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ESSE TREM É GENTE
de Samantha Vitena,
com importantíssimas contribuições
dramatúrgicas de Luis Felipe, Cícero e
Nicolas, e outros adolescentes malabaristas
dos farois da cidade deOsasco,
e Pena Branca, José Wilson e Verde Lins,
repentistas e emboladores
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Os personagens de Esse Trem é Gente são, a saber:
Narradores/Músicos – peças chaves na história, guiam os olhos, os sentimentos e a
imaginação do público
Humberto/ Mayara – menina negra, a sexta filha de seis meninas, tem mania de saber de
tudo. Mayara nasce menina, mas vive fazendo malabares nos faróis, como menino. Ela
começa a trabalhar nos faróis para ajudar a mãe em casa, ainda que Perene, a mãe, recuse
sua ajuda o tempo todo. Ela diz que seu nome é Humberto, e todos a chamam de Beto. No
final da história, se descobre que ela sempre foi uma menina, na verdade.
Jackson e Guilherme - irmãos – irmãos que trabalham nos faróis da cidade de Osasco.
Jackson é corajoso e sonhador, mas responsável. Guilherme é mais inocente e vê nos
malabares diversão e aventura. É Guilherme que tem a ideia de levar os amigos para
trabalharem nos trens. Eles têm Humberto como melhor amigo.
Mãe, Perene – muito trabalhadora, quer um futuro diferente para as filhas, detesta o fato
de não conseguir sustentar suas filhas sozinha – tendo em vista que seu marido é
caminhoneiro e mal passa tempo em casa –, mas resiste à ajuda que suas filhas oferecem.
Irmãs (Cleidi, Maria, Beta, Bisa e Ajene) – muito diferentes umas das outras, mas tendo
em comum o amor pela família e por Mayara, por ser a caçula. Beta é uma das mais velhas
e a irmã mais próxima de Mayara/ Humberto.
Elementos fantásticos:
1. Homem que rouba carne e tem gasolina na bunda.
2. Palhaço do mal
3. Palhaço do bem
4. Pessoas dentro dos carros, nos farois
Observações
Sobre a estrutura da peça:
Há a indicação de uma possível leitura de texto cênico/ rubrica.
As rubricas que estão sugeridas para interpretação/ leitura estão em itálico.
As rubricas que não estão sugeridas para interpretação/ leitura estão entre parênteses.
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CENA 1 – APRESENTAÇÃO MENINOS NO FAROL
Enquanto se caracteriza, Humberto/ Mayara cantarola a música “Banho de Lua” de Celly
Campello, sem pronunciar as palavras.
Humberto se criou. Se criou mesmo. Não no sentido de se dar comida, de se dar banho, de se
dar dinheiro, broncas e abraços. De se dar. Também nesse sentido, mas principalmente no
sentido de se criar. De se inventar do zero, somente com base na imaginação, com base
naquilo que outrora pintara e havia tido como bom.
Palco é quase vazio. Somente com Humberto no centro. Ele está com o rosto pintado de
palhaço, de uma forma bonita, mas infantil. Ele tem os cabelos presos pra dentro de um
chapéu de palhaço meio sujo. Sozinho no palco, Humberto se encontra sentado e comendo um
lanche de algo barato e bebendo algo para acompanhar. Percebe-se que está com muita
fome; é hora do almoço. Não tem comida, arroz e feijão, mas tem comida, um lanche de algo
barato. Tá bom.
(Enquanto come, Humberto tira de dentro de seu chapéu uma sacola (sem tirar o chapéu para
não mostrar o cabelo) e, de dentro dela, pega um papel velho.)
Com base nesse mundo de construção, ele nasceu. Com base no mundo dela.
O papel velho tinha um desenho em tinta, o desenho dele mesmo. Um rapaz forte e bonito. Na
folha, ao lado do desenho, lê-se Humberto.
(Ele olha o desenho, olha para os lados, como quem espera por alguém, guarda o papel e
segue comendo e esperando.)
Nesse dia ele esperou, esperou, e sentiu medo.
(Enquanto comia, ele tirou o chapéu de sua cabeça e seu cabelo caiu pelos ombros, revelando
uma possibilidade de Humberto ser menina.)
Olharam estranho para ele, secaram seu corpo todo, como se seca uma camisa meio molhada
no ferro de passar, como se seca a mão naquela máquina sugadora de umidade, como se seca
uma mulher. Naquele dia ele sentiu medo. Mas eles [os amigos] não demoravam a chegar,
não.
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Humberto: Eles nunca demoram a chegar.
Deu um tempinho, e logo estavam ali, Jackson e Guilherme. Dão uma mordida no sanduíche
de Humberto, que foi dividido com algum receio. Na vida dos três, não se sabe bem quem ali
existia de viver ou existia apenas de existir, de estar lá. Humberto sabia que eles estavam lá,
sempre. Não demoravam a chegar, não.
Era sempre palhaçada. Pra frente e pra trás os meninos iam e levavam uma piada, uma
zoeira; pra frente e pra trás eles levavam brigas e desentendimentos.
Jackson: Eu falei que o pai dele é fazendeiro!
Guilherme: Fazendeiro?
Jackson: Só faz filho! (ri)
(Os três meninos riem e Guilherme muda de assunto)
Guilherme (lembrando): Ô, Humberto! Lembra do outro dia que cê correu atrás da ladrona?
Humberto/Mayara: Eu falei - “Aquela muié ali tá correndo na frente dos carros!”
Jackson (para Guilherme): E você pensa que não, a muié que pagou a mistura pra ele,
acabou de roubar o celular do mano!
Nota-se, então, que dois seres estranhos, porém agradáveis aos olhos, observam toda a
movimentação com atenção.
(Os dois seres, ou narradores, conseguem, enfim, dar seu ponto de vista com relação ao que
viram.)
