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Escravos e africanos no Paraná, 1853-1888: uma história inscrita nas possibilidades de um catálogo
Luiz Geraldo Silva.
Departamento de História/UFPR
A 23 de dezembro de 1854, o funcionário da Secretaria de Polícia da Corte,
Jerônimo de Castro Figueiredo de Mello, remetia a Manoel Leocádio de Oliveira, Delegado
de Polícia de Paranaguá, o “africano livre” Pedro. Conforme o ofício enviado do Rio de
Janeiro, este fora designado pela expressão “congo”, o que talvez pudesse significar que
seu local de nascimento, e com mais certeza seu porto de embarque, fosse próximo a algum
ponto do litoral da África Centro-Ocidental. Poucos dias depois, a 6 de janeiro de 1855,
Pedro desembarcava no porto de Paranaguá. Começava, então, uma longa viagem serra
acima, na qual seguiu de Paranaguá a Antonina, para daí ser remetido a Curitiba. Cinco
anos depois, têm-se, aparentemente, novas notícias acerca de Pedro, o “africano livre”. Em
agosto de 1860, ele parecia residir em Curitiba, bem como aparentava padecer de alguma
enfermidade. Naquele mês e ano, consumira 6 mil réis em medicamentos na botica do
farmacêutico alemão e, mais tarde, vice-presidente da Câmara Municipal de Curitiba,
Augusto Stellfeld (Colatusso 2004: 88). A falta de um senhor – pois Pedro era, afinal, um
“africano livre” –, Stellfeld não hesitou em reclamar ao governo provincial os custos dos
medicamentos. 1
Contudo, o Inspetor da Tesouraria da Fazenda da província do Paraná, Vicente
Maciel Pinheiro, considerou que aquela quantia deveria “ser paga pela pessoa ou repartição
a quem o dito africano estiver prestando serviços”, e não pelo governo provincial.
Aparentemente, todavia, Pedro teve sua saúde restabelecida após este episódio porque,
finalmente, a 31 de agosto de 1864, ele alcança uma posição vantajosa em face de sua triste
sina de “africano livre”: recebe sua carta de emancipação, e é registrado como
1 Cf: Carta de Jerônimo de Castro Figueiredo de Mello, funcionário da Secretaria de Polícia da Corte a Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná. AP 0008, vol. 07, pág. 230. Rio de Janeiro, 23 de dezembro de 1854; Carta de Manoel Leocádio de Oliveira, Delegado de Polícia de Paranaguá a Zacarias de Goes e Vasconcellos, Presidente da província do Paraná. AP 0012, vol. 01, pág. 263. Paranaguá, 6 de janeiro de 1855; Carta de Vicente de Mello Wanderley Maciel Pinheiro, Inspetor da Tesouraria da Fazenda da província do Paraná a José Francisco Cardoso, Presidente da província do Paraná. AP 0096, vol. 12, pág. 169. Curitiba, 16 de agosto de 1860.
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“emancipado” por Luís Francisco da Câmara Leal, Chefe de Polícia da província do
Paraná.2
A trajetória de Pedro, “nação” “congo”, acena para o triste destino reservado aos
africanos que, desembarcados no Império depois da lei de 7 de novembro de 1831, se viram
na contingência de nem serem cativos nem homens livres. Situados numa categoria
transitória, os chamados “africanos livres” foram alocados em diversas instituições
governamentais, bem como foram convertidos em moeda de troca para funcionários do
Estado imperial que os dirigiam aos seus domínios privados. Teoricamente, eles deveriam
prestar serviço sob contrato, no qual previa-se que após 14 anos de trabalho árduo eles
seriam emancipados. Contudo, muitos “africanos livres” permaneceram presos aos seus
administradores muitos anos além do previsto, ao passo que muitos outros jamais
conheceram a condição de “emancipados”, uma vez que acabaram por perecer na servidão
ao Estado imperial. Embora fossem, a princípio, destinados a instituições específicas,
muitos transitaram por diversos locais antes de se depararem com a emancipação ou com a
morte (Mamigonian 2002).
