CASA, Vol.9 n.2, dezembro de 2011
Disponvel em: http://seer.fclar.unesp.br/casa
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Cadernos de Semitica Aplicada
Vol. 9.n.2, dezembro de 2011
Publicao SEMESTRAL ISSN: 1679-3404
SUJEITO DO DISCURSO, CRISE DE IDENTIDADE E POTICAS
CONTEMPORNEAS
SUBJECT OF DISCOURSE, CRISIS OF IDENTITY AND CONTEMPORARY
POETICS
Jos Amrico Bezerra Saraiva
UFC Universidade Federal do Cear
RESUMO: Neste artigo empreendemos uma reflexo acerca da noo de sujeito do discurso e de sua
identidade, sobretudo a partir da noo de discurso em ato, desenvolvida por Fontanille e Zilberberg
(1998), e das contribuies de Landowski (1986, 1992, 2002) e Coquet (1997). Concomitantemente, apresentamos textos comprobatrios de que a conscincia do papel da linguagem, mediatizante e
instaurador do mundo e do sujeito a um s tempo, est na base da produo de autores modernos e
ps-modernos. Para tanto, lanaremos mo dos poemas Autopsicografia e Isto, de Fernando Pessoa, e depois recorreremos s letras das canes As coisas e Fora de si, de Arnaldo Antunes, como exemplos emblemticos desta conscincia da funo performtica da linguagem na constituio
do mundo e do sujeito enunciante.
PALAVRAS-CHAVE: enunciao; sujeito do discurso; identidade; potica.
ABSTRACT: The aim of this article is a reflection on the idea of the subject of discourse and his identity, particularly starting from the notion of discourse in act, developed by Fontanille and
Zilberberg (1998), and counting on the additional contribution of Landowski (1986, 1992 and 2002)
and Coquet (1997). At the same time, corroborative texts are presented, demonstrating the consciousness of the role of speech, mediating and establishing the world and the subject
simultaneously, at the basis of the work of modern and postmodern authors. To do so, Fernando
Pessoas poems Autopsicografia and Isto are employed, the lyrics As coisas and Fora de si, written by Arnaldo Antunes, are exploited as typical examples of this consciousness of the performative function of the speech in the constitution of the world and the enunciating subject.
KEYWORDS: enunciation; subject of discourse; identity; poetics.
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Ce qui est (dej) nest pas (encore) voici la Surprise. Ce qui nest pas (encore) est (dej) voil lattente.
Paul Valry (1973, p. 1290)
INTRODUO
A intrigante formulao da epgrafe, posta em circulao entre os semioticistas
de linha greimasiana por Zilberberg (1988), logra captar o ordenamento sintxico mnimo que
envolve as relaes entre sujeito e objeto num campo de presena. E somente num campo de
presena devidamente circunscrito que se pode distinguir o velho do novo, ou que se pode contrapor a reiterao do j estabelecido inovao pretendida pelos vanguardismos de
toda ordem. A assuno dessa sintaxe mnima cria, por exemplo, as condies para se falar de
rupturas nos modos de conceber e fazer arte, cabendo a quem se disponha tarefa mobilizar
um conjunto de grandezas/categorias que ordenem o campo discursivo em termos de
novidades e velhidades. Tal no o propsito deste artigo. Aqui pretendemos apenas apresentar algumas propostas desenvolvidas no mbito da semitica discursiva no que
concerne ao que chamaremos de papel performtico da linguagem e fornecer exemplos do
tratamento potico desta questo em textos modernos e ps-modernos.
Sabe-se que, no perodo que vai do Modernismo aos dias de hoje, ps-
modernos para muitos (ainda que no se tenha alcanado definir a Ps-modernidade com
alguma preciso), esta foi a bandeira empunhada por muitas das chamadas poticas
vanguardistas. Elas investiam na ruptura dos cdigos, na subverso da espera e na surpresa constitutiva do acontecimento e, por isso mesmo, no podiam dispensar-se do trabalho de
identificar, mesmo que intuitivamente, o cdigo que seria rompido, a espera que no se
realizaria e a rotina no seio da qual o acontecimento se apresentaria como tal.
No entanto seria temerrio dizer que a produo artstica da Ps-Modernidade
est centrada na reviso crtica do passado com vistas formao do futuro, como sucedeu
com as vanguardas modernistas. Embora esse seja um tema recorrente no horizonte das
preocupaes ps-modernas, devemos reconhecer que ele ocupa um lugar cada vez mais
perifrico na produo potica da atualidade. Cremos no nos equivocar ao dizer que a
preocupao com a linguagem e com o seu poder de construo do real reside no principal tema legado pela Modernidade aos pensadores-poetas da Ps-Modernidade.
De fato, parece-nos que uma das propriedades que melhor caracterizam o fazer
potico da Ps-Modernidade seja a conscincia e a tematizao do papel performtico da
linguagem, que cria e descria mundos e sujeitos.
Nesse particular, o gesto de Ren Magritte sintomtico. Ao subscrever a frase
Isto no um cachimbo representao pictrica de um cachimbo, ele labora em prol da desnaturalizao da funo sgnica revelando o carter mediatizante e instaurador da imagem,
isto , sua condio significante, cujo significado a figura correspondente na
macrossemitica do mundo natural, tambm esta, perdoem-nos a insistncia, um construto,
cuja base a carne do mundo merleau-pontyano.
Por admitirem a crise da representao e, na sua esteira, a disperso do sujeito,
os ps-modernos reconhecem o papel fundante da linguagem tanto na constituio do mundo
quanto na de quem o enuncia. Um e outro so construtos de linguagem e podem ser
concebidos como decorrentes do ato enunciativo, consoante defende a semitica greimasiana
(ou discursiva), como veremos. E linguagem aqui no significa lngua natural, bom que se
frise, mas estruturas erigidas na prpria percepo, esta compreendida como o lugar no lingustico onde se situa a apreenso da significao (GREIMAS, 1976, p. 15).
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Merleau-Ponty (1999), de quem Greimas (1976) se declara tributrio, diz ser:
[...] impossvel sobrepor, no homem, uma primeira camada de
comportamentos que chamaramos de naturais e um mundo cultural ou espiritual fabricado. No homem, tudo natural e tudo fabricado, como se quiser, no sentido em que no h uma s palavra, uma s conduta que no
deva algo ao ser simplesmente biolgico e que, ao mesmo tempo, no se furte simplicidade da vida animal, no desvie as condutas vitais de sua
direo, por uma espcie de regulagem e por um gnio do equvoco que poderiam servir para definir o homem. A simples presena de um ser vivo j
transforma o mundo fsico, faz surgir aqui alimentos, ali um esconderijo, d aos estmulos um sentido que eles no tinham (p. 257).
E arremata, reconhecendo o homem, tal qual o faz Cassirer (1997, p. 50), como
animal symbolicum e no como animal racionale, propugnando que:
[...] os comportamentos criam significaes que so transcendentes em
relao ao dispositivo anatmico, e todavia imanentes ao comportamento
enquanto tal, j que este se ensina e se compreende. No se pode fazer economia desta potncia irracional que cria significaes e que as comunica.
A fala apenas um caso particular dela (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 257).
Convm assinalar que tal tomada de posio, que desloca o foco da ateno
para a linguagem, no exclusividade das poticas contemporneas. Neste particular, elas se
coadunam com a tendncia geral observada no sculo passado, quando, segundo Apell (2000),
o paradigma semitico do pensamento se estabeleceu com fora, inclusive no discurso
filosfico.
De forma muito aguada, poder-se-ia dizer que a filosofia primeira no a investigao da natureza ou da essncia das coisas ou dos entes (ontologia), nem tampouco a reflexo sobre as noes ou conceitos da conscincia ou da razo (epistemologia), mas sim a reflexo sobre o significado ou o sentido de manifestaes lingusticas (anlise da linguagem) (p. 378).