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MÚSICA 1
Narradores/ Músicos:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
1 kg de bisteca
e o jantar tá garantido
a carne bem novinha
no fogo será cozido
eles, a mãe e os irmãos
pode prestar atenção
nada foi subtraído
mas um segundo depois
a sujeita sai voando
eu não entendia nada
quando vi ela cruzando
todo mundo olhou nela
e o que não era dela
a sujeito ia levando,
será que ela acha
que é assim que se reparte
a fome fala mais alto
nós não estamos em marte
ela é cidadã de bem
em nossas vidas também
outras pessoas farão parte
ela pagou a mistura
mas roubou um celular
isso é mentira
eu não posso acreditar
você preste atenção
a mãe, filho e os irmãos
ela acabou de alimentar
(Meninos interrompem repentistas e explicam novamente a história.)
Guilherme (para Jackson): Não, Jackson! Ela foi roubada! O Humberto (agora falando com
os repentistas) saiu correndo atrás do cara, mas... (é interrompido)
Humberto/Mayara (interrompe): Ele correu, correu, que até saiu fumaça do pé! Eu corri!
Dei umas passadas largas! Estiquei minha mão e estava quase encostando na traseira dele!
…Mas não teve jeito! Não tem como, o cara quando tá no desespero parece que tem
gasolina na bunda!
(meninos riem e continuam conversando)
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Guilherme (para Humberto): Hoje tu tem que me dar quatro real!
Humberto/Mayara: Que, ô!
Guilherme: Tu ta me devendo, Beto!
Humberto/Mayara: Coitado! To devendo nada pra você, não! De inadimplência você não
pode me acusar!
Guilherme: Inadi...quê??? (pausa) Lógico que tá, Beto!!
Jackson: Se ele está falando que não tá, ele não tá, mano! Você não pode acusar ele de...
Humberto (completa a frase): Inadimplência.
Jackson (zoando o a migo): ...você é zoado, mano. Que palavra é essa? Hahaha
Humberto (desconfortável): Que que têm?
Guilherme: Que que tem é que você está me devendo 4 real! E tem que me pagar!
(meninos entram numa discussão/ briga)
Era sempre palhaçada. Pra frente e pra trás os meninos iam e levavam uma piada, uma
zoeira; pra frente e pra trás eles levavam brigas e desentendimentos.
Humberto, sendo criado por si mesmo, tinha cada linha de sua vida em suas próprias mãos.
Ditava o que aconteceria no segundo seguinte e mudava com um estalar de dedos o que havia
acontecido no segundo anterior. Não gostou? Não foi legal? Não foi assim que aconteceu.
Pronto.
(Os narradores estranhos, porém agradáveis aos olhos, continuam a história enquanto os
meninos brigam, se reconciliam, pintam o rosto de palhaço e se preparam para começar o
trabalho.)
(Humberto e Guilherme brigam por conta de dinheiro >> Humberto impõe seu ponto de vista
sobre o que aconteceu >> meninos se reconciliam >> meninos se preparam para terem seus
rostos pintados por Humberto >> Jackson e Guilherme brigam para decidir quem terá o rosto
pintado primeiro >> decidem quem será o primeiro >> fazem o pagamento da pintura a
Humberto >> Humberto pinta os rostos.)
Humberto era o que pintava melhor, talvez por isso tornara-se uma espécie de líder. Era ele
quem pintava os rostos de todos ali, além mesmo dos três. Ele era o fazedor de palhaços.
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Dava briga, dava fila. Ninguém queria esperar. Ainda que Humberto cobrasse 1 pagamento
por obra de arte. “Ele nem cobra a tinta!” Diziam. E Humberto seguiu sua vida assim. Todos os
dias, a mesma coisa diferente. A mesma porque era pintar as caras, equilibrar as bolinhas, dar
bom dia boa tarde boa noite e ganhar seu pagamento. Diferente porque cada dia era um dia, e
às vezes o que rolava era dar boas bolinhas, equilibrar as caras e pintar o dia a tarde e a noite,
se é que você me entende.
MÚSICA 2
Narradores/ Músicos:
um emaranhado de dedos
de pele, perna e voz
um ranca rabo sem fim
é assim que vive nós
três moleques, três amigos
enfrentando os perigos
que existem nos faróis
conhecemos uns aos outros
melhor que nós, legal
nunca fecho meus dois olhos
vivemos na moral
é melhor não vacilar
pro meu ninguém tirar
e eu não vir a passar a mal
CENA 2 – UM DIA COMUM NO FAROL
Humberto tinha seu jeito de criar. Tinha o traço, o peso do dedo, a cor certa. Ele era o fazedor
de palhaços: sabia o que estava fazendo!
Humberto pra Guilherme: Cê fica bem assim: cândido!
Jackson: Que porra de cândido? Esse rosinha de menina na minha cara!
Humberto: É a melhor cor que tem pra trabalhar no farol. Olha pra mim! Cândido! As
pessoas tudo olha pra mim e (faz gesto de que está recebendo um pagamento)... Cândido!
Se é rosinha de menininha eu não sei. Eu só sei que é...
Guilherme e Jackson ao mesmo tempo, com diferentes intenções: ...Cândido!
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MÚSICA 3
Narradores/ Músicos:
mas como ninguém tirasse
o que é dele é meu também
e tudo o que ele tem
eu tomo como meu
veja a vida nos faróis
cada um fala por nós
mas ele é ele e eu sou eu
três, quatro, cinco, cem dias
e mesmo até cem anos
os meninos e os palhaços eu vejo
e não me engano
todos dias são iguais
todos tem os seus sinais
pra viver o cotidiano
Humberto (puxando conversa): Se tem uma coisa que é fácil de arranjar é bolinha, hein?
Jackson: Dá pra usar de tudo também!
Guilherme: É papel, meia, pedaço de blusa!
Humberto: Limão.
Guilherme: Limão é bom!
Jackson: Limão é bom, bom.
Humberto: Tem de plástico, de isopor, de metal.
Guilherme: Mas a melhor mesmo é a Wilso, tenho 3.
Jackson: 3, tadinho. Tenho 5, fi.
Jackson: 7,50 o kit bem ali.
Guilherme(pegando uma garrafinha de plástico cheia de moedas): Tenho 4, cê fecha?
