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Patrcia Laubino Borba

A inscrio do discurso do esquizofrnico no discurso religiosoPatrcia Laubino Borba Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Resumo: O estudo investiga o estabelecimento de referncia no discurso do esquizofrnico na perspectiva da Anlise do Discurso de Michel Pcheux. Para tanto, nos apoiamos em uma entrevista em que o paciente se inscreve no discurso da igreja pentecostal e estabelece referncias a referentes pr-construdos nesse discurso. Para analisarmos o funcionamento da referncia realizada pelo paciente, estudamos primeiramente como os fiis noesquizofrnicos dessa igreja referenciam esse discurso, para podermos comparar os dois funcionamentos. Nossas concluses a respeito dessa anlise so que, apesar de haver estabelecimento de referncia no discurso do esquizofrnico e essa ser submetida ao interdiscurso, h nesse discurso um efeito de imposio, ao invs de adeso, como ocorre nos discursos dos no-esquizofrnicos. Palavras-chave: referncia; Anlise do Discurso; discurso esquizofrnico.

Neste estudo, trabalharemos com o discurso do psictico,1 mais especificamente com um tipo de psicose, a esquizofrenia. Nosso objetivo examinar como ocorre a inscrio desse discurso patolgico no discurso religioso.2 Dentre os discursos religiosos, escolhemos o das igrejas evanglicas, porque, conforme veremos, os doentes mentais so mais facilmente acolhidos por essas instituies religiosas do que por outras. Abordaremos a questo da inscrio do discurso do esquizofrnico no discurso pentecostal a partir do estabelecimento de referncia, no discurso patolgico, a pr-construdos do discurso religioso. Essa reflexo estar embasada no arcabouo terico da Anlise do Discurso de Michel Pcheux. Antes de refletirmos a respeito do discurso do esquizofrnico, analisaremos, brevemente, a referncia ao discurso religioso por fiis no-psicticos da religio pentecostal,3 a fim de podermos compar1

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Na psicanlise, h trs constituies subjetivas: a neurose (que podemos pensar como a normalidade), a psicose (que comumente denominada como doena mental) e a perverso. Para estudo mais aprofundado a respeito das questes de referncia e funcionamento do discurso patolgico, ver Borba (2006). Designaremos como fiis no-psicticos da religio pentecostal todos os demais seguidores das igrejas evanglicas. Ou seja, queremos trazer o funcionamento discursivo religioso normal, o corpus que seria classicamente

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la referncia estabelecida a esse mesmo discurso por um fiel esquizofrnico da mesma religio. Posteriormente, estudaremos como ocorre a apreenso dos referentes pr-construdos dos discursos bblico e pentecostal pelo paciente estudado. As seqncias discursivas de referncia (SDR) que sero estudadas so de um paciente esquizofrnico (J.V., 43, sexo masculino)4 que se identifica, de alguma forma, com o discurso religioso: eu j fui crente 10 anos. Ao estudarmos as referncias a este discurso, estaremos tambm estudando, de forma geral, como acontece a apropriao de um discurso, no caso o discurso religioso, por parte de um paciente esquizofrnico. Acreditamos que nosso trabalho colabora para o estudo a respeito do funcionamento do discurso do psictico e, mais especificamente, do discurso do esquizofrnico. Ao se dizer crente, o paciente se inscreve no discurso das religies pentecostais. Apesar de existirem vrias igrejas autnomas, sendo as mais representativas a Assemblia de Deus e a Universal do Reino de Deus, as diferenas relacionam-se mais ao culto e s estruturas internas que propriamente aos dogmas religiosos. Alm disso, essas igrejas suprem uma carncia social imposta pelo sistema econmico vigente, colocando-se como detentoras da soluo de problemas familiares e econmicos de seus adeptos. Desse modo, encontram uma demanda no suprida por nenhuma outra religio. Em relao ao doente mental, essas igrejas proporcionam a sua reintegrao social, por meio da reintrepretao de sua doena. Como nos mostra Figueiredo (2000), as religies pentecostais interpretam a doena mental como possesso demonaca, exigindo, assim, a atuao da igreja para exorcizar o demnio. Essa perspectiva desloca a posio do paciente de um incapacitado mental e excludo do mercado de trabalho para uma vtima de espritos obsessores. A igreja torna-se, assim, a nica forma de salvao. Os doentes mentais so sempre bem recebidos pelas igrejas, havendo tambm visitas dos integrantes dessas igrejas aos hospitais psiquitricos para a converso dos pacientes.

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estudado na Anlise do Discurso para pensar o discurso religioso, para ser cotejado com o discurso patolgico. O corpus em que ser analisado o discurso do esquizofrnico constitudo de entrevista de um paciente realizada pelo grupo de pesquisa Lingstica e Psicanlise sob a coordenao de Margareth Schffer e cedido para o nosso estudo.

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A fim de estudarmos a apropriao dos referentes prconstrudos bblicos pelo paciente esquizofrnico e de fiis noesquizofrnicos, analisaremos, preliminarmente, as citaes de textos bblicos feitas por um pastor e por seguidores da religio pentecostal.5 O objetivo dessa anlise estabelecer comparaes entre as apropriaes dos referentes bblicos realizadas pelos integrantes no-psicticos da igreja o primeiro na posio de detentor da interpretao da igreja e o segundo na de aprendiz desses conhecimentos e aquela do paciente. Iremos nos deter na questo da utilizao dos referentes bblicos no discurso do pastor, do adepto e do paciente, todos fiis da igreja pentecostal. Utilizaremos um trecho da fala de um pastor da religio pentecostal para analisar como produzida a referncia a partir de um referente bblico, o Reino dos Cus:A Bblia fala o seguinte: chegado o Reino dos Cus. Esse Reino dos Cus tem que ser vivido aonde? Aqui na terra, porque l no cu ningum vai comer, ningum vai vestir; porque l ns somos espritos; no precisa ter fartura l; ningum vai ter fome. Essa abundncia que Deus promete aqui na terra, como ele prometeu a Abrao, Isaac, Jac e os demais. Se Ele falou em trazer s vida, e vida com abundncia, Ele no pode chegar e condenar a pessoa a ter uma vida fracassada, uma vida na misria, cheia de problemas financeiro, familiar, espiritual, sentimental, ou em qualquer sentido da vida dela (SDR I,6 seqncia discursiva de um pastor, apud Figueiredo, 2000, p.130).

