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ESTÉTICA E GÊNERO TELEVISIVO: A experiência no programa Brasil Urgente1
Carolina Santos Garcia de Araújo2
Mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pelo POSCOM/UFBA
Resumo: Neste trabalho, a proposta é mostrar a viabilidade de uma articulação entre
Estética e Estudos Culturais para compreender questões relacionadas ao gênero televisivo,
no âmbito da análise cultural de gênero. Propomos, para isso, um breve exercício analítico
do programa Brasil Urgente (TV Bandeirantes), em que buscamos nos ater à experiência
provocada pelos elementos estéticos suscitados por tal objeto. Compreender o gênero sob
uma perspectiva cultural significa considera-lo como resultado não de rótulos ou formas
pré-definidas, mas como estratégias interativas que se configuram a partir de situações
específicas e contextuais. Esta articulação nos permite identificar como tal programa mostra
continuidades e constrangimentos no âmbito do gênero midiático, e como a partir dessa
dinâmica revela suas condições de existência no contexto da produção televisiva brasileira.
Palavras-chave: Gênero; Televisão; Policial; Cultura; Estética.
Jacinto Filgueira Júnior, quando apresentou o programa O Homem do Sapato
Branco em 1967 na TV Bandeirantes, talvez não imaginasse que a expressão “mundo cão” se
tornaria um rótulo de cunho genérico para identificar um grupo de programas da TV
brasileira. Jacinto sabia, no entanto, que aquela expressão, significava um certo modo de
fazer, capaz de conferir identidade aos programas: “Eu pegava o cotidiano, polícia, pegava
figuras grotescas, engraçadas, figuras que realmente marcavam até época. (...) O próprio
programa era o cotidiano, aquilo que a cidade tinha e ninguém tinha coragem de mostrar”3,
disse Jacinto em uma entrevista à Rede TV em 2001. Assim, a estratégia de “mostrar o
cotidiano” e suas figuras virou para muitos programas brasileiros uma marca constitutiva,
1 Trabalho apresentado no GT Comunicação, Sensibilidades e Performance do I RECOM – Comunicação e Processos
Históricos, realizado de 29 de setembro a 01 de outubro de 2015, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia,
Cachoeira, BA. 2 Jornalista, Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da Universidade Federal
da Bahia. Pesquisadora vinculada ao Grupo de Análise em Telejornalismo (GPAT) – POSCCOM/UFBA. E-mail:
[email protected] 3 Entrevista disponível no site http://www.youtube.com/watch?v=Ry8BVszRpP4&feature=related
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quando a intenção mais forte era mostrar o inusitado, o imprevisível e a naturalidade das
reações humanas. Neste cenário, prevaleciam as situações dramáticas e/ou com apelos
violentos.
Com o passar dos anos, no entanto, o termo “policial” foi dando lugar ao “mundo
cão”, a essa altura já carregado de uma aura depreciativa por conta da crítica. Mas ainda
assim, não era possível encontrar um consenso, no que diz respeito a uma classificação
indicativa de gênero, para definir os programas que se valem dos apelos dramático, das
situações violentas e das ocorrências policiais. Em uma breve consulta a artigos da área de
comunicação publicados em revistas e anais de eventos de âmbito nacional, é possível
encontrar definições como “telejornal policial”, “programa policial”, “programa popular”,
“telejornalismo dramático” ou mesmo “variedades”, como propõe José Aronchi de Souza em
sua proposta taxionômica organizada no livro Gêneros e Formatos na Televisão Brasileira
(2004). Entre os programas que recebem este tipo de denominação está o Brasil Urgente,
exibido pela Rede Bandeirantes de Televisão. De forma predominante, o programa noticia
casos que envolvem crimes, violência e segurança pública.
O Brasil Urgente aparece para nós então como um objeto emblemático, que nos
faz pensar sobre as tensões em torno do gênero e de seu reconhecimento do campo televisivo.
Temos como panorama a compreensão dos gêneros midiáticos não enquanto rótulos
compostos por códigos fechados para compreensão, mas como estratégias de
comunicabilidade, nos termos de Jesus Martín-Barbero (2009). Isso significa reconhecer que
os gêneros funcionam como um elemento mediador entre a lógica dos sistemas produtivos e
as lógicas dos usos. “(...) Um gênero é antes de tudo, uma estratégia de comunicabilidade, e é
como marca dessa comunicabilidade que um gênero se faz presente e analisável no texto”
(MARTÍN-BARBERO, 2009, p. 303). É o modo como se reconhece e se organiza a
competência comunicativa, enquanto estratégia de interação.
Essa compreensão do gênero se relaciona diretamente com o reconhecimento
também da televisão como fenômeno cultural, social, econômico, político. É nesse sentido
que Raymond Williams (2011) afirma que a televisão é uma tecnologia e uma forma cultural,
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pela sua capacidade de configurar uma interação entre a tecnologia e as instituições sociais e
culturais. Assim, entendemos o gênero como um objeto que nos impele a pensar a articulação
entre os estudos do sensível e a análise cultural, porque ao mesmo tempo em que se estrutura
como uma estratégia que opera na linguagem e na recepção, interage sob as intempéries dos
contextos e é capaz de ativar emoções, experiências, situações comunicativas específicas.