Poucos “africanos livres” remetidos à província do Paraná viveram em Curitiba –
como foi, aparentemente o caso de Pedro. A larga maioria foi dirigida aos aldeamentos
indígenas da província – como os de São Jerônimo, São Pedro de Alcântara, Paranapanema
e Pirapó. Conforme se lê nos relatórios de presidentes de província, o aldeamento de São
Pedro de Alcântara – cujo nome era uma notória alusão ao do imperador – constituía, em
inícios da década de 1860, o melhor estruturado e o mais populoso aldeamento da província
do Paraná – tanto no que diz respeito à população indígena como à população de “africanos
livres”. Contudo, sua evolução, como a de todos os aldeamentos, revelou problemas difíceis
e complexos. Criado em 1855, sua vida dura e difícil já era denunciada a 19 de março de
1856, ou seja, poucos meses depois de sua fundação. Em carta daquele dia e ano, seu
diretor, frei Timotheo de Castelnuovo, reclamava ao governo provincial “recursos para
manter o aldeamento que passa por dificuldades, mal conseguindo alimentar os índios e
2 Cf: Carta de Vicente de Mello Wanderley Maciel Pinheiro, Inspetor da Tesouraria da Fazenda da província do Paraná, a José Francisco Cardoso, Presidente da província do Paraná. AP 0096, vol. 12, pág. 169. Curitiba, 16 de agosto de 1860; Carta de Luís Francisco da Câmara Leal, Chefe de Polícia da província do Paraná a José Joaquim do Carmo Júnior, Presidente da província do Paraná. AP 0189, vol. 14, pág. 202. Curitiba, 31 de agosto de 1864.
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africanos livres que ali vivem”. Não por acaso, pois, o mesmo frei Timotheo comunicava a
8 de agosto de 1856 “a morte de dois africanos livres, Tibúrcio e Delfino”. 3
Ao mesmo tempo, a prática de atos violentos parecia constituir um traço estrutural
desses agregados humanos forçados. A 4 de fevereiro de 1858, o subdelegado de polícia da
província, Thomaz José Muniz, oficiava ao presidente do Paraná, Francisco Liberato de
Mattos, sobre o “ferimento causado em Antônio Francisco” do qual eram “acusados ... dois
africanos do Aldeamento de São Pedro de Alcântara”. Ademais, Muniz sugeria ao
presidente da província que aqueles “africanos livres” pareciam ter agido em nome de
outrem, pois ele acusava “o cadete Antônio Lopes Siqueira de ser o mandante do crime”.
Um caso grave, envolvendo um africano livre e um índio “coroado” ocorreu em outro
aldeamento, o de Pirapó. A 29 de setembro de 1862, o Chefe de Polícia da província do
Paraná, Sebastião Gonçalves da Silva, oficiou ao “Delegado de Polícia de Jataí sobre a
3 Cf: Carta de Timotheo de Castelnuovo, frei, Diretor do Aldeamento de São Pedro de Alcântara, a Vicente Pires da Motta, Presidente da província do Paraná. AP 0027, vol. 03, págs. 331. Aldeamento de São Pedro de Alcântara, 19 de março de 1856; Carta de Timotheo de Castelnuovo, frei, Diretor do Aldeamento de São
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formação de culpa do africano Ambrósio, acusado de matar um índio coroado em Pirapó,
no dia 5 de fevereiro” daquele ano. Como não se tratava de um escravo, embora também
não fosse um homem livre, Ambrósio acabou sendo “pronunciado no artigo 193 do Código
Criminal” a 15 de outubro de 1862. Pouco depois, porém, Ambrósio foi a julgamento, no
qual acabou por ser absolvido pelo júri. Conclui-se, assim, que nos ermos da província, os
aldeamentos apresentavam um quadro de desolação e de relações sociais marcadas pela
violência, as quais envolviam índios, “africanos livres” e a população de seu entorno.4
A despeito desse quadro de dificuldades, o aldeamento de São Pedro de Alcântara,
particularmente, viu o número tanto de africanos livres como de índios crescerem
gradativamente até meados da década de 1860. Em novembro de 1858, por exemplo,
apenas os “africanos livres” constituíam um grupo de 44 pessoas, conforme se lê em carta
do frei Timotheo de Castelnuovo endereçada ao presidente da província, Francisco Liberato
de Mattos. Este, ademais, afirmou na abertura da Assembléia Legislativa, a 7 de janeiro de
1858, que os “africanos livres” existentes em São Pedro de Alcântara moravam desde então
“em diversos ranchos cobertos de palha”. Ao mesmo tempo, existiam naquele aldeamento,
graças ao trabalho empreendido pelos grupos ali forçosamente congregados, “canaviais e
roças de mandioca e do mais pertencente aos índios e africanos”. Além disso, “foram
plantados 22 alqueires de milho, 4 de feijão e 5 de arroz, e preparado um pasto e gramado”.