Para compreender qual o estatuto do discurso do pastor, recorremos a Orlandi (1993), que afirma que o discurso religioso d significao quilo que silenciado no discurso de Deus, ou seja, no discurso religioso, em seu silncio, o homem faz falar a voz de Deus (idem, p.30). A partir disso, podemos entender como acontece a reinterpretao do discurso bblico do ponto de vista das igrejas pentecostais. O Reino dos Cus como referente do discurso bblico est relacionado, no Novo Testamento, a algo que vir: O Reino dos Cus5 6

Essas seqncias discursivas foram retiradas de Figueiredo (2000); as anlises so de nossa autoria. Numeraremos as seqncias discursivas de referncia de no-esquizofrnicos com nmeros romanos.

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se tem aproximado [Mateus 3:2; 10:7]. Compararemos o recorte do discurso do pastor a um trecho da Bblia em que est sendo construdo esse referente:5 A estes doze enviou Jesus dando-lhes as seguintes ordens: No vos desviei para estradas das naes, e no entreis em cidade samaritana; 6 mas, irdes, pregai, dizendo: O reino dos cus se tem aproximado. 8 Curai doentes, ressuscitais mortos, tornai limpos os leprosos, expulsai demnios. De graa recebestes, de graa dai. 9 No adquirais nem ouro, nem prata, nem cobre, para os bolsos dos vossos cintos. (Mateus 10:5).

Na Bblia, o referente Reino dos Cus est relacionado pregao, que, por sua vez, est relacionada ao desprendimento dos bens materiais. No discurso do pastor, porm, esse referente pr-construdo apreendido a partir do discurso econmico no cu ningum vai comer, ningum vai vestir; no precisa ter fartura l [no cu]; ningum vai ter fome; vida com abundncia; uma vida fracassada; vida na misria; cheia de problemas financeiro. A referncia ao discurso bblico produzida no discurso das pentecostais heterognea, por comportar um discurso econmico, alm do discurso religioso. Ou seja, os sentidos deslizam, tornam-se diferentes. Desse modo, houve, por parte do discurso pentecostal, uma apropriao e uma ressignificao do referente pr-construdo bblico. A apropriao deve-se ao fato de o pastor utilizar as palavras da Bblia para sustentar a formao discursiva pentecostal. A ressignificao acontece a partir da utilizao de outros saberes para a elaborao de novos sentidos que esto sendo vinculados ao discurso pentecostal, ou seja, a construo do referente um trabalho discursivo. Vemos que, alm do silncio intrnseco ao discurso religioso, estudado por Orlandi (1993), h tambm momentos de silenciamento, ou, mais explicitamente, de censura dos trechos bblicos que se contrapem ao discurso econmico, como, por exemplo, a seguinte passagem: De graa recebestes, de graa dai. No adquirais nem ouro, nem prata, nem cobre, para os bolsos dos vossos cintos. No Quadro 1, comparamos o referente bblico com o pentecostal:

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Patrcia Laubino Borba Referente (bblico): Reino dos Cus Matheus 3:2; 10:7 e 23:13 outro plano: O reino dos cus se tem aproximando. ilusoriamente homogneo. Referente (pentecostal): Reino dos Cus Religio pentecostal a terra: Essa abundncia que Deus promete aqui na terra Heterogneo: Discurso econmico. -

Desprendimento dos bens materiais. -

Solues para os problemas scio-econmicos atuais.

Quadro 1: Referente Reino dos Cus A seguir, estudaremos a apropriao do referente bblico possesso, no discurso de um adepto da crena pentecostal, para a construo da referncia doena mental:Essas coisas so causadas por um esprito maligno. Somente um Ser maior, que Deus tem condio de arrancar essa doena que causada por ele. (SDR II, seqncia discursiva de um familiar de um paciente, ambos adeptos religio pentecostal, falando da doena mental, apud Figueiredo, 2000, p.166)

O texto bblico que est sendo retomado A Cura do Menino Endemoninhado [Marcos 9:17]:17 E um da multido respondeu-lhe: Instrutor, eu te trouxe meu filho, porque tem um esprito sem fala; 18 e, onde quer que o apanhe, lana-o ao cho, e ele espuma e range os dentes, e perde a sua fora. E eu disse aos teus discpulos que o expulsassem, mas eles no foram capazes. 19 Em resposta, ele lhes disse: gerao sem f, at quando terei de continuar convosco? Trazei-lo 20 De modo que lho trouxeram. Mas vista dele, o esprito lanou [o menino] imediatamente em convulses, e depois de ele cair ao cho, rolava por ali Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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A inscrio do discurso do esquizofrnico no discurso religioso espumado. 21 E perguntou ao pai dele: H quanto tempo lhe acontece isso? Ele disse: Desde a infncia; 22 e repetidas vezes o lana tanto no fogo como na gua para o destruir. Mas, se puderes fazer algo, tem pena de ns e ajuda-nos. 23 Jesus disse-lhe: esta expresso: Se Puderes! Ora, todas as coisas podem suceder ao que tem f. 24 Clamando imediatamente, o pai do menino dizia: Tenho f! Ajuda-me onde necessito de f!.

Como podemos observar, o referente endemoninhado, na Bblia, no est relacionado com a questo da loucura. Essa relao estabelecida a partir de uma reinterpretao desse referente bblico7 pela igreja pentecostal, produzindo, assim, a referncia loucura. Essa reinterpretao acontece em um ponto de silenciamento do texto bblico. No h respostas, na Bblia, para a questo: qual a origem da loucura? Para responder a isso, necessrio colocar sentidos novos nesse texto. necessrio tambm silenciar outros trechos que seriam incompatveis com essa reinterpretao do referente bblico endemoninhado, como todos trechos que falam da loucura, pois esses no a relacionam possesso demonaca: Sa 21:15; Jo 10: 20; 1Co 14: 23; 2Co 11: 23; 2Pe 2:16 e At 26: 24. A referncia produzida no discurso pentecostal heterognea, porque, j que a doena percebida como uma possesso, necessrio aproximar discursos diferentes: o do mdico com o do religioso. necessrio ressaltar que as referncias produzidas pelos pastores das igrejas pentecostais possuem uma estabilidade relativa, na medida em que outros discursos podero ser utilizados pelos pastores na apropriao dos referentes bblicos. A utilizao de discursos exteriores e, muitas vezes, contraditrios, est relacionada s condies de produo do discurso dos pastores. Porm, a referncia do discurso pentecostal ao pr-construdo bblico se transforma em referente pr-construdo para os fiis, pois eles no tm acesso ao processo de reinterpretao da Bblia, somente aos sentidos dessa reinterpretao, feita pela igreja pentecostal. No Quadro 2, fazemos uma distino entre o referente bblico, o referente pentecostal em relao ao seu processo de reinterpretao da Bblia e o referente pentecostal que acessvel aos fiis:7

Apesar de o sintoma que o menino demonstra ter, na passagem bblica citada, ser de epilepsia, retratado, na Bblia, como um caso de possesso demonaca.