Considerando estes aspectos, escolhemos analisar duas situações ocorridas em
edições distintas do Brasil Urgente, mostrando como elas são indicativas de uma experiência
estética, que por sua vez, opera como produtora de sentido na compreensão de gênero
construída por esse programa. Este exercício é um desdobramento de um trabalho inicial, que
resultou na dissertação de Mestrado “Telejornalismo e a temática policial no Brasil: Análise
cultural de gênero dos programas Brasil Urgente e Cidade Alerta”, apresentada em 2014 ao
Programa de Pós-Graduação em Comunicação de Cultura Contemporâneas da Universidade
Federal da Bahia. Naquele momento, nosso objetivo era identificar as marcas que configuram
o reconhecimento da temática policial no telejornalismo brasileiro a partir da análise de
gênero do Brasil Urgente, do Cidade Alerta (TV Record) e suas versões regionais.
A partir destes outros resultados obtidos, propomos aqui um segundo exercício a
partir de uma pequena parte do nosso corpus, a saber, dois momentos das edições dos dias 23
de novembro de 2012 e 07 de dezembro de 2012. Nosso intuito é oferecer novas perspectivas
para enriquecer as análises em torno do gênero, enquanto um fenômeno de comunicação
complexo, porém, indicativo de nossas condições e transformações culturais.
Estética e gênero: articulações em perspectiva cultural
A Estética, enquanto disciplina filosófica, preocupa-se conceitualmente sobre o
belo. Daí a sua intima relação com os fenômenos de ordem do artístico, e consequentemente,
os juízos de valor e gosto sobre ele. Arte, numa perspectiva tradicional, significa produzir atos
e obras integrados ao cotidiano, com poder de interferência na vida humana, que atendam
plenamente aos anseios cognitivos e provoquem efeitos ético-políticos mais amplos:
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“orientação moral, cultural e religiosa, convivência cívica, conforto espiritual ou efusão
lúdica” (FREIRE FILHO, 2009, p.2).
Com o advento da revolução industrial, a literatura - um dos meios por onde a arte
se materializa - experimentou outras formas de ser apreciada, como a dos folhetins. O
desconforto de alguns escritores em ver a obra num formato com tão menos impacto,
culminou em uma inquietação conceitual em torno do termo cultura. No sentido de impor
limites ao que deve se apreciado e considerado obra de arte, surgiu-se a necessidade de
determinar o que seria digno de cultura, de obra de arte, e consequentemente, de julgamento
estético. Nesse contexto os estudos culturais surgem na Inglaterra, com o propósito de
questionar as concepções totalizantes em relação à arte, cultura e estética.
João Freire Filho identifica Raymond Williams como um dos autores dos estudos
culturais que mais contribuíram no entendimento da relação entre estética e cultura. Isso
porque Williams propôs um esquema analítico que considera como objeto não obras puras,
mas todo e qualquer evento enquanto “prática significante”. “que considera como matéria
válida de investigação não apenas o discurso da elite culta, mas o de todos os membros da
comunidade” (FREIRE FILHO, 2009, p. 148). O que Williams estava propondo é que os
elementos de ordem estética (beleza, proporção, ritmo, etc) podem ser experimentados em
outros espaços e situações - “(...) como a própria paisagem natural, o mobiliário doméstico ou
a cultura popular” (FREIRE FILHO, 2009, p. 150) - porque se relacionam também não só
com o que é representativo, mas sobretudo ao que faz sentido. Esta proposta de Williams é
uma das vias por onde os estudos da comunicação podem se aproximar da estética, e é por
uma perspectiva pragmática e contemporânea da Estética que entendemos que essa relação
pode ser feita.
Dentro da sua origem filosófica, a experiência é entendida no campo estético
como “uma diferenciação inédita do conhecimento - singular e enfático - proporcionado pelas
obras, tornado inteiramente irredutível às situações que conhecemos no curso costumeiro da
vida” (GUIMARÃES, 2004, p. 2). Dá conta de uma relação entre o indivíduo e a obra de arte,
e que é compreendida a partir de princípios filosóficos específicos, tais como o rigor com a
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objetividade e validade do julgamento estético; busca pela firmação da ontologia das obras a
partir de critério de valores; equivalência da dimensão estética à dimensão artística. Segundo
César Guimarães (2004), alguns autores têm se dedicado a uma abordagem pragmática dos
estudos da Estética, no intuito de explorar novas perspectivas e ampliar as perspectivas de
entendimento do fenômeno da experiência para além destes princípios, no intuito de
“aproximar a experiência da arte das percepções e das sensibilidades ordinárias”
(GUIMARÃES, 2004, p. 7).
Esta perspectiva pragmática, explica ainda Guimarães (2006), argumenta que
embora a ideia conceitual base da experiência estética seja algo relacionada ao indivíduo e sua
relação com a obra, ela também pode ter uma dimensão social. A interação do indivíduo
possui consequências que na ordem do coletivo, também orientam outros sentidos.
A atitude possui uma função organizadora do sentido: diante de situações
experimentadas concretamente, ela concerne tanto àquelas regras e convicções que
nos governam imediata e intuitivamente (e das quais não duvidamos), quanto à
significação – aberta à problematização - que passamos a conceder aos novos
fenômenos que experimentamos (GUIMARÃES, 2004, pgs. 3 e 4).