No ano seguinte, a 7 de janeiro de 1859, a população de africanos livres de São Pedro de
Alcântara havia diminuído para “35 escravos da nação ao serviço do aldeamento”. Note-se,
aliás, que expressão “africano livre”, sempre presente à documentação, desaparecia então
para dar lugar a de “escravo da nação” – embora cínica, talvez mais própria e realista.
Contudo, era possível saber o sexo daquele pequeno grupo: “18 do sexo masculino e 17 do
feminino” – informa o presidente da província naquela circunstância. Havia, pois, pelo
menos, algum equilíbrio entre os sexos. Neste momento, ademais, o aldeamento em questão
abrigava cerca de 300 índios, e possuía “11 casas cobertas com telhas, inclusive a destinada
Pedro de Alcântara, a Vicente Pires da Motta, Presidente da província do Paraná. AP 0032, vol. 08, pág. 358. Aldeamento de São Pedro de Alcântara, 8 de agosto de 1856. 4 Cf: Carta de Thomaz José Muniz, Subdelegado de Polícia, a Francisco Liberato de Mattos, Presidente da província do Paraná. AP 0055, vol. 03, págs. 448/450. Colônia Militar do Jataí, 4 de fevereiro de 1858; Carta de Sebastião Gonçalves da Silva, Chefe de Polícia da província do Paraná, a Antônio Barbosa Gomes Nogueira, Presidente da província do Paraná. AP 0144, vol. 15, págs. 311/312. Curitiba, 29 de setembro de 1862; Carta de Bento Florêncio Munhoz, Delegado de Polícia, a Antônio Barbosa Gomes Nogueira, Presidente da província do Paraná. AP 0145, vol. 16, págs. 60/61. Curitiba, 15 de outubro de 1862.
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para a celebração do culto divino”, além de uma olaria e uma ferraria. Finalmente, em
1866, a população local de “africanos livres” era de 69 pessoas, ao passo que a indígena
contabilizava cerca de 400 pessoas. 5
Para alguns “africanos livres” os aldeamentos poderiam significar uma situação
menos dramática que a vivida em outros contextos provinciais de servidão forçada. A esse
respeito, merece consideração o caso de João e Josefa, um casal de africanos de nação
“mina”, isto é, oriundos da África Ocidental – região na qual, pelo menos teoricamente, o
tráfico de almas estava extinto desde pelo menos 1815. Em setembro de 1857, João e Josefa
trabalhavam “na construção da estrada para a Colônia Militar do Jataí”, quando foram, não
sem objeção de seus administradores, requisitados “para auxiliar no serviço doméstico do
aldeamento de São Jerônimo”. A princípio, o encarregado pela construção da estrada do
Jataí, Feliciano Nepomuceno Prates, que possivelmente havia recrutado aquele casal de
“africanos livres”, não gostou muito da idéia. Ele notava, em ofício de 5 de novembro de
1857,“a falta que os africanos fariam” à construção pela qual, aparentemente, ele era
responsável. Mas cedia ao pedido porque, assim instado, “obedeceria à ordem da
Presidência da província”. Ao que tudo indica, a transferência do Jataí ao aldeamento São
Jerônimo ocorrera para a sorte de João e Josefa que, subtraídos do duro serviço de abridores
de estradas, passariam a servir como auxiliares de serviço doméstico – aparentemente, um
mal menor. 6