Jackson: Farol ta mó ruim. Tenho 1 e pouco só.
Humberto (tirando a sacola de dentro do chapéu, mas sem tirar o chapéu para não
mostrar o cabelo): Relaxa, fi. Tenho bolinha que sobra aqui na minha sacola. Já disse que
ela é mágica?
Jackson (tirando sarro): Só todo dia.
Humberto começa a tirar bolinha por bolinha. As bolinhas não acabam, e Humberto vai
tirando e tirando, como um truque de mágica, aquele do lenço, sabe? O lenço sem fim. Ele tira
e tira bolinhas. Tantas que formam um mar. Jackson e Guilherme assistem ao show,
impressionados.
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Humberto: Se tem uma coisa que é fácil de arranjar é bolinha, hein? Isso é inegável,
inequívoco! Vão lá, manés. Pó pegar.
Jackson (imitando o amigo): Inegável! Inequívoco!
Guilherme: De onde ele tira essas palavras?
(Jackson e Guilherme pegam algumas bolinhas).
Humberto: Depois devolve, hein?
Humberto, Jackson e Guilherme, já devidamente caracterizados, executam seu trabalho de
malabarismo com primazia. Brincam com as bolinhas ao redor e é evidente que há uma lógica
na organização de seus movimentos, e na ordem de quem executa os movimentos primeiro e
depois. Neste momento, Jackson e Guilherme executam o trabalho enquanto Humberto se
senta mais atrás, observando e esperando sua vez. Eles são extremamente habilidosos com as
bolinhas e impressionam as pessoas que passam pelo local, que lhes dão um pagamento.
(Obs.: O pagamento, ao invés de em moedas ou notas reais, pode ser representado por aquilo
que os meninos esperam conquistar/ comprar com o dinheiro. Então, uma pessoa entrega, por
exemplo, uma parte de um ingresso pro parque. Outra entrega uma bolinha de malabares
nova. Outra entrega uma casquinha de sorvete. Outra entrega a outra parte do ingresso do
parque. Outra entrega um par de cadarços de tênis da Nike. E assim por diante.)
(Conforme as pessoas vão entregando os pagamentos, os meninos começam a usar os objetos
como adereços circenses. Os ingressos para o parque, por exemplo, podem virar um jogo de
cartas. Os meninos podem usar os cadarços de tênis da Nike, com os tênis nas pontas, como
objeto de manobras circenses, e por aí vai.)
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MÚSICA 4
Músicos/ Narradores:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
sabe como iniciar
firmar, levar e concluir
e assim foram os que vieram
e os dias que hão de vir
com tudo reinventando
os meninos vão criando
um mundo para se distrair
(Humberto entra no repente, feliz
e poderoso)
por que o mundo não é mole?
cheio de agilideza
sem ter que tomar cuidado
com os feras da esperteza
mas com tanta sagacidade
num mundo cheio de maldade
precisa de habilideza
REFRÃO (Humberto canta
também refrão)
CENA 3 – PALHAÇO DO BEM X PALHAÇO DO MAL
Teve um dia que foi tudo igual e tudo diferente.
Estão desenvolvendo seu trabalho quando um palhaço gigante chega. Diferente dos meninos,
ele não está só com o rosto pintado, mas sim com um figurino completo de palhaço: sapato,
luvas, calça, suspensório, nariz, cabelo, chapéu, máscara e uma maquiagem impecável. Ele
chega com seus pés enormes e observa os meninos trabalharem. Os meninos observam o
palhaço, desconfiados, mas continuam seu trabalho. Impressionam as pessoas, e quando elas
vão fazer o pagamento, o palhaço gigante, com suas mãos gigantes, pega o pagamento que
devia ir para os meninos.
Os meninos se juntam em silêncio, e caminham, juntos, para contestar a postura do palhaço.
Humberto permanece sentado mais atrás, observando. Antes de começarem a falar, o
palhaço se pronuncia.
Palhaço do mal: Nem vem, nem vem! Tenho família, preciso levar o dinheiro pra casa, pra
minha família.
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Jackson: Quê, tio!? Nós tem família também. Nós tem que cuidar da nossa.
Guilherme: Cada um cuida da sua. O farol ta aí pra todo mundo.
Palhaço do mal: Pra todo mundo que for esperto, Mané!
Jackson: Mané é o caralho!!!!
Guilherme: Ou tu cola direito na área…
Jackson (terminando a frase de Guilherme): Ou rapa fora daqui …Mané!
Neste exato momento, o palhaço lança um soco forte com sua mão enorme no peito de
Guilherme, que cai, e logo levanta.
Guilherme: O negócio não vai ficar assim não! Chega aí, Beto, chega aí!
(Humberto se aproxima.)
Guilherme: Esse cara aqui logo me bateu aqui, ó! Me bateu e queria me tirar do farol.
(Humberto, como que por mágica, briga com o palhaço gigante e o vence. O palhaço,
derrotado, se desculpa.)
Humberto (imobilizando o Palhaço do Mal): Qual é as ideia, ô?
Palhaço do mal: Ei, ei! Ta doendo aqui.
Humberto: É só se redimir!
Palhaço do mal: Que?
Humberto: Pede desculpa pa nóis.
Palhaço do mal: Desculpa aí. Vou pra outro canto. Deixo vocês em paz.
Humberto (soltando o Palhaço do mal): Segue seu rumo. E se tu pisar o pé aqui de novo
não vai ter perdão.
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MÚSICA 5
Narradores/ Músicos:
Todo os dias, sem jejum
O dia passava assim, comum
Virava e mexia tinha um zum zum zum
Mas nada mudava pra moleque nenhum!
Guilherme: Ô, Beto! Não foi assim, não! Você esqueceu do tamanho do palhaço? Nem que
fosse 10 Humberto dava pra derrotar ele! Hahahaha
Narradores/Repentistas:
Ô-ou! Venha você me explicar, venha, pois esclarecer!
A história é aquela, por ser outra, que além de outra também é aquela?