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Referente (bblico): Possesso

Referente construdo em relao ao discurso bblico (pentecostal surge a partir de um processo de reinterpretao os da bblia):Loucura Heterogneo: Percebe a doena mental como sendo produto da possesso.

Referente (pentecostal objeto discursivo pr-construdo apropriado pelos fiis em geral, excluindo pastores): Loucura como possesso ilusoriamente homogneo: No existe a doena mental, apenas a possesso. A possesso a origem da loucura.

ilusoriamente homogneo.

Silncio em relao origem da loucura

Busca saber/ construir qual a origem espiritual da loucura -

Trechos da Bblia que no relacionam a loucura possesso: Sa 21:15; Jo 10: 20; 1Co 14: 23; 2Co 11: 23; 2Pe 2:16 e At 26: 24.

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Quadro 2: Referente Possesso Pcheux (1975) nos ensina que a interpelao do indivduo como sujeito de seu discurso d-se a partir da identificao desse sujeito com a forma-sujeito da formao discursiva que o afeta. A relao que o sujeito enunciador estabelece com os pr-construdos vinculados forma-sujeito marca a tomada de posio discursiva do sujeito enunciador. O sujeito enunciador pode estar em superposio forma-sujeito, aderindo plenamente aos saberes pr-construdos da formao discursiva; pode questionar esses pr-construdos, contra-identificando-se com a formao discursiva que o afeta; ou pode desidentificar-se com a forma-sujeito de uma formao discursiva, identificando-se com outra.Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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Em frente aos referentes pr-construdos, h a tomada de posio dos fiis, que pode ser de aceitao plena ou parcial desses referentes8 produzidos pela igreja pentecostal. Os pastores tm como objetivo reinterpretar o referente bblico a partir dos saberes da igreja pentecostal, construindo, assim, um novo referente discursivo. J os fiis aderem plena ou parcialmente a esse referente j estabelecido pela formao discursiva em que se inscreve a igreja pentecostal, construindo, por sua vez, o seu referente discursivo a partir de sua posio-sujeito. Podemos ver, nos recortes abaixo, diferentes tomadas de posio em relao ao referente loucura:Esses doentes que esto aqui internados coisa espiritual (SDR III, seqncia discursiva de familiar adepto a religio pentecostal apud Figueiredo, 2000, p.175). Se os mdicos existem porque um instrumento na mo do Senhor Jesus, porque seno no existiria o mdico. Desde o momento que voc est com enfermidade, voc tem que crer que Deus vai mudar sua vida. Mas voc tem que procurar Jesus e os mdicos tambm. (SDR IV, seqncia discursiva de um familiar adepto religio pentecostal apud Figueiredo, 2000, p.165).

A SDR III mostra adeso plena ao referente discursivo pentecostal loucura; e a SDR IV mostra uma adeso parcial. Na adeso plena no h questionamentos do saber da formao discursiva que afeta o paciente e, conseqentemente, no h interferncias de outros saberes exteriores a essa formao. Isso resulta numa semelhana plena entre a referncia e o referente apropriado. A adeso parcial ocorre pelo questionamento dos saberes da igreja e pela apropriao de outros saberes exteriores formao discursiva que afeta o sujeito falante. Podemos ver o questionamento no sintagma seguinte: se os mdicos existem. A SDR IV revela a heterogeneidade do referente discursivo por deslizar do referente pentecostal para o discurso mdico. A apropriao plena ou parcial dos referentes pr-construdos da igreja pentecostal produz um efeito de homogeneidade nas formulaes analisadas. No percebida a costura dos diferentes8

No abordaremos a desidentificao, porque ela acarretaria uma mudana de religio por parte do sujeito enunciador.