Embora a maior parte dos “africanos livres” fosse destinada aos distantes
aldeamentos existentes às margens dos rios Tibagi, Paranapanema e Paraná, algumas
poucas pessoas dessa estranha condição tiveram como destino a própria capital da província
– tal como acontecera, como se viu, com o centro-africano Pedro. Um outro exemplo nessa
5 Cf: Carta de Timotheo de Castelnuovo, frei, Diretor do Aldeamento de São Pedro de Alcântara, a Francisco Liberato de Mattos, Presidente da província do Paraná. AP 0064, vol. 12, págs. 332/333. Aldeamento de São Pedro de Alcântara, 1° de novembro de 1858; Relatório do presidente da província do Paraná, Francisco Liberato de Mattos, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 7 de janeiro de 1858. Curityba: Typ. Paranaense de C. Martins Lopes, 1858, pp. 22-23; Relatório do presidente da província do Paraná, Francisco Liberato de Mattos, na abertura da Assembléia Legislativa Provincial em 7 de janeiro de 1859. Curityba: Typ. Paranaense de Candido Martins Lopes, 1859, pp. 12-13; Falla dirigida á Assembléia Legislativa Provincial do Paraná na primeira sessão da oitava legislatura em 15 de fevereiro de 1866 pelo presidente, André Augusto de Padua Fleury. Curityba: Typ. de Candido Martins Lopes, 1866, p. 11. 6 Cf: Carta de Joaquim Francisco Lopes a José Francisco Cardozo, Presidente da província do Paraná. AP 0077, vol. 10, pág. 123. Curitiba, 21 de setembro de 1857; Carta de Feliciano Nepomuceno Prates a José Francisco Cardozo, Presidente da província do Paraná. AP 0079, vol. 12, pág. 123. Castro, 5 de novembro de 1857.
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direção está contido na missiva de 15 de agosto de 1862, escrita pelo então Chefe de Polícia
da província do Paraná, Sebastião Gonçalves da Silva. Nesta solicitava, através da
presidência da província, “o pagamento de 4$800 réis, ao carcereiro Manoel Tavares de
Miranda, pelo enterro do africano livre Joaquim, servente da cadeia da capital”. Joaquim
trabalhara, pois, como administrado na casa de detenção de Curitiba e, nessa condição,
morrera sem ser emancipado. Juntara-se a muitos outros que, mesmo não sendo cativos,
morreram sem conhecer a liberdade.7
Foi apenas com o decreto n° 3.310, de 24 de setembro de 1864, que se concedeu a
“emancipação a todos os africanos livres existentes no império”. Conforme seu artigo 1°,
ficavam emancipados “todos os Africanos livres existentes no Império a serviço do Estado
ou de particulares, havendo-se por vencido o prazo de quatorze anos do Decreto número
mil trezentos e três de vinte e oito de Dezembro de mil oitocentos e cinqüenta e três”. O
artigo seguinte, por sua vez, determinava que as “cartas de emancipação desses Africanos
serão expedidas com a maior brevidade, e sem despesa alguma para eles, pelo Juízo de
Órfãos da Corte e Capitais das Províncias, observando-se o modelo até agora adotado: e
para tal fim o Governo na Corte e os Presidentes nas Províncias darão as ordens
necessárias”. 8
Porém, no Paraná, muitas outras pessoas desta condição ainda permaneceriam
distantes da emancipação até 1866, isto é, dois anos depois da publicação daquele decreto.