Venha, Zé Roela, sem churumela, de maneira singela, com muita cautela,
venha, dê trela, e me conte o que é que foi que aconteceu!
(Humberto reconta a história.)
Humberto: Tá certo, tá certo
, tu tava lá apanhando do palhaço, quando me chamou. Daí eu fui chegando, mostrando
pra que que eu tinha vindo…
(Jackson e Guilherme se divertem vendo Humberto recontando a história e interpretando os
personagens)
Humberto: Daí eu tava indo bem, tal, dei o primeiro socão …Paaah!
Jackson (irônico, zoando com o amigo): Uhummm
Humberto: Dei logo um outro socão…
Guilherme (irônico, zoando o amigo): Uhum, pode pá!
Humberto (admitindo): Tá bom, tá bom… O palhaço era mais forte que eu. Cês viram o
tamanho da mão dele? Tinha luva, sapato, gravata, nariz, boca, olho, tudo! E ele era
grande, extraordinário!
(pausa)
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Humberto (empolgado, contando a história e gesticulando): Mas daí cês viram! Tirei minha
sacola do chapéu, como quem não quer nada, dei uma chacoalhada, e cês viram? Veio
aquele outro palhaço! Ele não tinha uma mão enorme, nem pé, nem nariz, mas ele tinha
um puta cabeção! Esse palhaço do farol, mano, tinha mente de tocar dentro dos corações.
E quando ele toca, tu faz o bem, pode pá? Tu raciocina, ganha força e estratégia para fazer
o bem.
E daí foi foda, mas eu consegui, mano.
(Humberto, como num flashback, briga com o Palhaço do Mal. A briga é mais feia e mais difícil
e Humberto se machuca bastante, mas, no final, vence o Palhaço do Mal e o imobiliza, como
tinha contado anteriormente. Os repentistas narram a briga com seus versos.)
MÚSICA 6
Narradores/ Músicos:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
da uma olhada só
ele tentou uma entrada
o outro fez um giro
e daí não houve nada
ele vai tentar de novo
mas quem engana o povo
se perde no meio da estrada
a atitude desse aí
de ética não tem nada
de direita de esquerda
recebe uma cruzada
tá perto de acabar
antes dele levantar
a luta ta encerrada
Jackson (terminando a narração): E daí nois ficou de boa.
Todos os meninos (concordando com a nova versão da história): É, daora! Foi assim
mesmo, pode crer.
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MÚSICA 7
Narradores/ Músicos:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
Isso é história, é ladainha
Pra mim é papo furado
A lembrança prega peça
Isso eu já to ligado
Para caber no presente
A memória, minha gente
Vai remexer o passado
Um software atualizado
No hipocampo da cabeça
O que já vivemos ontem
Pra que a mente não esqueça
Nossas vidas nos faróis
Quem irá cuidar de nós
Pra que a gente não padeça?
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CENA 4 – NÃO É A MESMA COISA SEM ELE
Jackson (se referindo aos machucados de Humberto): Tu ta todo estragado, hein?
Guilherme (zoando de leve): O palhaço acabou com você!
Humberto: Pra salvar sua pele, né, seu...?
Guilherme (se desculpando): Mal, Beto! Valeu!
Humberto (indo embora, e sentindo dores abdominais): Falou! Falou!
Guilherme: Vê se traz meus 4 real!
Humberto: Falou, pivete! Vai sonhando!
Jackson: Tu cola aqui amanhã?
Humberto: Tem algum dia que eu não colo aqui?
Guilherme: Tem!
Humberto: Que dia, fi?
Guilherme: Todos! Hahaha
Humberto: Vai te catar!
Guilherme: Então aparece!
Humberto: Apareço se eu quiser aparecer.
Jackson: Tu não vai aparecer, né?
Humberto: Eu sempre apareço.
Guilherme (sabendo que algo estava errado): Têm sempre os dias que você some.
Humberto: Eu vou aparecer.
Jackson: Não, tu não vai aparecer.
Humberto (se retirando, com dores abdominais): Falou, falou!
Jackson e Guilherme: Falou!
Humberto sumia vez ou outra. Depois desse dia do palhaço, Humberto ficou se achando o
heroi. Segundo o que ele contara, ele teria sido o responsável pela execução e/ou humilhação
do inimigo. Mas naquele dia ele também sentiu dores. Não entendeu se era ou não por conta
de todos os golpes que levara. A questão é que doía. Muito. Na região da barriga. E Humberto
se retirou.
(O palco se divide em dois.
Em uma metade, se encontra Humberto sozinho, em frente à porta da sua casa, mas
enrolando pra entrar. De outro lado, encontram-se Jackson e Guilherme, se preparando para
trabalhar no farol.)
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Em frente a sua casa, a dor de Humberto cutuca como quem diz "Ei, eu estou aqui! Ei, eu sei
quem você é!" Naquele momento ele não conseguia ser aquele que havia criado. Humberto,
naquele momento, não era o heroi, o líder, o talentoso e o salvador. Naquele momento, ele se
lembrou, por um instante, de quem era. Um instante.
(A fala abaixo é dividida em diferentes intenções. Há momentos em que Humberto fala com
orgulho de ser Humberto – sublinhado. Há momentos em que ele fala com dor, por saber
que não é Humberto – negrito.)
Humberto:
Diabo de dor! Que me aflige em horas indevidas. (pausa) Humberto, esperto, desde que
nasci. Na escola, era gramática, biloiogia, giografia, matimática, história, português,
lituratura, até química, física, ingrês. Sempre fui Humberto, esperto. Todo dia. Hoje
inclusive. A gente se vira como pode. (pausa) Diabo de dor! Que me aflige em horas
indevidas. Hoje, inclusive. E amanhã? …Amanhã mais uma pra resolver, pra sarar, pra
cuidar. Humberto, cuidador. Hahaha Parece que nasci foi pra isso mesmo. Diz que é
genética. Coisa de super herói. Diz que não é pra qualquer um. Que tem aquelas que
foram escolhidas, que foram escolhidas com o dedo. (pausa) …Você! Diabo de dor! Que
me aflige em horas indevidas. Eu fui escolhido. Todo dia. Hoje inclusive. E amanhã.