John Dewey e Martin Seel são importantes referências dessa perspectiva
contemporânea de compreensão da experiência estética. Para Martin Seel, a experiência na
contemporaneidade já não tem sentido se pensada apenas como uma “transcendência na
imanência” porque é convocada em contextos específicos de ação e comunicação, “(...) isto é,
em uma situação na qual o sujeito é levado a desenvolver uma compreensão pragmático-
performativa do objeto que lhe é apresentado” (GUIMARÃES, 2004, p.3). Para Dewey, a
experiência estética resulta de uma interação especifica entre sujeito e objeto, implicadas em
uma relação do indivíduo com o ambiente que o cerca.
Em outras palavras: a “experiência” exige a mobilização sensorial e fisiológica do
corpo humano; ela é uma atividade prática, intelectual e emocional; é um ato de
percepção e, portanto, envolve interpretação, repertório, padrões; existe sempre em
função de um “objeto”, cuja materialidade, condições de aparição e de circunscrição
histórica e social não são indiferentes. (GUIMARÃES E LEAL, 2008, ps. 5 e 6)
César Guimarães e Bruno Leal (2008) chamam a atenção de que esta perspectiva
da experiência no entanto, tem levado a muitos estudos de comunicação reduzir tal noção à
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ideia de mediação, esvaziando o seu sentido, e consequentemente a articulação entre os dois
campos. Jesus Martín-Barbero é um autor cuja ideia de mediação é a mais referenciada nesse
sentido.
Para Martín-Barbero (2009), os meios de comunicação massiva são constitutivos
da cena social e configuram-se, dentro do cenário contemporâneo, como uma “complexa
trama de mediações” que articula comunicação, política e cultura. Mediação então, não
significa apenas algo que parte do meio, mas algo que é convocado pela obra, a partir de sua
complexa relação com uma série de instâncias e situações contextuais - a saber, matrizes
culturais, competências de recepção, formatos industriais e lógicas de produção, como ele
organiza de forma metodológica em um mapa que veremos mais adiante. De modo ampliado,
o que Jesus Martín-Barbero oferece então é um modo de se pensar as nossas relações com o
meio considerando a experiência que eles convocam enquanto obra, mas também os seus
aspectos contextuais.
A noção de experiência seria então um modo de entender, do ponto de vista
estético, o que acontece entre o sujeito e qualquer um dos aspectos que fazem parte do seu
mundo, chamando em causa a sensibilidade, e não necessariamente o “significacional”. A
experiência assim seria um fenômeno de oscilação, no caso em que podemos experimentar
algo não necessariamente do modo em que se supunha. A característica que permite a
transcendência na eminência é de propriedade da relação entre o sujeito e o objeto, o que
permite que sejamos captados por objetos estéticos absolutamente diversos.
Sob esta perspectiva que Guimarães e Leal (2007) entendem que, no campo
televisivo, uma série de características, ligadas a aspectos estéticos, culturais, ideológicos,
políticos, entre outros, influenciam uma situação de experiência. A televisão funciona como
um elemento mediador que configura, de modo bastante específico, “(...) o presente e a
realidade que oferece ao seu público. Ao mesmo tempo, essa leitura, essa “experiência” do
mundo propõe uma relação com os “outros” televisivos” (GUIMARÃES E LEAL, 2007, p.
9). Para Jesus Martín-Barbero (1995), pensar a estética e o campo da comunicação na
contemporaneidade significa pensar nas formas como arte e sociedade se realizam, e que para
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ele, isso passa pela compreensão do modo como se realiza “a produção social do simbólico”
(p. 4). Nestes termos é que ele defende que não faz mais sentido que o campo da estética seja
analisado a partir das categorias centrais que balizam o sentido de modernidade - como
progresso e a universalidade, por exemplo - simplesmente porque ela nos remete agora a uma
“sensibilidade e uma experiência social difusa e oscilante, híbrida e fragmentada, que não
responde nem à autenticidade, nem à novidade da experiência moderna” (1995, p. 6).
Alves (2013) nos chama a atenção, no entanto, de que nem todo processo
comunicativo gera uma experiência, e assim, ela deve ser verificada por meios estéticos. E
além disso, tal perspectiva de entendimento da experiência (como acolhemos aqui), só faz
sentido a partir de uma perspectiva interdisciplinar, conforme alegam Guimarães e Leal
(2007). Nesse sentido que propomos uma análise que considera os elementos estéticos
suscitados pelo Brasil Urgente, mas a partir das chaves metodológicas da ideia de gênero
como categoria cultural, como explicaremos a seguir.
Pensamos aqui a televisão e seus conteúdos como um lugar onde podemos
experimentar sentidos e sensibilidades difusas, híbridas. Enquanto um fenômeno cultural de
grande alcance, estabelece relações distintas e peculiares nas sociedades, ocupando lugares
também diferenciados em cada uma delas. Quando reconhece a televisão como, ao mesmo
tempo, uma tecnologia e uma forma cultural, Raymond Williams (2011) quer dizer que ela
constrói a sua história a partir de uma dinâmica complexa (que ele chama de fluxo),
organizando conteúdos e gêneros que, em situações específicas, se configuram como práticas
e produzem sentido. Encarar a televisão dessa forma talvez seja uma pista para a compreensão
de um programa como o Brasil Urgente, e sua existência no contexto brasileiro
contemporâneo, e quais são os atributos que permitem referencia-lo a partir de outros
programas que compõe o acervo histórico da TV no nosso país.