Embora fosse um fato que, neste ano, 121 “africanos livres” de vários recantos da província
tivessem sido notificados e recebido suas cartas de emancipação, muitas outras pessoas de
igual condição ainda desconheciam que, há dois anos, podiam gozar de sua liberdade. Uma
das razões desse lapso entre a promulgação da lei de 1864 e a concessão da carta de
emancipação a todos os “africanos livres” destinados ao Paraná decorria de aspecto
sintetizado pelo presidente da província, André Augusto de Pádua Fleury, em 15 de
fevereiro de 1866:
7 Cf: Carta de Sebastião Gonçalves da Silva, Chefe de Polícia da província do Paraná, a Antônio Barbosa Gomes Nogueira, Presidente da província do Paraná. AP 0143, vol. 14, págs. 328/329. Curitiba, 15 de agosto de 1862. 8 Cf: Decreto n° 3310, de 24 de setembro de 1864. Concede emancipação a todos os africanos livres existentes no Império. Collecção das Leis do Império do Brasil de 1864. Tomo XXVII, Parte II. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1864, pp. 160-161.
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Os [africanos livres] desta província, empregados quase todos em colônias indígenas, estavam à grande distância, alguns a 86 léguas da capital, e por isso houve muita dificuldade na entrega das cartas, visto ter exigido aquele decreto a sua presença perante o chefe de polícia: não obstante, este serviço está quase concluído. 9
Dos 121 “africanos livres” notificados em 1866, a maior parte – 69 pessoas – residia
em São Pedro de Alcântara. Contudo, neste ano, quatro pessoas da mesma condição ainda
prestavam serviços na capital – coisa injustificável, levando-se em consideração a
argumentação do presidente Fleury. Afinal, em 1866, a lei de 1864 podia quedar
desconhecida nos vales do Tibagi, do Paraná ou do Paranapanema, mas isto não deveria ser
tolerável em plena capital. Fosse como fosse, a emancipação daqueles que viviam nos
aldeamentos foi ainda mais lenta e difícil. Exemplo disso é que apenas a 3 de abril de 1866,
foi possível conceder cartas de emancipação aos “africanos livres” Francisco dos Santos e
Serafim dos Anjos, do aldeamento de São Jerônimo, e para José Antônio e Christina, da
Colônia do Jataí. 10
Se todos os “africanos livres” da província do Paraná foram “emancipados” entre
1864 e 1866, a escravidão real, efetiva e sem disfarces continuou existindo na província,
apesar de seu declínio paulatino. Como demonstrou Eduardo Spiller Pena (1999), a
escravidão local entrou em forte tendência de declínio após 1860 em decorrência da
posição estratégica do Paraná em relação a um dos centros dinâmicos de absorção de
cativos no Império, a vizinha província de São Paulo. Transações comerciais e vínculos
pessoais entre vendedores paranaenses em decadência e atilados compradores paulistas,
estes não apenas ligados às lavouras cafeeiras, mas também à infraestrutura voltada para
esse produto de exportação – como as estradas de ferro –, consumiram os escravos da
província do Paraná em poucos anos.
Contudo, talvez se devesse avaliar em minúcia os casos dos cativos residentes no
Paraná que acabaram sendo incorporados as forças militares durante a guerra do Paraguai
9 Cf: Falla dirigida á Assembléia Legislativa Provincial do Paraná na primeira sessão da oitava legislatura em 15 de fevereiro de 1866 pelo presidente, André Augusto de Padua Fleury. Curityba: Typ. de Candido Martins Lopes, 1866, p. 11. 10 Cf: Carta de Ernesto Dias Larangeiras, Chefe de Polícia da província do Paraná, a Agostinho Ermelino de Leão, Vice-presidente da província do Paraná. AP 0234, vol. 06, pág. 84. Curitiba, 3 de abril de 1866.