Ouve-se uma voz de dentro de casa: Vem, criança! Vem cá pra dentro, vem! Comida já tá
pronta!
Humberto (tira o chapéu, deixando o cabelo cair, pega sua sacola na mão e, em seguida,
entra em casa): Já vou, já, Beta!
(Repentistas narram mais uma parte da história em repente/ embolada. Enquanto os
narradores narram, Jackson e Guilherme, na outra metade do palco, pouco podem entender
sobre o que acontece com Humberto, mas sabem que ele não demora a chegar, não. Pintando
os rostos um do outro, eles brincam com as máscaras que acabam criando um no outro, e
confirmam, mais uma vez para eles mesmos, que não têm talento algum para pintura.
Jackson e Guilherme sentem falta de Humberto, que já está sumido há um tempo. Sem ele, o
farol é só o farol.)
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MÚSICA 8
Narradores/ Músicos:
quando eles ficam juntos
noite, tarde, dia
não há ninguém que impeça
dos menin’a ousadia
a vida também é brincar
vendo o mundo girar
num reino de fantasia
tudo era só alegria
todo minuto e hora
mas a tristeza bateu
quando Humberto foi embora
sem Humberto com a gente
coração soluça e chora
CENA 5 – DE VOLTA PARA O FIM
Humberto sabia que não devia demorar a chegar, não. E por isso, voltou. Mas não se passa
tanto tempo longe assim. Não se some. Não se passa tanto tempo longe assim, ainda mais
devendo grana. Saíram no tapa.
Jackson: Cê some, mano!
Humberto: Eu to aqui.
Jackson: Cê some, cê larga a gente e some.
Guilherme: Ainda me deve os 4 real!
Humberto (para Guilherme): Cê tá feio, hein? Que porra é essa na sua cara?
Guilherme: Vai me tirando, Beto…
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CENA 6 – RECOMEÇO ARRISCADO
MÚSICA 9
Narradores/ Músicos:
como num pulo dum gato
daqueles que é bem ligeiro
pedra preta, pedra branca
como um vento passageiro
os meninos dão um pulo
como se fosse um mergulho
pra ganhar algum dinheiro
3 crianças amigas
Trago na minha lembrança
Sempre juntas na infância
Cheias de sonhos e esperança
De adolescentes para adultos
Boas carreiras avança
Jackson, Guilherme e Humberto
Crianças que têm talento
Da vida eles mostraram
Que tem o conhecimento
Os mini heróis da vida
Na nossa pátria escondida
Num giro do pensamento
Jackson e Guilherme
Com os olhos brilhantes
E tinha também Humberto
Que queria ser importante
…E pretendia chegar
Num lugar interessante
Crianças tristes e felizes
Pouca maldade e muito receio
Quando foi um certo dia
Nos pés delas faltou freio
Combinaram pra sair
Na manhã para um passeio
Um clima azedo de “estamos na merda”. Esse foi o dia em que tudo mudou.
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(As crianças caminham para iniciar o trabalho no trem; esse é o primeiro dia delas lá. O clima
está tenso, mas eles caminham brincando e fazendo malabares utilizando limões ao invés de
bolinhas.)
Guilherme (jogando o limão pra Humberto): Domingo, segunda…
Humberto (jogando o limão pra Jackson): terça, quarta…
Jackson (irritado, jogando o limão de volta pra Guilherme): Que brincadeira chata, coisa
de criancinha.
Guilherme (ignorando o irmão): Quinta, sábado…
Jackson: E nem sabe falar direito… É sexta, Guilérme!
Humberto (tenso, mas querendo melhorar o clima): Tá bom, Jackson… Tu tem que
adivinhar qual é o dia.
Jackson: Pra que, oxi?
Guilherme (tranquilo): É a brincadeira, Jackson…
Jackson: Sexta.
Guilherme: Acertou.
Humberto (como um presente por ter acertado): O que você quer da vida?
Jackson (brinca com os limões/ faz malabares): Da vida? (pausa) Quero nada, não.
Humberto: Eu quero um suco de limão.
Jackson: Suco de limão como?
Humberto: Suco de limão ué. Mó bom. Refrescante.
Guilherme: Com açúcar?
Humberto: Claro, pô. Açúcar e canudinho.
(pausa)
Humberto (animado, apesar de nervoso, tenso): É hoje que nois dá início a mais uma
fase da nossa carreira! Hahaha
Guilherme (nervoso, mas tentando animar): Vai ser loko, tio!
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Jackson (descrente): Vai ser loko se der certo, né? Porque eu acho essa ideia muito torta.
Nois tava lá, tava tudo certo no farol.
Guilherme: É, tudo certo não tava, né?
Humberto: A gente TEVE que sair, Jackson, já esqueceu?
Jackson: E tem como [esquecer]?
Guilherme: É, me lembro direitinho quando a primeira gota de chuva caiu.
Humberto: Foi logo um derrame, não foi gota não.
Jackson: E nunca mais parou.
Humberto: Eu sabia que ela ia vir, eu sentia. Alguém já tinha me falado. E quando veio.
Jackson: Ficou. E todo mundo se fechou.
Guilherme: Não tinha truque nem malabar que fazia o povo se abrir.
Jackson: Nem Palhaço do Bem…
Humberto: Nem Palhaço do Mal.
Guilherme: Não tinha um que abria a janela. Era como se não tivesse carro na rua. Era
como se eles nem estivessem lá.
Jackson: Era como se eles nem estivessem lá. A gente encharcado, tentando. E eles,
fechados. Não teve um que abriu!
Guilherme: Que, ô!! Eu lembro que tinha até um que queria abrir.
Humberto: Mas foi só dar uma abridinha na frestinha que levou logo um tapa na oreia dos
cara. O segundo que tentou…
Guilherme: …Levou logo foi um coice e dali pro terceiro foi puxão de cabelo,
Jackson: …Empurra daqui, arrasta de lá.
Guilherme (meio confuso): E quem é que tava fazendo isso com eles, Jackson?