Uma vez admitida esta centralidade da linguagem como objeto de reflexo nas
mais variadas reas do pensamento ps-moderno, decidimos fazer uma breve incurso nos
modos como a semitica greimasiana, entendida como teoria da significao, trata as questes
com ela relacionadas, isto , como a teoria semitica desenvolve as noes de ato enunciativo,
sujeito da enunciao, enunciador, enunciatrio e identidade do sujeito enunciante.
Neste artigo empreendemos uma reflexo acerca da noo de sujeito do
discurso e de sua identidade, sobretudo a partir da noo de discurso em ato, desenvolvida por
Fontanille e Zilberberg (1998), e das contribuies de Landowski (1986, 1992 e 2002) e
Coquet (1997). Concomitantemente, apresentamos textos comprobatrios de que a
conscincia do papel da linguagem, mediatizante e instaurador do mundo e do sujeito a um s
tempo, est na base da produo de autores modernos e ps-modernos. Para tanto, lanaremos
mo dos poemas Autopsicografia e Isto, de Fernando Pessoa, e depois recorreremos s letras das canes As coisas e Fora de si, de Arnaldo Antunes, como exemplos emblemticos desta conscincia da funo performtica da linguagem na constituio do
mundo e do sujeito enunciante. Neste ltimo caso, esperamos que o simples fato de se tratar
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de letras de cano popular constitua prova suficiente da difuso do tema na produo potica
contempornea.
Comearemos por revisitar a noo de simulacro tal como a concebe
Landowski, em Greimas e Courts (1986, p. 206), para depois nos ocuparmos da noo de
identidade e de dinmica identitria.
Simulacro
Simulacro, conforme o dicionrio de Greimas e Courts (1986), apresenta
basicamente duas acepes em semitica discursiva. A primeira corresponde a um sinnimo
de modelo. Nestes termos, a teoria semitica um simulacro, um modelo, de produo e
interpretao do sentido: um simulacro do percurso gerativo do sentido, esvaziado de
qualquer pretenso ontolgica, porque no tem a meta de descrever o processo de gerao real
do sentido, com as inevitveis implicaes de ordem psicolgica e sociolgica. Na segunda
acepo, o termo serve para designar o tipo de figuras, com o componente modal e temtico, por meio das quais os actantes da enunciao se deixam mutuamente apreender, uma vez
projetados no quadro do discurso enunciado (p. 206).1 Nessa segunda acepo do termo, o foco se volta para a interao entre os
actantes da comunicao e as imagens-fim que eles se do de suas competncias respectivas.
Essa segunda acepo tambm no tem pretenses ontolgicas. Tem por objetivo, na verdade,
apresentar o sujeito da enunciao como sujeito semitico, que, antes de ser uma substncia, ou sequer a emanao (reflexo) de uma substncia primeira que lhe seria exterior e que o determinaria, forma, produto de uma organizao formal (discursiva), um efeito de sentido que se pode tomar como o pressuposto ou a resultante do discurso realizado (LANDOWSKI, 1992, p. 168).
Aqui, a noo de sujeito semitico caudatria da noo de narratividade lato
sensu, que permite, por sua vez, examinar a enunciao como enunciado, consoante propusera
Greimas (1974). De fato, a possibilidade de ver a enunciao como um enunciado mais
amplo que permite projetarem-se as estruturas narrativas sobre a enunciao, para promover o
que Landowski (1992) chama de narrativizao da enunciao. Assim fazendo, a semitica
interpreta o processo de comunicao luz das estruturas narrativas, cujos actantes passam a
ser vistos como functivos reconstituveis pela relao pressupositiva que mantm com o
enunciado-discurso.
Ora, para a semitica, no fazer enunciativo que tanto o enunciado quanto o
sujeito da enunciao so gerados. Portanto, se concebermos a enunciao como uma espcie
de enunciado mais amplo, o sujeito da enunciao, na produo do discurso, ser o simulacro
resultante do sincretismo de dois outros simulacros: o do enunciador e o do enunciatrio.
Alm destes simulacros, o jogo enunciativo pode instaurar no discurso os actantes da
enunciao enunciada, simulando, por debreagem,2 a enunciao propriamente dita. Em
1 [...] pour dsigner le type de figures, composante modale et thmatique, laide desquelles les actants de lnonciation se laissent mutuellement apprhender, une fois projets dans le cadre du discours nonc. 2 Aqui, cabe uma observao de carter conceitual. Para Fiorin (1996), que neste ponto segue Greimas, a
debreagem se biparte em debreagem enunciativa e debreagem enunciva. A primeira se configura quando, no ato
de instalao do enunciado, projetam-se, nele, as categorias eu-aqui-agora; a segunda, quando se projetam as
categorias ele-l-ento. A embreagem, por sua vez, se d quando uma operao discursiva tem por efeito
neutralizar estes dois conjuntos de categorias, quando um usado em vez do outro, num dado contexto. Fiorin
(1996) postula, igualmente, dois tipos de embreagem, a enunciativa e a enunciva, dependendo do conjunto de
categorias em favor do qual se realiza a neutralizao. No entanto h autores, caso de Bertrand (2003), por
exemplo, que j veem, na debreagem enunciativa, uma operao embreante, na medida em que a projeo das
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seguida, os actantes da enunciao enunciada podem delegar a fala para outros actantes, que,
por sua vez, podem fazer o mesmo com relao a outros actantes ainda, e assim por diante.
Neste processo de debreagens sucessivas, acontece que toda enunciao simulada no interior
de um discurso referencializa o simulacro da enunciao anterior, conferindo-lhe uma
impresso de realidade. Mas, bom que se diga, essa referencializao no passa de um efeito
de discurso. Por isto que podemos dizer que no lidamos, em discurso, seno com
simulacros.
Sendo a enunciao um jogo de construo de simulacros, o processo
comunicativo no pode ser, portanto, reduzido mera circulao de mensagens num dado
contexto, como sustentavam alguns adeptos da teoria da informao. A enunciao,
examinada sob o prisma da narratividade, tem, no programa de persuaso-manipulao-
interpretao intersubjetiva, prprio do processo comunicativo, a construo de simulacros
como um dos procedimentos bsicos.3 E o enunciado, por sua vez, no apenas objeto de
transmisso de saber, mas um objeto-discurso construdo e manipulado pelo sujeito da
enunciao.
Veja-se bem que no do sujeito real que se fala aqui, e o emprego do termo simulacro procura deixar isso claro, pois simular um fazer-crer que envolve tanto o
enunciado como a enunciao. Nesse processo, portanto, so simulacros o sujeito da
enunciao, o enunciador, o enunciatrio etc.