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(1864-1870). Foi na reunião do Conselho de Estado de 6 de novembro de 1866 que se
resolveu conceder alforria aos escravos que fossem alistados nas forças navais e de terra em
combate no país vizinho. Os conselheiros de Estado, porém, temiam que esta medida –
adotada graças a uma pequena margem de votos – causasse repercussão nas senzalas e entre
os proprietários. Vai daí esta ter sido implementada apenas à medida que se determinou que
aquele tipo de alforria estava duplamente condicionado: por um lado, haveria de prevalecer,
para que ela tivesse efeito, a vontade do senhor. Por outro lado, e mais importante, a
concessão da liberdade estava necessariamente condicionada a prestação de serviço militar
(Izecksohn 2004). Como afirmou naquele debate o conselheiro Souza Franco, não “se trata
de decretar a emancipação de todos os escravos do Império, questão muito importante, cuja
solução todos os dias se aproxima; trata-se somente de engrossar as fileiras do Exército”
(Nascimento 2000: 85-112).
Uma vez adotada, a medida tomada sob o espírito do esforço de guerra revelava as
debilidades de uma nação que dependia do braço escravo para o trabalho e, nessa
circunstância, para a guerra. Entretanto, os fazendeiros e proprietários em geral não se
revelaram os patriotas que os conselheiros de Estado imaginaram que eles fossem, uma vez
que receberam a notícia com grande ceticismo. A rigor, poucos foram os senhores que se
dispuseram a alforriar seus escravos em nome de um vago patriotismo. Os apelos
governamentais, veementemente manifestados a partir de dezembro de 1866, foram
finalmente respondidos à medida que o Império se dispôs a pagar – e caro – por aquelas
alforrias. Os senhores encontraram, assim, uma maneira rentável e vantajosa de se livrar de
cativos indesejáveis, insubordinados ou considerados preguiçosos (Izecksohn 2004: 197-
201).
Na província do Paraná, a venda de “cativos guerreiros” ao Estado foi promovida a
partir de fins de 1867. A 13 de dezembro daquele ano, por exemplo, um senhor de escravos
de Curitiba, Leonardo Correa da Silva, remeteu ao presidente da província, José Feliciano
Horta de Araújo, “a carta de liberdade de seu escravo Benedicto, a fim de que este sirva na
Armada Nacional, mediante a indenização de um conto e quinhentos mil réis”. No dia
seguinte, 14 de dezembro de 1867, foi a vez de Manoel de Freitas Saldanha, também de
Curitiba, embolsar um conto e duzentos e cinqüenta mil réis pelo envio ao presidente da
província da “carta de liberdade de seu escravo Messias, a fim de que este sirva na Armada
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Nacional”. Dois dias depois, a 16 de dezembro de 1867, outro senhor de Curitiba obteve
quantia ainda mais alentada pela venda de um cativo para o Estado. Refere-se aqui a nada
mais, nada menos, que Agostinho Ermelino de Leão, Juiz de Direito da província e membro
de importante família de ervateiros, o qual remetera “a carta de liberdade de seu escravo
Thomaz, para que este sirva na Armada Imperial, mediante a indenização de um conto e
quinhentos mil réis pagos pelo Estado”. Os exemplos de senhores que se livraram de seus
escravos supostamente indesejáveis são por demais abundantes para que se reproduzam
todos aqui. 11
Ademais, é verdade que nem todos vendiam cativos naquela circunstância de modo
a lucrarem às custas do erário público. Havia, ainda, casos como o do senhor de escravos de
Curitiba Joaquim Ventura de Almeida Torres, que, entre setembro e outubro de 1868,
concedera “liberdade ao seu escravo Francisco, para servir ao Exército em lugar de
Joaquim José Pedrosa Filho”. Prática comum por aqueles anos consistia, pois, em libertar
escravos e posteriormente enviá-los ao serviço de militar de modo a substituir a convocação
de filhos e netos de seus proprietários. Uma caricatura publicada na Semana Ilustrada em
23 de dezembro de 1866 ironiza essa prática.
11 Cf: Carta de Leonardo Correa da Silva, particular, a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0268, vol. 18, pág. 125. Cu ritiba, 13 de dezembro de 1867; Carta de Manoel de Freitas Saldanha, particular, a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0268, vol. 18, pág. 174. Curitiba, 14 de dezembro de 1867; Carta de Agostinho Ermelino de Leão, Juiz de Direito, a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0267, vol. 17, pág. 51. Curitiba, 16 de novembro de 1867.