Ferramenta de compreensão: gênero como categoria cultural
Como vimos, Martín-Barbero (2009) entende que um meio como a televisão, por
exemplo, mais especificamente nos contextos contemporâneo e latino-americano, funciona
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como uma complexa trama de medicações que articula comunicação, cultura e política. Esta
trama foi pensada por Martín-Barbero em um esquema metodológico que ele chama de Mapa
das Mediações, o lugar onde se estabelece a tensão e o enfrentamento entre meio e recepção:
Matrizes, Competências, Formatos e Lógicas de articulam sob dois eixos: a) Diacrônico
(histórico e de longa duração), que articula Matrizes Culturais (MC) e Formatos Industriais
(FI); b) Sincrônico (que se realizam ao mesmo tempo), que articula Lógicas de Produção (LP)
e Competências de Recepção (consumo - CR). Estes quatro pontos se articulam através das
mediações provocadas pela ritualidade, tecnicidade, institucionalidade e socialidade. Essas
mediações se tocam, interagem. Percorrer o mapa significa entender como essas relações se
constituem na articulação total entre esses pontos. O objeto de análise é quem vai determinar
o local de entrada no mapa. Uma vez nele, é necessário encarar a passagem pelos pontos a fim
de compreender o sentido desse objeto na trama que envolve comunicação, cultura e politica.
Para pensarmos no nosso objeto, consideramos importante a relação sob o eixo
diacrônico, que remete à história da articulação entre movimentos sociais e discursos
públicos, e destes com as formas produtivas hegemônicas de organização da comunicação
Figura 1 - Mapa das Mediações (MARTÍN-BARBERO, 2009)
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coletiva. Martín-Barbero (2009) usa o exemplo do gênero melodrama, que historicamente, se
constitui num referencial movediço, que articula elementos da ordem do hegemônico e do
subalterno e se traduz em formas distintas, que ao mesmo tempo se entrelaçam por marcas
especificas desse código genérico. Aqui, se articulam elementos residuais e inovadores, e
também velhas e novas competências de leitura. O mapa nos mostra lugares possíveis onde
podemos compreender o lugar do gênero na nossa relação com a cultura, a comunicação e a
política, considerando os elementos estéticos que ele venha a levantar.
É a partir das interações apresentadas no Mapa que Itania Gomes (2011) propõe
pensar o gênero como uma categoria cultural. No centro do mapa, ele é visto como uma
estratégia de comunicabilidade que se constrói articulando os quatro pontos e suas respectivas
mediações. Para Gomes (2011), questões de gênero não tem tido muita atenção; enquanto
vertente literária e do cinema buscam entende-lo como um “elemento textual formal”, os
estudos culturais tem utilizado o gênero como um pretexto para se analisar conjunturas sociais
e novas identidades. Nesse sentido que a tarefa torna-se então buscar um entendimento do
gênero que dê conta dos aspectos textuais, dos códigos que o tornam socialmente
reconhecíveis “(...) mas que não se restrinja à mera classificação/categorização dos produtos”
(GOMES, 2011, p. 112). O gênero ganha lugar no centro do mapa, sendo capaz de operar
como “uma prática de produção de sentido”, que se realiza na troca com as demais práticas.
Pensar em gênero como categoria cultural então, é articular os pensamentos de Martín-
Barbero sobre os meios de comunicação (trama entre cultura, política e sociedade) e sobre
gênero (estratégia de comunicabilidade).
O autor [Jesus Martín-Barbero] nos oferece boas pistas para consolidar o estatuto do
gênero como uma categoria cultural: em primeiro lugar, porque entende que o
gênero é uma estratégia de comunicabilidade ou de interação, e é como marca dessa
comunicabilidade que ele se faz presente e analisável em um texto, numa
perspectiva que se aproxima mais de uma pragmática da comunicação do que de
uma semiótica textual de viés imanentista; segundo, porque postula o gênero como
um elemento central para compreensão da relação entre televisão e cultura
(GOMES, 2011, p. 123).
Nossa proposta neste exercício então é identificar, a partir dos elementos
estéticos, de que forma o programa Brasil Urgente convoca questões de gênero, numa
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perspectiva cultural, ou seja, ver de que forma esses elementos estéticos nos convocam
questões relacionadas a cultura, comunicação, política e sociedade. Neste caso, trazemos duas
situações que entendemos aqui como emblemáticas para ilustrar as principais estratégias para
configurar a possibilidade de um noticiário policial no Brasil.
O Brasil Urgente e suas marcas de gênero
O programa Brasil Urgente foi ao ar pela primeira vez em 2001, tendo como
apresentador o jornalista Roberto Cabrini. A emissora apresenta a atração como uma
reformulação do seu jornal noturno, mas a crítica entende como uma atração que privilegia o
caráter informal e grosseiro.