O sincretismo dos papis de enunciador e enunciatrio evidencia-se,
principalmente, em discursos sem narrador explcito, em que os acontecimentos so
apresentados objetivamente, como se se desenvolvessem por si mesmos. Nesses discursos,
constri-se, com efeito, um nico lugar de observao em que enunciador e enunciatrio se
encontram sincretizados. 4 Trata-se, nas palavras de Fontanille (1998), da figura de um
observador, entendido como o agenciador dos pontos de vista que regulam os modos pelos
quais o enunciado pode ser apreendido, e os pontos de vista so, para Fontanille, as
perspectivaes que exploram a orientao discursiva para fazer face imperfeio constitutiva de toda percepo (p.127). 5 Noutros termos, trata-se de um recurso do qual o enunciador pode lanar mo para manipular o enunciatrio, ao eleger um ponto de vista,
categorias eu-aqui-agora cria, por si mesma, o efeito de retorno enunciao, ou seja, simula a enunciao no
interior do enunciado. Neste artigo, optamos pela terminologia de Fiorin (1996), pela simples razo de ter ele
realizado um exaustivo trabalho acerca do assunto, com farta exemplificao, em As astcias da enunciao. 3 Cremos que esta uma questo de suma importncia para a semitica greimasiana ou discursiva, porque a
distingue de algumas correntes da pragmtica ou da anlise do discurso, uma vez que, para o semioticista, o
contexto no qual se d uma interao discursiva sempre uma construo levada a efeito pelos que dela tomam
parte. A exemplo do que postula a Teoria da Relevncia, de Sperber-Wilson (apud SILVEIRA e FELTES,
2002), o contexto no um dado a priori, ele construdo pelos actantes da comunicao. Cremos que esta
postura pode ser radicalizada: um historiador, um socilogo ou um etnlogo, por exemplo, podem crer que esto
reconstituindo o contexto real de uma interao efetiva pelas informaes que fornecem, mas eles, na verdade,
estaro recompondo, em uma estrutura narrativa, a situao comunicativa e a dinmica identitria dos actantes que dela participaram, isto , estaro reencenando o vivido ao enunci-lo. A noo de contexto, na concepo
narrativa da enunciao, , portanto, sempre a de um contexto semiotizado, produto de leitura e de interpretao;
, numa palavra, simulacro. por tal razo que Landowski (1992) diz que, quanto s determinaes
psicolgicas, ideolgicas etc., que incidem sobre o discurso, a tarefa da semitica a de procurar definir um princpio de pertinncia que permita integr-las no mbito de uma teoria global, e no mais trat-las como
variveis ad hoc ou sobredeterminaes externas. A questo , pois, a da semiotizao do contexto, ou melhor, da elaborao de uma semitica das situaes (p. 150), em que o contexto tomado como linguagem. 4 Estratgia empregada, por exemplo, no discurso cientfico, em que enunciador e enunciatrio sincretizam-se na
figura do observador. 5 [...] lorientation discursive pour faire face limperfection constitutive de toute perpecption.
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generalizante ou particularizante, por exemplo, e ao simul-lo no discurso, como sendo a sua
prpria posio de enunciao, fundamental para reconstruir-se a significao.
Mas, repitamos, tanto o enunciador como o enunciatrio so simulacros,
construes discursivas, assim como o so os actantes do enunciado. 6
neste ponto da discusso terica que merece meno um poeta moderno do
naipe de Fernando Pessoa, que demonstra ter plena conscincia do jogo de construo de
simulacros posto em funcionamento pela enunciao no discurso em ato.
Embora a multiplicao dos heternimos em Pessoa possa ser explorada neste
vis, tomamos aqui primeiramente o clebre poema Autopsicografia (1996, p. 98-99).
O poeta um fingidor.
Finge to completamente
Que chega a fingir que dor A dor que deveras sente.
E os que lem o que escreve,
Na dor lida sentem bem, No as duas que ele teve,
Mas s a que eles no tm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razo,
Esse comboio de corda
Que se chama corao.
Nele, o sujeito da enunciao instala, por debreagem enunciva, um ele no
discurso (o poeta), assimilado ao papel temtico do fingidor, do qual passa a falar com o distanciamento crtico que este mecanismo sintxico proporciona. Na qualidade de fingidor, o
poeta comparvel ao sujeito da enunciao, ou seja, ao sujeito responsvel por criar, no ato enunciativo, a si mesmo e a dor enunciada que, uma vez despregada da dor efetivamente vivida, incomunicvel por natureza, s pode ser simulada em discurso.
A enunciao potica, portanto, constri simulacros como qualquer outro ato
enunciativo e, para Fernando Pessoa, f-lo de tal modo que persuade o enunciatrio da
verdade da dor enunciada. Exmio fingidor, pois domina os mecanismos e procedimentos enunciativos, o poeta se qualifica, ento, como aquele que quer, sabe e pode-fazer-crer na
verdade enunciada. o sujeito da enunciao, o criador do ethos do enunciador e do pathos
do enunciatrio, ou melhor, o centro gerador do real do discurso. Mas, no processo de comunicao do poema, a dor enunciada, constitutiva da identidade do enunciador, efeito de discurso ou dor de segunda ordem. E no processo da leitura, por sua vez, cria-se uma dor de terceira ordem, a do leitor, j bastante modificada pela mediao instauradora da atividade semisica. Trata-se, portanto, de um deslizamento do sentido posto em ao pelo
fazer enunciativo, no qual so construdos simulacros actanciais tanto na instncia da
enunciao quanto na do enunciado, processo do qual o enunciador de Autopsicografia demonstra ser sabedor.
6 tambm por esta razo que, ao descrever o discurso humanista devoto, Maingueneau (1984) fala de
interincompreenso regulada. Segundo este autor, um discurso, dentro de um dado espao discursivo, no polemiza com outro discurso, contra o qual se insurge, mas com a traduo que faz dele. Assim, o que est em
jogo numa polmica no so identidades discursivas autnomas, mas representaes discursivas em que tanto a
identidade quanto a alteridade so construes discursivas, so simulacros de discurso.
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Este deslizamento do sentido e a conscincia dele por parte de Fernando Pessoa
ficam bem evidenciados no poema Isto (1996, p. 99).
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. No. Eu simplesmente sinto
Com a imaginao.
No uso o corao.
Tudo o que sonho ou passo
O que me falha ou finda, como que um terrao
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa que linda.
Por isso escrevo em meio
Do que no est ao p,
Livre do meu enleio, Srio do que no .
Sentir? Sinta quem l!
Aqui, os versos Eu sinto com a imaginao./No uso o corao alm de serem exemplo do sensacionismo pessoano, concorrem para reforar em algo a ideia de que
o poeta um fingidor e a de que tanto o poeta quanto o leitor esto envolvidos ativamente num processo semitico no qual se d a construo de simulacros actanciais, e, neste ltimo
caso, mais ainda isso ganha tnus se levarmos em considerao o derradeiro verso Sentir? Sinta quem l!, por tratar-se da delegao de um poder-fazer.
pertinente, ento, dizer que Autopsicografia e Isto tematizam o ato enunciativo como semiose ilimitada, processo ininterrupto que mediatiza e, ao mesmo
tempo, instaura as relaes objetais e subjetais, construindo simulacros em termos de
identidades e alteridades, e que Fernando Pessoa um poeta moderno no s porque tem
conscincia desse fenmeno enunciativo, mas principalmente porque o assume como um dos
temas fundamentais de sua obra.
Vejamos, agora, como esse jogo de construo de simulacros concorre para a
sedimentao de identidades discursivas e qual a dinmica envolvida neste processo de
acordo com a semitica greimasiana.
Identidade e alteridade
No dicionrio de semitica, Greimas e Courts (s/d) do o termo identidade
como um no definvel que se ope ao termo alteridade, igualmente no definvel. Claro est
que, ao procederem assim, os autores esquivam-se de fornecer-lhes uma definio positiva e
os colocam no rol dos primitivos semiticos indefinveis. Desejam, com efeito, destacar o seu
valor relativo a fim de torn-los interdefinveis, porque pensam na relao fundamental de
pressuposio entre os termos da estrutura elementar da significao: as relaes de
conjuno e de disjuno.
No mesmo verbete, os autores fornecem outras definies para os termos, todas
fundamentadas no seu carter relacional e interdependente. Assim, a identidade serve para designar o trao ou conjunto de traos (em semitica: semas ou femas) que dois ou mais
objetos tm em comum (s/d, p. 223). Trata-se de uma operao metalingustica que implica,
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ao mesmo tempo, a alteridade e a identidade, uma no podendo subsistir sem a outra, pois, se,
por um lado, a identificao da igualdade entre objetos implica certo grau de diferena entre
eles, por outro lado, no se pode falar de diferena, caso no se tenha a igualdade como
pressuposto.
Ainda neste verbete, identidade se define como permanncia na mudana, isto
, como a persistncia de um indivduo no seu ser ao longo das transformaes narrativas lato
sensu. Na identidade, o indivduo se mantm o mesmo, no obstante as modificaes de que
sujeito ou que o afetam. Nessa definio, observa-se novamente a relao de mtua
dependncia entre os dois termos, a identidade correspondendo permanncia, e a alteridade,
mudana.