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discursos. O efeito de sentido produzido o de colocar no sujeito enunciador a origem do sentido. No h marcas formais de apropriao dos referentes pr-construdos do discurso das igrejas pentecostais. O sujeito enunciador estabelece a referncia como se ela consistisse em uma apreenso direta da realidade e no em uma percepo dessa atravs de um discurso religioso. Isso acontece porque os sujeitos enunciadores analisados esto falando a partir do discurso a que esto assujeitados. Finalizada a anlise do funcionamento da referncia no discurso de fiis pentecostais no-esquizofrnicos, veremos como estabelecida a referncia no discurso do paciente esquizofrnico (J.V., 43 anos, sexo masculino), a partir dos referentes pr-construdos do discurso religioso. O corpus discursivo analisado ser organizado em blocos e estes em seqncias discursivas de referncia (SDR), identificadas por algarismos arbicos. Cada um dos blocos trata de um referente bblico diferente: o bloco 1 trata do referente vida eterna; o bloco 2 trata do referente criancinhas; o bloco 3, menino endemoninhado; e o bloco 4, enterrar os talentos. BLOCO DISCURSIVO 1 Referente: Vida Eterna O bloco discursivo 1 visa a estudar o funcionamento da referncia estabelecida por um paciente esquizofrnico ao referente bblico vida eterna. Em primeiro lugar, apresentaremos as seqncias discursivas em que esto contidas as referncias ao referente bblico. Aps, exporemos o trecho da Bblia em que ocorre a construo do referente. A seguir, compararemos o efeito de sentido produzido no discurso do esquizofrnico com aquele produzido no texto bblico. A partir da memria discursiva, compararemos o efeito de sentido da referncia do paciente com o discurso pentecostal.SDR 1 Paciente: Isso. O pandeiro e o louvor. O louvor que rpido, eu no vou enterrar meus talentos das criancinhas. O louvor que rapidinho, furioso. Eu quero ser ele. Mas o louvor que rpido outra vida, a vida eterna. SDR 2 Paciente: Vida eterna mas assim, no na misria, assim. Tudo, tudo na fartura, tudo na fartura, de primeira linha. Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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O paciente, como dissemos, afirmou ter sido pentecostal no passado (eu j fui crente 10 anos). Desse modo, ele se inscreve no discurso religioso, que sustentado pelos saberes da Bblia. O nosso objetivo estudar a apropriao dos referentes religiosos por parte do paciente e sua tomada de posio frente a esses referentes. Apesar de o referente vida eterna ser construdo discursivamente na Bblia, a referncia do paciente no est relacionada a esse discurso. Podemos constatar isso a partir da seqncia bblica a seguir:24 Jesus olhou para ele e disse: Quo difcil ser para os que tm dinheiro abrirem caminho para entrar no reino de Deus! 25 De fato, mais fcil para um camelo passar pelo orifcio duma agulha de costura, do que para um rico entrar no reino de Deus 26 Os que ouviram isso disseram: Quem que capaz de ser salvo? 27 Ele disse: As coisas impossveis aos homens so possveis a Deus 28 Mas Pedro disse: Eis que abandonamos as nossas prprias coisas e te seguimos 29 Ele lhes disse: Deveras, eu vos digo: No h ningum que tenha abandonado casa, ou esposa, ou irmo, ou pai ou filhos, pela causa do reino de Deus, 30 que no receba de algum modo muitas vezes mais neste perodo de tempo, e no viradouro sistema de coisas a vida eterna (Lucas 18:24).

No texto bblico, o referente vida eterna no est relacionado ao bem estar econmico; pelo contrrio, se ope a ele. No discurso do paciente, podemos perceber que vida eterna remete ao bem-estar material e no, como coloca a Bblia, a questes espirituais. Para verificar, a seguir, como se d o processo de referncia no discurso do esquizofrnico, preciso refletir a respeito da desestruturao que ocorre na SDR 1, com base na noo de estrutura na Anlise do Discurso. Pcheux (1988, p.56) afirma que, apesar de o discurso ser dependente das redes de memria e dos trajetos sociais nos quais ele irrompe o que o coloca como parte da estrutura discursiva produzida pelo complexo das formaes discursivas ele pode se afastar dessas filiaes scio-histricas para produzir um deslocamento de sentido. A desestruturao-reestruturao dessas redes e trajetos (ibid.) produto de acontecimentos scio-histricos que se discursivizam, produzindo novas redes de sentidos, que posteriormente tomaro seu lugar nas formaes discursivas. A 402Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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noo de desestruturao, vinculada a Pcheux (1988), est relacionada ao estabelecimento de novos sentidos em relao queles que j se encontram no interdiscurso. Porm, a fim de estudar a (re)produo de sentidos em um discurso especfico, necessrio pensar em dois nveis de estrutura, conforme Indursky (2003, p.102): estruturas vertical e horizontal. Estrutura vertical a estruturao dos saberes, que prexistem ao discurso do sujeito. Encontram-se no interdiscurso e so acessveis ao sujeito atravs do filtro da formao discursiva. O sujeito, ao se apropriar do j-dito, sintagmatiza os saberes verticais. A estrutura horizontal corresponde ao intradiscurso, onde se encontra a formulao do sujeito que consiste na forma que o enunciado tomou em seu discurso, aps passar pelo processo de apropriao e sintagmatizao (idem, p.103). Na SDR 1, h uma desestruturao do fio do discurso. Porm, essa desestruturao no pode ser vista como o surgimento de sentidos novos, pois no corresponde a novas filiaes sciohistricas do sentido. A desestruturao decorrente de uma falha na estruturao horizontal que mantm os saberes desintagmatizados, apesar de estarem no fio do discurso. Na SDR 2, a partir do efeito de linearidade, podemos delimitar o sentido dado a vida eterna. A delimitao desse sentido acontece por uma evocao de fragmentos relacionados ao discurso econmico: no na misria, na fartura, na primeira linha. A partir dessa segunda SDR, acreditamos que a construo discursiva do referente produzido pelo paciente d-se por uma apropriao do referente discursivo pentecostal. Apesar de no termos meios de delimitar com mais preciso o sentido que pode ser atribudo ao referente vida eterna no discurso pentecostal, podemos supor, a partir dos pr-construdos desse discurso, que, necessariamente, est relacionado ao bem-estar terreno e no apenas ao espiritual. da matriz de sentidos dessa religio a promessa de que seus fiis desfrutaro de bem estar espiritual e econmico,9 como vimos acima, a respeito do referente Reino dos Cus.

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A prtica de doutrinao dos fiis a darem o dzimo, um dcimo do salrio, s igrejas pentecostais, mostra a heterogeneidade forte que esse discurso tem com o econmico e tambm com o discurso catlico (coleta de donativos da igreja durante a missa).

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A inscrio do discurso do esquizofrnico no discurso religioso Referente pr-construdo bblico: vida eterna Referente pr-construdo pentecostal: vida eterna Referente do paciente: vida eterna

o viradourosistema de coisas (Lucas 18: 30) Ope-se ao bem-estar econmico.

Est relacionadaao bem-estar fsico, mental, espiritual e econmico do fiel.

Relacionado religio Ope-se misria Aproxima-se da fartura

Quadro 3: Referente vida eterna Apesar de se dizer no mais praticante da religio pentecostal (eu j fui crente), o paciente est afetado por essa formao discursiva, na medida em que faz referncia a referentes produzidos nesse discurso. Mesmo havendo uma desestruturao horizontal na SDR 1, permanece, se no de forma consistente, pelo menos vestgios da existncia da estrutura vertical dos saberes do interdiscurso no discurso do esquizofrnico. Podemos observar isso pela retomada, no fio do discurso na SDR 1, de outros elementos que remetem ao discurso religioso: louvor, enterrar os talentos e criancinhas. Dessa forma, podemos constatar que, apesar de desestruturada, a formulao do paciente est vinculada ao discurso pentecostal e nessa formao discursiva que o paciente inscreve seu discurso. BLOCO DISCURSIVO 2 Referente: Criancinhas O bloco 2 visa a estudar o funcionamento da referncia estabelecida ao referente bblico criancinhas. Para isso, apresentaremos as seqncias discursivas em que se estabelece a referncia. Aps, as compararemos com o trecho bblico em que construdo o referente discursivo criancinhas. Analisaremos se e como o discurso bblico afeta o discurso do paciente. Por ltimo, compararemos o referente construdo pelo discurso do paciente e o referente do discurso bblico.