A partir de amanhã, os informativos da TV Bandeirantes estarão de "cara nova". O
canal estreia sua Central de Jornalismo, redação conjunta da emissora, do Canal 21,
da Rádio Bandeirantes, e o novo cenário dos programas jornalísticos da casa. Além
do visual novo, passam a integrar a programação o inédito "Brasil Urgente", com
Roberto Cabrini, a versão reformulada do "Jornal da Noite", com Maria Cristina Poli
no comando, e o "talk show" "Raio-X", de Salomão Schvartzman, antes exibido pelo
Canal 21. A atração de Cabrini, ex-Globo, segue a linha do "Cidade Alerta", da
Record, com informação apresentada de maneira informal, opinativa e "agressiva".
(Folha de S. Paulo, “Bandeirantes reformula sua programação jornalística”,
02/12/2001).
A promessa, no âmbito institucional, de que se trata de um telejornal, implica no
acionamento de certos códigos de reconhecimento. Por um lado, significa afirmar valores
caros à atividade jornalística, como vigilância, interesse público, objetividade, imparcialidade,
entre outros. Por outro, enquanto constituição da linguagem televisiva vinculadas ao
telejornalismo, temos aspectos como presença da bancada, apresentadores, escalada, uso do
som e de efeitos de câmera, técnicas de reportagem como off, passagem, sonora, etc. Neste
sentido, a própria figura de Roberto Cabrini funciona como um elemento importante neste
reconhecimento como telejornal. Como profissional havia acumulado naquele momento mais
de uma década de experiência na TV Globo, muitos deles dedicados à grandes reportagens, de
ampla repercussão. No entanto, Cabrini ficou no programa apenas até março de 2003, quando
deu lugar a José Luiz Datena, antes apresentador do concorrente direto, o Cidade Alerta. O
programa dobrou os índices de audiência, e fez de Datena um ícone entre os atuais noticiários
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policiais4. Datena não é jornalista de formação acadêmica. Começou no rádio e se ganhou
notoriedade na Rede Record cobrindo eventos esportivos. O sucesso e o reconhecimento
nacional vieram com o Cidade Alerta, que rendeu bons índices de audiência à Record.
Chegou a voltar à Record, durante um curto período, mas o contrato foi desfeito e o
apresentador retornou à Band, onde se mantém. É um dos apresentadores mais bem pagos da
TV no Brasil, estimado em cerca de R$1 millhão por mês.
Com catorze anos de existência, podemos dizer que o Brasil Urgente é um
programa de certa relevância construída uma trajetória importante no contexto da produção
televisiva brasileira. Sua apresentação para o público, a partir da vinheta de abertura, sofreu
algumas mudanças neste tempo mas sempre com o objetivo de chamar a atenção do público
para o sentido de urgência. Apresentamo-la aqui como a primeira via de contato com o
telespectador, por onde os seus primeiros sentidos são ativados em relação à proposta do
programa.
A tipologia contendo o nome do programa sugere esse efeito a partir da entrada
em diagonal, surgindo do canto esquerdo para o direito da tela. Nos primeiros anos, a cor
usada na vinheta era apenas o laranja, uma cor vibrante e que denota sentido de alerta. Nos
anos seguintes a cor azul foi incorporada, até finalizar a versão atual que usa as cores azul, em
maior predominância, e vermelho.
Figura 2 - Vinhetas do Brasil Urgente em 2002, 2005 e 2013 (da esq. para a dir.).
4 Dado do perfil feito pela Revista Veja, publicado em abril de 2011. Disponível em
http://vejasp.abril.com.br/materia/datena-band-apresentador-perfil
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Consideramos significativa a incorporação do azul de forma mais incidente. Esta
cor está presente na vinheta dos quatro principais telejornais brasileiros - SBT Brasil (SBT),
Jornal da Band (BAND), Jornal da Record (Record) e Jornal Nacional (Globo) - e no mais
antigo deles, o Jornal Nacional, é utilizada desde os seus primeiros anos. O vermelho,
entendemos aqui, surge para marcar o sinal alerta, de urgência que o próprio nome convoca.
O movimento efetuado pela arte, da entrada do nome dura cerca de cinco segundo, e mais três
segundos são utilizados para que a imagem final com o nome do programa componha a tela.
A velocidade com que os elementos da arte utilizada na vinheta se compõem também se
relaciona com o ritmo frenético proposto pelo programa, que é apresentado ao vivo.
A trilha sonora utilizada na abertura é a mesma da sua estreia, e foi composta pelo
maestro Mario Boffa Júnior, a pedido da emissora. O som é grave e enérgico, e ajuda a
compor o clima de alerta, como salienta Schiavoni:
O ritmo acelerado da música contribui para criar o efeito de sentido de urgência, de
pressa, de “corrida contra o tempo”. [...] No final da vinheta, quando a logomarca do
telejornal já está na tela, a diminuição da velocidade das imagens (paralelogramos
achatados) é acompanhada por um contínuo sonoro. É interessante destacar a
questão do “contínuo”, porque as imagens não chegam a se estabelecer, ou seja,
fixar-se na tela, apenas diminuem o ritmo. O mesmo acontece com o som.
(SCHIAVONI, 2007, pgs. 78 e 79).
Datena, o principal condutor do programa, entra em quadro ocupando o cenário
do programa, que é configurado sobre projeção em chromakey. Telas de televisões se colocam
em profundidade, deixando o apresentador em uma perspectiva evidenciada, que sugere
liderança e autoridade. Do centro, Datena controlaria o que está ao seu redor - entrada de
repórteres e imagens ao vivo e reportagens gravadas.