Admitindo que o primado da relao sobre os termos est na base do
procedimento da semitica, Landowski (2002) no v possibilidade de sentido seno quando
ele se faz apreender como universo articulado a partir da identificao de diferenas. Somente
o reconhecimento de uma diferena permite construir como unidades discretas e significantes as grandezas consideradas e associar a elas, no menos diferencialmente, certos
valores, por exemplo, de ordem existencial, tmica ou esttica (p. 3). Para Landowski (2002), o sujeito no escapa a essa lgica. De fato, a
identidade do sujeito no pode constituir sentido a no ser pela relao que ele mantm com a
alteridade, diferenciando-se dela. Assim:
Tambm ele condenado, aparentemente, a s poder constituir-se pela
diferena, o sujeito tem necessidade de um ele dos outros (eles) para chegar existncia semitica, e isso por duas razes. Com efeito, o que d forma minha prpria identidade no s a maneira pela qual,
reflexivamente, eu me defino (ou tento me definir) em relao imagem que
outrem me envia de mim mesmo; tambm a maneira pela qual,
transitivamente, objetivo a alteridade do outro atribuindo um contedo especfico diferena que me separa dele. Assim, quer a encaremos no plano
da vivncia individual ou [...] da conscincia coletiva, a emergncia do
sentimento de identidade parece passar necessariamente pela intermediao de uma alteridade a ser construda. (p. 4).
Este modo de ver relevante na medida em que coloca em cena um jogo de
simulacros em construo, de imagens-fim dos sujeitos, em sua identidade e alteridade, fundados na relao mtua e indissocivel da qual todos dependem.
De modo semelhante concebido o processo de construo da identidade por
muitos poetas modernos. Mrio de S-Carneiro, por exemplo, demonstra a plena conscincia
deste fenmeno quando, em um de seus poemas, diz Eu no sou eu nem sou o outro. / Sou qualquer coisa de intermdio. Tambm Fernando Pessoa parece aderir a igual ponto de vista quando admite No sou eu quem descrevo. Eu sou a tela / E oculta mo colora algum em mim (1996, p. 61). Esses versos so prova de que os dois poetas esto plenamente cnscios da dinmica implicada no processo de edificao identitria e servem como mostra de que os
dois escritores fizeram da reflexo acerca do tema matria de sua poesia.
Nestes termos, no h como enunciar seno construindo e marcando posio,
isto , constituindo-se transitiva e reflexivamente em relao a alteridades: sujeitos
(sujeito/destinador/destinatrio) e objetos, e os dois poetas portugueses no pensam de outro
modo. Para eles, a identidade do eu sou passa necessariamente pela relao com as alteridades que lhe so constitutivas. O ele a no pessoa com relao qual o eu,
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pessoal e identitrio, constri-se como simulacro, numa dinmica prpria, de cujos postulados
semiticos passamos a falar na sesso subsequente.
Princpios de uma dinmica identitria
Para pensarmos a dinmina identitria, tomamos emprestado a Landowski
(2002) a organizao esquemtica das prticas semiticas da constituio da identidade e da
alteridade, sem adotarmos, no entanto, a cobertura zoossemitica fornecida por ele, por
julgarmo-la excessivamente figurativa. 7
Esta dinmica tem o mrito de apresentar, em um quadrado semitico, os
quatro processos por meio dos quais uma identidade se forja no contato com os valores e com
a(s) alteridade(s) que a atravessam. Landowski (2002) pensa a dinmica identitria como um
estado, sempre instvel, que envolve a tenso entre quatro configuraes: a assimilao
(conjuntiva), a excluso (disjuntiva), a admisso (no disjuntiva) e a segregao (no
conjuntiva). na correlao entre estas posies que a dinmica da identidade se tece. Veja-
se o quadro abaixo:
CONJUNO
(Incluso)
Assimilao
DISJUNO
Excluso
Admisso (Agregao)
NO DISJUNO
Segregao NO CONJUNO
Quando sugere essas quatro configuraes, Landowski (2002) est pensando a
enunciao na perspectiva da narratividade, como um processo em que os actantes da
comunicao se definem mutuamente, e de modo dinmico, mediante a maneira como se
apresentam uns para os outros. Como diz o autor:
Ora, estes princpios no constituem, em si mesmos, determinaes que se possam considerar como simples e unvocas. Efetivamente, no se trata a de
dados que caracterizam cada um dos parceiros independentemente das
circunstncias de seu encontro com o outro, mas ao contrrio de
determinaes que se constituem somente em situao e se transformam no prprio mbito da interao. Pouco importa saber se este ou aquele sujeito
por essncia adepto da disjuno ou de outra coisa (supondo que qualquer psicologia, ainda a inventar, permita sab-lo); o que conta em compensao o fato de que, em tal contexto preciso e em funo de tais
condutas particulares, o sujeito considerado possa eventualmente e talvez deva mesmo em certos casos parecer como tal a seu parceiro, pois a partir da leitura que ser assim feita de seu comportamento que o outro regrar sua prpria conduta a seu respeito e reciprocamente, claro, segundo um processo recursivo teoricamente at o infinito. (LANDOWSKI, 2002, p.
52)
7 O autor descreve os estilos esnobe, dndi, urso e camaleo, consoante o outro se poste diante do um (o
homem do mundo em perfeita conformidade com o seu meio) como um sujeito conjunto, disjunto, no conjunto
ou no disjunto, respectivamente.
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Na base desta estrutura est a tenso entre a conjuno e a disjuno, ou, em
termos hjelmslevianos, a tenso entre a relao e...e e a relao ou...ou, de que Fontanille e Zilberberg (2001), por exemplo, aproximam as correlaes que se estabelecem entre os
gradientes da intensidade e da extensidade, na constituio do valor.
Estes dois autores reconhecem dois tipos de correlao entre os functivos
valenciais que originam a funo valor. A correlao conversa, quando mais intensidade pede
mais extensidade ou menos pede menos, e a correlao inversa, quando mais intensidade
requer menos extensidade e vice-versa. Esses dois tipos de correlao do lugar a dois modos
de convivncia entre as duas macro-valncias (a intensidade, dimenso do sensvel, e a
extensidade, dimenso do inteligvel) e liberam um espao de acolhimento plausvel para os dois grandes princpios introduzidos pela antropologia, a saber, o princpio da excluso, que
tem como operador a disjuno, e o princpio de participao, que tem como operador a
conjuno (Op. cit.: p. 27). Na tenso que envolve esses dois princpios, duas operaes podem ocorrer.
No regime de excluso, o operador triagem (disjuntivo) exclui participantes, cujo processo,
se levado ao limite, resulta na confrontao contensiva do exclusivo e do excludo e, para as culturas e as semiticas que so dirigidas por esse regime, confrontao do puro e do impuro (Op. cit.: p. 29). No regime da participao, o operador mistura (conjuntivo) faz com que excludos participem, produzindo a confrontao distensiva do igual e do desigual: no caso da igualdade, as grandezas so intercambiveis, enquanto no da desigualdade, as
grandezas se opem como superior e inferior (Op. cit.: p. 29). Baseados nesses dois tipos de regime, Fontanille e Zilberberg (2001)
reconhecem dois tipos de valores, ou regimes axiolgicos: os valores de absoluto e os
valores de universo. Os valores de absoluto implicam, como operadores, a triagem e o
fechamento, at o ponto no qual se tem intensidade mxima com um mnimo de extensidade,
uma definio vlida do uno, ou do nico (p. 47). Nos valores de universo, verifica-se o contrrio: uma intensidade nula com uma extensidade mxima, uma definio do universal.