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Abaixo dela, lê-se:
O Commendador Mathias Roxo e seus filhos Augusto e Frederico fazem de seus escravos cidadãos e dos cidadãos soldados. O coração do Imperador e a voz da pátria os apontam como exemplo a seguir. 12
No mundo rural, onde os cativos eram absolutamente necessários ao trabalho
agrícola, um caso merece destaque pela sua peculiaridade. Em 1868, um grupo de cinco
senhores rurais de Palmas, província do Paraná, comprara um escravo de nome Francelino
de modo a demonstrar seu desvelo patriótico. Como afirma um documento de 5 de
fevereiro daquele ano, Francelino fora “comprado por alguns moradores de Palmas para
servir na Armada Nacional”. Contudo, antes de ser entregue as autoridades, este fugiu.
Noutro documento elaborado por aqueles dias, Arlindo Silveira Miró, um dos cinco
compradores de Francelino, informava ao Presidente da província do Paraná, José Feliciano
Horta de Araújo, que o “escravo fugiu, não sendo capturado”. Remetia, ademais, em anexo,
“ofícios com as características físicas de Francelino, a escritura de compra e venda e o
recibo da meia-siza de escravos”. O que pretendia este senhor com o envio destes
documentos à presidência da província? Por que um escravo fugido interessava tanto ao
governo? Tais interesses em torno de Francelino pareciam desvendar as grandes
possibilidades de lucro em torno de sua venda ao Estado, as quais, como notou Vitor
Izeckson (2004) para o caso do Rio de Janeiro, pareciam criar ramificações e associações
entre senhores, intermediários e funcionários dos governos provinciais.13
Assim, a 27 de abril de 1868 Arlindo Silveira Miró voltava a enviar missiva a
presidência da província na qual informava: “consta que o escravo [Francelino] foi preso
em São Roque, província de São Paulo, e que já estavam tratando de sua remessa”. Por sua
vez, a 13 de maio de 1868, era, aparentemente, a própria presidência da província do
12 Cf: Carta de Joaquim Ventura de Almeida Torres enviando concessão de liberdade ao seu escravo Francisco, para servir ao Exército em lugar de Joaquim José Pedrosa Filho. AP 0287, vol. 14, pág. 59. Curitiba, 8 de setembro/8 de outubro de 1868; Semana Ilustrada. Sétimo ano, n° 315, 23 de dezembro de 1866, p. 2517. 13 Cf: Carta de Antônio de Sá Camargo, Comandante Superior de Guarapuava, Estevão de Souza Cortes, Indalécio Gardiniano da Silva, Carcereiro da Cadeia de São Roque, Manoel de Medeiros de Jesus e Arlindo Silveira Miró a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná, Antônio de Sá Camargo, Comandante Superior de Guarapuava e Manoel Ferreira Bello. AP 0281, vol. 08, págs. 11/15. Guarapuava/São Roque, 5 de fevereiro a 13 de abril de 1868; Carta de Arlindo Silveira Miró a José Feliciano
11
Paraná que solicitava “ao Chefe de Polícia da província de São Paulo, de que remetesse o
escravo Francelino para a Corte”. Dois dias depois, Francisco Antônio Nóbrega, procurador
de Arlindo Silveira Miró na capital da província, recolhera “aos cofres da Tesouraria Geral
o saldo de cento e trinta e cinco mil réis, restantes da compra do escravo Francelino feita
por Arlindo e outros, na freguesia de Palmas”. Isto parecia significar que o benemérito
grupo de senhores de Palmas havia comprado Francelino com o nítido objetivo de lucrar
nas suas costas negras, à medida que o vendessem para o Estado, e de se locupletar com
dinheiro público. Francelino dera trabalho, e não apenas a polícia do Paraná, mas também a
de São Paulo, mas acabara sendo remetido para a Corte, de onde ou embarcara para o
Paraguai, pagando com seu sangue pelos dissabores que causara, ou fora empregado nas
oficinas locais do Exército ou da Marinha, nas quais a demanda por artesãos e