As três possibilidades de enquadramento de câmera em que Datena executa sua
performance no estúdio revelam modos simbólicos do apresentador exercer este controle.
Pelo lado esquerdo aparece uma grande imagem aérea e noturna que mostra a cidade
iluminada. Ao centro temos uma visão em profundidade em que aparecem mais telas com
imagens da logomarca do programa. Ao lado direito, onde continua o plano de fundo do
cenário anterior, tem-se ao fundo um painel composto pelo o que seria telas de TV, que juntas
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formam uma só tela maior. É nessa direção também que Datena interage com uma tela virtual,
que desce ao seu pedido em algumas matérias.
Figura 2 - Brasil Urgente nacional: cenário
O esforço para manter um comportamento comedido e o vestuário formal são
elementos que dialogam com as preferências estéticas dos telejornais convencionais. Este
apelo à sobriedade funciona como argumento às premissas de compromisso, seriedade e
isenção valoradas pela atividade jornalística. Ao mesmo tempo, Datena permite-se amenizar
essas características no texto verbal, quando utiliza uma linguagem mais direta e coloquial
para se referir ao telespectador e à própria equipe. Utiliza gírias, expressões da sabedoria
popular e algumas frases que utiliza com frequência adquirem efeito de bordão, como por
exemplo “me dá imagens”.
Datena usa gírias, apelidos e expressões da sabedoria popular como estratégia
para se aproximar dos modos de comunicar das classes ditas populares, como se desejasse
romper com os paradigmas de formalidade construídos pelo telejornal. O programa é ao vivo,
e ao inserir estes diálogos como imprevistos, ocorridos à naturalidade, Datena convoca o
telespectador a entrar na esfera da produção, do bastidor, no intuito de que ele se “familiarize”
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com o que vê. Em consequência, tais estratégias simulam os efeitos de instantaneidade,
verdade e transparência.
Datena comporta-se como um guardião da moral da sociedade, prometendo ser
duro e incisivo com aqueles que desejam perturbar esta ordem. No site institucional da
emissora, é caracterizado como um profissional famoso por ser “polêmico” e não ter “papas
na língua”, ou seja, disposto a dizer a verdade independentemente das consequências que isso
possa trazer. A postura de revolta e indignação adotada pelo apresentador está vinculada a,
segundo a sua postura inicial, situações que abalem a moral e os bons costumes, ou que
revelem dificuldades do cenário político-econômico do país. Datena é portanto, o principal
condutor do programa e o modo como este programa constrói uma experiência de gênero está
fortemente vinculado à sua performance. Observamos como em duas situações específicas ele
interage e quais os elementos que se conectam à esta conduta, e convocam uma específica
situação comunicativa, produtora de sentidos.
A) Edição 23/11/2012
O apresentador anuncia, como cabeça de reportagem, a entrada de cenas de um
assassinato brutal, ocorrido “em plena luz do dia”. Exibe-se uma nota coberta nota, com
narração do repórter Getúlio Costa. O crime acontecera na cidade de Macapá, em 2012, e só
agora o acusado teria sido preso. As imagens apresentadas pertencem a uma câmera de um
estabelecimento comercial localizada diretamente sob o local do crime. A mulher está de
costas, próximo à entrada do estabelecimento. O homem se aproxima e desfere facadas nas
costas da mulher. Ela agoniza no chão, o homem vai embora e uma criança passa correndo, ao
lado da mulher caída. A imagem do momento do assassinato é exibida com detalhes e sem
efeito de sombreamento, cortes ou efeito embaçado, que dificulte ou atenuasse os detalhes dos
golpes de faca. Enquanto o repórter narra a cena e dá informações sobre a prisão do acusado,
a cena exata em que ocorre o ferimento fatal é reprisada no mínimo cinco vezes.
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Figura 4 – Brasil Urgente nacional: câmeras registram assassinato
Após a exibição, o apresentador comenta:
Datena: “A gente que é contra mostrar isso aí na televisão. Eu acho que é importante você
mostrar isso na televisão pra você ver o que tem, o que tem de gente má, ruim, bandida, e que
merece um, um cara que mata uma mulher desse jeito, merece outra coisa que não seja pena
de morte? [...] Você não acha que esse cara tem que ser mostrado, pra gente ver que nesse
país tem gente que merece pena de morte? Ou não, ou você acha que não? Isso aí ele tá
matando a mulher como se fosse um porco, a coitada da menina grávida de quatro meses!”.
Embora faça a ressalva de que o programa é “contra” a exibição de imagens
fortes, Datena trata de legitimá-la pelo debate que ela é capaz de provocar, e que é de
interesse do programa em discutir. Embora no discurso o apresentador desmereça as cenas,
são elas que possuem o poder de endossar seu discurso de que a barbárie é a consequência
fatal de um não ordenamento moral do sistema judicial, ou melhor, da não redução da
maioridade penal, assunto que ele na sequência emenda.