Esses dois regimes de valores, no entanto, so dependentes um do outro e no tm seno um
valor relativo, por isso os autores preveem a distenso em cada complexo admitindo uma
sintaxe cannica: triagem fechamento abertura mistura triagem, e assim se
expressam: no caso dos valores de absoluto, parece que a triagem e o fechamento intervm como operadores principais, tendo por benefcio a concentrao, enquanto os valores de
universo pedem o concurso da mistura e da abertura, tendo por benefcio a expanso (p. 29). E completam: identificamos a excluso-concentrao, regida pela triagem, e a participao-expanso, regida pela mistura, como as duas principais direes capazes de ordenar os
sistemas de valores (p. 49). De acordo com os autores, tanto os valores de absoluto como os de universo
aplicam-se s profundidades da intensividade e da extentividade. Do ponto de vista intensivo,
os operadores que intervm so a abertura e o fechamento, enquanto, do ponto de vista da
extensidade, a modulao se d entre a triagem e a mistura.
Assim, para eles, as valncias prprias a essas operaes suscitam a seguinte
tipologia de valores:
a) os valores de universo supem a predominncia da valncia da abertura sobre a do fechamento e a predominncia da valncia da mistura sobre a
da triagem; em relao primeira, a abertura vale como livre, e o
fechamento, como restrito, ou at apertado; em relao segunda, o
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misturado avaliado como completo e harmonioso, e o puro depreciado
como incompleto ou mesmo imperfeito ou desfalcado;
b) os valores de absoluto supem a predominncia da valncia do fechamento sobre a da abertura e a predominncia da valncia da triagem
sobre a da mistura; em relao primeira, o fechado vale como distinto e
o aberto como comum; em relao segunda, o misturado deprecia-se
por ser disparatado [...], e o puro aprecia-se justamente por ser absoluto, sem concesso. (FONTANILLE E ZILBERBERG, 2001, p. 53).
Do exposto, pode-se concluir que: a) se a constituio da identidade
processual e dependente do discurso-enunciado, como defende a semitica, o sujeito do
discurso se faz conhecer na e pela prpria atividade enunciativa, como um simulacro; b) este
simulacro, na qualidade de objeto semitico, reconstituvel a partir da leitura dos textos de um
dado corpus, tomado como totalidade discursiva, o resultado das operaes de abertura e
fechamento e de triagem e mistura agenciadas em discurso; c) essas operaes se do em
razo de uma base axiolgica e de um fundo tensivo, presentes em todas as fases do percurso
de gerao do sentido; d) a base axiolgica e o fundo tensivo, presentes em todo discurso,
simulam o sujeito na sua dimenso scio-histrica e individual, respectivamente; e) no
percurso gerativo do sentido, a base axiolgica e o fundo tensivo ganham gradativamente
maior densidade smica, e, no nvel discursivo, sobremodo atravs da seleo dos temas e das
figuras, o sujeito revela-se em sua poro ideolgica.
Em suma, parece-nos que a dinmica identitria proposta por Landowski pode
ser homologada aos princpios da excluso e da participao, s operaes de triagem,
mistura, fechamento e abertura, aos valores de absoluto e de universo. Por isso, a
impresso de que existe um centro de referncia em cada discurso no absolutamente falsa,
sobretudo para aquele que recebe o discurso, uma vez que este centro construdo a partir
daquelas operaes.
oportuno reiterar, aqui, que admitir o centro de referncia no significa
assumir, conjuntamente, a ideia de um sujeito emprico, como fonte nica do discurso.
Aderimos s teses da disperso do discurso e do sujeito descentrado de Foucault (1997 e
2002) e no estamos em desacordo com Pcheux e Fuchs (1975), que nos alertam para os
esquecimentos (de natureza ideolgica e inconsciente) que esto na base da iluso discursiva
de sujeito. Esta nossa posio no deve surpreender, pois a debreagem tem a propriedade de
ser pluralizante, ou seja, ela, ao dissociar a pessoa da no pessoa, instala, no mesmo ato
enunciativo, uma diversidade de no pessoas (de eles). No entanto, quando falamos de simulacros, queremos focar precisamente a
construo discursiva deles, que podem se tornar tanto mais ilusoriamente estveis quanto mais a enunciao simulada no enunciado, isto , quando se cria um efeito de centro de
referncia a partir do qual as operaes de abertura/fechamento, de triagem/mistura e de
expanso/concentrao podem ser acompanhadas como dinmica em que se forja um
simulacro do si para a apreenso do outro, simulacro este que joga necessariamente com o
simulacro do outro e com o simulacro que o si julga o outro ter dele.
Para Fontanille e Zilberberg (2001), por exemplo, este efeito de centro uma
decorrncia da embreagem, dado seu carter homogeneizante. Esses autores consideram,
ainda, a debreagem e a embreagem como verdadeiros avatares das duas operaes
(extensiva/intensiva) da prxis enunciativa, aplicadas prpria instncia de discurso. O
simulacro do sujeito enunciante surgiria, assim, de um movimento centrpeto, de
concentrao, que finda por simular um centro de percepo, a exemplo daquele que a
operao de debreagem desfaz ao pluralizar a instncia discursiva.
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Neste ponto, cremos poder aproximar das proposies de Fontanille e
Zilberberg a contribuio fundamental de Coquet (1985), concernente constituio do
sujeito na sua relao com o objeto. Este autor sugere quatro posies de sujeito num
quadrado semitico, em funo da identidade que podem assumir. Reproduzimo-lo abaixo,
com algumas alteraes para efeito de comparao com a proposta de dinmica identitria de
Landowski (2002) e com as postulaes de Fontanille e Zilberberg (2001).
Quadrado da identidade
Eu sou tudo Eu no sou nada
Dixis
positiva
Dixis
negativa
Eu sou algum que
(Eu sou alguma coisa)
Eu sou algum que no
(Eu no sou tudo)
No quadrado, o processo de individuao de um sujeito d-se no termo neutro,
eixo que subsume os subcontrrios, quando ele se afirma como sujeito ao atribuir-se uma
imagem na dixis positiva (eu sou algum que) conjuntamente com outra na dixis negativa
(eu sou algum que no). Na posio eu sou tudo, Coquet pe o sujeito cuja identidade
total e positiva, isto , um eu que deseja todo objeto de valor, que pode tudo e que sabe tudo.
Na posio eu sou algum que, est o sujeito cuja identidade parcial e positiva, quer dizer,
um eu que assume objetos de valor, saber e poder especficos. Na posio eu no sou nada,
localiza-se o sujeito de identidade total e negativa, ou seja, o eu que no almeja qualquer
objeto de valor, que nada pode e que nada sabe. Na posio eu sou algum que no, tem-se
um sujeito de identidade parcial e negativa, um eu que no assume objetos de valor, saber e
poder especficos. Segundo sua classificao, o primeiro e terceiro sujeitos so produto de um
foco generalizante, enquanto o segundo e o quarto decorrem de um foco particularizante.
Logo, sendo o sujeito, para Coquet, aquele que assume e no apenas predica, na conjuno
do eu sou algum que e do eu sou algum que no que a identidade do sujeito se forja.
Comparando esse quadrado com o fornecido por Landowski (2002), no
difcil constatar as convergncias entre eles. Subjacente ao quadrado da identidade de Coquet,
esto as operaes bsicas indicadas por Landowski: conjuno/disjuno. No entanto Coquet
parece considerar a modulao da categoria juntiva (conjuno/disjuno) pela intensidade.
Assim, para ele, a conjuno excessiva (intensa) origina um sujeito pleno, e a disjuno
excessiva (intensa), um sujeito nulo, e, cremos, ambos marcados pela falta de identidade que,
segundo vimos, define-se pela diferena com relao alteridade e pela seleo dos objetos-
valor eufricos e disfricos, isto , pela reunio da diferena positiva eu sou algum que com
a diferena negativa eu sou algum que no.
Coquet (1984, p. 58) fornece outro quadrado, homologvel ao da identidade,
em que o sujeito (S) se apresenta em relao com um destinador (D), ou terceiro-actante,
referentemente ao qual se mantm ou no autnomo.