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Patrcia Laubino Borba SDR 1 Paciente: Eu no vou enterrar os dois talentos das criancinhas. SDR 2 Entrevistador 1: Quem so essas duas criancinhas que tu ests falando? Paciente: O qu? Entrevistador 1: Tu falastes no talento de duas crianas, n? Paciente: E os talentos das criancinhas de todo mundo, do mundo inteiro. E tem aqueles que querem ser o anjo, n? Das criancinhas, (?)10 SDR 3 Paciente: Mas com tratamento. As criancinhas, podem, posso ter, Deus me livre, um monte de vida.

Compararemos o referente criancinhas produzido no fio do discurso do paciente ao referente bblico criancinhas:13 Trouxeram-lhe ento criancinhas, para que lhes impusesse as mos e proferisse uma orao; mas os discpulos censuraramnos. 14 Jesus, porm, disse: Deixai as criancinhas e parai de impedi-las de vir a mim, pois o reino dos cus pertence a tais. (Mateus 19:14).

Nas SDR 1 e 3 no possvel, devido desestruturao horizontal, perceber o efeito de sentido que est sendo vinculado ao termo criancinhas. Apenas na SDR 2, o paciente, ao ser questionado a respeito desse referente, nos mostra outros fragmentos do discurso que est sustentando essa referncia: so todas as criancinhas do mundo todo, querem ser anjos. Porm, trouxemos as SDR 1 e 3 para mostrar que, mesmo no sendo possvel perceber a referncia estabelecida pelo termo criancinhas, esse termo est sendo relacionado a outros referentes do discurso religioso: enterrar os dois talentos (que ser estudado no bloco 4) e Deus me livre. Queremos, em relao ao discurso do esquizofrnico, ressaltar as caractersticas de fragmentao, de desestruturao e dos espaos lacunares tanto na formulao a estrutura horizontal, conforme vimos no bloco anterior quanto na apropriao dos saberes das10

Esse sinal (?) significa que no compreensvel o que foi dito pelo paciente.

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formaes discursivas. Processo fundamental para a produo discursiva, a apropriao consiste na funo de apoderar-se de prconstrudos do interdiscurso e conduzi-los para o intradiscurso. A realizao normal da apropriao acarreta trs efeitos: o de origem, o de homogeneidade e o de linearidade, conceitos que sero trabalhados a seguir. A apropriao de pr-construdos que pertencem a formaes discursivas que afetam ou no o paciente tem a finalidade de transformar esses saberes construdos externamente enunciao do paciente em sentidos produzidos no momento e no lugar da enunciao, ou seja, produzir um efeito de origem desses sentidos no sujeito da enunciao. Caso isso no ocorra, transparece o carter de apropriao de saberes exteriores. Ao apropriar-se de pr-construdos exteriores formao discursiva que afeta o sujeito da enunciao, o sujeito falante insere esses elementos em uma formao discursiva e em uma condio de produo diferente daquelas de origem. Isso resulta em uma mudana de efeito de sentido para esses pr-construdos. Essa mudana de sentido apaga os vestgios de exterioridade, produzindo um efeito de homogeneidade com o discurso hospedeiro.11 Caso isso no ocorra, possvel perceber o discurso de origem dos pr-construdos apropriados, atravs da contradio que se instaura no prprio discurso. Efeito de linearidade o resultado da sintagmatizao de saberes pr-construdos no processo de apropriao. Os saberes que esto na estrutura vertical so organizados sintaticamente em uma formulao, perdendo, assim, seu carter de disperso. A nosintagmatizao dos saberes pr-construdos produz um efeito de fragmentao. No h efeito de origem nas SDR 1, 2 e 3, na medida em que no h um efeito de sentido possvel se no relacionamos as formulaes com os pr-construdos bblicos. Ou seja, necessrio que o paciente esteja se remetendo a algum discurso para que seja estabelecido efeito de sentido. Na SDR 1, apesar de haver uma linearidade sinttica, no h uma linearidade discursiva, na medida em que o paciente coloca, no mesmo sintagma, pr-construdos distintos do discurso bblico: enterrar os talentos e criancinhas. No h11

Entendemos discurso hospedeiro como um gesto analtico, a fim de se delimitar um determinado discurso em relao aos outros.

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nenhuma aproximao do sentido desses pr-construdos, so apenas colocados uns ao lado dos outros. Na SDR 3, no h um efeito de linearidade sinttica nem discursiva. Na SDR 2, apesar de a referncia do paciente produzir um efeito de fragmentao, devido desestruturao do discurso do paciente, o discurso bblico ressoa nesse discurso. Para Serrani (1993, p.120), a ressonncia a relao de parfrase que h entre unidades lingsticas e saberes do interdiscurso. A autora prope dois tipos de ressonncia: um em relao repetio parafrstica de unidades lexicais e frases nominais e outro em relao ao retorno de saberes do interdiscurso em que h uma variedade em relao aos modos de dizer desses. Para o nosso trabalho, utilizaremos o primeiro tipo. No discurso do paciente, o pr-construdo - o reino dos cus pertence s criancinhas ressoa na SDR 2, conforme podemos visualizar no Quadro 4.Referente bblico: criancinhas Referncia do paciente: criancinhas

Reino dos cus pertence s criancinhas.

So todas as criancinhas d Aquelas que querem ser anjos.o mundo todo.