A força com que a vítima é apanhada, o corpo ensanguentado, a frieza do
assassino que desfere golpes de facas, a repetição exaustiva da cena. Todos estes elementos
comungam ainda com as estratégias do grotesco e do sensacionalismo, como se fossem
necessárias para endossar argumentos e discussões seguintes capitaneadas pelo mediador
principal. Entendemos aqui, que provocar a sensação de angústia e choque no telespectador é
uma estratégia que conecta às formas ancestrais de contar histórias de crime e polícia,
inauguradas pela literatura e pelo cinema. Nas regras do telejornalismo convencional,
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qualquer deslize que nos coloque fora da objetividade e da formalidade estética extrapola o
gênero, colocando em outro lugar, em geral depreciativo. O que nos interessa aqui não é
depreciar, mas sim, reconhecer que esta estratégia nos conecta culturalmente a um modo de
contar histórias, a um contexto contemporâneo de violência, e na disputa de poderes entre a
Instituição Policial, Governo e Judiciário, onde com força insere-se a tribuna do
telejornalismo, enquanto mediadora dessa experiência. Vejamos que, ao escolher esse tipo de
situação, Datena subtrai as consequências éticas, com se qualquer tipo de censura ou rechaço
à exibição fosse pouco diante do apelo político que ele estaria tentando levantar, que é o de
medidas mais severas de combate à criminalidade afim de que se reestabeleça a ordem e o
bem estar social.
Assumindo esta postura, Datena marca também um posicionamento que se
constrói no limite do gênero. As situações de crime e ação policial seriam reveladoras destes
problemas sociais maiores, e de acordo com os argumentos de Datena, apenas programas
dedicados a estes temas teriam condições de levantar esse debate. Conforme tenta justificar na
mesma edição, em sequência à exibição das cenas do assassinato, caberia à reportagem
policial, desde sempre, revelar “verdades inconvenientes” porém necessárias e importantes
para se problematizar a sociedade e seu cotidiano.
Datena: Eu acho que tem que mostrar, o Nelson Rodrigues dizia isso! Se você empurra a
sujeira pra debaixo do tapete, você não mostra os podres da sociedade. Expondo os podres
da sociedade, e o Nelson Rodrigues além de dramaturgo, durante muito tempo foi repórter
policial, e sabia bem o que é isso, e é por evitar de falar a verdade que na questão da
segurança pública nos chegamos a esse ponto. [...] O objetivo é chocar? Não! O objetivo é
mostrar que nós temos assassinos desses aí! Porque a gente fica com moleza, moleza, moleza,
falando manso, falando manso, falando manso, e de repente essas bestas-feras cruzam com
alguém da minha, da sua, da nossa família.
O momento específico em que o assassino desfere facadas na vítima é o alvo da
reprise da cena. Quando a imagem da cena sai da tela e fica apenas em Datena no estúdio, o
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apresentador reclama e pergunta à equipe porque eles tiraram a imagem. Faz uma pausa e
afirma “Porque tá muito forte?”, como se tivesse recebido essa justificativa do ponto
eletrônico para retirada da imagem e responde: “É, tá muito forte mas tem que mostrar! Ah,
então sabe o que nós podemos fazer? [aumenta o tom de voz]. Mostra...er, desenho da Xuxa
aí, pô!”. Desse modo, Datena, enquanto apresentador e âncora, materializa a estratégia maior
de construção do programa que é o de buscar popularidade a partir do uso de certos códigos
vinculados à cultura popular, mas negociando fortemente com certos valores e estratégias
convencionadas pelo telejornalismo brasileiro para gerar o efeito de credibilidade,
compromisso e seriedade.
B) Edição 07/12/2012
Nesta edição, a manchete que foi abordada em todo o programa foi sobre um idoso
que havia sido espancado em um assalto. Na cabeça da reportagem, o repórter narra o fato:
Repórter Lucas Martins (em off):
Aos 79 anos, este senhor, que conquistou o
pouco que tem à base de muitos calos nas
mãos, e rugas no rosto, foi espancado por dois
covardes que queriam tomar do idoso o que ele
não tinha.
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A reportagem inclui entrevista com a vítima, com o vizinho que ajudou a socorrê-
lo, fotos dos acusados, passagem do repórter em frente à Delegacia, e termina com o
depoimento bastante emocionado da irmã da vítima, uma senhora que ainda não tinha visto o
irmão após o ocorrido. Ela vê o seu estado pelas imagens registradas pela equipe. A imagem
volta para Datena no estúdio, que comenta:
Datena:
Tem gente que ainda faz
apologia ao crime. Tem
gente que ainda acha que
ser bandido eh legal. [...]
Então vocês, babacas,
canalhas, safados, sem
vergonhas, que fazem
apologia ao crime, que
gostam de adorar a
criminosos, fazer apologia a
criminoso, né, ficar
defendendo por ai,
brincando, com criminoso, e
fazendo musiquinha, ou
coisa parecida pra fazer
apologia ao crime, vocês
também são responsáveis
por esse tipo de canalha que
faz esse tipo de coisa, olha
aí! Olha aí o que fizeram
com o velhinho!
Descrição:
Datena se exalta e
aponta o dedo para o
telespectador,
direcionando o
discurso a quem “faz
apologia ao crime”.
Termina apontando o
dedo para a tela que
teria a sua frente, que
estaria mostrando a
imagem em close do
rosto do idoso
machucado.