Jackson: Pensa, Guilherme.
Humberto (se referindo à polícia): Tu sabe bem quem.
Jackson: Não dava. Vários tentaram.
Humberto: Alguns.
Guilherme: Mas não dava. Logo era como se eles nem estivessem lá.
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Humberto: Era como se eles nem estivessem lá.
Guilherme: E daí a gente teve que sair.
Essa era uma última tentativa de ser o heroi. De salvar a sua pele de menino e a de seus
amigos. Era isso ou era nada. Então, Humberto aceitou a ideia e colocou todas as suas fichas
nela.
Humberto (nervoso, porém confiante): Vamo pra cima! Vamo fazer o que a gente sabe
fazer! E o que eu sei fazer é palhaço. Então, chega aqui Jackson, com essa sua cara de
mané que hoje nois vai fazer isso dar certo.
Jackson foi, sempre ia; não tinha muita fé na ideia, mas tinha fé no amigo, no heroi.
(Humberto pinta os amigos de cinza e se pinta de rosa clarinho – ou cândido). Assim que
Jackson, Guilherme e Humberto entram no trem com limões em suas mãos, são observados
por duas criaturas que narram o que se passa.)
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MÚSICA 10
Músicos/ Narradores:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
Os três são amigos
Dos tempos de bebezinho
Dividiram duas cores
Pintando o corpo todinho
2 de cinza, um de rosa
Melaram até o focinho
Saíram os 3 amiguinho
Para fazer a diversão
Sem ter lugar escolhido
Os três menino em prontidão
Caminhando ali chegaram
Na frente de uma estação
Como busca de aventura
E eu sou aventureiro
Guilherme falou pra Jackson
Aonde tem passageiro
A gente faz malabares
E também ganha o dinheiro
Um com outro comentava
Muita gente ali tem
Aonde tem movimento
Tem de cinquenta e de cem
Tem de dez, cinco e de dois
E sai moeda também
Entraram na estação
Ali quando o trem parou
As portas todas se abriram
Novamente se fechou
Guilherme Humberto gritaram
Calma aí que vai ter show!
Começou o malabares
Todo mundo acompanhando
Em menos de um minuto
Já foi dinheiro pingando
Ali os guardas do trem
Também foi se aproximando
Tomaram susto medonho
A guarda por ser rival
Essas crianças correram
Não deu tempo nem de tchau
Apresentações no trem
Em São Paulo é ilegal
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(As crianças se escondem um atrás do outro, formando uma fila na frente dos guardas que
caminham em direção a eles, Humberto como último da fila. O primeiro da fila se embanana
com os limões que seus amigos jogaram em seus braços. Um dos guardas vai chamar os
meninos, mas antes dele terminar a frase os três correm pra fora do vagão.)
Guarda: Hoje…
(o último da fila foge)
Guarda: Eu pego vocês,…
(o segundo da fila foge)
Guarda: Moleques! (o primeiro da fila foge deixando cair alguns limões)
Guarda (para os meninos, que já estão longe): Cês ainda vão pro abrigo, moleque!
E tentaram. E tudo deu exatamente como não haviam imaginado. O dia estava ruim, muitos
marronzinhos. Não demorou os guardas saíram em disparada atrás dos meninos, que saíram
em disparada atrás de salvação. O caminho foi aberto pelos outros dois a Humberto, que saiu
na frente. Jackson, que não era bobo, saiu em seguida, e Guilherme, que era um tanto bobo,
foi em terceiro. E o terceiro ficou. Sua perna enganchou numa estaca de ferro quando foi pular
o muro. O guarda estava quase chegando. Jackson lançou uma pedra na direção do guarda,
mas não acertou. Humberto dizia: "Vem!!", Guilherme: "Não consigo!!". Humberto, na
tentativa de ajudar o amigo, o puxou com toda a força de seu corpo. Humberto: "Vem!!"
Guilherme veio. Passou o muro, mas saiu sangrando. Muito.
(Guilherme sente muita dor e tristeza. Ele é que dera a ideia de tentarem o trem. Machucado,
com muito sangue, se sente culpado. Os meninos caminham com dificuldade até o local do
farol, mesmo local de antes.)
CENA 7 – NADA É COMO É, NEM COMO DEVERIA
Humberto (tentando alegrar o amigo): Pô, Guilérme! Tinha que deixar os limão tudo cair?
Guilherme (tentando se sentir feliz): Ainda sobrou 2, Beto.
Jackson (bravo e irônico): Mas quem é que teve a ideia sensacional de fazer malabar no
trem?
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Guilherme (se justificando): Pô, era um jeito de chamar mais atenção, descolar mais
grana.
Humberto (tentando animar o amigo, tira a sacola de dentro do chapéu, mas sem tirar
o chapéu): Xô tirar uma coisa aqui da minha sacola pra você, Guilherme.
Jackson: Moleque idiota.
Guilherme: Não tinha outro jeito.
Humberto: Deixa ele, Jackson.
Jackson: Não tem outro jeito.
(Guilherme se sente mais culpado; vai para um canto)
Humberto: Claro que tem! …Lembra daquele dia que…
Jackson (interrompendo Humberto): Que dia, Humberto?! Se toca, Beto, as coisas não
são do jeito que você quer.
(pausa)
(A cena acontece no modo “real”, sem mais fantasias, sem mais imaginação, somente as
coisas como elas realmente são.)
Jackson: E para de roubar meu cigarro! O farol é ruim. Não tem nada de bom pra sair dele.
Só tem o que piorar. E hoje é daqueles dias que a gente vai ter que ficar aqui. Ficar aqui.
Olha a situação do moleque! Como que a gente vai passar [a noite] aqui? …Sacola
mágica… Um pedaço de plástico mais rasgado que inteiro!
Humberto (perdendo o controle): Eu sou o dono dessa história! Sou eu que escrevo aqui!
Jackson: Escreve o que?! Tu nem sabe pegar no lápis! Tu se faz. Tu inventa. Mas até
quando? Ó a situação do moleque! Pra mim chega.