Quadro 4: Referente criancinhas Conclumos, pela anlise realizada no bloco 2, que o paciente, alm de ser afetado pelo discurso pentecostal, conforme constatamos no bloco 1, afetado tambm pelo discurso bblico. Podemos constatar, nas trs SDR, que o paciente apropria-se do discurso religioso. Porm, essa apropriao no produz plenamente os efeitos de homogeneidade, de origem e de linearidade. BLOCO DISCURSIVO 3 Referente: Menino endemoninhado Estudaremos, no bloco 3, o estabelecimento da referncia ao referente bblico menino endemoninhado. Para isso, exporemos as seqncias discursivas em que o paciente estabelece o trabalho de

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referncia a esse referente. Aps, as compararemos ao trecho bblico em que estabelecido o referente menino endemoninhado, citado acima. Em seguida, compararemos o referente produzido no discurso do paciente ao pr-construdo pentecostal loucura como possesso demonaca.SDR 1 Paciente: Eu no quero enterrar os dois talentos. Eu disse pra me: o menino quer que eu me enterre nos dois talentos. O menino no tem poder. Vou deixar esse cigarro, vou deixar de tudo. SDR 2 Paciente: [...] Meu amigo que tinha, o diabo se atravessou, o diabo botou outro gurizinho. O diabo sujo, o diabo sujo, botou olho grosso.

Em Marcos 9:17, citado acima, h o relato da possesso de um menino pelo demnio. Como vimos na primeira parte desse texto, relacionar a loucura possesso demonaca um pr-construdo da formao discursiva pentecostal. O paciente apreende o referente bblico a partir dos saberes do discurso pentecostal, ou seja, o discurso bblico reformado pelo vis do discurso transverso da formao discursiva pentecostal. Dessa forma, podemos constatar que o discurso do paciente est refletindo a reformulao pentecostal do discurso bblico. Tanto as SDR 1 e 2 (sujeito enunciador esquizofrnico) quanto a SDR II (no-esquizofrnico) fazem referncia ao referente pentecostal demnio causador da loucura. Na SDR II, a cura do menino endemoninhado retomada atravs de discurso transverso pelo sujeitoenunciador no-esquizofrnico a partir da interpretao pentecostal. No discurso do paciente esquizofrnico, h tambm uma apropriao do discurso bblico pelo pentecostal, mas, diferentemente desses discursos, o referente menino sai de uma posio passiva na possesso e se transforma em agente do mal, juntamente com o demnio. Alm dessa diferena de efeito de sentido entre o referente apropriado pelo paciente, o referente bblico e o referente pentecostal, podemos constatar outra, em relao ao aspecto formal da referncia estabelecida pelo esquizofrnico. No discurso do esquizofrnico, h uma equivalncia lexical entre menino e gurizinho. O paciente 408Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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apresenta o referente menino endemoninhado, a partir de uma reformulao tanto no sentido quanto no aspecto formal do referente pr-construdo da Bblia. O paciente supe que seu problema se deve possesso, mostrando, assim, que essa referncia est relacionada ao referente discursivo loucura da igreja pentecostal, como podemos ver na SDR a seguir: Ento eu sei como que . Quando vem esprito na gente, n? Te adoenta. Ele utiliza o referente bblico ressignificado pela formao discursiva pentecostal para falar da sua doena. Porm, o paciente modifica o seu referente em relao ao pentecostal e ao bblico. Ou seja, apesar das diferenas, ambos discursos ressoam no esquizofrnico. No Quadro 5, compararemos o referente bblico menino endemoninhado, o referente pentecostal loucura, e o referente do paciente menino ou gurizinho:

Referente bblico: menino endemoninhado

Referente pentecostal: loucura

Referente do paciente: menino ou gurizinho

No est relacionado loucura

Loucura como possesso demonaca

O paciente retorna ao referente pr-construdo bblico, menino endemoninhado, a partir do referente pr-construdo loucura da igreja pentecostal

Quadro 5: Comparao de referentes

O discurso do paciente apropria-se do referente bblico menino endemoninhado, ocultando o adjetivo, a partir da ressignificao pentecostal, para falar de sua doena.

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Em relao tomada de posio do paciente, no observamos nem adeso plena nem adeso parcial no processo de referncia de um referente pentecostal, tal como ocorre no discurso do noesquizofrnico. O paciente no adere plenamente ao pr-construdo pentecostal, na medida em que o modifica tanto no aspecto formal (menino / gurizinho) quanto no nvel do sentido (o menino no o paciente da possesso demonaca, mas o agente). Porm, no h tampouco uma adeso parcial, porque os saberes da formao discursiva pentecostal no so questionados e no h uma apropriao de outros saberes que venham a complementar esse, como podemos observar na SDR IV (sujeito enunciador noesquizofrnico). Mesmo modificados, ambos os discursos ressoam no dizer do paciente. Para esse dizer produzir efeito de sentido, necessrio um trabalho de memria desses discursos no texto. BLOCO DISCURSIVO 4 Referente: Enterrar os talentos Neste bloco, temos como objetivo estudar a referncia estabelecida pelo paciente ao referente bblico enterrar os talentos. Para isso, recuperaremos o trecho bblico onde construdo esse referente, a fim de o compararmos s SDR do paciente. Aps, verificaremos como ocorre a apropriao dessa referncia no discurso do paciente.SDR 1 Paciente: Eu no vou enterrar os dois talentos das criancinhas. Entrevistador 2: Como? Paciente: Eu no vou enterrar os dois talentos, eu tenho duas talentos. Entrevistador 2: Quais so os dois? Paciente Ahm? Entrevistador 2: Quais so os dois talentos? Paciente: O pandeiro e o louvor. Entrevistador 2: O louvor? Paciente: Isso. O pandeiro e o louvor. O louvor que rpido, eu no vou enterrar meus talentos das criancinhas. O louvor que rapidinho, furioso. Eu quero ser ele. Mas o louvor que rpido outra vida, a vida eterna. SDR 2 Paciente: Eu no quero enterrar os dois talentos. Eu disse pra me: o menino quer que eu me enterre nos dois talentos. O menino no tem poder. Vou deixar esse cigarro, vou deixar de tudo.

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Patrcia Laubino Borba SDR 3 Entrevistador 1: S pra gente entender um pouco sobre o que tu t falando ... Paciente: Eu t pecando com o senhor, n? Eu tenho dois talentos, t fumando cigarro, fumando maconha, tomando vinho ... Entrevistador 1: T, isso a o pecado que tu t falando. Paciente: o pecado. Entrevistador 1: E o que que enterrar as crianas pra mim... Paciente: No enterrar os dois talentos. SDR 4 Paciente: Eu no vou enterrar o meu talento, juro por Deus. Em nome de Jesus Cristo, no vou enterrar. Isso que eu fico s vezes meio indignado. SDR 5 Entrevistador: Ah, enterrar os talentos. Paciente: a mesma coisa que se tu pegar cinco quilos de ouro, mandar as tombadeiras l e no acrescentar pro senhor na hora dos talentos. Tem que acrescentar pra eles.