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S
D
S tudo
D no nada
D
S
D tudo
S no nada
Dixis
positiva
Dixis
negativa
S
D
S domina o destinador
reduzido ao papel
instrumental
D
S
D domina o sujeito
reduzido ao papel
instrumental
Sobrepondo os dois quadrados, verifica-se que Coquet (1984) sugere uma
tipologia actancial bastante interessante. Em primeiro lugar, ele reconhece a dimenso do no
sujeito, que apenas predica e no assume a predicao, completamente dominado pelo
destinador, assimilado sua funo, a qual no pode deixar de cumprir (p. 65). Trata-se, numa aproximao possvel, do corpo prprio na subtaneidade da presena, puro afetado, na
eventicidade da percepo e da emoo. Em segundo lugar, apresenta o sujeito, que se define
por sua relao com o objeto, da qual se origina um actante pessoal e autnomo, engajado nos atos que cumpre. No entanto, na relao ternria ( o que vemos nesse segundo quadrado), o sujeito se identifica tambm por meio da constante tenso com os actantes
sujeitos denticos (autnomos ou heternimos): os destinadores.
Com base no quadrado acima, podemos afirmar que a identidade do sujeito
faz-se, tambm, na tenso entre o sujeito e o(s) seu(s) destinador(es). Observe-se que, nos
extremos do quadrado, correspondendo aos termos contrrios, esto as figuras de sujeitos cuja
identidade impossvel determinar, ou porque se trata de um sujeito ( S ) nulo,
completamente neutralizado pelo destinador (D), sujeito inteiramente assujeitado, segundo
uma concepo scio-histrica determinista, ou porque diz respeito a um sujeito (S) pleno,
independente de qualquer destinador ( D ) e senhor absoluto de seu ser e fazer, de acordo
com uma concepo voluntarista de sujeito. Segundo o quadrado nos instrui, a identidade do
sujeito enunciante tambm deve ser buscada na tenso que se estabelece entre o centro de
referncia e a presena (no campo discursivo) do(s) destinador(es) com os quais o sujeito
mantm um contrato fiducirio. Essa tenso revela as condies semiticas do sujeito, quanto
sua competncia, em sua relao com cdigos prescritivos de possveis destinadores.
Como j fazia saber Coquet (1985), no se pode conceber um universo semitico que no seja igualmente universo de valores. 8 De fato, todos os elementos da gramtica narrativa, os actantes, os programas engajados, as modalidades caracterizantes so submetidos a avaliao 9 (p. 155), at mesmo o ato inicial da predicao implica uma avaliao. Acompanhemos o que afirma Coquet (1985) sobre a constituio da identidade e o
processo de avaliao que acompanha as selees operadas em discurso.
8 [...] un univers smiotique qui ne soit galement univers de valeurs (COQUET, 1985, p. 155). 9 [... les actants, les programmes engags, les modalits caractrisantes sont soumis valuation. (COQUET, 1985, p. 155).
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A proclamao da identidade, no caso mais simples, o levar em considerao
pelo sujeito enunciante seu prprio estatuto, postula, portanto, o recurso a
uma seleo dos objetos do universo. O percurso do actante se reconstri facilmente. Ele deve a princpio efetuar uma primeira escolha entre o que,
segundo ele, ou no objeto de valor. Depois, ele designa ou denomina os
objetos com os quais ele est conjunto (definio positiva) e aqueles dos
quais est disjunto (definio negativa).10
A identidade do sujeito enunciante se faz, ento, na dinmica que envolve os
objetos-valor, sobretudo os valores-modais, e as relaes que ele, sujeito enunciante, entretm
com outros sujeitos. Do ponto de vista da extensidade, pelas operaes bsicas de conjuno
e disjuno que o efeito de centro do discurso se faz; e, do ponto de vista da intensidade, o
valor tnico ou tono das grandezas que as aproxima, ou as afasta do centro do discurso. Essa
dinmica identitria torna-se tanto mais apreensvel quanto mais a enunciao simulada no
enunciado.
Claro est, e j o dissemos, que a enunciao enunciada difere da enunciao
propriamente dita, porque aquela a simulao desta no interior do discurso. E com isso
parece concordarem os autores at o momento mencionados neste artigo, o que nos anima a
promover a convergncia possvel das propostas.
Convergncia de propostas
Se admitimos que a debreagem tem um carter disjuntivo, e seu gesto
inaugural pluraliza a instncia enunciante, deveremos aceitar que ela virtualiza, no mesmo
ato, a identidade do sujeito que enuncia. Ou seja, uma vez realizada a esquizia inicial, o enunciador do discurso uma virtualidade,
11 um eu no sou nada, um sujeito
completamente barrado por seus destinadores. 12
Passado esse momento inaugural da disjuno, e na medida em que a instncia
enunciativa enuncia, ou constri o discurso, como campo de presena, o efeito pluralizante da
debreagem inicial comea a se desfazer, e inicia-se um processo de no debreagem que vai
dar origem a um sujeito atualizado,13
fruto das primeiras selees operadas em discurso.
Nesse processo, a identidade de um sujeito enunciante comea a ser gestada em funo das
grandezas convocadas para o discurso e de suas relaes tensivas (intensidade x extensidade)
para com o centro discursivo. Simultaneamente, comea a se afirmar um sujeito enunciante
como um eu sou algum que. Este sujeito enunciante, por seu turno, aparta-se de seus
destinadores ao relativizar a absoluta dominncia deles.
10 La proclamation de lidentit, dans le cas le plus simple, la prise en compte par le sujet nonant de son propre statut, postule donc le recours une slection des objets de lunivers. La dmarche de lactant se reconstruit aisment. Il doit dabord effectuer un premier choix entre ce qui, selon lui, est ou nest pas objet de valeur. Puis il designe ou dnomme les objets avec lesquels ils est conjoint (dfinition positive) et ceux dont il est
disjoint (dfinition negative). (COQUET, 1985, p. 155). 11 Este sujeito aproxima-se do sujeito desligado, concebido por Fontanille e Zilberberg (2001, p. 142), em que S (sujeito do foco) e S (sujeito da apreenso) no se apropriam, ao mesmo tempo, do mundo, quando este percebido como distribudo e dividido. 12 Neste caso, e talvez s nele, que se poderia falar de um sujeito completamente assujeitado, asfixiado pelas
presses do contexto scio-histrico e sem qualquer manifestao singularizante. 13 Fontanille e Zilberberg (2001, p. 143) defendem que a atualizao reconstitui em parte a tenso entre o sujeito
do foco e o sujeito da apreenso, e permite, se no uma sincronizao, pelo menos uma superposio parcial de seus atos respectivos.
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Num quadrado semitico de postulao possvel, a no debreagem apontaria
para a embreagem como seu termo complementar. Na passagem de um ponto a outro do
quadrado que comearia a se criar um efeito de centro, que o dispositivo da enunciao
enunciada tenderia a acentuar. A culminncia do processo embreante seria a volta ao
puramente vivido, que, conforme j vimos, no se realizar jamais.
Se tambm aceitamos a embreagem em seu carter conjuntivo, seu gesto,
levado ao extremo, singularizaria a instncia enunciante, realizando-a na qualidade de
simulacro da sensao e da percepo. Aqui, o sujeito est realizado 14
em um eu sou tudo,
um sujeito que barra completamente a influncia dos destinadores. Nesse processo, o sujeito
centra-se at o limite do no sujeito, corpo prprio do puro vivenciado, sujeito da afeco e
da emoo.
A operao da no embreagem, por sua vez, distende o sujeito novamente,
descentra-o pela no conjuno, e este sujeito, assim distendido,15
pode refletir sobre o
vivido.16 O sujeito enunciante, ento, reinstaura-se na relao destinador-sujeito e aparta-se dos destinadores pelo concurso de um eu sou algum que no, potencializando-se como
identidade no conjunta.
Nessa dinmica, a identidade discursiva do sujeito enunciante pode ser
novamente virtualizada por uma operao disjuntiva, dando origem a um sujeito desligado,
isto , a um eu no sou nada completamente barrado por destinadores.
