. Huss desobedeceu ao papa e
continuou pregando, sendo esta sua primeira desobediência.
Em 1411, Huss foi excomungado, porque não atendeu a
convocação de ir a Roma prestar contas de seu ensino e pregações. Em 1412,
nova excomunhão lhe alcançou e foi fixado prazo para que comparecesse
perante a corte papal, sob pena da cidade que lhe desse acolhida sofrer
interdito. Por essa razão, o pré-reformador tcheco refugiou-se no sul da
Boêmia, onde recebeu a notícia de que estava para se reunir um grande
Concílio em Constança.
Huss foi convidado a comparecer a esse Concílio. Para tanto, o
novo imperador do Santo Império Romano, Sigismundo, coroado em novembro
de 1414, ofereceu-lhe um salvo-conduto para garantir sua segurança pessoal.
Em Constança, porém, Huss foi logo tratado como condenado, esteve preso
por oito meses e o imperador viu que não valia à pena persistir no salvo-
conduto e ver-se aliado a um “herege”.
Finalmente, no dia 6 de julho de 1415, o dia da fogueira chegou. A
caminho do suplício, passou por uma pira onde seus livros eram queimados e o
marechal do império, Von Pappenheim, deu-lhe a última oportunidade de se
retratar, ao que Huss respondeu: “Deus é minha testemunha de que as
evidências contra mim são falsas. Eu nunca pensei ou preguei exceto com a
única intenção de ganhar os homens, se possível, dos seus pecados”. Por fim,
ele orou: “Senhor Jesus, por Ti sofro com paciência esta morte cruel. Rogo-te
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que tenhas misericórdia dos meus inimigos”. O fogo foi aceso e Huss morreu
cantando: “Cristo, Tu, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de mim”.
Diz-se que dentre as últimas palavras de Huss constava seu dito
de que os algozes estavam matando um ganso (significado da palavra huss),
mas que daí a cem anos viria um “cisne” que eles não poderiam matar. De fato,
em 1515, cem anos depois, Lutero viria a conhecer na “experiência da torre” a
doutrina paulina da justificação pela graça mediante a fé somente e, em 31 de
outubro de 1517, afixar suas 95 teses contra a venda de indulgências, fatos
que mudariam não só a vida do monge alemão, como a história da cristandade.
Os discípulos mais radicais de Huss, que rejeitavam como
normativo à fé e à prática cristãs tudo que a Igreja romana ensinava que não
estivesse na Bíblia, chamavam-se “taboritas”. Foram alguns do grupo taborita
que formaram o que ficou conhecido como Irmãos Unidos (Unitas Fratrum), ou
Irmãos Morávios, grupo de onde saiu a Igreja Morávia, que existe até hoje e
que influenciou diretamente Martinho Lutero e John Wesley.
Em 1999, o papa João Paulo II expressou “profundo pesar pela
cruel morte infligida” a Huss (citado por Flaklin Ferreira).
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