Para melhor trabalharmos com o discurso em anlise, recuperaremos, inicialmente, o discurso bblico ao qual o paciente se refere e que apropriado de forma transversa em seu discurso. No texto bblico Parbolas dos Talentos Mateus 25:14 , h a construo do referente talentos:14 Pois assim como quando um homem, preste a viajar para fora, convocou escravos seus e confiou-lhes os seus bens. 15 E a um deles deu cinco talentos, a outro dois, e a ainda outro um, a cada um segundo a sua prpria capacidade, e viajou para fora. 16 Aquele que recebera cinco talentos foi imediatamente e negociou com eles, e ganhou outros cinco. 17 Do mesmo modo, aquele que recebera dois ganhou mais dois. 18 Mas aquele que recebera apenas um foi e cavou no cho, e escondeu o dinheiro de prata de seu amo. 19 Depois de muito tempo voltou o amo daqueles escravos e ajustou contas com eles.12

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Grifos nossos.

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H um efeito de familiaridade13 entre o texto bblico e a referncia produzida pelo paciente, o que indica que estamos diante de funcionamento do discurso transverso no discurso do paciente. Para o paciente, enterrar os talentos produz um efeito de sentido de inaceitabilidade (conforme SDR 4), tal como para o texto bblico (conforme 25:26 at 25:30). No referente enterro do discurso do paciente est ressoando o referente bblico enterro construdo nesse trecho bblico (25:18) cavar no cho e esconder. Apesar de o texto bblico ser normalmente lido como uma alegoria, ou seja, em seu sentido metafrico, o paciente apropria-se dos referentes bblicos sem nenhuma interferncia de outros discursos como ocorre no discurso religioso que pudessem criar um distanciamento interpretativo desses referentes. Desse modo, para o paciente, enterrar os talentos cavar no cho e esconder algo. Analisaremos, a partir de agora, qual o referente da palavra talentos que est vinculado referncia do paciente. Na SDR 1, a referncia talentos, feita pelo paciente, foi associada a dois elementos [tocar] pandeiro e [fazer o] louvor [a Deus] que, em um primeiro momento, poderiam ser compreendidas como metafricos. Porm, vamos aceitar o pressuposto lacaniano de que o psictico no realiza metfora organizada pelo Nome do Pai, ou seja, apesar de ter mecanismos lingsticos que produzam metforas, essas no estaro inscritas no simblico, e, desse modo, sero metforas delirantes. Na SDR 5, o sintagma enterrar os talentos, produz o efeito de sentido de cavar e esconder para enterrar, e faz ressonncia ao referente bblico talentos, que uma moeda de prata, apesar de o paciente construir discursivamente, para o referente talentos, o efeito de sentido ouro. Mesmo assim, se mantm a idia original de cavar e esconder um metal precioso. Outro efeito de familiaridade com o texto bblico a referncia hora dos talentos, que tem como referente o momento em que o senhor chama os escravos para pedir que lhe devolvam o dinheiro. Esse efeito de familiaridade o resultado do atravessamento do discurso transverso.13

Efeito de familiaridade o que permite entrar no discurso do esquizofrnico, para estudar seu funcionamento, porque a partir dele que podemos estabelecer alguma relao de sentido para essas formulaes, apesar da inconsistncia de seu dizer. Essa noo est ligada de memria discursiva, na medida em que no sobre o dito que pode haver algum efeito de sentido, mas sobre os vestgios de discursos-outros que esto sendo evocados (BORBA , 2006, p.51).

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No Quadro 6, mostraremos em que passagens o discurso do paciente remete a um ou outro referente.Referente de Talentos 1: pandeiro e louvor Referente de Talentos 2: ouro (bblico)

Eu no vou enterrar os dois talentos (SDR 1)

Pegar cinco quilos de ouro,mandar as tombadeiras l e enterrar (SDR 5)

Quadro 6: Referente talentos Efeito metafrico, para Pcheux (1969, p.96), um fenmeno semntico que consiste na substituio contextual de dois elementos que compartilham sentidos um com outro. Ou seja, dentro de uma realizao linguageira, dois ou mais elementos podem se substituir mutuamente, produzindo, assim, um deslizamento de sentido. No bloco 3, constatamos que h um deslizamento, estabelecido pela referncia a talentos, no em relao ao sentido, mas aos referentes discursivos 1, pandeiro e louvor, e ao referente 2, ouro. Como vimos, o referente enterrar est vinculado ao discurso bblico [cavar no cho e esconder]. Desse modo, o sintagma enterrar os talentos estabelece duas referncias: 1. cavar no cho e esconder as habilidades de tocar pandeiro e louvar a Deus e 2. cavar no cho e esconder o ouro. Esses dois efeitos de sentido estabelecem uma relao de identidade para o paciente e, desse modo, compem uma metfora que se baseia em uma estrutura delirante, conforme Calligaris (1989, p.74). Referindo-se aos deslizamentos de sentido que so estabelecidos no discurso dos psicticos, Orlandi (2001, p.89) afirma que cabe ao terapeuta interpretar [esses deslizamentos], com os recursos tericos disponveis em seu domnio de conhecimento. Acreditamos que o papel que nos cabe, nesse trabalho, perceber como funciona a referncia no discurso do esquizofrnico, e no entrar na especificidade de como se estrutura a metfora delirante desse indivduo.