Nesse ponto, no podemos deixar de mencionar as categorias do nvel tensivo
propostas por Zilberberg (2006). Este autor postula que o espao tensivo, precondio para a
gerao do sentido, pode ser concebido como tenso entre a parada e a continuao, conforme
deixa ver o esquema infra, adaptado de Zilberberg (2006, p. 163).
Continuao
Embreagem
Continuao da parada
Debreagem
Parada da parada
No debreagem
Parada da continuao
No embreagem
14 Para Fontanille e Zilberberg (2001), considera-se realizado o sujeito quando suas duas intncias, o sujeito do
foco (S) e o sujeito da apreenso (S), coincidem, isto , quando no h distncia entre as duas operaes bsicas: foco e apreenso. 15 O sujeito distendido tem sua tenso interna diminuda, porque a apropriao do mundo no se realiza, ao
mesmo tempo, pelo sujeito do foco (S) e o sujeito da apreenso (S) (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001). 16 As aspas se devem ao fato de que, no ato enunciativo, no se pode retornar ao vivido propriamente dito, mas
apenas simul-lo.
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Expliquemos. Pode-se dizer que a fissura inicial, a sada do sujeito da inerncia
do vivido, do corpo prprio, para tornar-se o sujeito que enuncia, constitui-se como parada
da continuao, ou, no nosso caso, como negao da embreagem plena. 17
A continuao da
parada requer a retomada do fluxo suspenso, e, ento, a busca do sentido caracteriza-se pela
negao da debreagem plena, a parada da parada. Nesse processo, o retorno embreagem
representaria a volta ao corpo prprio, continuao da continuao, como reinsero no
contnuo, que ser sempre simulada, devido fissura inicial criadora do duplo, isto , de um
sujeito-que-sente-e-percebe e de um sujeito-que-enuncia. Essa estrutura sintxico-
semntica confere um carter aspectual aos devires do fluxo tensivo-frico que
sobredeterminam as articulaes narrativas e discursivas.
Pelo que vimos at o momento, podemos dizer que o processo de constituio
identitria obedece, pois, s operaes da prxis enunciativa. Assim, se, por um lado, as
operaes de triagem, mistura, abertura, fechamento, concentrao e expanso esto
diretamente envolvidas na construo do discurso como campo de presena e se, por outro
lado, este campo de presena se estrutura em torno de um centro e de seus horizontes,
podemos afirmar que as grandezas convocadas para o discurso so moduladas, com relao a
este centro, em termos de intensidade e de extensidade. Quanto mais prxima do centro a
grandeza estiver, mais intensidade ela ter (mais foco), e vice-versa, e mais constitutiva deste
centro a grandeza ser, independentemente de sua avaliao axiolgica. A avaliao
axiolgica que, por sua vez, pode justificar o processo de triagem e mistura, conjuno e
disjuno, ao aplicar a categoria tmica (euforia/disforia) sobre os valores convocados para o
discurso. Em suma, entendemos que tanto as modulaes de intensidade e extensidade,
avatares da embreagem e da debreagem, respectivamente, quanto as operaes de triagem e
mistura concorrem para o efeito de concentrao e expanso, base do efeito de identidade.
Ao fim e ao cabo, talvez possamos dizer que, no quadrado da identidade
proposto por Coquet (1985), temos um sujeito inconsciente 18 (termo complexo entre o eu sou tudo (corpo prprio) e o eu no sou nada (sujeito completamente assujeitado)); e um
sujeito consciente (termo neutro entre o eu sou algum que (sujeito da dixis positiva) e o eu sou algum que no (sujeito da dixis negativa)). Assim, a identidade consciente do sujeito enunciante corresponde imagem-fim resultante das modulaes tensivas
identificadas em discurso, dos objetos-valor convocados para ele e das relaes do sujeito
com seus destinadores. No quadro a seguir, buscamos representar as convergncias para
apreciao em conjunto do que vimos dizendo at o momento.
17 Greimas e Fontanille (1993) referem-se fase da somao como a primeira operao necessria para conhecer; trata-se de uma operao de negao em que o sujeito separa-se do objeto, cuja perda ele, sujeito, se
v forado a categorizar. Por meio desta primeira operao, o sujeito se funda como sujeito operador e funda o mundo como objeto cognoscvel (p. 38). No entanto, antes desta disjuno, os autores falam de uma primeira: a disjuno com a necessidade ntica pelo efeito do acaso (p. 38). Cremos que, neste caso, as duas primeiras disjunes podem ser interpretadas como a parada da continuao, nos termos de Zilberberg (2006), ou como a
no embreagem, em que a somao-negao aplicada a uma sombra de valor, valncia, s pode instalar no S1, primeiro termo do quadrado semitico (p. 39). 18 O termo inconsciente refere-se aqui ao sujeito que no assume o discurso. claro que, nesta acepo, o termo guarda semelhana com a noo de inconsciente em psicanlise. No entanto levar a efeito esta
aproximao seria desviar-se do objetivo geral deste artigo.
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Sujeito inconsciente = no sujeito
EMBREAGEM
Continuao
Eu sou tudo
S
D
S tudo e D no nada
Corpo prprio
Conjuno (plena)
DEBREAGEM
Continuao da parada
Eu no sou nada
D
S
D tudo e S no nada
Sujeito assujeitado
Disjuno (plena)
Dixis positiva Dixis negativa
NO DEBREAGEM
Parada da parada
Eu sou algum que
S
D
S domina o destinador
reduzido ao papel
instrumental
Sujeito por afirmao
No disjuno
NO EMBREAGEM
Parada da continuao
Eu sou algum que no
D
S
D domina o sujeito
reduzido ao papel
instrumental
Sujeito por negao
No conjuno
Sujeito consciente = sujeito
No quadro acima, procuramos relacionar as diferentes contribuies de alguns
autores que, no terreno da semitica, trataram, direta ou indiretamente, da constituio
identitria dos actantes. A cada autor lido, ficava-nos a impresso de que aproximar as
diversas abordagens do tema seria uma tarefa benfazeja, cujo resultado revelaria as
convergncias possveis, se realizadas certas adaptaes, aqui ou acol, em algumas das
propostas examinadas.
Parece-nos, assim, que a noo de no sujeito, de Coquet, pode ser ampliada
para abranger tambm o actante neutralizado na sua relao com um destinador onipotente,
que daria origem a uma espcie de sujeito assujeitado. No polo oposto, contrrio ao do
sujeito assujeitado, estaria o sujeito-que-sente-e-percebe, o corpo prprio merleau-
pontyano, base do presente eterno. Estes dois, por no assumirem o seu discurso, concorrem
para a constituio da instncia no sujeito. Como seus subcontrrios, encontramos dois
sujeitos que assumem o discurso, avaliam as grandezas convocadas para ele e constituem-se,
como identidade, pelo prprio ato enunciativo, ora por negarem o domnio absoluto do
destinador, afirmando-se positivamente, ora por negarem a exclusividade do corpo prprio
como nico diretor do processo discursivo.
Afinal, se enunciar tornar as coisas presentes por meio da linguagem, como j
admitimos, ento o ato enunciativo provoca uma fissura no sujeito-que-sente-e-percebe,
deslocando-o do simples vivido, fenmeno abordado em Autopsicografia e Isto, como vimos. Neste ato, isto , no trnsito embreagem > no embreagem > debreagem, o sujeito
se neutraliza ao se tornar um ele, ao pluralizar a instncia enunciante. Todavia, no processo
enunciativo mesmo, faz-se o percurso contrrio, debreagem > no debreagem >
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embreagem, em que o corpo-que-sente-e-percebe pode ser apenas simulado em discurso,
uma vez que no se volta, depois da fissura inicial, sua inerncia, isto , embreagem plena.