Guilherme: Ei, Jackson! Chega? A gente sempre teve junto! Sempre foi nós 3!
Jackson: Não, não é assim que sempre foi. Antes, era eu e ela (apontando pra Humberto).
Ce era pequeno. Cê chegou depois.
Guilherme: Ela?
Humberto: Ela, Jackson? Eu sou Humberto, caralho!
Jackson: Se liga que cê nunca foi ele. Só no sonho, só no desejo. Eu vi. Eu tava lá. (pausa)
Chegou botando banca, com a cara pintada de rosa e trancinha pro lado. Ninguém admitia,
mas tu botava a gente no chinelo na pintura. Mas no malabar! Cê era ruim!! Não conseguia
fazer com duas nem a pau. Male male com uma. (ri) Com três? Vish! Mas com sua cara
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bonita, pintada, cê conseguia fazer chover. (faz sinal indicando que o dinheiro chovia)
Choviiiia! E isso foi deixando a gente irado. Cê cagava tudo, e no final do dia tava lá, de
garrafa cheia, chocoalho pesado. (pausa) Fugia da escola e ia pra rua. Cê dizia que era pra
Perene, sua mãe. Perene? Que nome era aquele?! …Com todo respeito. (pausa) Não dava
pra gente deixar. Cê teve que ir. (pausa) Deu uns dias e o Humberto apareceu. Pensa que
me engana! Ganhou todo mundo, os bebê, os menor e os de maior. Quase caí na sua, mas
quando veio com essa história de cândido pra cima da gente… Querendo pintar a gente de
rosinha! (pausa) Num segundo tava todo mundo fazendo fila pra tu pintar nossa cara. Mas
eu sempre soube, Humberto. Eu sempre soube, Mayara.
(pausa)
Jackson: Tô fora, Beto. Vamo, Guilherme.
(Jackson e Guilherme saem com dificuldade. Humberto fica só em cena e o lugar volta a
lembrar a frente de sua casa.)
Ouve-se uma voz de dentro de casa: Vem, criança! Vem cá pra dentro, vem! Comida já tá
pronta!
Humberto (entrando em casa, com o chapéu): Já vou, já, Beta!
CENA 8 – É HORA DO JANTAR
Perene (mãe de Mayara/ Humberto): Tira o chapéu pra comer.
É Hora do Jantar. 7 com Mayara, todas as mulheres à mesa. Há pouca, bem pouca. Para a
mãe, só… Meia colher de… para cada uma das irmãs mais novas mais um pouquinho de…
Para as quatro mais velhas, um… cozido repartido em quatro partes. É Hora do Jantar. Hoje
não era um bom dia, a luz que incide sobre a cena era amarela. Já dizia Carolina Maria de
Jesus, que a fome tem cor. É Hora do Jantar. Todas… em silêncio.
A segunda mais nova, Ajene: Ô, mãe, cadê o pai?
A terceira mais nova, Bisa: Ô, Ajene, isso é hora de falar dessas coisas?
Ajene: E tem hora?
Bisa: A gente ta comendo.
Ajene: Comendo?
(pausa)
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Perene, mãe: Tá na hora dele aparecer logo mesmo, porque eu sozinha não to dando
conta de tudo não.
Humberto/ Mayara: Já falei pra senhora que a senhora trabalha demais. Eu tava falando
com a Nadira (vizinha) e ela falou que tão precisando de alguém pra trabalhar lá… (Não
consegue terminar a frase, pois é interrompida pela mãe).
Mãe (brava): Já falei, Mayara, vou ter que repetir? O trabalho de vocês é estudar.
Ajene: Mas eu to com fome!
Mayara/ Humberto: Calma, Ajene. O pai sempre aparece assim, inadvertidamente.
Ajene: Que?
Mayara/ Humberto: Repentinamente, inesperadamente …Do nada.
Ajene: Olha, inesperado é que ele não ta, viu?
Perene, mãe: A gente dá conta, só preciso de vocês estudando. Um dia após o outro a
gente vai vivendo, levando.
CENA 9 – PRÓLOGO (PRAZER, MAYARA)
(Há um flashback. Dessa vez, Humberto é uma criança, Mayara. A cena volta para o
momento em que Mayara fora trazida para casa, como bebê.)
Uma família (todas mulheres) observando atentamente um bebê que acabaram de trazer do
hospital, sem saberem se estão felizes ou tristes. Dois seres (repentistas) enfeitados de alegria
entram e começam a narração da história.
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MÚSICA 11
Músicos/ Narradores:
Nasceu em setembro, quanta felicidade! A família inteira se reuniu para ver o novo membro. Ia ter
nome forte. Humberto, esperto. Dessa vez ia dar certo. Acerto. Conserto. Ia crescer e ajudar a
todos, principalmente a mãe. Ia ser menino. O médico tinha confirmado. Dessa vez ia ser menino,
fino, divino... Mas feminino?
Nasceu Mayara. Ó, não, tão inferior! Fêmea, pobre e cheia de cor! O sorriso largo no rosto de
todos os familiares deu lugar para um semblante de desconfiança, chateação e espanto. Não
podia ser! Era. Mais uma menina. A sexta de seis nasceu sorrindo, já desafiando toda grosseria.
A boca banguela como que proferindo: “só trago alegria, alegria, alegria!”.
Com registro só no ano seguinte, a vida de Mayarinha seguia perene. Chega a esquentar as
orelhas do ouvinte: com ela era Cleidi, Maisha, Beta, Bisa, mãe e Ajene. O pai, um homenzico,
Zico, trabalhava viajando, não se sabe bem de que. Aparecia de vez em quando já com hora pra
partir, mas não sem antes contar histórias que trazia pra dividir.