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Em seguida, pergunta ao telespectador “que tipo de pena merece um cara que faz
isso com um velhinho”, e pede à equipe que coloque em tela o número do “Orelhão do
Latino”, que seria o número disponibilizado pelo programa para que o público mande
mensagens de texto através do celular. Mais tarde, aparecem mensagens na legenda em crawl,
no rodapé da tela: “pena de morte - AM; pena de morte - SP; pena de morte - RJ; uma surra -
ES; pena de morte - BA; prisão perpétua - AM”, entre outras mensagens exibidas ao longo do
programa, que teriam sido enviadas pelos telespectadores.
No papel de apresentador em comando de uma atração de grande audiência,
Datena simula a ideia do debate, da discussão, organizando uma espécie de plebiscito
simbólico para articular a discussão sobre um tópico que posiciona-se a favor. Para isso, a sua
postura exaltada diante da tela é o principal artifício de validação deste debate. Datena
aumenta o tom de voz, a feição remete à raiva, indignação. O telespectador pode ter a
sensação de que ele perderá os limites, que a raiva pode lhe levar a alguma atitude
inconsequente, que de fato, a tela pode ser uma “caixinha de surpresas”. Tal estratégia aparece
aqui como um artifício para validar o debate – a situação do personagem representa uma entre
as milhares de injustiças que aconteceriam e a redução da maioridade penal seria a solução.
Ao mesmo tempo em que o exagero na performance de Datena - pelo corpo e pelo discurso –
extrapolam a sobriedade e isenção esperada pelo modelo convencional do jornalismo, e
contrastam com o seu traje formal, Datena abre brechas para através dessa “informalidade”
construída, simular a construção de valores simbólicos concernentes ao campo jornalístico
como o de verdade e de interesse público.
A ocorrência da performance em transmissão direta também funciona aqui como
um recurso que ajuda a imprimir um efeito de transparência e veracidade ao discurso verbal
de Datena, que é validado também pelo efeito de naturalidade imprimido pelo uso da
linguagem coloquial. Segundo Juliana Gutmann (2012), a transmissão direta, ao lado da
performance dos mediadores e dos elementos de composição audiovisual, funcionam no
telejornal contemporâneo como estratégias para produção de sentido de interesse público e
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atualidade. No caso do Brasil Urgente, a performance do mediador principal se orienta pela
retórica da indignação no discurso verbal.
A transmissão direta ajuda a legitimar o que está sendo noticiado, pela
possibilidade do tempo real. Os efeitos de audiovisual revelam uma especifica articulação
“entre o dizer e o mostrar” (GUTMANN, 2012, p. 61) No caso deste programa, revela um
esforço em mostrar-se alinhado às possibilidades tecnológicas e o seu espectro de
modernidade, que orientaram modos de se fazer telejornalismo no Brasil.
Embora se verifiquem como tendência no telejornalismo contemporâneo, a partir
de quanto as potencialidades visuais da imagem ampliam seu aspecto valorativo na
construção e legitimação da notícia (GUTMANN, 2012) tais artifícios se constroem aqui no
Brasil Urgente também como um reforço a um apelo sensacional gerado por alguma dessas
notícias, potencializando efeitos de repulsa, choque, espanto, tensão, curiosidade, admiração.
Considerações finais
Não foi a nossa intenção realizar uma análise propriamente estética do Brasil
Urgente, mas sim, mostrar como a Estética é um elemento importante em um contexto de
análise cultural de gênero, onde procuramos entender as estratégias que viabilizam a condição
de existência de tal programa, em contextos específicos.
A análise das duas situações nos mostram que as chaves estéticas acionadas pelo
melodrama, pelo grotesco e pelo sensacionalismo aparecem aqui como lugares onde podemos
ver algumas das referências de gênero advogadas pelo programa, operadas enquanto
estratégias. O suspense, a angustia, o choque, aparecem como artifícios centrais de um
formato que ao mesmo tempo em que resgata modos historicamente construídos de fazer da
narrativa policial, também nos coloca em cheque com valores e expectativas contemporâneas
do fazer jornalístico na televisão brasileira.
Nesse sentido, os elementos suscitados pelas cenas em análise nos mostram que
Brasil Urgente disputa pela manutenção de um discurso baseado em valores tradicionais da
cultura brasileira, num movimento complexo entre tradição e inovação. Através dos recursos
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de tecnologias, negocia com os padrões que convencionaram o telejornalismo e que
configuram tendências contemporâneas no fazer televisivo para legitimar-se enquanto
jornalísticos e enquanto produtos televisivos modernos. Mas ao mesmo tempo, sobrepõem
esse uso ao poder do discurso verbal empregado pelo apresentador, que recorre a uma
performance apoiada nos códigos que historicamente remetiam aos programas populares,
dedicados aos temas do mundo-cão. Reforça assim, a condição crucial que a oralidade tem
enquanto uma das mais fortes matrizes do modo de fazer televisivo brasileiro. Assistimos a
um movimento que fez o depreciado mundo-cão se transformar em outros tipo de programa,
com estratégias reformulas, não necessariamente novas. E ainda, que a experiência sobre o
que significa ser um noticiário policial no Brasil requer o entendimento deste programa como
um lugar de disputas e tensões entre valores e modos de fazer, nos campos jornalístico,
televisivo e cultural.
Referências
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