Fundamentado nestas razes, assumimos a identidade do sujeito enunciante
como decorrente do discurso em ato, ou melhor, do processo enunciativo, no fazendo-se de
uma totalidade discursiva. E, neste processo, no h como pensar o sujeito do discurso isolado
da singularidade que cada texto em si constri, nem do espao interdiscursivo no qual ele se
move. Por isso, pode-se dizer que o sujeito discursivo e interdiscursivo a um s tempo, ou,
como afirma Fiorin (2006), o sujeito integralmente social e integralmente singular (p. 58). A seguir, exploramos duas letras de canes de Arnaldo Antunes como
exemplos de textos que refletem acerca do papel performtico da linguagem, atuando como
elemento fundamental na constituio da significao-mundo e da significao-sujeito.
Vamos primeiramente a As coisas, em que se faz patente a reflexo em torno da constituio da significao-mundo.
As coisas As coisas tm peso,
massa, volume, tamanho, tempo, forma, cor,
posio, textura, durao,
densidade, cheiro, valor,
consistncia, profundidade, contorno, temperatura,
funo, aparncia, preo,
destino, idade, sentido. As coisas no tm paz.
O ttulo, um sintagma nominal de mnima densidade smica, possui alto valor
referencial porque pode remeter a muitos objetos da semitica do mundo natural. O enunciador deste texto parece reconhecer um fazer estruturante das coisas em termos de significao. Trata-se do fazer categorizante da linguagem, que procede construo das
descontinuidades objetais de um contnuo identificado aqui como as coisas, e isto em funo de propriedades semnticas como peso, massa, volume etc. Cada uma dessas propriedades se constitui como parmetro que conjunta termos a serem depois organizados
num gradiente.
Sintomtica a presena do substantivo sentido no final da enumerao das propriedades atribudas s coisas com vistas ordenao categorial do mundo. Parece-nos que esta palavra resume a atividade central que extrai as coisas da dimenso do no sentido, pela mediao instauradora da linguagem, pela interveno do ato enunciativo, doador de
existncia semitica.
O texto permite supor que, antes da interveno doadora de sentido, as coisas repousam em paz, e que pela mediao da linguagem, no ato enunciativo mesmo, que elas saem deste estado de coisa e ganham forma semitica. Por isso, pode-se dizer que ao As
coisas foca a questo atual, muitas vezes abordada em textos poticos, da constituio do
mundo como estrutura de linguagem. Vale ressaltar que, na obra de Arnaldo Antunes, muitas
so s vezes em que este tema desenvolvido, o que por si s suficiente para coloc-lo
como um dos ldimos representantes da contemporaneidade potica atual.
Agora passemos a Fora de si, letra na qual se tematiza a constituio da significao-sujeito.
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Fora de si
eu fico louco
eu fico fora de si eu fica assim
eu fica fora de mim
eu fico um pouco depois eu saio daqui
eu vai embora
eu fico fora de si
eu fico oco
eu fica bem assim
eu fico sem ningum em mim
Essa letra de cano explora os mecanismos de debreagem e embreagem e,
com isso, promove a reflexo sobre o processo enunciativo propriamente dito e as instncias
de enunciao por ele implicadas. Expliquemos.
A partir da lexia do ttulo, que significa agitado, exaltado, desnorteado, furioso ou em xtase (HOUAISS e VILLAR, 2001), manifestao da instncia do no sujeito, portanto, o enunciador instaura um corpo-que-sente-e-percebe como centro de um
campo de presena que se encontra sob o domnio quase exclusivo da intensidade afetiva. A
conjuno com a loucura um estado de intensidade tnica e extensidade tona
experienciada pelo actante do enunciado e, nesse caso, decorre de uma transformao no
explicitada pelo texto, mas que, sabemos, se configura como minimizao do cognitivo.
O texto principia com uma debreagem enunciativa pela projeo do eu-agora
no discurso. Este eu, porm, perspectivado como um ele pelo enunciador, que, a partir do
movimento debreante inicial, opta por simular em discurso a instncia da enunciao, o que
cria o efeito de aproximao entre enunciado e enunciao, sem prejuzo para as instncias do
observador e do enunciatrio, que parecem estar mobilizados do ponto de vista
exclusivamente cognitivo. Temos, assim, uma atitude reflexiva referentemente ao estado de
coisa apresentado pelo texto, em que o sujeito debreado enunciativamente pura afetividade
submetida observao dos actantes da enunciao (enunciador, enunciatrio e observador).
O emprego do fora de si no segundo verso, em vez do fora de mim esperado, , para alm da simples subverso do cnon gramatical e validao de uma
variedade no culta da lngua portuguesa, um procedimento embreante que visa a promover a
reflexo sobre o sujeito conjunto com a loucura e, por contraditoriedade, sobre o sujeito so,
pois, segundo o texto, louco o sujeito em cujo campo discursivo no se encontra presente o
outro-deontologizante, destinador-manipulador segundo o dever ou, em outros termos, o
terceiro actante de Coquet. A loucura seria, assim, um estado de coisa decorrente de um
processo de triagem excessiva que beira a vacuidade cognitiva, como deixam ver os versos
eu fico oco e eu fico sem ningum em mim. No estado de louco estaria, portanto, o no sujeito, como instncia de pura afeco, isto , o eu esvaziado da presena do ele deontologizante, manifestado no ltimo verso da letra pela forma pronominal de terceira
pessoa ningum. O si do segundo verso, quer ele remeta segunda ou terceira pessoa, parece
se constituir referncia instncia do terceiro actante de Coquet, sentido este reforado pelo
concurso do verbo em terceira pessoa fica e pela forma de valor ditico assim. O pronome mim do quarto verso, por sua vez, promove uma nova debreagem enunciativa, em
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que se simula a assimilao entre o actante do enunciado e o enunciador, num ponto do texto
em que o eu parecia remeter exclusivamente a um ele, na qualidade de objeto da observao dos actantes da enunciao.
Tudo se passa como se a identidade do sujeito estivesse na dependncia da
presena de um algum dentro dele, isto , da presena de uma alteridade, um terceiro
actante, que pudesse fornecer os parmetros necessrios para sua identificao, uma alteridade
vinda de fora, a partir da qual, contratual ou polemicamente, o sujeito tivesse de forjar a
prpria identidade. As expresses espacializantes (fico, saio daqui e vai embora) manifestam o trnsito entre o fora e o dentro implicado pela construo e desconstruo da
identidade do sujeito, em que o eu parece ora estar debreado enunciativamente (eu fico um pouco e eu saio daqui), ora embreado enuncivamente (eu vai embora), neste ltimo caso equivalendo mais a um ele, como vimos.
Poderamos dizer, ento, que o texto tematiza a negociao sempre operante na
constituio da identidade do sujeito, que nasce inelutavelmente clivada pelas instncias do
no sujeito e do terceiro actante, como sugere Coquet, e que no discurso em ato, isto , na
prpria atividade enunciativa, que o sujeito e o mundo se fazem como construtos de
linguagem. Enunciar, portanto, no apenas tomar posio, como sugerem Fontanille e
Zilberberg (2001), mas principalmente construir posies que definem objetos e sujeitos num
dado campo discursivo.
Consideraes finais
Dada a centralidade que a questo da linguagem e a de seu papel na
constituio do sujeito e do mundo tem ocupado na produo potica da atualidade,
procuramos, neste artigo, apresentar o modo como a semitica discursiva a aborda,
articulando vertentes desta teoria consideradas inarticulveis por alguns de seus adeptos, ou
inconciliveis, por outros. Pensando ter alcanado algum sucesso neste propsito, buscamos
em Fernando Pessoa e Arnaldo Antunes, tomados como representantes da produo potica
moderna e ps-moderna, respectivamente, exemplos de textos em que o tema do papel
performtico da linguagem desenvolvido. Aps uma breve anlise dos quatro textos
selecionados, cremos poder dizer que os dois poetas no s demonstram ter plena conscincia
da funo mediadora e, mais do que isto, instauradora da linguagem, mas tambm fazem deste
um dos temas principais de seu labor literrio, como usual nas poticas da
contemporaneidade.
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Recebido em: 16.07.11
Aprovado em: 15.09.11
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