Mayarinha morava num bairro de casas humildes. As paredes umas coladas com as outras e os
quintais também. Dava pra xeretar. Dava pra olhar. Dava pra admirar. Dava pra babar, paquerar,
flertar, fofocar. Dava pra sentir o perfume daquele frango assando lá pelas 11h e daquele bolo
quentinho ao final da tarde, dançar ao som da voz da vizinha, e se assustar com as broncas das
mães e os tapas dos pais. Dava pra gritar gooool, mesmo sem ter TV em casa. Só não dava pra
dormir quando o tal vizinho resolvia dormir. Seu ronco era mais alto que os gritos lá da feira. Sorte
que era de dia que ele fazia sua barulheira.
E foi nesse contexto que Mayara cresceu, e chegou aos seus 5 anos.
CENA 10 – OLHA PRA MIM?
(Num fim de tarde, Mayara, que brincava no quintal, se embalou na música que a irmã ouvia.
Beta lavava a louça ao som de Celly Campello e sua canção “Banho de Lua”. Mayara, já com
seus 5 anos, começou a dançar com seus brinquedos ao ritmo da música, que tocou desde o
começo.)
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MÚSICA 12
“Fui { praia me bronzear / Me queimei, escureci
Mamãe bronqueou / Nada de sol
Hoje eu só quero a luz do luar
Tomo um banho de lua/ Fico branca como a neve
Se o luar é meu amigo / Censurar ninguém se atreve
É tão bom sonhar contigo, oh! / Luar tão cândido!
Sob um banho de lua, numa noite de esplendor
Sinto a força da magia, da magia do amor
É tão bom sonhar contigo, oh! / Luar tão cândido!”
(Mayara dançava e dançava até que a música chegou à seguinte parte:)
“Tim, tim, tim / Raio de lua
Tim, tim, tim / Baixando vem ao mundo, Oh lua
A cândida lua vem!”
(A música para de repente.)
Mayara (curiosa): Cândida?
Mayara (para a irmã): Ô, Betaaaa! Que que é cândida?
Betânia, irmã mais velha: É aquilo que a gente usa pra lavar roupa, menina. Deixar bem
limpinho.
Mayara: E passaram isso na lua, é?
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Betânia: Tá doida, menina? …Quer saber de tudo! Ali seu dicionário! Me deixa que to
ocupada.
Mayara (pega o dicionário): Olha pra mim, Beta?
(Betânia a ignora e volta a seu trabalho doméstico.)
Mayara (para outra irmã): Cleidi, vê pra mim?
Cleidiane (carinhosa): O que, Mayara?
Mayara (entregando o dicionário): O que que é Cândida? Lavaram a lua com isso, foi?
Cleidiane, segunda mais velha (rindo): Mais uma palavra, é? Ai, Maya. Vamos ver. Aqui
não tem cândida, só cândido.
(Mayara olha meio decepcionada, meio desconfiada.)
Cleidiane (fazendo pausas após cada adjetivo): Cândido é alvo, puro, sincero, ingênuo,
BRANCO, inocente.
CENA 11 – DOIDA NÃO
(Enquanto os narradores continuam a contar a história, os personagens se movem
coreografando as palavras dos narradores com seus movimentos corporais.)
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MÚSICA 13
Narradores/ Músicos:
logo completou 6 anos
a Mayara de idade
ganhou um simples presente
mais de boa quantidade
foi uma caixa de tintas
para pintar à vontade
aqueles potes com tintas
aos 6 anos completado
a Mayarinha ficou
com o sorriso dourado
de todos foi o presente
melhor que havia ganhado
sem tela e sem papel
sem parede e sem madeira
pegou os potes de tinta
começou a fazer besteira
misturou cores com cores
e começou a lambuzeira
era uma experiência
que pretendia acertar
misturou azul e preto
sem tempo pra respirar
pra ter a cor preferida
começou a se pintar
roxo, verde e amarelo
que caixa misteriosa
pintou o seu corpo inteiro
com ninguém queria prosa
misturou vermelho e branco
até chegar na cor rosa
chegou na cor desejada
o nariz ela empinou
sentiu um cheirinho bom
de comida, ela parou
Mayara venha almoçar
assim a irmã chamou
Ouve-se uma voz de dentro de casa: Vem, criança! Vem cá pra dentro, vem! Mayaaaara,
vem comeeer! Comida já tá pronta!
Mayara (bem feminina, ainda criança, com a cara toda pintada de rosa): Já vou, já, Beta!
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O cheirinho da comida de Betânia, a mais velha, era arrebatador. Mayara jogou os potes de
tinta no chão e saiu correndo pra cozinha.
Betânia (grita furiosa ao ver a irmã toda pintada de rosa): Que é isso, menina? Ta doida?
Mayara: Não! To cândida!
Betânia: Vá já se limpar pra comer.
CENA 12 – SERÁ (?)
MÚSICA 14
Músicos/ Narradores:
REFRÃO
Vamos bater no pandeiro
Vamos fazer o repente
Esse Trem É Gente
Esse Trem É Gente
E Mayarinha criança
Na vida enfrentava o medo
Contrariava as regras
Seu mundo não tem segredo
Criava sua história
Gravava bem na memória
Seu mundinho de brinquedo
Com sua imaginação
Desenhava o que queria
Papel, rosto, corpo e mente
Pintava com alegria
Seu talento e sua calma
Busca no fundo da alma
O dom da sua magia
REFRÃO
Mayara (criança): E quem vai dizer que é mentira?
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(A cena volta para o presente, momento atual. Humberto está na frente de casa, enrolando
para entrar)
Ouve-se uma voz de dentro de casa: Vem, criança! Vem cá pra dentro, vem! Comida já tá
pronta!
Humberto (desolado): Já vou, já, Beta!
(Humberto continua sentado, pensando. Ele sempre usava o discurso de que tinha uma sacola
mágica, que coisas mágicas saíam dela. Ele tira a sacola de dentro do chapéu, sem tirar o
chapéu, como sempre fazia para esconder o cabelo. Ele segura a sacola por um instante e, em
seguida a coloca do seu lado. Ele se levanta e a sacola fica lá. Ele entra em casa. O cenário
escurece [black-out]. O cenário volta a clarear. Como mágica, a sacola voa e deixa um suco de
limão no lugar onde estava. Um suco de limão com canudinho e guarda- chuvinha.).
Fim.
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