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CONCLUSO Constatamos, a partir da anlise dos quatro blocos discursivos, que o mecanismo de referncia no discurso do esquizofrnico submetido ao interdiscurso, ou seja, a referncia se ancora em fragmentos do discurso em que o paciente est inscrito e, dessa forma, faz ressoar saberes das formaes discursivas que o afetam. O que distingue a referncia no discurso do esquizofrnico da realizada no discurso normal (do neurtico) que aquela, apesar de estar relacionada ao interdiscurso, enfrenta desestruturao, tanto horizontal quanto vertical. No processo discursivo dito normal, so oferecidos aos interlocutores diversos referentes inscritos em formaes discursivas diferentes que esto sendo manipulados na cena enunciativa; a escolha desses referentes est submetida ao assujeitamento do sujeito da enunciao. Os referentes que no pertencem s formaes discursivas que afetam os sujeitos so apropriados a partir dos sentidos possveis dentro dessas formaes, ou seja, nas palavras de Maingueneau (2005, p.104), h uma traduo dos elementos pertencentes a uma formao discursiva para que sejam apropriados por outra. A apreenso do referente, no discurso dos fiis noesquizofrnicos, se d de duas formas: (1) a partir de uma adeso plena do referente e (2) a partir de uma adeso parcial. Na apropriao plena do referente (SDR III), o fiel no questiona os saberes da formao discursiva, nem utiliza outros discursos na apreenso do referente. Na apropriao parcial (SDR IV), o fiel faz referncia loucura, utilizando diferentes referentes: o da formao discursiva da medicina e o da formao discursiva da igreja pentecostal. Nesse tipo de apropriao, a referncia, apesar de ser centrada em uma formao discursiva, sofre influncia, em algum grau, de outra. Retomando as anlises a respeito da apropriao do referente do paciente esquizofrnico, vemos que, no bloco discursivo 1, h apropriao plena do referente do discurso pentecostal vida eterna, sem que haja questionamento desses saberes e sem que haja interferncia de outros discursos. No bloco 2, encontra-se tambm a apropriao plena, porm, dessa vez, de um referente do discurso bblico criancinhas. No bloco 3, existe uma tentativa de apropriao parcial do referente bblico menino endemoninhado, a partir dos saberes da igreja pentecostal -- o demnio como causa da loucura. Apesar de 414Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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haver interferncia do discurso pentecostal no referente bblico menino endemoninhado, no h um questionamento do saber bblico que resulte em uma mudana formal (menino / gurizinho) ou em uma de sentido (menino paciente da possesso por menino agente da possesso). No bloco 4, h uma desestruturao vertical na apropriao do referente bblico talentos, na medida em que, nessa apropriao desorganizada, no h nem a apreenso do referente bblico nem a produo de um referente de forma consistente. Essa referncia resulta apenas da retomada de alguns fragmentos do discurso bblico. Isso permite que haja um efeito metafrico no previsvel, como observamos nesse bloco. Em nossas anlises, constatamos que o paciente afetado por duas formaes discursivas: a pentecostal e a bblica. Podemos constatar tambm que h uma estruturao vertical, e essa, apesar de falha em alguns momentos, permite que esse sujeito seja afetado pelas formaes discursivas. Alm disso, h, em muitos momentos, uma desestruturao horizontal. Podemos observar que h perda do efeito de linearidade e de origem no bloco 1 (SDR 1) e no bloco 2. Um dos motivos pelos quais no h efeito de linearidade na fala do paciente a incapacidade de sintagmatizao dos referentes. O paciente mantm em seu discurso o efeito de fragmentao proveniente do interdiscurso e isso no permite que haja nem o efeito de origem, nem o efeito de linearidade. A manipulao dos referentes pelo paciente esquizofrnico causa um efeito de sentido de imposio, ou seja, esses referentes pertencem a discursos especficos e no podem ser deles desvinculados. Em meio a diversos referentes, o paciente no os traduz a partir do discurso a que assujeitado; os referentes prconstrudos do discurso da pentecostal e do discurso da Bblia esto mobilizados sem que haja a interferncia de outros discursos. Segundo Roustang (1987, p.204), o psictico no pensa, menos ainda se pensa; ele pensado, ele puro destino. A partir da anlise dos quatro blocos desse recorte, podemos estender essa afirmao para o discurso: o psictico no fala, ele falado. A apreenso feita pelo paciente dos referentes pr-construdos tanto do discurso pentecostal quanto do bblico produz um efeito de sentido de imposio, mas no aquela da interpelao, em que o sujeito livre para livremente submeter-se ideologia (Althusser, 1996). uma imposio desordenada, que tem sua origem na falha da insero do psictico no discurso.Linguagem & Ensino, Pelotas, v.11, n.2, p.393-417, jul./dez. 2008

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Devido fragmentao no fio do discurso do esquizofrnico, para produzir algum efeito de sentido, necessrio relacionar esse discurso com outro (o pentecostal, o bblico, etc.), porque o discurso do paciente no tem sentido em si. Isso enfatiza nossa afirmao de que o esquizofrnico no fala, mas falado. Se Roustang (1987) parte da perspectiva psicanaltica para mostrar essa dependncia do psictico em relao ao pensamento do outro, ns partimos da perspectiva do discurso a fim de mostrar a dependncia do esquizofrnico em relao ao discurso do outro para produzir efeito de sentido. Isto , a Anlise do Discurso possibilita perceber este tipo de funcionamento: o discurso do esquizofrnico no produz efeitos de origem, de linearidade e de homogeneidade por si s; necessrio que o discurso de origem seja identificado para que seu discurso faa sentido.REFERNCIAS ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideolgicos de Estado. In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. p.105-142. BORBA, Patrcia Laubino. O funcionamento da referncia na perspectiva da Anlise do Discurso: um estudo sobre o discurso do esquizofrnico. 2006. 175f. Dissertao (Mestrado em Letras) -- Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. CALLIGARIS, Contardo. Introduo a uma clnica diferencial das psicoses. Porto Alegre: Artes Mdicas, 1989. FIGUEIREDO, Ana Elisa Bastos. Doena mental e as religies pentecostais: um estudo interpretativo sobre as relaes entre a atitude religiosa e a reabilitao psicossocial no Brasil. 2000. 199f. Tese (Doutorado) -Instituto de Psiquiatria, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2000. INDURSKY, Freda. Lula l: estrutura e acontecimento. Organon, Porto Alegre, UFRGS, v.17, n.35, p.101-121, 2003. MAINGUENEAU, Dominique. Gnese dos discursos. Curitiba: Criar Edies, 2005 [1984]. ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silncio: no movimento do sentido. So Paulo: Editora da Unicamp, 1993. ______. Anlise do Discurso: princpios e procedimentos. So Paulo: Pontes Editora, 2001.

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