trabalhadores especializados era também gritante. Calcula-se conservadoramente que 14%
dos gastos do Império na guerra do Paraguai decorreram da compra de cativos (Greenhalg
1965: 179), mas, sabe-se, igualmente, que o “alistamento de escravos e libertos durante as
fases iniciais da guerra não foi numericamente significativo” (Izecksohn 2004: 197). Ora,
isto significa que o alto custo dos escravos pouco representou do ponto de vista dos
esforços de guerra, e pouco concorreu para o seu fim; seus principais beneficiários foram,
na verdade, senhores e funcionários venais do Estado imperial. Por outro lado, em Palmas,
fazendeiros locais, como um grupo de investidores, achacaram o Estado e inscreveram seus
nomes entre os patriotas que ajudaram nos esforços de guerra.14
Os brevíssimos exames dos dois aspectos aqui considerados em torno da escravidão
na província do Paraná – o referente aos “africanos livres” e o concernente aos escravos
destinados as forças militares ao tempo da Guerra do Paraguai – basearam-se em apenas
dois tipos de materiais: relatórios de presidentes da província e suas falas a assembléia
provincial, por um lado, e o Catálogo Seletivo de documentos referentes aos africanos e
afrodescendentes livres e escravos (Arquivo Público do Paraná 2005), o qual está sendo
lançado nesta oportunidade. O que se apresentou aqui baseou-se em exame superficial, sem
Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0277, vol. 04, págs. 23/27. Curitiba, 17 de fevereiro de 1868. 14 Cf: Carta de Arlindo Silveira Miro a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0281, vol. 08, pág. 17. Curitiba, 27 de abril de 1868; Carta de Joaquim Floriano de Toledo a José Feliciano Horta de Araújo, Presidente da província do Paraná. AP 0282, vol. 09, pág. 227. São Paulo, 13 de maio de 1868.
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a pesquisa final, isto é, a leitura dos documentos no Departamento Estadual de Arquivo
Público. Contou-se aqui, em suma, tão somente com as referências contidas no catálogo.
Este meu péssimo exemplo não deve estimular os pesquisadores a se livrarem do contato
minucioso com as fontes, mas, ao contrário, sugere a riqueza que nos aguarda naquela
instituição, e do quanto esta nos põe em contato com seu acervo ao elaborar instrumento tão
rico, tão útil e tão fácil de consultar. Porém, o contato direto com as fontes pode, talvez,
conferir novas bases ao seu aperfeiçoamento. Por enquanto resta nos deliciarmos com sua
oportuna e admirável potencialidade.
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Referências bibliográficas: ARQUIVO PÚBLICO DO PARANÁ (2005). Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos. Curitiba: Imprensa Oficial. COLATUSSO, Denise Eurich (2004). Imigrantes alemães na hierarquia de status da sociedade luso-brasileira (Curitiba, 1869 a 1889). (Dissertação de Mestrado). Curitiba: PGHIS-UFPR. GREENHALG, J. (1965). O arsenal de marinha do Rio de Janeiro na história (1822-1889). Rio de Janeiro, A.M.R.J. IZECKSOHN, Vitor (2004). Recrutamento militar no Rio de Janeiro durante a Guerra do Paraguai. In: CASTRO, Celso, IZECKSOHN, Vitor & KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FVG. MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti (2002). Revisitando o problema da “transição para o trabalho livre” no Brasil: a experiência de trabalho dos africanos livres. Texto apresentado no Grupo de Trabalho Mundos do Trabalho – Jornadas de História do Trabalho. Pelotas, agosto. NASCIMENTO, Álvaro Pereira do (2000). Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra. Estudos Afro-Asiáticos. dez., no.38, p.85-112. PENA, Eduardo Spiller (1999). O jogo da face. A astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos Quatro Ventos.
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